Transcript
TÉCNICAS DO JORNAL DIÁRIO
Pedro Celso Campos
Enquanto se discute se a Internet vai ou não vai tomar o lugar
do jornal impresso como meio de informação rápida e eficiente, a maioria
dos especialistas aconselha os jornalistas a se tornarem "multimídia", isto
é, profissionais habilitados a escrever bem e rápido sobre qualquer assunto
e para qualquer público, seja do impresso, do rádio, da TV, da Internet.
Também se espera que o novo jornalista saiba não apenas lidar com as novas
tecnologias à sua disposição, mas que saiba "pensar visualmente",
valorizando a imagem numa época em que os recursos digitais transformaram o
próprio texto em imagem. O bom repórter discute a pauta com o pauteiro, a
foto com o fotógrafo, o hinfográfico com o Departamento de Arte e a
diagramação com o programador visual.
Sem dúvida esse preparo do novo profissional passa pela
adequação do ensino universitário às necessidades com as quais o jovem
recém-formado vai se deparar no mercado. Talvez por isto – apesar da
reflexão crítica que nos leva a considerar o espaço universitário como o
lugar da experienciação e das novas propostas - os estudantes de
jornalismo sempre pedem ao professor, todo semestre, algum tipo de contato
com profissionais do mercado capazes de explicar o que está acontecendo,
"hoje", na prática profissional.
O receio é que a formação meramente teórica afaste o jovem do
mercado ao invés de inseri-lo nesse mundo em permanente estado de
transformação sem deixar de levar em conta a formação teórica e o
aprendizado ético e moral, próprios da academia.
Trazer os profissionais bem sucedidos para a sala de aula é
algo muito complicado, por diversos fatores. São pessoas sempre muito
ocupadas e a escola pública nunca tem verba para arcar com as despesas de
viagens, cachês etc, já que a maioria milita no eixo Rio-São Paulo-
Brasília. Quando muito consegue-se recurso extra para trazer algum
profissional por ocasião dos eventos acadêmicos, para uma palestra apenas,
ou uma mesa redonda.
No entanto, os alunos querem um contato mais direto, mais
intenso. Querem mais tempo para aprender coisas novas com o visitante, para
atualizar o "saber-fazer".
Por isto, neste primeiro semestre de 2003, na impossibilidade
de trazer até a Unesp de Bauru o Editor do "Correio Braziliense", de
Brasília, jornalista Ricardo Noblat, optamos por repassar aos alunos de
"Técnicas de Reportagem, Entrevista e Pesquisa Jornalística" os principais
ensinamentos do mais recente livro desse conceituado profissional: "A Arte
de Fazer um Jornal Diário" – São Paulo: Editora Contexto, 2002.
(Antes, porém, é preciso lembrar que o pernambucano Ricardo
Noblat, com 35 anos de experiência profissional, já ocupou os mais
destacados postos da mídia brasileira, com inúmeras reportagens no
exterior, tendo sido, também, responsável pela reforma gráfica e visual do
"Correio Braziliense" em 2.000. Regularmente dá palestras em universidades
brasileiras).
CRÍTICA AO "JORNAL-ESPETÁCULO"
"O que interessa ao público nem sempre é de interesse público",
observa Noblat. E explica: "...estimular os baixos instintos do ser humano,
por exemplo, interessa a uma expressiva fatia do público. Aumenta as vendas
de um jornal. Amplia a audiência de uma emissora de TV. Mas proceder assim
é condenável porque em vez de contribuir para a elevação dos padrões morais
da sociedade, o jornalismo os rebaixa".
Com isto o autor condena a euforia do furo pelo furo, quando o
repórter conclui que tem o direito de apelar para quaisquer recursos na
hora de sair na frente com a sua notícia, usando câmaras ocultas, mentindo
sobre sua condição de jornalista, roubando documentos, invadindo a
privacidade alheia, traindo a confiança de fontes que se revelam em off,
etc.
Um profissional que representa a sociedade na hora de
fiscalizar e combater os corruptos, não tem o direito de mentir e trair
para se destacar no mercado de trabalho. Deve, isto sim, agir com ética e
transparência.
Noblat ilustra o ensinamento com o caso da TV comercial que
normalmente destaca matérias sem importância apenas porque rendem belas
imagens, e muitas vezes ignora notícias que não comportam imagens tão
relevantes, mas que são de grande importância para o público.
Tanto os jornais quanto a TV noticiam com grande destaque a
fase policial dos processos, quando as pessoas são apresentadas à sociedade
como suspeitas de algum crime, porém ignoram a fase judicial, quando,
muitas vezes, são inocentadas em juízo e tudo o que sai na imprensa são
poucas linhas num pé de página.
Em suma: Transformar a notícia em espetáculo "interessa ao
público", mas não é "de interesse público". O autor critica a arrogância
dos jornalistas em geral – principalmente dos que apelam para meios
fraudulentos na hora de apurar a matéria. Faz até uma pilhéria: "Médico
pensa que é Deus, jornalista tem certeza".
Portanto, é bom lembrar: A competência profissional não
dispensa uma boa dose de humildade.
JORNAL DE ONTEM
Quando abrimos o jornal do dia só vamos ler notícias que já
vimos ontem na TV e na Internet, ou que ouvimos no rádio. Que graça tem ler
matéria velha? Será que não poderíamos desenvolver a criatividade para
produzir o "Jornalismo Histórico", através das muitas ferramentas que hoje
temos em mãos, como a Internet, recorrendo a pesquisas documentais,
entrevistas etc, transformando fatos históricos em saborosos textos
jornalísticos? O autor vai mais além, ao indagar se não poderíamos ser mais
criativos ainda a ponto de produzirmos o "Jornal de Amanhã"? Segundo
Noblat isto já existe. Lembra que a CNN noticiou a Guerra do Golfo antes
que ela se iniciasse de fato porque contava com uma grande equipe de
profissionais especializados em análises. Em contrapartida, os jornalistas
políticos do Brasil só noticiaram que a governadora do Maranhão, Roseana
Sarney, estava fora da sucessão presidencial de 2002 quando ela convocou a
imprensa para anunciar essa notícia óbvia, após o escândalo das notas de R$
50,00 encontradas na Empresa Lumus, de seu marido, Jorge Murad.
Talvez não se invista nesse tipo de jornalismo porque as
empresas estão sempre em contenção de custos e não querem investir em
profissionais tão competentes a ponto de analisarem a perspectiva dos
fatos, pois não se trata de fazer futurologia, mas de mostrar ao leitor a
tendência dos acontecimentos, como fazem, por exemplo, os consultores de
economia.
Outro ponto que Ricardo Noblat aborda é a própria definição de
notícia. "O que é notícia?", indaga. E responde: "Notícia é tudo que os
jornalistas escolhem para oferecer ao público". Muitas vezes os jornalistas
valorizam mais as notícias negativas – como forma de obter mais audiência
para seu veículo - e então o mundo parece muitas vezes pior do que
verdadeiramente é, segundo o autor.
Trata-se de uma verdade que deve ser objeto de reflexão, se
lembrarmos que existe muito mais "liberdade de empresa" que "liberdade de
imprensa" em todo o mundo. Dá para imaginar o poder e a responsabilidade
das pessoas que "agendam o mundo", isto é, que decidem o que deve ser
noticiado no mundo a partir de meia dúzia de agências internacionais. No
caso do Brasil não é muito maior o número de famílias que controlam a
imprensa, portanto o pensamento nacional.
O VALOR DO DETALHE
Ensina Ricardo Nobalt que os jovens profissionais não devem
desprezar jamais a riqueza dos detalhes – por menores que sejam – porque
neles pode estar a chave de uma grande matéria. Mas só repara em detalhes
quem desenvolve um excepcional poder de percepção, um padrão elevado de
sensibilidade. Em algumas escolas de jornalismo dos EUA ( como em Berkeley)
os estudantes de jornalismo são levados a recitarem obras de Shakespeare e
a ouvirem música clássica, como forma de treinar a sensibilidade.
Segundo o autor, é melhor o repórter pecar por excesso de
informação ( a ponto de ter que jogar algumas no lixo se o espaço que lhe
couber for insuficiente) do que por falta de detalhes na apuração de uma
matéria. Para destacar a importância do detalhe, lembra que a quantidade de
álcool que os jovens de classe média usaram para atear fogo no indio
Galdino, em Brasília, um litro, foi determinante na condenação deles.
Imagine-se se a imprensa não tivesse registrado a quantidade corretamente
por preguiça de apuração?
"A importância de um fato é que determina a extensão de uma
notícia. Mas, mesmo uma notícia de umas 30 linhas ganhará mais
credibilidade se o repórter contá-la em detalhes", ensina Ricardo Noblat.
É preciso ficar claro que registrar detalhes numa apuração dá
muito trabalho. Mas é o que faz a diferença num universo em que os jornais
são todos iguais, de norte a sul do país, porque assinam as mesmas agências
e publicam as mesmas manchetes e até a mesma foto. Quando o "detalhe" é
gente, então o repórter precisa ficar ainda mais esperto. Afinal, "gente"
não é detalhe, é sujeito da história. O autor cita o exemplo hipotético de
uma mulher ( Maria José da Conceição) que é barrada num show de Gilberto
Gil, no Canecão, porque chegou atrasada devido ao trânsito. Ensina que
personagem de matéria não pode limitar-se a um nome: Quantos anos tem Maria
José? O que ela faz na vida? É casada ou solteira? Tem filhos? É gorda e
baixinha ou alta e magrinha? Onde mora? Como estava vestida? Falava em voz
alta ou em voz baixa?
Respostas a tais detalhes dão vida a um personagem e permitem
que os leitores se identifiquem com ele. Afinal, gente gosta de ler
histórias sobre gente, diz Noblat.
Apurar detalhadamente tem a ver com a explicação dos fatos ao
leitor. É o que o Novo Jornalismo dos anos 60 chama de "interpretação". O
bom profissional foge do "denuncismo", isto é, das denúncias sem provas.
Não basta o truque de "ouvir os dois lados" e depois lavar as mãos. O
leitor quer muito mais, quer as origens, as causas do fato, as
consequências, os resultados dele. Tudo isto significa apurar com
responsabilidade.
Para chegar ao fundo da questão, o repórter deve duvidar da
primeira informação que recebe. Deve pesquisar melhor, confirmar com outras
fontes, checar a informação, ler documentos e publicações de nível a
respeito, buscar a verdade – sempre através de mecanismos legais e lícitos
– sempre lembrando que "nada é como parece", pois não existe verdade
absoluta. É preciso ser cético.
(Na hora da entrevista, segundo Noblat, nem sempre o gravador
ajuda. Muitas vezes ele inibe o entrevistado e desliga o entrevistador que
passa a se preocupar apenas com o funcionamento da máquina, sem prestar
atenção no andamento da entrevista. Também aconselha que se mude de assunto
quando o entrevistado ficar nervoso com uma pergunta, reformulando-a mais à
frente. O melhor é fazer antes as perguntas que ele gostaria de responder).
Ao confirmar notícias oficiais, o repórter deve tomar cuidado
porque "todo governo mente". Afinal, informação é poder. O bom profissional
deve desconfiar de toda e qualquer informação de fontes oficiais, checando-
a à exaustão.
Sobre as informações em off, Ricardo reconhece que o jornalismo
não pode passar sem elas. Mas acha que toda informação em off só deve ser
publicada depois de checada com outra fonte. Mesmo que a confirmação também
seja em off.
De qualquer forma, o bom profissional jamais quebrará o acordo
feito com a fonte, mesmo quando isto o levar a perder o emprego ou mesmo a
ir para a cadeia. O respeito à fonte é questão de ética. Boas fontes de
informação são o capital mais valioso de um profissional da imprensa.
Entretanto, Noblat admite que o editor do jornal tem o direito de saber
quem é a fonte para avaliar o peso da declaração. Afinal, se o repórter não
puder confiar no chefe dele, como o chefe confiará no repórter?
Quem consegue mais detalhes para produzir uma boa matéria, nem
sempre é o repórter mais inteligente. Noblat cita o jornalista Elio
Gáspari, seu colega de "Veja", para lembrar que "repórter bom é repórter
burro", isto é, aquele que não tem vergonha de perguntar. Ele pergunta,
pergunta, pergunta e volta para a redação com todas as dúvidas
esclarecidas.
PARA ESCREVER BEM
Quem não gosta de ler escolheu a profissão errada se quer ser
jornalista. Ler muito é essencial para aprender a escrever bem. Não é na
redação do jornal diário que o repórter aprenderá a escrever. A pressa não
dá espaço para esse tipo de aprendizado. Saber escrever não é uma questão
de receita. Não existe receita. O que existe é imaginação, concisão,
clareza, objetividade. Uma boa técnica é ler o texto em voz alta para
perceber as falhas.
Os parágrafos, segundo Noblat, devem ser como as caixas de
lenço de papel: Quando se puxa um, o outro já fica na posição de sair. Quer
dizer, um parágrafo deve se ligar ao outro para que o texto flua com
serenidade, sem saltos, sem sustos. É isto que dá sentido e coerência ao
texto.
Noblat também aconselha o jovem jornalista a não misturar
informação com opinião. A opinião deve ser sempre assinada e não pode ser
confundida com interpretação.
Sobre a técnica do lead, Noblat acha que ela já está superada.
Vem da Guerra de Secessão, nos EUA (final do Séc. XIX), quando os
operadores de telégrafos só permitiam que cada correspondente passasse
apenas o parágrafo mais importante da matéria para seus jornais já que as
ligações eram precárias e costumavam cair durante a transmissão. O melhor
é usar a criatividade na abertura da matéria. Fica mais interessante.
Entretanto, quando se trata de redigir notas curtas, o lead é
indispensável para o bom entendimento da matéria. Alguns recém-formados têm
extrema dificuldade de escrever matérias curtas porque não conseguem
controlar a "verborragia". A editora do Observatório Eletrônico, Marinilda
Carvalho, acha perigoso os professores de jornalismo abandonarem as
técnicas do lead porque isto retira do aluno a capacidade de síntese e o
editor perde um tempo enorme na hora de refundir a matéria quando o espaço
repentinamente é reduzido por pressões do Departamento Comercial, devido a
anúncios de última hora. Sair catando Quem, Que, Quando, Onde, Como e
Porque pelo texto afora na hora do fechamento é uma perda de tempo enorme
para a editoria.
No que se refere à reportagem, então sim, a abertura criativa e
a condução coerente do texto levam a uma leitura fluente, agradável,
prazerosa, sem as amarras do lead.
Nenhum estudante de jornalismo, pelo menos aqui na Unesp de
Bauru, deveria deixar de ler o livro de Ricardo Noblat que é mais uma
contribuição para a melhoria da qualidade da imprensa brasileira. Afinal,
quanto mais se dispensa a obrigatoriedade do diploma, mais o mercado
precisará de profissionais preparados para fazer a diferença. Isto
significa que os bons cursos vão sobreviver, os demais vão desaparecer.
Vale o mesmo para os profissionais.
*Pedro Celso Campos – ex-redator do "Correio Braziliense" e ex-editor de
cidade do "Jornal de Brasília" – é Professor MS do Departamento de
Comunicação Social da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da
Unesp/Bauru.