Preview only show first 10 pages with watermark. For full document please download

Textos Do Pré-modernismo

Apanhado de Textos para trabalho

   EMBED


Share

Transcript

Canaã - Graça Aranha Milkau, alemão, recém-chegado, o a uma colônia de imigrantes europeus, no Espírito Santo, aluga um cavalo para ir do Queimado à cidade de Porto do Cachoeiro. Junto com ele vai o guia, um menino de 9 anos, filho de um alugador de animais, no Queimado. O imigrante observa a paisagem e, ao passar por uma fazenda abandonada, entregue aos poucos e pobres escravos, nota o ritmo daquela gente desamparada. Finalmente, chega ao sobrado do comerciante alemão, Roberto Schultz, em Cachoeiro. Na parte inferior do edifício fica o armazém, onde é negociada toda sorte de produtos. É apresentado a outro imigrante, Von Lentz, filho de um general alemão. Milkau deseja arrematar um lote de terra para se estabelecer. Schultz apresenta-lhe o agrimensor, Sr.Felicíssimo, que está para ir ao Rio Doce fazer medições de terra. Milkau, desejando aí se estabelecer, decide se juntar ao agrimensor e convida o indeciso Lentz para acompanhá-lo. Pelo caminho, Lentz e Milkau discutem a paisagem e a raça brasileiras. Milkau crê que o progresso só se dá quando os povos se misturam. Vê, na fusão das raças adiantadas com as selvagens, o rejuvenescimento da civilização. Enquanto acredita na humanidade, pensa encontrar no Brasil Canaã, 'a terra prometida'. Lentz só se ocupa da superioridade germânica, ficando enaltecido com o triunfo dos alemães sobre os mestiços. Para ele, a mistura gera uma cultura inferior, uma civilização de mulatos que serão sempre escravos e viverão em meio a lutas e revoltas. Acrescenta que está no Brasil, porque o estava forçando a se casar com a filha de um general, amigo do pai. Preferiu começar vida nova, longe dos deveres e obrigações impostos por sua sociedade. Milkau conta-lhe que também não encontrava graça no viver, ansiava por uma vida mais independente, mais pessoal, em que pudesse dar vazão à sua individualidade. À noite, reúnem-se a Felicíssimo e ouvem de alguns homens da terra e dos trabalhadores alemães lendas, evocando o Reno e despertando saudades. Os planos dos dois imigrantes diferem; Milkau deseja manter seu pedaço de terra e anseia por uma justiça perfeita sem ganâncias ou lutas. Lentz está determinado a ampliar sua propriedade, ter muitos trabalhadores sob seu comando. Sonha com o domínio do branco sobre o mulato, sobre o homem da terra, numa confirmação de seu poder. Após as medidas tomadas por Felicíssimo, Milkau pode levantar sua casa e Lentz deixa-se ficar, triste e angustiado, incapaz de abandonar o companheiro, dedicando-se às viagens e compras da casa. No trajeto, encontra-se sempre com um velho colono alemão taciturno, em companhia de seus cães ferozes, mas fiéis. Mais tarde, encontrará esse velho morto em casa, guardado pelos animais e devorado pelos urubus. Um dia, ao retornar de Santa Teresa, Lentz traz a notícia de que, em Jequitibá, o novo pastor vai celebrar seu primeiro serviço. Os colonos preparam uma festa e Milkau resolve juntar-se a eles como forma de se familiarizar com os costumes do povo. Pelo caminho, os amigos encontram famílias inteiras de colonos. As mulheres se vestem com o modelo usado na partida para a nova terra, sendo possível identificar os países de onde vieram. Felicíssimo os convida para, depois do culto, festejarem no sobrado de Jacob Müller. Ouvem música e vêem o povo dançando. Milkau diz a Lentz que era isso o que buscava: uma vida simples em meio à gente simples, matando o ódio e esquecendo da dor. Os homens de outras terras estavam possuídos pelo demônio, devastando o mundo. Lentz vê em tudo aquilo uma existência vazia e inútil. Milkau conhece, nesse dia, no sobrado de Müller, uma colona, Maria Perutz, que não consegue mais esquecer o encontro com o rapaz. A história de Maria é triste e solitária. O pai morreu antes que ela pudesse conhecê-lo. A mãe viúva, criada da casa do alemão Augusto Kraus, logo falece e Maria fica sob os cuidados de Augusto, seu verdadeiro amigo. Moravam com o velho, seu filho, a nora Ema e o neto, Moritz Kraus. Repentinamente, Kraus falece e a situação na casa de Maria se modifica. Ema e o esposo decidem separar a moça do filho, temendo uma aproximação amorosa. A família quer ver Moritz casado com a rica Emília Schenker e o enviam para longe de Jequitibá. O rapaz parte contente, deixando Maria desgostosa, pois os dois já eram amantes. Franz Kraus é procurado por um Oficial de Justiça que, desejando saber porque a morte do velho não foi notificada, passa-lhe um documento sobre a necessidade de arrolamento dos bens de Augusto Kraus. Solicita que lhe prepare alojamento e comida para cinco pessoas, pois darão plantão em sua casa, recebendo todos aqueles que estiverem na mesma situação de Franz. O grupo se instala na casa e passa a chamar os colonos, amedrontando-os com extorsões e violências. Após a visita, cobram de Franz Kraus a alta importância de quatrocentos mil réis, além de demonstrarem certo interesse em Maria, notadamente o procurador Brederodes. Kraus sente-se ultrajado e roubado. A vida de Maria por essa época piora. Dia-a-dia, teme que seu estado se revele, por isso aguarda desesperadamente o retorno de Moritz para lhe contar sobre o filho que espera. Os pais do rapaz não tardam perceber o que se passa. Vendo-a mover-se pela casa languidamente, sentem ódio e temem pelo casamento do filho. Passam o dia a cochichar, a tramar para se verem livres dela. Tratamna com mais rigor, não lhe dão quase comida, dobram-lhe os trabalhos. Resignada, Maria resiste para desespero dos velhos. Uma manhã, trêmula e exausta deixa cair um prato. Encolerizada, Ema grita para que ela abandone a casa. O marido ameaça-lhe com um pedaço de madeira. Amedrontada, arruma uma trouxa e sai. Pede auxílio ao pastor, mas esse, dominado pela cunhada, docemente afasta Maria que parte para a vila em busca de abrigo. Ao verem a triste figura, os colonos tomam-na por louca, enxotando-a. Na floresta, seu único refúgio, cai prostrada e adormece. No dia seguinte, encontra uma estalagem, onde empenha a trouxa de roupa em troca de comida e abrigo. A dona do estabelecimento lhe dá dois dias para encontrar um emprego, mas a busca é em vão. Certo dia, na hora do almoço, Milkau reconhece Maria na estalagem. Ao saber de sua história, prontifica-se a ajudá-la, levando-a para a casa de uns colonos. A moça é aceita, mas a família não a trata bem, pelo contrário, Um dia, tratam-na trabalhando, solitariamente, com no cafezal, começa a desdém. sentir as dores do parto. Temendo retornar a casa e ser maltratada, resiste até cair e, esvaindo-se em sangue, dá luz ao bebê. Alguns porcos, que estavam nas proximidades, correm para lambê-los, mordendo o bebê que falece. A filha dos patrões chega nesse instante e, sem nada perguntar, volta a casa, dizendo que Maria tinha matado o bebê e dado a criança aos porcos. Dois dias depois, Perutz estava presa na cadeia de Cachoeiro. A população germânica, horrorizada com o crime de Maria, prepara-se para a vingança e o exemplo. Roberto Shultz procura os mesmos representantes da Justiça que amedrontaram e extorquiram os colonos, durante o arrolamento de bens. Pede-lhes que deixem a punição da mãe assassina para os alemães. O procurador Brederodes, ignorado por Maria na época, insiste em puni-la para que aprenda a não ser tão orgulhosa. Chama todos os alemães de hipócritas e parte, deixando Shultz desmoralizado. Milkau fica sabendo do destino de Perutz e o encontro com ela em Cachoeiro choca-o. Maria tinha a face lívida e os olhos cintilantes dançavam ao sabor da loucura. Volta a vê-la dias seguidos, passando a ser olhado com desprezo e desconfiança, pois, talvez, fosse o amante. Repelido pelos moradores, resigna-se com a condição de inimigo, permanecendo ao lado de Maria, que carecia de cuidados naquele momento. Certa manhã, estando em companhia de Felicíssimo, Milkau encontra Maria, sendo levada por dois soldados para o tribunal. Em cada fase do julgamento, é apontada culpada. Milkau acompanha todas as sessões, chegando a ficar amigo do juiz Paulo Maciel. Este lhe diz que o final não será feliz, pois os depoimentos não deixam brecha para a inocência. O imigrante e Maciel aproveitam os encontros para analisar a justiça brasileira, as leis, os desmandos, os brasileiros e seu patriotismo. A avaliação não é das melhores. O juiz impossibilitado de fazer justiça por uma série de circunstâncias observa que a decadência ali existente é um 'misto doloroso de selvageria dos povos que despontam para o mundo, e do esgotamento das raças acabadas. Há uma confusão geral'. Milkau crê que se pode chegar a algo melhor. Entretanto, à medida que acompanha o definhar da amiga, vai se deixando tomar pela tristeza. Finalmente, numa noite, Milkau tira Maria da prisão e foge com ela, correndo pelos campos em busca de Canaã, 'a terra prometida', onde os homens vivem em harmonia. Os sertões – Euclides da Cunha O imenso cenário sertanejo é o destaque inicial da obra: 'o planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas'. Aos poucos, essa paisagem é particularizada, apontando os destinos entrecruzados de homens terras, ares, água, árvores e bichos. A seguir, o autor aborda o clima sertanejo, que é indefinível porque 'nenhum pioneiro da ciência suportou ainda as agruras daquele rincão [...], em prazo suficiente para o definir'. Durante o dia prevalecem altas temperaturas, torrando tudo, e, à noite, ela cai abruptamente, enregelando a terra. A secura atmosférica no sertão é tanta que atua como uma estufa, secando tudo aquilo que tenta sobreviver naquele ambiente. A seca faz parte da vida do habitante dessa região, o sertanejo, que, sem temê-la, munido de fé, esperança e serenidade, enfrenta-a. A caatinga, celeiro da seca, agride o viajante com seus espinhos e folhas urticantes, mas, quando não há mais nada, é de lá que o homem extrai os mandacarus para iludir seu gado, e também os mangarás das bromélias selvagens para alimentar os filhos. Chega um ponto que não resiste mais e parte em retirada, mas tão logo o flagelo acaba, lá está ele de volta, morto de saudades. Homem permanente fatigado, o sertanejo 'reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude'. Todavia, basta um incidente qualquer para que ele se transfigure, adquirindo, subitamente, a característica de um 'titã dominador': 'a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte'. Apesar disso, é crédulo, místico, deixando-se levar por superstições absurdas. Sua religião traz em si, caracteres das três raças que o formaram: o branco, o índio e o negro; como ele, sua religião é mestiça. Após ocupar-se do clima e do sertanejo, o autor se volta para a figura de Antonio Vicente Mendes Maciel, conhecido por todos como Antonio Conselheiro. Este cearense de Quixeramobim, personagem principal do episódio de Canudos, era de família de negociantes com algumas posses. Foi um jovem tímido, sempre às voltas com os negócios do pai. Quando este morre, toma para si a tarefa abnegada de cuidar das três irmãs solteiras. Uma desilusão amorosa parece ser a responsável pela virada que dá na vida. Conta-se que sua mulher o trocou por um policial. Envergonhado, o infeliz foge da cidade, escondendo-se no sertão. Passa a vagar de vila em vila. De cabelo e barba longos, vive de esmolas, agregando pessoas para junto de si. Como os profetas, passa a carregar um cajado e a usar túnica larga de brim azul, sandálias e chapéu de abas largas. Assim, acaba se tornando 'o evangelizador monstruoso, mas autômato'. Sempre acompanhado de um grande séqüito, ajuda os necessitados, repara ou constrói igrejas nos vilarejos carentes; para ele, os adeptos são 'seus irmãos' e estes, por sua vez, chamam-no de 'meu pai'. Tinha horror às mulheres, vendo na sua beleza a face tentadora de Satã, falava-lhes de costas; agia assim, desse jeito estranho até com as velhas beatas. O autor passa a descrever o estilo do pregador. Sem muitos gestos, a oratória de Antonio Conselheiro era 'bárbara e arrepiante'; cheia de frases de efeito e citações, muitas vezes desconexas, de conselhos dogmáticos, confusos e de profecias esquisitas. Seus olhos, negros e vivos, tinham um brilho ofuscante que ninguém ousava contemplar. 'A multidão sucumbida abaixava [...] as vistas, fascinada, sob o estranho hipnotismo daquela insânia formidável'. Tendo como lema: 'bem-aventurados os que sofrem', pregava apenas práticas religiosas tradicionais do sertão: jejuns prolongados, provações, martírios e procissões de penitência, através de longas e extenuantes caminhadas. Mesmo assim, o Conselheiro não era bem visto pela igreja que o considerava louco. Esta já solicitara ao governo do império a internação do beato, em um asilo para doentes mentais, mas como não havia vaga, nada foi feito. O Conselheiro, espécie de grande homem pelo avesso, seguia 'sem tropeços na missão 'pervertedora', avultando na imaginação' e crença popular. Outra característica em destaque é a de que o beato era extremamente conservador e contra o regime republicano. Para ele, a nova república - o anticristo, a ordem de satanás - separara a igreja do Estado, instituindo, entre outras coisas, o casamento civil que lhe tirava a primazia de celebrar casamentos. Conforme o relato, o primeiro confronto de seus seguidores com a polícia se deu quando incitou os habitantes de um pequeno vilarejo a não pagar impostos instituídos pelo novo regime. Após o choque violento, resultando em mortos de ambos os lados, o Conselheiro, que percorrera o sertão numa romaria ininterrupta de vinte anos, decidiu parar, escolhendo uma fazenda abandonada, onde, longe do governo, pudesse praticar, com seu povo, sua religião. Nascia Canudos, fundada imediatamente por milhares de taperas de pau-a-pique, ao redor da praça central, onde começaram a construir uma grande igreja, faceando uma outra, de tamanho menor, pertencente à antiga fazenda. Com as duas igrejas na praça central, Canudos logo tomou ares de arraial. Com o passar do tempo, a vila, que estava aberta a todos, passou a ter uma população constituída dos mais diversos tipos: do matuto crédulo, vaqueiro iludido ao jagunço errante, forte e destemido. Todos eram bem vindos, pois neles estava à força do arraial. Essa gente despojava-se de tudo, aceitando, cegamente, o que vinha do beato, senhor e lei naquele deserto. O uso de cachaça, por exemplo, era rigorosamente punido. O estupro, não. 'Não é para admirar que se esboçasse logo, em Canudos, a promiscuidade [...]. Porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre'. Para os crentes que ali paravam, Canudos era o cosmos, um ponto de passagem transitório 'na romaria miraculosa para os céus'. Em Juazeiro, correu um boato que os jagunços do conselheiro iriam atacar a cidade por causa do atraso na entrega da madeira para a igreja nova do arraial. Para tranqüilizar a população, que já se pusera em alvoroço, o governador decide enviar a Canudos, em missão punitiva, 104 homens, chefiados pelo tenente Pires Ferreira. Como Antonio Conselheiro tinha homens - espiões - em todos os lugares, ficaram sabendo da expedição e resolveram preparar-lhe uma cilada, antes de chegar ao arraial. Isso ocorreu no povoado de Uauá, onde os soldados tinham parado. Disfarçados de penitentes, em uma imensa procissão de flagelados, carregando à frente uma cruz e o estandarte do Divino, os homens do batalhão do beato, armados de paus, facões, foices, pedras e velhas espingardas, foram em cima dos soldados, numa luta corpo-a-corpo feroz. Depois de algumas horas de combate sangrento, os jagunços puseram os soldados para correr, mesmo tendo mais perdas do que o inimigo. Com o fracasso da primeira expedição, uma segunda foi organizada, desta vez com mais de 500 homens, chefiados pelo major Febrônio de Brito. Antes de seguir caminho para Canudos, ficaram baseados em Monte Santo, durante quinze dias. Conhecida pela via sacra ao topo do monte, o vilarejo, ao sul de Canudos, transformou-se. Para os habitantes, acostumados a receber apenas romeiros em penitência, com o batalhão de Febrônio, a pacata cidade tomou ares de festa. Como da primeira vez, os aliados do Conselheiro levaram notícias da expedição aos homens do arraial, que resolveram surpreendê-los em emboscada, quando estivessem nos morros próximos de Canudos. Assim fizeram e, em apenas dois dias, venceram a batalha, afugentando os adversários cansados e despreparados para enfrentar o sertão. Essa derrota foi motivo para fantasiarem o real e o beato se torna questão nacional. Dizia-se que, sob disfarce do fanatismo religioso, Canudos representava, na verdade, uma reação monarquista, com adeptos em todo o país e, quiçá, no exterior. A terceira expedição foi preparada. Desta vez, era mais poderosa, com quatro canhões e 1300 homens, comandados por Moreira César. Esse comandante era famoso pela autoconfiança, coragem e também pelo temperamento impulsivo e instável. Traços que podem ter a ver com sua doença: epilepsia. Durante a campanha, sofre ataque epilético e comete dois erros estratégicos. No primeiro, ignora a caminhada, longa e extenuante, feita pelos soldados, que famintos e sedentos, são obrigados a atacar arraial. No segundo, imprudentemente, ordena estes mesmos soldados a lutarem corpo-a-corpo com os adversários, complicando a movimentação da tropa, perdida na rede de ruas labirínticas do arraial, inviabilizando a ação da artilharia que, se atirasse, poderia ferir os amigos. A situação dos soldados se complicava gradativamente. De repente, saindo de sua posição e dizendo que daria brio àquela gente, Moreira César rumou, corajosa e inconseqüentemente, para linha de fogo na direção do arraial, mas foi logo ferido, morrendo à noite. Na hierarquia, o próximo comandante seria o coronel Pedro Nunes Tamarindo que, desde o começo, discordara da atuação de Moreira César. Vendo aquela tropa toda desarticulada, deseja fugir, derrotado. Quando um soldado chama-o para assumir sua posição diz: 'é tempo de murici, cada um cuide de si'. Entretanto, mais tarde, é baleado na fuga. Os soldados, por sua vez, largando tudo, até o cadáver de Moreira César, saem em debandada. Os conselheiristas ficam com todo armamento abandonado e decapitam alguns soldados mortos, colocando as cabeças na estrada. O fracasso dessa expedição e a morte do corajoso Moreira César deram à imprensa motivos para criar histórias sobre os monarquistas e contra a grande ameaça à pátria - o arraial. Esses fatos demandavam outra expedição. De um bom número de estados do Brasil, foram recrutados mais de 5.000 homens. Para chefiálos, convocaram o general Artur Oscar de Andrade Guimarães. Além disso, as tropas seriam divididas em colunas. Duas ficariam baseadas em Monte Santo, enquanto a outra, comandada pelo general Cláudio Savaget sairia de Aracaju. A primeira trazia consigo um imenso e pesado canhão, apelidado de 'matadeira' pelos sertanejos. Como as tropas anteriores, a primeira coluna foi surpreendida em uma emboscada no Morro da Favela, atrapalhando-se e logo se desarticulando. O exército disparava para o arraial, enquanto, entrincheirados nos morros, os rebeldes insurgentes revidavam, deixando um saldo de mortos e feridos dos dois lados. A primeira coluna foi salva, graças à chegada de Savaget com seu segundo batalhão. Após um dia exaustivo de luta feroz e sangrenta, ao anoitecer, os soldados largavam as armas, para então ouvir, no silêncio desolador das noites sertanejas, as longínquas e agourentas rezas e cânticos dos inimigos. Os praças passaram um mês entre os jagunços do beato, o desânimo e a fome, morrendo, na maioria das vezes, em busca do que comer. Entre mortos e feridos, aproximadamente 900 estavam fora de combate. Os feridos foram escoltados por 'praças de infantaria até o extremo sul da zona perigosa, Juá'. Sem recursos e combalidos, enfrentavam a longa caminhada sob o sol inclemente da caatinga. Outra intervenção do governo reuniu 3.000 homens em Monte Santo sob o comando do Ministro da Guerra, Marechal Carlos Machado de Bittencourt. Para ele, cansaço, sede e fome, enfrentados pelos praças no trajeto causticante de Monte Santo a Canudos, foram a causa do fracasso das missões anteriores. A questão não era quantidade de homens e, sim, de mulas para transportar alimento e água para os soldados, entrincheirados próximos do arraial. Na sua opinião, 'mil burros mansos valiam, na emergência, por dez mil heróis'. A partir das primeiras levas de bestas, enviadas por ele ao campo de guerra, as tropas começaram a vencer. A igreja matriz foi bombardeada e destruída, ocorrendo assim o cerco, os incêndios e a destruição de Canudos, tomada no dia 5 de outubro de 1897, quando seus quatro últimos defensores, resistindo sem se render, morreram diante de milhares de soldados enfurecidos. Destruíram 5.200 casas, 'cuidadosamente contadas', e com elas milhares de pessoas foram mortas. Dentre elas, os jagunços: João Abade, Pajeú, Pedrão, homens de confiança do Conselheiro, e os acólitos religiosos do beato: José Beatinho, Paulo José da Rosa, Timotinho, o sineiro, que caiu junto com a torre da igreja. Deu-se então o massacre dos prisioneiros, na sua maioria mulheres, velhos, pessoas enfermas, moribundas e crianças. As mulheres não perigosas e as crianças foram poupadas da 'degola', que deveria ocorrer após um viva à República. Mas, sabendo da morte próxima, os prisioneiros davam vivas ao Conselheiro. Este não resistiu a uma grave disenteria, e aos problemas resultantes de um ferimento de granada, falece, depois de ter resistido tanto tempo, no dia 22 de setembro. Segundo o autor, na campanha de Canudos, pairava um dualismo incoerente, em que 'a selvageria impiedosa amparava-se à piedade pelos companheiros mortos'. A campanha não cumpria as leis, vingava-se. A 'degola', punição infinitamente mais prática, segundo a ideologia local, foi feita aleatoriamente, porque contavam com a impunidade. O sertão é o esconderijo. 'Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu, e passa'. Canudos, cercado de montanhas, 'era uns parênteses; era um hiato. Era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava'. O cadáver do Conselheiro é exumado e fotografado para que 'o país se convencesse bem de que estava afinal extinto aquele' terrível mal. Num gesto rotineiro, decapitaram-no e enviaram o crânio hediondo a Salvador, para 'que a ciência dissesse a última palavra'. Triste fim de Policarpo Quaresma – Lima Barreto Policarpo Quaresma, mais conhecido por Major Quaresma, subsecretário do Arsenal de Guerra, residia no bairro de São Januário, na cidade do Rio de Janeiro, há cerca de trinta anos. Muito conhecido entre a vizinhança, principalmente por seus hábitos metódicos e por seu extremado nacionalismo, sentia-se realizado em sua função burocrática no exército, escolhida quando, ao apresentar-se para o serviço militar, fora recusado pela junta de saúde. Sua pontualidade era tal que a vizinhança podia marcar o tempo por seus movimentos diários. E seu nacionalismo era tão extremado que em sua mesa, em sua biblioteca e em seu jardim havia lugar exclusivamente para comidas, livros e flores genuinamente nacionais. Na música só apreciava a modinha, a seu ver a mais autêntica e completa expressão musical da alma brasileira. Foi devido exatamente às suas preferências musicais que começaram a ser notados sinais de na vida do metódico subsecretário do Arsenal, sinais logo detectados pela vizinhança. Ocorria que, depois de quase trinta anos de estudos e de silencioso devotamento à causa de pátria, Quaresma começara a sentir dentro de si uma força que impelia a colocar em prática suas idéias, a colaborar para que o Brasil se tornasse rapidamente uma nação até mesmo superior à Inglaterra, que na época se encontrava no apogeu de seu poder. A primeira decisão tomada foi a de aprender a tocar violão. Para tanto contratou como seu professor Ricardo Coração dos Outros, famoso violinista e cantador de modinhas, que passou então a freqüentar assiduamente a casa, para desgosto de Adelaide, a irmã de Quaresma, que com ele residia, e para surpresa e espanto da vizinhança. Com a colaboração do general Albernaz, um vizinho que tinha cinco filhas para casar, e de Cavalcanti, um dentista, noivo de Ismênia, uma delas Quaresma descobre também um velho poeta popular que lhe fornece dados relativos a cultura do povo. Em seu entusiasmo, porém, o subsecretário não se satisfaz com isso e se dedica ao estudo das manifestações culturais indígenas chegando a assustar Olga, sua afilhada, e o compadre, o rico imigrante italiano Vicente Coleone, ao saudá-los à moda tupinambá quando, certa ocasião, estes vão visitá-lo. E um dia deixa intrigado Ricardo Coração dos Outros ao qualificar a inúbia e o maracá como instrumentos musicais muitos superiores ao violão. Assim, ninguém de surpreende quando, no dia do há tanto tempo esperado noivado de Ismênia uma notícia se espalha rapidamente Quaresma ficara louco e se encontrava internado. Tudo começara, segundo os presentes à festa, com requerimento que o subsecretário enviara à Câmara de Deputados solicitando a doação do tupi como língua oficial do país. O fato provocara risos, tornara-se o assunto do dia em todos os jornais e atraíra sobre o métodico Quaresma a ira dos colegas de repartição. A situação tornara-se, porém completamente insustentável quando o subsecretário, por distração traduzira para o tupi um requerimento que fora parar no Ministério da Guerra. O incidente gerava sua suspensão - que apenas não se transformara em demissão por intervenção de Vicente Coleoni - e o levara a tomar a decisão de interna-se no hospício, localizado na Praia das Saudades. Ali, Quaresma recebia periodicamente a visita de Ricardo Coração dos Outros, de Vicente Coleone e da filha. Em uma destas visitas, na companhia do pai. Olga percebe que o padrinho está bem melhor e aproveita a ocasião para informá-lo, sem muito entusiasmo, de que em breve casaria. Ao retornarem à casa de Quaresma, encontram Ricardo Coração dos Outros, em conversa com Adelaide, que lhes dá notícias do desconsolo de Ismênia, cujo noivo viajara há meses e nunca mais mandara notícias. Depois de seis meses de internamento Quaresma deixa o hospício aparentando ter-se recuperado, apesar de demonstrar tristeza e abatimento. Certo dia, Olga, vendo-o assim, pergunta-lhe se comprar um sítio não seria uma boa solução para ele. Quaresma mostra-se tão entusiasmado com a idéia que a afilhada quase se arrepende de ter falado no assunto. Passando imediatamente à ação, vende sua casa em São Januário, compra o 'Sossego', um sítio localizado no município de Curuzu, a duas horas de trem do Rio de Janeiro e, começa a fazer planos de produzir grandes quantidades de feijão, milho, frutas, verduras, etc. No 'Sossego', em companhia de Adelaide e de Anastácio, um antigo escravo que se esforça para ensiná-lo a capinar. Quaresma passa o tempo a trabalhar, limpando o pomar e as imediações da residência. Apesar do isolamento do sítio, ali também chega a política e Quaresma recebe um dia a visita do Tenente Antonino Dutra, escrivão da coletoria, que vem pedir-lhe uma ajuda para a festa da padroeira e sondá-lo a respeito de sua posição quanto às lutas políticas do município. Quaresma mostra-se disposto a dar ajuda para a festa mas deixa claro que não pretende envolver-se na política loca. Enquanto isto, no Rio, em seu quarto de pensão, Ricardo Coração dos Outros reflete, amargurado, sobre o fato de que outro tocador de violão e cantador de modinhas, um negro, passara aos poucos a ocupar seu lugar fazendo com que o povo esquecesse o antigo menestrel. Mas uma carta o anima: o general Albernaz finalmente conseguira marcar o casamento de uma das filhas, Quinota, e o convidava para a festa. Na ocasião, Ricardo Coração dos Outros revive seus dias de glória, o general aproveita para falar das batalhas das quais nunca participara e Ismênia chora ao recordar-se do noivo que desaparecera. Uma semana depois Olga também casa, apesar de já estar desiludida do noivo, o doutor Armando Borges, que inicialmente aparentara ser uma personalidade séria e dedicada à ciência mas logo se revelara um carreirista sem muitos escrúpulos. Quaresma decidira não ir à festa do casamento da afilhada, pois a época da semeadura aproximava-se e ele não queria perder tempo. Contudo, enviara o peru e o leitão tradicionais. Em Curuzu, a chegada de Ricardo Coração dos Outros, que decidira visitar o 'Sossego', movimenta a vila e o cantor vive novo período de glória em meio à sociedade local. Dias depois, Olga e o marido também aparecem no sitio. Certa manhã, Quaresma e todos os demais são tomados de surpresa: O Município, um semanário local ligado ao partido situacionista, publica um editorial atacando violentamente os intrusos, além de uns versos que ironizavam o antigo subsecretário do Arsenal. O espanto aumenta quando Ricardo Coração dos Outros relata o que ouvira, dias antes, na vila: todos acreditam que Quaresma viera ali para fazer política e o escrivão Antonino Dutra jurara desmascará-lo. Quaresma fica impressionado mas a presença dos amigos faz com que aos poucos o episódio seja esquecido. Durante os dias em que permanecem no 'Sossego', Olga se choca, em seus passeios pela região, com a miséria da população e o doutor Armando Borges chega à conclusão de que seria necessário adubar a terra para que ela produzisse, o que é violentamente negado por Quaresma, que em seu nacionalismo exacerbado defende a tese de que as terras do Brasil são as mais férteis do mundo. Depois de quase um ano lutando contra as ervas daninhas, as formigas, as pestes e toda a sorte de contratempos, Quaresma, finalmente, consegue produzir aipim, abacates, abóboras e outros alimentos. Mas ao vendê-los percebe que seu lucro é quase nulo, já que a ação dos atravessadores faz com que o preço paga ao produtor seja ínfimo e o cobrado do comprador seja alto. Isto o leva a pensar na necessidade de modernizar a agricultura, de comprar implementos e talvez até de usar adubos, como o aconselhara o marido da afilhada. Quaresma se dá conta também de que as condições em que viviam as populações do interior e que tanto haviam chocado Olga eram o resultado de uma política consciente dos grupos que detinham o poder há séculos, os quais não possuíam qualquer interesse em realizar reformas, pois as mesmas só serviriam para atrapalhar e até destruir seus esquemas de dominação política e social. Disso tem pessoalmente a prova quando percebe a rede de intrigas que os grupos políticos de Curuzu armam a seu redor por ter-se mantido eqüidistante dos mesmos. Na perspectiva destes grupos, ele é um intruso que com suas idéias ameaça a tranqüilidade do município, sendo necessário afastá-lo. Diante de tudo isto, os olhos do ex-subsecretário do Arsenal se abrem e ele compreende quanto fora ingênuo com suas idéias a respeito da modinha, do folclore e, até mesmo, da agricultura. Os remédios necessários para os males do país eram de natureza bem mais drástica. Era preciso um governo forte, faziam-se necessárias reformas profundas e leis sábias, principalmente no setor agrícola. Então sim a terra daria frutos, a população toda viveria em melhores condições e a Pátria seria feliz. Quaresma refletia sobre tais assuntos quando Felizardo, um de seus empregados, o informa que não viria trabalhar no dia seguinte, 7 de setembro, não por ser feriado, mas porque decidira fugir para o mato a fim de escapar a um possível recrutamento forçado. Ao ler os jornais, Quaresma, que ficara surpreso com o fato, entendo tudo. A esquadra revoltara-se e exigia que o presidente, o Marechal Floriano Peixoto, deixasse o poder. Os lhos de Quaresma brilham: um governo forte, reformas profundas, leis sábias....Era chegado o momento! Imediatamente vai até o telégrafo e passa uma mensagem: 'Marechal Floriano. Rio. Peço energia. Sigo já. Quaresma.' Enquanto isto, a cidade do Rio de Janeiro fervia. Em meio à agitação, o general Albernaz não só falava de suas batalhas como pensava em ver aumentado seu soldo, o que lhe possibilitaria casar outra das filhas: o doutor Armando Borges, por sua parte, preparava um novo salto em sua carreira; Vicente Coleoni mantinhase, prudentemente, afastado da política; Ismênia enlouquecia aos poucos e Olga conformava-se com um casamento infeliz. Só Ricardo Coração dos Outros, desligado das contingências terrenas e satisfeito com mais um período de fama, cantava sua última composição: Os lábios de Carola! Passados alguns dias, que ocupara colocando em dia seus negócios e procurando alguém para fazer companhia a Adelaide, Quaresma viaja ao Rio, contra os conselhos da irmã e sob o olhar assombrado de Anastácio, que parecia prenunciar desgraças. Chegando à cidade, agitada pela revolta, vai ao Palácio presidencial, carregando um memorial em que expunha as medidas necessárias para reformar e modernizar a estrutura agrária do país. Floriano, que o conhecera nos tempos do Arsenal, o saúda e, um tanto a contragosto, recebe o memorial mas não lhe dá muita importância, chegando a rasgar a primeira folha para escrever um bilhete ao ministro da Guerra. A conselho do marechal, Quaresma passa a integrar o batalhão patriótico 'Cruzeiro do Sul', comandado pelo Major Inocêncio Bustamante, agora tenente-coronel, com quem já se havia encontrado na casa do General Albernaz. Deixando o Palácio, sai em direção à residência de Vicente Coleoni, cruza-se com o general, o qual, interrogado sobre o estado de Ismênia, mostra-se contrafeito, não o informando de que a mesma enlouquecera completamente. Na casa de Coleoni, Quaresma discute a situação do País com Olga e o doutor Armando Borges, ocupado então com seu último truque de carreirista: traduzir seus artigos para uma linguagem difícil, diante da qual seus colegas de profissão e o público ficavam extasiados. Ao entardecer, segundo determinara o Tenente-coronel Bustamante, dirige-se ao quartel provisório em que se instalara o batalhão, na Ponta do Caju, e ali encontra Ricardo Coração dos Outros, recrutado a força e que se recusa a servir. Quaresma intervém a favor do cantor mas Bustamante mostra-se irredutível e o incorpora ao batalhão como cabo, concedendo, porém, que possa ficar com o violão. Agora como major de fato e não apenas por ter tido certa vez seu nome incluído em uma lista de integrantes da Guarda Nacional, o ex-subsecretário do Arsenal passa a comandar a guarnição do quartel provisório do batalhão patriótico 'Cruzeiro do Sul'. Entre seus comandados estão o próprio Ricardo Coração dos Outros e o Tenente Fontes, positivista fanático e noivo de Lalá, a terceira filha do General Albernaz. Responsável pelo canhão da guarnição, o Tenente Fontes mostra-se duro e autocrático, proibindo Ricardo Coração dos Outros de fazer suas serenatas. Com o tempo, a guerra passa aos poucos a integrar a vida da cidade e do próprio Quaresma, que tem no estudo da artilharia sua nova paixão. Às vezes, contudo, aborrecido da rotina, costumava deixar o posto entregue ao comando do tenente Fontes, quando este ali se encontrava, ou de Polidoro, o imediato, e ri até a cidade. Certo dia, andando até São Januário, visita o General Albernaz, em cuja residência estavam jantando o Almirante Caldas, o Tenente-coronel Bustamante e o Tenente Fontes. Na discussão que então tem lugar, o tenente mostra-se um idealista que pensa no futuro da nação e da sociedade como um todo, ao contrário do almirante e do general. O primeiro, cujo velho sonho era comandar uma esquadra, mostra-se pessimista com o futuro e o segundo tem como preocupação fundamental o problema de Ismênia. Pouco depois de Quaresma retornar ao quartel, ali chega Floriano, que tinha por hábito visitar à noite as guarnições. Na saída, o ex-subsecretário do Arsenal cria coragem e pergunta ao marechal se lera seu memorial. Este responde que sim mas não se mostra muito disposto a discutir as questões nele levantadas, encerrando o diálogo com a frase: 'Você, Quaresma, é um visionário...' Por esta época já fazia quatro meses que a revolta se iniciara e a situação continuava indefinida. Na Ponta do Caju, Ricardo Coração dos Outros, apesar de promovido a sargento a pedido do Tenente Fontes, entristecia cada vez mais em virtude da proibição de tocar violão. Quaresma, por sua vez, recordava com desânimo a forma como fora tratado por Floriano, em quem depositara a esperança de que viesse a ser o grande líder capaz de reformar e reorganizar o país. E na casa do General Albernaz, Ismênia definhava a olhos vistos, apesar de terem sido tentados todos os recursos para salvá-la, inclusive médium e feiticeiros. Informando desta situação, Quaresma solicita ao doutor Armanda Borges que a trate. Mesmo não se mostrando muito entusiasmo, o médico acede ao pedido. Seus esforços, contudo, também nada resolvem e certo dia Ismênia, depois de manifestar à mãe seu desejo de ser enterrada vestida de noiva, põe o vestido há tanto tempo guardado, o véu e a grinalda e cai sobre a cama, morta. Enquanto isto, em Curuzu, o 'Sossego' regredia rapidamente. Anastácio continuava trabalhando mas de forma totalmente desordenada e assim o sítio voltara aos poucos ao abandono em que se encontrava antes da chegada de Quaresma. Na vila, os partidos adversários haviam feito as pazes por algum tempo diante da situação criada com o surgimento de um terceiro candidato, imposto pelo governo. O desfile dos que iam votar na secção eleitoral localizada quase diante do 'Sossego' servira pelo menos para distrair um pouco Adelaide. Esta, que não tinha qualquer gosto pela roça e, inclusive, passara a comprar na venda os alimentos de que necessitava, vivia desolada, apesar da companhia de Sinhá Chica, a mulher de Felizardo, o qual continuava escondido no mato. Temendo o recrutamento forçado. Nas cartas que escrevia ao irmão, Adelaide pedia que retornasse o quanto antes, mostrando-se inconsolável pela situação. Nas respostas, Quaresma lhe pedia calma. A última destas, porém, fora diferente. O irmão contava que participara de uma batalha feroz, tendo chegado a matar inimigos, e revelava-se desesperado tanto por seu próprio destino quanto pela natureza humana. E acrescentava que fora ferido, tendo acontecido o mesmo com Ricardo Coração dos outros. Apesar do ferimento não ser grave, a convalescença de Quaresma foi longa, tendo a mesma servido para que ele meditasse sobre sua vida e suas desilusões. O período da inatividade chegou ao fim mais ou menos ao mesmo tempo que a revolta. As forças leais a Floriano dominaram a baía da Guanabara, os oficiais revoltosos refugiaram-se em navios portugueses e os marinheiros foram presos. Por esta época, Quaresma e Ricardo Coração dos Outros recebem alta. Este vai para a ilha das Cobras e o major é destacado para comandar a guarnição da ilha das Enxadas, assumindo a contragosto o papel de carcereiro, pois ali encontravam detidos os marinheiros abandonados por seus oficiais. Sozinho, sem ninguém para conversar, Quaresma fica profundamente deprimido ao refletir sobre o inesperado e melancólico final de uma aventura que o levara a ser o carcereiro de pobres seres humanos que estavam à mercê dos vencedores pelo crime de terem obedecido a seus superiores, que os haviam deixado à própria sorte. E certo dia, ao assistir a uma cena em que alguns dos prisioneiro eram escolhidos ao acaso e retirados da ilha para serem fuzilados, não resiste e escreve uma carta protestando violentamente contra o ato. Imediatamente é preso como traidor e levado para a ilha das Cobras para ser executado. Ali, diante da morte, mais uma vez medita sobre a inutilidade de sua vida, sobre o desastre q que o havia levado a causa republicana, sobre a própria ingenuidade ao acreditar no idealismo de homens que buscavam antes de tudo vantagens para si próprios e não a transformação e a felicidade da Pátria. Pátria, aliás, que lhe parecia agora não ser mais que um mito, um fantasma que criara no silêncio de seu gabinete. Sem amores, sem filhos, abandonado por todos, diante do vazio de sua vida e da morte próxima, Quaresma chora. Quaresma enganara-se, porém, pelo menos no que dizia respeito a Olga e Ricardo Coração dos Outros. Este, tão logo soubera da detenção, fazia tudo para conseguir a libertação, mesmo ciente de que corria grandes riscos, pois fora informado que a carta de Quaresma provocara grande indignação no Palácio presidencial, onde o massacre dos prisioneiros era visto como uma necessidade destinada a servir de exemplo e, assim, a fortalecer o regime. Contudo, seus esforços de nada resolvem. Nem o General Albernaz, nem seu genro Genelício, nem o tenente-coronel Bustamante aceitam interceder em favor de Quaresma. Sem saber o que fazer, Ricardo Coração dos Outros vai a casa de Olga. Esta mostrase desorientada, pois também não tinha noção do que fazer. Em determinado momento, porém, o menestrel a lembra que ela própria poderia ir ao Palácio. Surpreendendo-se inicialmente com a idéia, decide enfrentar a situação. Ao saber disto, temeroso das conseqüências deste ato para suas ambições de carreirista, o doutor Armando Borges fica furioso e quer impedi-la de fazer o que pretende. Olga, porém, não o atende e sai da residência determinada a falar com o presidente. No palácio, um ajudante de ordens de Floriano, depois de qualificar Quaresma de traidor e bandido, a informa de que não será recebida. Olga não insiste e retira-se orgulhosamente, chegando à conclusão de que talvez fosse mais coerente deixar o padrinho morrer só e heroicamente do que humilhá-lo com um pedido de clemência que diminuiria sua grandeza moral diante de seus verdugos. Olhando a cidade e pensando nas profundas modificações que tudo sofrera ao longo de quatro séculos, consola-se pensando que o futuro trará mudanças. E nutrindo esta frágil esperança segue ao encontro de Ricardo Coração dos Outros. Análise de alguns personagens A história de Policarpo Quaresma, como personagem central da obra, é a história de um erro. E este erro é, fundamentalmente, a incapacidade do protagonista em detectar as estruturas de poder. Na verdade, ele percebe as conseqüências destas estruturas mas não chega a descobrir como as mesmas funcionam. Seu nacionalismo, seu desejo de transformar a agricultura e seu projeto de reorganizar o próprio país partem de uma adequada análise da realidade mas não levam em conta os mecanismos geradores desta realidade. Assim, Quaresma aparece como frágil e solitário porque sua confiança nas instituições políticas não é mais do que um equívoco, pois se baseia no falso pressuposto de que os homens que as representam possuam um idealismo que vá além de seus próprios interesses imediatistas. Floriano, encarnando o próprio poder, o define com frieza e completa propriedade: 'Você, Quaresma, é um visionário...' Um visionário não porque seja louco ou porque seus projetos sejam absurdos em si, mas porque o são por não se adequarem e até serem contrários aos interesses dos grupos que detêm o poder. Ao final, como ao longo de toda a obra, Quaresma, mais uma vez, percebe, os fatos com realismo mas não entende por que sua aventura termina em tragédia. Este conflito é a própria essência do personagem. Se ele entendesse as leis que regem o mundo permaneceria à margem dos acontecimentos - como o imigrante Coleoni - ou a eles se amoldaria, deles se aproveitando. Mas neste caso não seria Policarpo Quaresma nem personagem de Lima Barreto. Pertenceria antes à galeria do discretos canalhas que povoam a ficção de Machado de Assis, por exemplo. Ricardo Coração dos Outros, o trovador suburbano, é, no conjunto da obra, um personagem complexo, possuindo uma importância somente inferior à de Policarpo Quaresma e podendo ser analisado a partir de, pelo menos, três pontos de vista bastante distintos, se bem que não exclusivamente entre si. Como personificação do artista nacional na visão de Policarpo Quaresma, Ricardo Coração dos Outros representa a cultura popular, isto é, as formas de expressão dos grupos sociais inferiores, já que os grupos dirigentes, por definição e sempre na visão de Policarpo Quaresma, possuem formas de expressão artísticas alienígenas, não nacionais. Como tal, desconsiderada momentaneamente a idealização de que é objeto por parte do nacionalismo do protagonista, ele pode ser considerado como símbolo da rígida estratificação cultural - produto da estratificação econômica e social - da sociedade brasileira. Por outro lado, em termos estritamente sociais, Ricardo Coração dos Outros tipifica amplos segmentos da sociedade carioca da época: os moradores dos subúrbios, segundo diz o narrador/comentarista, também divididos, por sua vez, em estratos. No contexto desta sociedade, o trovador suburbano utiliza sua habilidade de músico como instrumento de ascensão social, deixando claros tanto sua pretensão de alcançar com sua arte também os bairros ricos quanto um mal disfarçado racismo. Finalmente, Ricardo Coração dos Outros pode ser tomado ainda como protótipo do artista, mergulhado em seu trabalho criador, afastado das contingências mundanas e das preocupações práticas e dedicado a ser o coração dos outros, isto é, o porta-voz dos sentimentos e emoções dos demais. Na ficção brasileira Olga surge como primeiro personagem feminino a dissecar logicamente e a verbalizar claramente sua posição no mundo a partir de uma perspectiva crítica coerente. Esta análise não chega a adquirir grande profundidade mas é suficientemente ampla para englobar tanto sua função social especifica como mulher quanto a própria realidade política. No primeiro caso, rebela-se contra o oportunismo do marido, preocupado exclusivamente com sua própria carreira. No segundo, a partir da crise desencadeada pelo trágico destino do padrinho, revolta-se contra as instituições, que determinam o caminho dos indivíduos dentro delas. E é somente ao juntar os dois planos, o pessoal e o social, que Olga, abandonando o conformismo a que se entregara por entender que não havia alternativas para ela, manifesta corajosamente sua rebeldia. Contudo, também realista como o marido, apenas que com interesses diversos, não tira todas as conseqüências de sua atitude e entrega ao processo histórico-social o papel de desencadeador das necessárias e inevitáveis mudanças. Na verdade, apesar de pertencer a uma geração de mulheres que começam a não aceitar mais um papel submisso e secundário como o de Maricota, a esposa de Albernaz, ou de Adelaide - é preciso acentuar que Olga, como filha de um abastado imigrante, tem todas as condições econômicas e sociais para comandar seu próprio destino e de fugir ao trágico final de Ismênia. Apesar de aparecer apenas incidentalmente, o personagem do marechal e presidente Floriano Peixoto adquire importância não apenas por ser transportado do mundo real da história para a ficção mas principalmente por representar o poder. Alvo de violentas críticas nas intervenções do autor/narrador, que nestas ocasiões o identifica como o próprio Floriano do mundo real da história e não como personagem de ficção, o marechal é visto como um feroz tiranete doméstico, intelectualmente limitado e despreparado. Esta imagem, contudo, contradiz sua ação como personagem de ficção em si, pois nesta condição mostra compreender muito bem o poder que possui, os atos que pratica e o papel que desempenha. Afinal, é ele que, ao tomar conhecimento dos projetos do major, o define com uma precisão inapelável: 'Você, Quaresma, é um visionário...' Da mesma forma que é ele que o condena, segundo a fria e brutal lógica do poder, de acordo com a qual não havia outra saída. Porque, de fato, Quaresma nada entendera. Jeca Tatu – Monteiro Lobato Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia e de vários filhinhos pálidos e tristes. Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha idéia de plantar um pé de couve atras da casa. Perto um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo. Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só. Todos que passavam por ali murmuravam: Que grandíssimo preguiçoso! Jeca Tatu era tão fraco que quando ia lenhar vinha com um feixinho que parecia brincadeira. E vinha arcado, como se estivesse carregando um enorme peso. Por que não traz de uma vez um feixe grande? Perguntaram-lhe um dia. Jeca Tatu coçou a barbicha rala e respondeu: Não paga a pena. Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta, nem plantar arvores de fruta, nem remendar a roupa. Só pagava a pena beber pinga. Por que você bebe, Jeca? Diziam-lhe. Bebo para esquecer. Esquecer o quê? Esquecer as desgraças da vida. E os passantes murmuravam: Além de vadio, bêbado... Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham poucos ovos. Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom companheiro e leal amigo. Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por que? Desânimo, preguiça... As pessoas que viam aquilo franziam o nariz. Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro... Jeca só queria beber pinga e espichar-se ao sol no terreiro. Ali ficava horas, com o cachorrinho rente; cochilando. A vida que rodasse, o mato que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele. Perto morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo? Quando lhe perguntavam isso, ele dizia: Não paga a pena plantar. A formiga come tudo. Mas como é que o seu vizinho italiano não tem formiga no sítio? É que ele mata. E porque você não faz o mesmo? Jeca coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história: Quá! Não paga a pena... Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota, era o que todos diziam. Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou-se de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e xucro, resolveu examiná-lo. Amigo Jeca, o que você tem é doença. Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada aqui no peito que responde na cacunda. Isso mesmo. Você sofre de anquilostomiase. Anqui... o quê? Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita. Essa tal maleita não é a sezão? Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo é a mesma coisa, está entendendo? A sezão também produz anemia, moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente. Conhece-se a maleita pelo arrepio, ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em horas certas e com muito suor. O que você tem é outra coisa. É amarelão. O doutor receitou-se o remédio adequado; depois disse: "E trate de comprar um par de botinas e nunca mais me ande descalço nem beba pinga, ouviu?" Ouvi, sim, senhor! Pois é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva passou e vou-me embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. Na semana que vem estarei de volta. Até por lá, sêo doutor! Jeca ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da ciência, mas por fim resolveu comprar os remédios, e também um par de botinas ringideiras. Nos primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas acostumou-se, afinal... Quando o doutor reapareceu, Jeca estava bem melhor, graças ao remédio tomado. O doutor mostrou-lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas. Veja, sêo Jeca, que bicharia tremenda estava se criando na sua barriga! São os tais anquilostomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela carne adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam-se nas tripas e escangalham com o freguês. Tomando este remédio você bota p'ra fora todos os anquilostomos que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa que entrem os que estão na terra. Assim fica livre da doença pelo resto da vida. Jeca abriu a boca, maravilhado. Os anjos digam amém, sêo doutor! Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era "positivo" e dos tais que "só vendo". O doutor resolveu abrir-lhe os olhos. Levou-o a um lugar úmido, atrás da casa, e disse: Tire a botina e ande um pouco por aí. Jeca obedeceu. Agora venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho. Assim. Agora examine a pela com esta lente. Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que já estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos assombrado. E não é que é mesmo? Quem "havera" de dizer!... Pois é isso, sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que a ciência disser. Nunca mais! Daqui por diante nha ciência está dizendo e Jeca está jurando em cima! T'esconjuro! E pinga, então, nem p'ra remédio... Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses depois ninguém mais conhecia o Jeca. A preguiça desapareceu. Quando ele agarrava no machado, as arvores tremiam de pavor. Era pan, pan, pan... horas seguidas, e os maiores paus não tinham remédio senão cair. Jeca, cheio de coragem, botou abaixo um capoeirão para fazer uma roça de três alqueires. E plantou eucaliptos nas terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os buracos da casa. E fez um chiqueiro para os porcos. E um galinheiro para as aves. O homem não parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu vizinho italiano. Descanse um pouco, homem! Assim você arrebenta... diziam os passantes. Quero ganhar o tempo perdido, respondia ele sem largar do machado. Quero tirar a prosa do "intaliano". Jeca, que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem de onça! Uma vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho. Onça! Exclamou ele. É onça e eu aqui sem nem uma faca!... Mas não perdeu a coragem. Esperou a onça, de pé firme. Quando a fera o atacou, ele ferrou-se tamanho murro na cara, que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou-a pelo pescoço e estrangulou-a Conheceu, papuda? Você pensa então que está lidando com algum pinguço opilado? Fique sabendo que tomei remédio do bom e uso botina ringideira... A companheira da onça, ao ouvir tais palavras, não quis saber de histórias - azulou! Dizem que até hoje está correndo... Ele, que antigamente só trazia três pausinhos, carregava agora cada feixe de lenha que metia medo. E carregava-os sorrindo, como se o enorme peso não passasse de brincadeira. Amigo Jeca, você arrebenta! Diziam-lhe. Onde se viu carregar tanto pau de uma vez? Já não sou aquele de dantes! Isto para mim agora é canja, respondia o caboclo sorrindo. Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou no mato grossas perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe no muque para o terreiro as toras todas. Sozinho! Quero mostrar a esta paulama quanto vale um homem que tomou remédio de Nha Ciência, que usa botina cantadeira e não bebe nem um só martelinho de cachaça. O italiano via aquilo e coçava a cabeça. Se eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente, Per Bacco! Dava gosto ver as roças do Jeca. Comprou arados e bois, e não plantava nada sem primeiro afofar a terra. O resultado foi que os milhos vinham lindos e o feijão era uma beleza. O italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca Ter visto roças assim. E Jeca já não plantava rocinhas como antigamente. Só queria saber de roças grandes, cada vez maiores, que fizessem inveja no bairro. E se alguém lhe perguntava: Mas para que tanta roça, homem? Ele respondia: É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui uma enorme fazenda. E hei de ser até coronel... E ninguém duvidava mais. O italiano dizia: E forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!... Por esse tempo o doutor passou por lá e ficou admiradíssimo da transformação do seu doente. Esperara que ele sarasse, mas não contara com tal mudança. Jeca o recebeu de braços abertos e apresentou-o à mulher e aos filhos. Os meninos cresciam viçosos, e viviam brincando contentes como passarinhos. E toda gente ali andava calçada. O caboclo ficara com tanta fé no calçado, que metera botinas até nos pés dos animais caseiros! Galinhas, patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O galo, esse andava de bota e espora! Isso também é demais, sêo Jeca, disse o doutor. Isso é contra a natureza! Bem sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles aparecem por aqui, vêem isso e não se esquecem mais da história. Em pouco tempo os resultados foram maravilhosos. A porcada aumentou de tal modo, que vinha gente de longe admirar aquilo. Jeca adquiriu um caminhão Ford, e em vez de conduzir os porcos ao mercado pelo sistema antigo, levava-os de auto, num instantinho, buzinando pela estrada afora, fon-fon! fon-fon!... As estradas eram péssimas; mas ele consertou-as à sua custa. Jeca parecia um doido. Só pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros e por fim tomou um professor de inglês. Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa. O seu professor dizia: O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha! É hen... Mas de álcool, nada. Antes quer ver o demônio do que um copinho da "branca"... Jeca só fumava charutos fabricados especialmente para ele, e só corria as roças montado em cavalos árabes de puro sangue. Quem o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um "estranja" legítimo, até na fala. Na sua fazenda havia de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com quanta fruta há no mundo. Até criação de bicho da seda; Jeca formou um amoreiral que não tinha fim. Quero que tudo aqui ande na seda, mas seda fabricada em casa. Até os sacos aqui da fazenda têm que ser de seda, para moer os invejosos... E ninguém duvidava de nada. O homem é mágico, diziam os vizinhos. Quando assenta de fazer uma coisa, faz mesmo, nem que seja um despropósito... A fazenda do Jeca tornou-se famosa no país inteiro. Tudo ali era por meio do rádio e da eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório, tocava num botão e o cocho do chiqueiro se enchia automaticamente de rações muito bem dosadas. Tocava outro botão, e um repuxo de milho atraia todo o galinhame... Suas roças eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço, na varanda, ele dava ordens aos feitores lá longe. Chegou a mandar buscar no Estados Unidos um telescópio. Quero aqui desta varanda ver tudo que se passa em minha fazenda. E tanto fez, que viu. Jeca instalou os aparelhos e assim pode, da sua varanda, com o charutão na boca, não só falar por meio do rádio para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por meio do telescópio, o que os camaradas estavam fazendo. Ficou rico e estimado, como era natural; mas não parou aí. Resolveu ensinar o caminho da saúde aos caipiras das redondezas. Para isso montou na fazenda e vilas próximas vários Postos de Maleita, onde tratava os enfermos de sezões; e também Postos de Anquilostomose, onde curava os doentes de amarelão e outras doenças causadas por bichinhos nas tripas. O seu entusiasmo era enorme. "Hei de empregar toda a minha fortuna nesta obra de saúde geral, dizia ele. O meu patriotismo é este. Minha divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia que devora o brasileiro..." E a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu, aos 89 anos, não teve estátua, nem grandes elogios nos jornais. Mas ninguém ainda morreu de consciência tranqüila. Havia cumprido o seu dever até o fim. Meninos: nunca se esqueçam desta história; e, quando crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se forem fazendeiros, procurem curar os camaradas da fazenda. Além de ser para eles um grande benefício, é para você um alto negócio. Você verá o trabalho dessa gente produzir três vezes mais. Um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ter saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí.