Preview only show first 10 pages with watermark. For full document please download

Sociologia

2º periodo para psicologia ou direito

   EMBED

  • Rating

  • Date

    December 2018
  • Size

    1.1MB
  • Views

    4,053
  • Categories


Share

Transcript

Capítulo I O que é sociologia? O conceito Sociologia foi criado pelo francês Auguste Comte em 1839. A própria etimologia da palavra revela a que se propõe o estudo sociológico. O termo Sociologia é formado pelo radical latino socio (refere-se à sociedade e implica o caráter empírico dessa ciência) e o radical grego logia (que lhe dá o aspecto teórico). Daí ser a Sociologia a ciência que se preocupa em criar teorias, generalizar o estudo sobre o homem em sociedade. Entendendo por sociedade um grupo de homens que vivem em interdependência. O interesse da Sociologia remete ao estudo dos homens em formarem um determinado grupo, uma massa com o intuito de lutar, cooperar, imitar, divertir, mudar etc. um comportamento cultural ou mesmo a própria cultura. A Sociologia é uma ciência empírica e como tal o seu fundamento encontra-se na observação. Entretanto, somente com observações não é suficiente para se fazer um estudo sociológico, é necessário ordená-las e isso se faz de duas maneiras: 1. comparando as semelhanças e diferenças; 2. classificando em grupos específicos. Desde os primórdios os homens observam a sociedade, os grupos e a maneira como os indivíduos vivem, mas a sistematização desse saber somente é edificada, a partir dos séculos XVIII e XIX. Nesses séculos surge uma 1 ciência voltada exclusivamente para as relações sociais, pois as preocupações dos pensadores anteriores eram, como disse L. von Wiese, “política, em que não existe distinção suficiente entre Estado e a sociedade, ou ética em vez do conhecimento empírico do social em si mesmo." 1 Sua origem se dá no século XVIII tendo, como fundadores, o abade de Saint-Pierre e GianBattista Vico. Ambos, - viam um progresso na história. Essa idéia influenciou vários pensadores em diversos países europeus. Com o despertar do século XIX, surgem condições que influenciam decisivamente o nascer da sociologia: 1. as ciências naturais desenvolvem-se; 2. maior aplicação dos métodos positivos; 3. transformações políticas (Revolução Francesa); 4. transformações econômicas (Revolução Industrial). No século XIX não era possível pensar o mundo sem ter em consideração essas transformações. A Revolução Francesa faz com que os olhos dos cientistas voltem para a sociedade e a sua complexidade. Os acontecimentos, nesse período, eram tantos e tão variados que abalaram todas as antigas instituições sociais. Como os fenômenos eram muitos, as observações tornavam-se mais especializadas e já não se buscava analisar o todo, mas somente a parte. Outra sólida contribuição para o nascimento da sociologia é a utilização do método positivo nas ciências naturais. Essas ciências partem do pressuposto de os fenômenos da natureza serem regidos por leis. Ora, se há 1 Apud Azevedo, Fernando de. Sociologia, p.93. 2 leis naturais que regem as ciências naturais, é certo que haverá leis naturais que regem a sociedade, visto que ela também é natural. Sendo assim, nada mais justo que aplicar o método indutivo ao estudo da sociedade. Sociologia e doutrinas políticas Uma característica bastante comum nas doutrinas políticas é se basearem na Filosofia da História. Essa, como se sabe, deseja mostrar a história como algo contínuo que possa ser interpretado racionalmente. A sociologia estuda os fenômenos sociais e os seus funcionamentos: “uma espécie de História Natural das sociedades. Procura as analogias, as homologias e as repetições.”2 O historiador e o político se preocupam com os motivos subjetivos (Tucídides e Michelet): “Limita-se à redução de toda situação a paridades agressivas, a fim de ampliar a atmosfera dramática da tragédia, e para enobrecer, se não elevar, o debate, os concorrentes se apresentam ou são apresentados como os defensores de uma causa ou de uma doutrina. Assim a História é concebida como uma serie de duelos ao mesmo tempo poéticos, oratórios e armados, entre os campeões das causas rivais. O clímax da arte dramática não é projetar o herói num dilema?”3 MOSCA, G. e BOUTHOUL, G.. História das Doutrinas Políticas. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 410. 3 Ib., p. 411. 2 3 Características iniciais da Sociologia 1. Enciclopédica: preocupou-se com o todo do homem e da história; 2. Evolucionária: influenciada pela filosofia da história e pelas teorias biológicas da evolução; 3. Positivista: os métodos científicos das Ciências Naturais eram usados para se estudar os homens. As Ciências Sociais tinham como características, no século XVIII, o modelo físico e, no século XIX, o modelo biológico; 4. Ciência da sociedade industrial: a preocupação da sociologia voltava para as mudanças causadas pela industrialização; 5. Ideológica: na formação da sociologia, os elementos conservadores e radicais se misturaram dando um caráter conflitante ao pensamento sociológico. Ela se apresentou como uma contraposição ao Socialismo. A sociologia, quando do seu surgimento, procurou abarcar um grande espectro de fenômenos, mas seus resultados ficaram muito aquém de seu projeto inicial: “ninguém acredita mais que Comte tenha descoberto as leis da evolução social (embora muitos acreditem que Marx as descobriu)."4 Essa oposição se deu, porque viam a sociologia como centralizadora das ciências sociais. 4 Bottomore, op. cit. 21. 4 Capítulo II Métodos sociológicos A sociologia fez generalizações de alto nível desde sua origem, porém ela conseguiu estabelecer: 1. um corpo conceitual; 2. classificação de tipos sociais; 3. correlação de fenômenos sociais. Talvez tenha sido a sociologia descritiva a que mais alcançou sucesso nas suas pesquisas. Mundo natural versus mundo social Mundo natural Mundo social Explicado de fora Explicado e compreendido de dentro Relações mecânicas de causali- Relações de valor de propósito dade Métodos da Sociologia A sociologia tem cinco métodos importantes: 1. histórico; 2. comparativo; 3. funcional; 4. formal ou sistemático; 5. estruturalista. 5 Sociologia histórica O método histórico pode ser subdividido, de acordo com seus membros em: 1. sociólogos antigos; 2. sociólogos posteriores. Sociólogos antigos A abordagem histórica dos sociólogos antigos foi influenciada pela filosofia da história e depois pelo modelo biológico da evolução. Sua preocupação volta-se para: 1. a origem;; 2. o desenvolvimento; 3. a transformação das instituições, da sociedade e da civilização Os principais representantes da sociologia histórica que se ocuparam com a história humana e com instituições sociais são: 1. Auguste Comte (1798-1857); 2. Herbert Spencer (1820-1903). Os que estudaram o desenvolvimento de uma instituição social em particular são: 1. Edvard Alexander Westermarck (1862. 1939); 2. F. Oppenheimer. O trabalho desses pensadores está ligado diretamente aos movimentos sociais dos séculos XVIII e XIX. Atualmente a preocupação da sociologia histórica não se dirige mais ao progresso do homem, mas à evolução da indústria e da economia. A contribuição dos primeiros evolucionistas é marcante. 6 Sociólogos posteriores A sociologia histórica dessa corrente foi capitaneada por Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864. 1920) e demais pensadores influenciados por eles. Weber critica o materialismo histórico "como uma fórmula para a explicação causal da realidade histórica.”5 Mas admitia ser importante a interpretação econômica da história. Para Weber, o importante era a interpretação da evolução e não, como queriam os marxistas, dar tentar elaborar uma explicação causal. Para ele não era lícito a tentativa marxista de dar uma explicação única da história. A abordagem histórica que Max Weber faz tem como ponto de partida: 1. as origens do capitalismo; 2. a burocracia moderna; 3. a relação entre religião e economia. No método de Weber, encontram-se tanto a explicação causal quanto a explicação histórica. Para ele, as teorias sociológicas falam sobre probabilidades, tendências. Sua aplicação prática para uma sociedade concreta deve ser acompanhada de uma análise histórica dessa sociedade, "e mesmo aí esbarra num limite imposto pela criatividade humana cujos resultados nem o sociólogo, nem o historiador podem prever.”6 5 6 Bottomore, Th. B. Introdução à sociologia, p. 60. Ib., p. 60. 7 Método comparativo Principais representantes: 1. Alfred Reginald Radcliffe Brown (1881-1955); 2. Auguste Comte (1798-1857); 3. Edward Augustus Freeman 1823. 1892); 4. Leonard Trelawny Hobhouse (1864. 1929). O método comparativo já foi considerado como o principal método da sociologia. Os primeiros sociólogos a usarem-no foram os evolucionistas. Quem vai expor muito bem esse método é Émile Durkheim (As Regras do Método Sociológico). Ele começa observando que uma explicação sociológica: 1. deve partir das ligações causais; 2. há ligações causais quando, entre dois fenômenos simultâneos, houver dependência. Mas, afirma Durkheim, na sociologia, a maneira de se relacionarem dois fenômenos é por via indireta, ou seja, por meio da comparação. Radcliffe-Brown afirma que o método comparativo sozinho não produz nada, ele é uma forma de comprovar as hipóteses. Esse método apresenta algumas dificuldades na sua utilização: 1. falta de hipóteses; 2. falta de unidade de comparação. No século XIX, os defensores do método comparativo admitiam que seu uso poderia ser geral. Esse posicionamento pode ser visto em E. A. Freeman que via nesse método a maior realização de seu século. Funcionalismo Principais representantes: 1. Émile Durkheim (18581917); 2. Bronislav Malinowski (1884. 1942). 8 O método funcionalista surge como uma reação ao evolucionismo que utilizava dados não experimentais e não sistematizados, bem como uma oposição à tentativa dos evolucionistas em tentarem explicar toda a história da humanidade. Herberth Spencer foi o primeiro a explicitar a noção de função social, baseando-se na analogia entre o corpo e a sociedade, mas a sua preocupação se voltava para explicações evolucionárias da sociedade. O primeiro sociólogo a sistematizar o conceito de função social foi Durkheim nas suas obras: 1. A Divisão do Trabalho em Sociedade; 2. As Regras do Método So- ciológico. Para Durkheim, as instituições se relacionam com a sociedade da mesma forma como órgãos se relacionam com um corpo. Foi com Malinowski que esse método conseguiu influenciar os demais cientistas sociais, pois para ele era forçoso a descrição exaustiva da forma como os indivíduos se comportavam em sociedade. Ao mesmo tempo, condenou-se o método histórico e comparativo. Malinowsky ainda busca uma afirmação dogmática sobre todo o contexto social e não somente uma tentativa de criar uma interpretação das instituições. Assim, para ele, era impossível entender uma parte da sociedade isoladamente, bem como também existir transformações sociais, a não ser que fossem causadas por motivos exteriores ao corpo social. Contudo, Robert K. Merton torna o funcionalismo menos radical. Ele introduz no funcionalismo algumas 9 modificações: 1. distingue função de disfunção; 2. distingue as funções manifestas das latentes. Ao diferenciar função da disfunção, Merton mostra que é possível haver mudanças sociais sem necessidade de ação de forças externas e com isso diminui a crítica sobre o funcionalismo que fora acusado de conservadorismo. Quanto à separação entre funções manifestas e latentes (que é um desenvolvimento do pensamento de Durkheim), mostrou que nem todas as funções sociais aparecem às claras. Com isso, quer que o pesquisador social seja mais cuidadoso ao estudar a sociedade e não se apegue ao que lhe foi legado pelas interpretações anteriores. Além disso, essa diferenciação mostra que uma instituição pode ter várias funções cuja importância pode ser relevante a uma determinada sociedade. O valor do funcionalismo está em ter chamado a atenção para o fato de que diferentes instituições estão diretamente ligadas às atividades sociais. O método funcionalista, quando aplicado a pequenas sociedades, mostrou-se vantajoso porque exigiu um trabalho prático em que era necessário uma observação e registro rigororos. 10 Sociologia formal (sistemática) Assim como a sociologia estudada anteriormente, a sociologia sistemática se opõe ao evolucionismo e ao enciclopedismo do primeiro período da sociologia. A sociologia formal foi criada por George Simmel (1858-1918). Seu nascimento se liga às discussões entre as ciências sociais e as ciências naturais e a fenomenologia. De fundamental importância para sua origem foi a tentativa de se separar o objeto de pesquisa da sociologia das outras ciências sociais. Simmel afirma que a sociologia é um novo método de abordagem dos fatos sociais, separando-os da contextualização histórica. Para ele a sociologia se preocuparia com as fugidias relações entre as pessoas. Estruturalismo Em meados do século XX, Claude Lévi-Strauss (1908) propôs um novo método para se estudar a sociedade: o estruturalismo. Esse novo método é usado na antropologia social, mas, na sociologia, seu uso é restrito. Como característica marcante do estruturalismo, podemos dizer que ele preocupa com a busca de aspectos universais na sociedade. Esses elementos eram para Lévi-Strauss os fundamentos da sociedade humana. O estruturalismo, ao buscar características universais, abandona o estudo histórico da estrutura social. 11 A Sociologia é uma ciência? Como método, a Sociologia tem características de ciência: 1. ocupa-se com os fatos (e não com juízos sobre os fatos); 2. recorre a provas empíricas; 3. busca a objetividade. Como intenção, ela é ciência por dois motivos: 1. descrição "exata" dos fatos sociais; 2. explicação por meio de generalizações. Pode-se dizer que a sociologia é uma ciência, pois busca ser: 1. fatual; 2. empírica; 3. objetiva; 4. descritiva; 5. explicativa. 12 Capítulo III O pensamento sociológico de Platão O nascimento de Platão se deu no terceiro ano da 87 Olimpíada (429 a.C.), no mesmo ano em que Péricles (495-429 a.C.) morreu e iniciou-se a guerra do Peloponeso (431 a.C.). De origem aristocrática não lhe faltaram condições materiais para sua educação. Platão é o apelido que ganhou devido à sua compleição, uma vez que o seu nome de nascimento era Aristócles. Quando jovem cultivou a poesia, a tragédia, os ditirambos e os cantos, bem como tinha a preocupação de se dedicar à política. Aos vinte anos entrou em contato com Sócrates e passou ao lado deste um período de oito anos. Quando Platão conheceu a filosofia socrática o faz como todo jovem ateniense, ou seja, buscava conhecimentos necessários para atuar na política: “Quando moço, aconteceu comigo o que se dá com todos: firmei o propósito, tão logo me tornasse independente, de ingressar na política.”7 A convivência entre ambos durou até a morte do mestre no ano de 399 a.C. A morte de Sócrates marcou profundamente Platão por toda a sua vida. A morte do seu mestre o fez adiar seu projeto de vida ativa na política, no entanto, não deixou de pensar sobre a melhor forma de pólis8 e de vida política. E, cona PLATÃO. A Sétima Carta. Curso de Introdução à Ciência Política. Brasília: v. 1, n.1, 73. 87, 1982. 8 "O Estado grego era a pólis, o que não quer dizer (como muitas vezes se lê) cidade, ou 'cidade-Estado'. Só mais tarde; é que a pólis passa a ser a cidade. Na origem, ao contrário, a pólis é a fortaleza dos homens 7 13 cluiu que somente os filósofos poderiam mostrar aos homens o melhor caminho da justiça. Sua primeira participação na vida política foi com o advento da Tirania dos Trinta (404. 403 a.C.), na qual “muitos deles eram meus parentes ou conhecidos, os quais logo me fizeram ver a conveniência de eu participar dos negócios públicos.”9 Por ser muito jovem teve ilusões que esse novo governo fosse capaz de instituir a justiça, uma vez que a democracia parecia-lhe uma grande balbúrdia. Entretanto, a Tirania cometeu mais injustiças que o regime anterior, por exemplo, pediram a Sócrates para, junto com outros, trouxessem um homem, a fim de que fosse executado. Sócrates não aceitou a ordem preferinlivres capazes de se defender e vivendo nas cercanias imediatas do domínio. O polites, cidadão de posse de todos seus direitos, é impensável sem a posse de terras e sem os meios de defesa, e isso quase até à época de Aristóteles, isto é, no fim da evolução da idéia social grega. Isso é claramente indicado pela etimologia de nomos que é, na época clássica, o direito da pólis, isto é, sua estrutura social interna. O termo tem a mesma raiz de nemein, com o duplo significado de repartir e apascentar. Na época da ocupação do território, as pastagens foram repartidas em lotes entre os membros da comunidade. O direito dessa comunidade baseava-se na repartição pouco mais ou menos igual da terra, que decorria de uma participação igual no combate e na vitória. O reino do direito (nomos) é, ainda no tempo de Aristóteles, plenamente o domínio dos proprietários médios, sendo estes capazes, em virtude de sua posição independente na administração de sua propriedade, de assumir o controle dos assuntos políticos. Isso o comerciante não podia fazer, devido sua mobilidade, nem o trabalhador manual, que devia concentrar-se em uma atividade especializada, nem as profissões dependentes, porque elas são exercidas para obedecer e não para comandar e decidir. Ademais, cada ofício exigindo daquele que o exerce todo seu tempo, somente o proprietário tem o tempo disponível de se consagrar à política e ao serviço militar.” In SCHILLING, Kurt. História das idéias sociais. Tradução de Fausto Guimarães. Rio de Janeiro : Zahar, 1966. 9 PLATÃO. A Sétima Carta. Curso de Introdução à Ciência Política. Brasília: v. 1, n.1, 73. 87, 1982. 14 do correr os riscos da desobediência a torna-se cúmplice desse crime. Por causa dessa injustiça, e outras, Platão se afastou desse governo.10 Como o governo tirânico não atendia às necessidades do povo ateniense o general Trasíbulo (455-388 a.C.) organizou a luta que derrubou a Tirania e restaurou a democracia. Platão encheu-se novamente de paixão pela política. Aqueles que foram expulsos pela Tirania dos Trinta ao voltarem a Atenas se comportaram moderadamente, mesmo assim, alguns deles condenaram Sócrates à morte. Após a morte do mestre alguns de seus discípulos foram perseguidos, visto que participaram das atrocidades cometidas anteriormente, por esse motivo Platão deixou Atenas e fez algumas viagens esperando o momento certo, para voltar à sua cidade. Entre as mais importantes contam-se três viagens para Siracusa. Nessa pólis travou contato com o tirano Dionísio I e seu sobrinho Díon, por insistência desse tentou colocar em prática suas idéias políticas, pois acreditava que o saber ligado ao poder seria a condição necessária, para se organizar uma pólis perfeita: Se a filosofia e o poder se tivessem reunido em sua pessoa, ele faria luzir aos olhos dos helenos e dos bárbaros e gravar no espírito dos homens a noção verdadeira de que não podem ser felizes nem as cidades nem os indivíduos, se todos não viverem sabiamente sob o amparo da justiça, ou por lhe serem Os tiranos chamaram-no à sala do Tolo e ordenaram-no que trouxesse Leon de Salamina para que fosse executado. Sócrates não os obedeceu e foi para casa. Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 85. 10 15 inatas essas virtudes, ou por eles terem sido criados e instruídos por maneira justa sob a direção de governantes piedosos.11 Em uma última viagem à Siracusa as relações entre Dionísio II e Platão se romperam de vez. O tirano quis manter Platão na corte, contudo os pitagóricos intervieram e enviaram-no com segurança para Atenas. Com essa malfadada viagem as esperanças de Platão, em colocar em prática suas idéias políticas, se foram. Mesmo depois quando os cidadãos de Cirene e de Arcádia lhe pediram, para fazer uma constituição Platão negou. A sua negação teve por base o seu princípio que negava a propriedade privada, ao pedir isso àqueles cidadãos eles não aceitaram. Platão admitia ser difícil dirigir a administração pública. O motivo para essa dificuldade era a legislação, e o remédio deveria ser medidas enérgicas e a mudança das circunstâncias. Como a política não era suficiente para resolver os problemas da pólis ele resolveu abraçar a Filosofia: “Daí, ter sido levado a fazer o elogio da verdadeira filosofia, com o proclamar que é por meio dela que se pode reconhecer as diferentes formas de justiça política ou individual. Não cessarão os males para o gênero humano antes de alcançar o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de começarem seriamente filosofar, por algum favor divino, os dirigentes das cidades.”12 Nessa passagem Platão deixa claro, porque PLATÃO. A Sétima Carta. Curso de Introdução à Ciência Política. Brasília: v. 1, n.1, 73. 87, 1982. 12 PLATÃO. A Sétima Carta. Curso de Introdução à Ciência Política. Brasília: v. 1, n.1, 73. 87, 1982. 11 16 abandonou o mundo da matéria e se colocou ao lado do mundo das Idéias. A partir dessa ruptura passou a explicar suas doutrinas político-morais por meio da Teoria das Idéias. Da problemática moral vai diretamente à questão política, cujo tratamento dado por ele é uma concepção utópica. A importância da política no seu pensamento é enorme basta ver que A República e As Leis têm quase tantas páginas, quanto o restante dos seus escritos. Sobre a política procurou discutir uma organização ideal, para tanto desenvolveu dois princípios teóricos: 1. ao identificar dois saberes (teórico e prático) admite que os governantes devam ser sábios; 2. ao conceber a justiça como ordem organizou as classes da pólis em relação com as partes da alma e afirmou que cada classe deveria cumprir uma determinada atividade, para a qual fora educada. A origem do Estado se encontra na incapacidade do homem de se defender e de produzir tudo o que precisa para viver, por esse motivo organizaram a pólis. Com essa criação foi necessário encontrar homens preocupados com seu governo, visto que governar o Estado é uma arte própria dos mais preparados, ou seja, dos filósofos: "A 'verdadeira arte política' é a arte que 'cura a alma' e a torna o mais possível 'virtuosa', sendo, por isso, a arte do filósofo.”13 A preocupação platônica é moral, ou seja, formar homens virtuosos. Reale, Giovanni. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 2003. v. 1, p.162. 13 17 Sua teoria política desembocou no estudo da justiça , porquanto é ela que mantém a coesão social. A Justiça é uma virtude que se encontra, ao mesmo tempo, no indivíduo e no Estado, por esse motivo Platão estudou a justiça no Estado, visto que, como todos os gregos, ele via o Estado como um homem grande: 14 Se se ordenasse as pessoas com visão pouco apurada que lessem de longe letras escritas em caracteres miúdos e uma delas descobrisse que essas mesmas letras se encontram escritas em outro lugar em grandes caracteres e num espaço maior, ninguém duvidaria de que seria mais fácil ler primeiro as letras grandes e examinar em seguida as miúdas, para ver se são de fato iguais.15 Ele estudou a virtude na pólis uma vez que a justiça é um atributo tanto do indivíduo, como da pólis. Sendo a pólis maior que o indivíduo a justiça será mais visível nela, por isso é necessário começar a procurá-la na pólis e somente depois no indivíduo. Toda filosofia de Platão é uma tentativa de mostrar que a justiça somente será alcançada, quando a pólis for governada com sabedoria. Entretanto, esta afirmação gera dois problemas: 1. qual o objetivo do Estado? 2. quem são os filósofos? A respeito da primeira pergunta a resposta é a justiça, pois ela é a condição da existência do Estado. A justiça compreende a sabedoria, a coragem e a tempePara PLATÃO a justiça é “dar a cada um o que merece.” Para ele a justiça se refere a uma polis que mantém ordem pública e vive em paz. Sua noção de justiça tem relação com os serviços prestados e não com o direito. 15 PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 53. 14 18 rança e a sua concretização ocorre, quando cada um faz o que lhe é próprio e é dono de seus pertences. A força e unidade do Estado e do indivíduo se encontram na justiça. É ela que torna único o indivíduo e o Estado. E, por justiça, queria entender a harmonia entre as virtudes das três classes, ou melhor, justiça é fazer o que a natureza ou a lei determina a cada um. A fim de se atingir a justiça ele apresenta três condições, para ela ser realizada dentro do Estado: 1. eliminar a riqueza e pobreza das classes superiores; 2. acabar com a família; 3. entregar o governo aos filósofos. Platão desejava que os homens buscassem o conhecimento filosófico, que é o conhecimento do Bem. É a partir dessa idéia que ele constrói sua teoria política. O objetivo de se conhecer a filosofia é capacitar o homem a intervir de forma justa na vida política, por este motivo no Mito da Caverna o homem que viu o mundo do Ser volta à caverna, em outras palavras, o papel do filósofo não é viver contemplando as Idéias, mas governar os homens de maneira justa: "Assim, o Estado poderá ser constituído e governado por gente que sonha e combate entre si por sombras, e disputa o poder como se este fosse um grande bem (VII, 520 c). Só com o regresso à caverna, só arriscando-se no mundo humano, o homem terá completado a sua educação e será verdadeiramente filósofo."16 Este é o papel do filósofo: arriscar sua própria segurança em benefício da justiça na pólis. Encontra-se nessa passagem a apresentação da dialética descendente, ao fazer o filósofo voltar à caverna 16 ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia; Lisboa: Presença, p. 117. 19 (caminho da alma em direção ao mundo sensível), a fim de cumprir sua missão política e pedagógica. Platão, assim, mostrou que o filósofo deve ser um homem útil à pólis e sua missão está em educar os homens para agirem de acordo com o Bem. A volta à caverna é a prova cabal de que o filósofo não pode ser um homem contemplativo, pois ele deve usar seus conhecimentos tendo como objetivo educar os homens no caminho do Bem. Ao voltar à caverna o filósofo num primeiro momento fica cego e é motivo de riso, para os que sempre se ativeram ao conhecimento das sombras. Os olhos do filósofo após verem o conhecimento puro encontram dificuldade em enxergar as coisas sensíveis. A falta de luz ofusca a visão do político-filósofo que não é entendido pelos seus antigos amigos e correrá risco de vida, mas é missão do filósofo-político libertar os outros presos. Entretanto, com o passar do tempo sua visão acostuma-se com as trevas e ele vê melhor do que aqueles que lá sempre estiveram, pois ele viu o Bem: "Aqui o filósofo deve à comunidade a sua paideia e com ela o seu ser espiritual, o que o obriga a reembolsá-la do que ela 'inverteu para o educar'. Ainda que contra a vontade, não terá outro remédio senão aceitar, por motivos de gratidão, a missão que lhe é confiada e consagrar ao Estado o melhor das suas forças."17 A única opção do filósofo é educar os homens, porque senão ele não cumpre seu papel (educar os homens), para que eles deixem o mundo das injustiças e criem uma pólis justa. 17 Jaeger, Werner. Paidéia, São Paulo: Herder, 1969, p. 839. 20 Numa pólis reinaria a justiça, quando nela as três classes executassem as suas tarefas de acordo com a sua natureza. À Razão caberia governar a pólis, porque ela é sábia e cuida da alma. À cólera competiria defender e obedecer à Razão: "E nos defenderão melhor dos inimigos externos, com toda a alma e todo o corpo, a primeira decidindo, o segundo lutando sob as ordens da primeira e executando corajosamente os projetos elaborados por esta."18 Platão deixa bem claro que a justiça na pólis não é um critério legal, mas moral. Justa é a pólis em que cada um exerce uma tarefa de acordo com sua educação, evitando executar trabalhos para os quais não fora educado. O Estado platônico é aristocrático devendo ter como base a justiça e o bem. Além de aristocrático seu Estado era autoritário: “Se achar que está sendo mal governada, pode falar, porém só na hipótese de não fazê-lo inutilmente e de não arriscar a vida, e sem recorrer à violência para mudar a constituição local, se só puder conseguir outra melhor com proscrições e derramamento de sangue.”19 Na República a questão de como se deve governar o Estado passava pelo aspecto moral, mas nos seus últimos diálogos o modo de governar relaciona-se com as leis. O objetivo da lei é educar e não somente punir, pois é a lei que tornará o homem virtuoso e por isso feliz. Portanto, o Estado deve ter como base a justiça e o bem. PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 143. PLATÃO. A Sétima Carta. Curso de Introdução à Ciência Política. Brasília: v. 1, n.1, 73. 87, 1982. 18 19 21 No diálogo Político o governante deve agir procurando a justiça. É a justa medida que se espera do governante, isto é, ele deve ter a coragem e a prudência, a fim de poder agir rápido e com justiça. O governante deve governar por leis, melhor seria não ter que utilizá-la, mas elas são necessárias à orientação dos indivíduos. A importância das leis se encontra na sustentação da pólis, visto que se as leis desaparecerem também desaparecerá o Estado. Nesse diálogo admite não haver diferença entre o governo da casa e o da pólis. Para governar essa pólis o poder do rei deve estar ligado diretamente ao seu saber, o qual deverá ser um saber intelectual e não manual. As leis são desvalorizadas, visto que a sabedoria domina a pólis, por isso elas são supérfluas.20 Elas apenas são a imitação da inspiração daqueles que agem de acordo com a Razão. Além de não admitir a lei na pólis Platão, também, se opõe à democracia, visto que a massa não tem condições de apropriar “de uma tal ciência de sorte a se tornar capaz de administrar com inteligência uma cidade.”21 É por esse motivo que ele exalta a monarquia. Quando não existem leis deve-se escolher a democracia, mas quando elas existem a democracia é o pior governo e, então, se deveria escolher a monarquia. Como o critério de participação política é o grau de racionalidade de cada homem, então aqueles que não têm conhecimento racional não devem ser políticos: “devem ser rejeitados como falsos políticos, partidários e criado20 21 PLATÃO. Político. São Paulo: Abril, 1972, pp. 251-256. PLATÃO. Político. São Paulo: Abril, 1972, p. 254. 22 res das piores ilusões, e visionários eles próprios, momos e grandes charlatães e, por isso, os maiores sofistas entre todos os sofistas.”22 Essa, como inúmeras outras passagens é bem típica da verve autoritária e de desprezo que Platão tem para com o vulgo. Platão encerra esse diálogo mostrando-se intransigente, para com aqueles que não ajam de acordo com a Razão e defende a expulsão deles da pólis e mesmo a morte deles. Platão constrói uma política bem fundamentada, mas utópica e a sua base apresenta um defeito em relação à natureza e valor da personalidade humana. A verdadeira política deve ter em vista "o cuidado da alma", por isso vai identificar política e filosofia e filósofo e político. Ele tenta fundar a política como ciência partindo do pressuposto da justiça. 22 PLATÃO. Político. São Paulo: Abril, 1972, p. 260. 23 Capítulo IV O pensamento sociológico de Aristóteles Aristóteles de Estagira (383. 322 a.C.) é uma figura importante da filosofia, o seu pensamento continua até hoje como uma das maiores, senão a maior, construção já alcançada pelo pensamento humano: "Nenhum homem antes dele contribuiu tanto para o ensino. Nenhum homem depois dele pôde aspirar a rivalizar com ele em termos de realizações."23 Essas palavras podem resumir a influência desse filósofo nos últimos dois mil e quatrocentos. Morando em Atenas buscou filosofar, não como Platão, preocupando-se com a perfeição ascética, mas estudando os dados concretos e a realidade das coisas, para, a partir das próprias coisas, apresentar as verdades como frutos de observações dos fatos empíricos. Aristóteles nasceu em Estagira, colônia da Macedônia ao norte da Grécia, no ano de 384/3 a.C. O seu pai, Nicômaco, serviu como médico do rei macedônio Amintas III. Aos dezoito anos vai a Atenas e entra para a Academia platônica. Era um bom orador e sua vida pública foi tão tumultuada quanto à época em que viveu. Toda a sua vida tinha um único objetivo: o conhecimento. O único caminho possível para se chegar ao conhecimento é a filosofia, afirmava Aristóteles. 23 Barnes, Jonathan. Aristóteles, p. 09. 24 Em sua Política aponta o caminho a ser seguido como sendo o da busca da verdade por meio do estudo da realidade concreta, com isso busca refutar as idéias de Platão contidas na República e nas Leis. A pesquisa empírica de Aristóteles, marcada por certo naturalismo, busca, de maneira sistemática, o fim último do homem (a felicidade). Ele viveu durante vinte anos na Academia e foi aí que amadureceu o seu pensamento. Platão chamava Aristóteles de "o leitor" e "a inteligência.” Neste período ele assimilou a filosofia do mestre tendo defendido-a e até mesmo criticado-a. Com a morte de Platão em 347 a.C. parte para Atarnéia (onde seu amigo Hérmias era tirano). Aí se casa com Pítias tendo uma filha, a qual recebeu o nome da mãe. Depois se casou com Herpílis e teve um filho que se chamava Nicômaco (mesmo nome do pai de Aristóteles). Em 345 a.C. após a morte de Hermes vai para Mitilene. O rei da Macedônia Filipe II chamou Aristóteles à corte, no ano de 343 a.C., a fim de ser preceptor do seu filho Alexandre que na época contava com quatorze anos de idade. A partir de 335/334 a.C. ele volta a Atenas e funda a sua própria escola que foi denominada de Liceu24. A sua escola foi denominada de Peripatética, pois era costume de Aristóteles filosofar andando entre as árvores. Após a morte de Alexandre, O Grande, os atenienses se revoltaram contra o domínio dos macedônios e Aristóteles se viu envolvido na trama política, afinal de Nome dado em homenagem ao deus Apolo Lício, o deus que protege os rebanhos contra os lobos – líkeos. 24 25 contas ele fora o mestre de Alexandre, além de não ser cidadão ateniense. Para que Atenas não cometesse um segundo crime contra a filosofia Aristóteles foge para Cálcis (Calcídia). Quando faleceu no ano de 322 a.C. se encontrava em plena produção intelectual. A obra de Aristóteles é ampla, mais de quatrocentas mil linhas ele teria escrito, entretanto a preocupação do momento é a sua filosofia prática, pois é nessa que ele estudou as questões relativas ao homem. Essa ciência foi dividida por ele em três partes: 1. ética; 2. econômica; 3. política. A política, a condução da vida pública, é o terceiro tipo de filosofia prática. E ela trata: 1. do Estado em geral; 2. das constituições. O elemento fundamental da teoria política de Aristóteles é a combinação de “um humanismo universalista nominal com um elitismo prático.”25 Seu objetivo ao estudar a política era proporcionar ao cidadão26 uma medida de comportamento em sua vida pública. Esse padrão de conduta deveria ser dado pela pólis27, entretanto isso não MORRAL, J. B. Aristóteles. 2a ed. Tradução de S. Duarte. Brasília: UNB, 1985, p. 42. 26 Aristóteles afirma no livro III da Política que cidadão é aquele que participa no judiciário e na sua autoridade, em outras palavras é aquele que participa “nos cargos públicos e na administração política legal.” 27 “Quando várias aldeias se unem numa única comunidade, grande o bastante para ser auto-suficiente (ou para estar perto disso), configura-se a cidade, ou Estado – que nasce para assegurar o viver e que, depois de formada, é capaz de assegurar o viver bem. Portanto, a cidade-Estado é uma forma natural de associação, assim como o eram as associações primitivas das quais ela se originou. A cidade-Estado é a associação resultante daquelas outras, e sua natureza é, por si, uma finalidade." In ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 146. 25 26 ocorre. Mesmo assim, “o homem nasceu para a cidadania” diz Aristóteles na Ética a Nicômaco. É por esse motivo que ele define a Ciência Política como a ciência que orienta a pólis na consecução da bondade ética. Daí, se poder afirmar que uma das características de seu pensamento é o rigorismo ético: "A política é o fim e o remate da econômica, assim como esta é a finalidade próxima da moral, o indivíduo não pode alcançar por si mesmo a virtude e a felicidade. [...] A política, que traça o ideal e as regras relativas à comunidade humana, é, pois estreitamente ligada à moral: ela é o todo cujas partes são a moral e a econômica, o ato cuja potência são elas."28 É por meio da política que o homem atinge seu fim máximo: o bem moral. A respeito da política Aristóteles, como Platão, não admite a possibilidade dela estar separada da moral, pois não aceita que o homem fosse dividido em indivíduo e cidadão. Sobre a ação moral Aristóteles afirma que a felicidade é o fim último dos homens: “O homem feliz só se pode encontrar no agrupamento comunitário que lhe dê suporte para a realização de sua natureza racional.”29 O homem somente será feliz se viver em sociedade, visto que somente os deuses e os animais podem viver fora da sociedade. Sobre a ação moral Aristóteles afirma que a felicidade é o fim último dos homens. Mas o que é felicidade? Geralmente há duas posições frente a esta questão: 1. se cada um decide o que é felicidade, tal situação torna imBoutroux, Émile. Aristóteles, p.121. BITTAR, Eduardo C. B. Filosofia Aristotélica. São Paulo: Manole, 2003, pp. 1176-7. 28 29 27 possível uma teoria moral; 2. caso se adote uma atitude teórica a resposta é possível analisando a natureza humana. Como todos os filósofos gregos, também Aristóteles estuda a natureza humana, e estabelece como segundo princípio, que a felicidade está no desenvolvimento da sua própria natureza. A atividade que a natureza impõe ao homem é a atividade intelectual, portanto a felicidade do homem está na contemplação. Mas o homem não é só razão, disso Aristóteles já sabia, pois Platão já o anunciara. O homem tem necessidades, que não lhe permitem esta contemplação absoluta, por isso a sua felicidade é limitada. Aristóteles defendia ser o homem um animal político, sociável por natureza e essa sociabilidade ocorre por motivos individuais e coletivos. O homem político é aquele que estuda a virtude tendo como objetivo tornar os demais “bons e obedientes às leis.” Enquanto os sofistas admitem a sociedade como produto da convenção, Aristóteles vê a sociedade como condição da natureza humana: "Uma vez mais se manifesta a concepção teleológica da natureza que preside a todo o pensamento de Aristóteles: a afirmação de que o homem é naturalmente social equivale à afirmação de que o homem tende por natureza à vida em comunidade."30 O pressuposto de Aristóteles é a naturalidade da vida social baseada na identidade entre o bem e a Razão. Partindo desse ponto tem como objetivo mostrar, em primeiro lugar, a vida política como o melhor dos fins, 30 CORDON, op. cit., p. 70 28 e, em segundo lugar, defender que a ciência política dedica o melhor de seu esforço em fazer com que os cidadãos fossem bons e capazes de nobres ações. O pressuposto de Aristóteles (a naturalidade da vida social) está baseado na identidade entre o bem e a Razão, por isso o indivíduo não pode viver sem o Estado. Ele regula a vida dos cidadãos. Esta, regulamentação, se dá por meio do Direito, através das leis objetivando a felicidade do indivíduo. Ele não admite a posição platônica de querer formar uma sociedade onde as crianças, mulheres e propriedades sejam comuns. Na visão aristotélica o Estado não deve ser uma unidade: “Assim, mesmo que fosse possível realizar essa unidade, ela não deveria ser feita, pois destruiria o Estado. Porque o Estado consiste não simplesmente de homens, mas de diferentes espécies de homens; não se pode fazer um Estado a partir de homens iguais.”31 Estas suas palavras mostram seu espírito liberal em contraposição ao totalitarismo de seu mestre. O homem não nasce para viver sozinho, nasce dentro de uma família32 e, portanto dentro da sociedade. A origem da sociedade é imposta pela natureza e o homem deve viver em sociedade, porque ele é imperfeito e para atingir a perfeição (que é o seu fim) o único lugar que o possibilita a isso é a sociedade. Essa, então, tem um traço positivo que é ajudar o homem a atingir a sua perfeição, por conseqüência, Aristóteles impõe limites à autoARISTÓTELES. Política. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 170. “a família é a associação estabelecida por natureza para suprir as necessidades diárias dos homens.” In ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 145. 31 32 29 ridade do Estado em relação ao valor dos indivíduos. Nisto, também, Aristóteles se separa do absolutismo de Platão. A pólis surgiu “tendo como objetivo primacial a subsistência, ou seja, proverem os homens reciprocamente de suas necessidades, persistindo, com o tempo, não em função unicamente da subsistência, mas para o bem viver. A comunidade que é capaz de prover o homem do necessário, e ainda facultar-lhe algo mais que o necessário, é mais que uma aldeia, é uma comunidade de aldeias, a pólis, caracterizada pela auto-suficiência (autarkéia).”33 O Estado não é apenas um aglomerado momentâneo de homens, a sua tendência essencial visa à felicidade geral, enquanto que o homem busca a sua felicidade particular: “O Estado ou comunidade política, que é a forma mais elevada de comunidade e engloba tudo o mais, objetiva o bem nas maiores proporções.”34 São funções do Estado: 1. oferecer uma educação pública e comum. É uma educação liberal que visa formar bons hábitos; 2. regulamentar a idade e a época de procriação; 3. controlar o crescimento populacional; 4. fazer aborto sempre que o número da população superar o limite; 5. eliminar as crianças imperfeitas. A virtude do Estado é justiça, em outros termos, a ordem que diz o que convém a cada um e o seu lugar na sociedade. É exigido do cidadão apenas aquilo que ele tenha condições dignas de executar. BITTAR, Eduardo C. B. Filosofia aristotélica. São Paulo: Manole, 2003, pp. 1178-9. 34 ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 143. 33 30 A sociedade é natural e em termos cronológicos a primeira sociedade que existe é a família. A união de várias famílias dá origem à comunidade, kome. Várias comunidades formam o Estado, a pólis que é a forma de associação superior a todas as outras. De acordo com a natureza, e a verdade, o Estado é anterior ao indivíduo, à família e a comunidade. Nesse Estado aristotélico existem duas classes: 1. homens livres; 2. escravos. Nem todos devem ser cidadãos (homens livres), pois cidadão é aquele que cultiva o ócio intelectual, por isso todo aquele que desenvolve uma profissão útil não pode ser considerado como sendo cidadão. Os escravos são os poucos dotados que devem fazer tarefas manuais, a fim de que os mais dotados possam se dedicar à especulação. Com isso o escravo participa da consecução do fim da humanidade; de certa forma ele também alcança o fim da humanidade. Característico da pesquisa política de Aristóteles é sua visão realista do mundo. Ao estudar as formas de governo ele deixou bem claro que a melhor forma de governo deveria seguir o meio termo. Toda organização política tem como organizadora de suas relações internas e externas uma constituição, a qual é o órgão maior dentro da comunidade política: “aceitou, desde o início o ponto de vista de As Leis, de que, em qualquer bom Estado, a lei é que deveria ser, em última instância, soberana, e não um indivíduo qualquer.”35 É a constituição a autoridade soberana na sociedade se concentrando no governo. Como o governo varia tanto SABINE, G. H.. História das Teorias Políticas. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, p. 103. 35 31 no tempo como no espaço é obvio que as constituições devem mudar. A classificação aristotélica dos governos não se baseia no número de governantes, mas na condição moral deles. É a paixão que afasta os governantes no rumo certo da Razão, a qual diz que todo governo tem que se preocupar com a felicidade dos cidadãos: “A questão técnica é que a tipologia aristotélica das formas políticas consiste em três categorias básicas (governo de um, de poucos, de muitos), cada qual admitindo duas possibilidades (monarquia ou tirania, aristocracia ou oligarquia, politéia ou democracia). Suas seis classes requeriam, portanto, dois critérios: o número de dirigentes e consideração pelos outros versus interesses pessoais.”36 Após os sofistas não se questionou a afirmação de que as instituições e regimes políticos são convencionais, por isso a discussão se deu quanto às formas de regimes políticos. As formas de governo em que se encontram a soberania estão diretamente relacionadas com a justiça. Justo é o governo que se preocupa com o bemcomum e injusto aquele que se preocupa com o bemparticular: “O governo constitucional, como Aristóteles entendia essa expressão, encerrava três principais elementos: primeiro, era o governo no interesse público em geral, em contraste com o governo faccioso, ou tirânico, exercido para o proveito de uma única classe ou indivíduo. Segundo, era governo legal no sentido de ser exercido por normas gerais e não por decretos arbitrários, e também no sentido algo mais vago de que o governo não SARTORI, Giovanni. Teoria da Democracia Revisitada. São Paulo: Ática, 1994, p. 38. 36 32 escarnecia dos costumes e convenções da constituição. Terceiro, o governo constitucional significava o governo sobre os cidadãos que o aceitavam, distinguindo-se do despotismo que se apoiava apenas sobre a força.”37 Na classificação aristotélica dos governos encontram-se três formas perfeitas e três formas imperfeitas. Esse é mais um caso em que ele se diferencia de Platão que considera somente um tipo bom. A forma de governo deve depender de cada povo, por isso uma Constituição que possa ser ruim em si mesma em alguns casos poderá ser a melhor para determinado povo, mas ele admite, abstratamente, a monarquia como sendo a melhor forma de governo, mas diz que o governo concreto deve depender das condições históricas: "A melhor forma de governo é uma república que reúna a ordem e a liberdade - uma aristocracia.”38 Em sua obra se encontram três formas perfeitas (justas) de governo. Um governo é considerado justo se, e somente se, ele procurar o bem comum: 1. monarquia; 2. aristocracia; 3. politéia. A monarquia é o governo de um só homem que procura atender as demandas da sociedade. Ela se divide em quatro tipos: 1. generalato vitalício, mas seu poder não é total e tem fundamento na lei; 2. tirania hereditária, legal e com o consentimento popular; 3. não hereditária, legal e eletiva; 4. hereditária, legal e com o consentimento popular. SABINE, G. H.. História das Teorias Políticas. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, p. 105. 38 Boutroux, Émile. Aristóteles, p.124. 37 33 A monarquia tem por objetivo o bem comum. Isso porque como o rei tem tudo, ele não precisa de mais nada, portanto ele governa para os súditos. Para se ser rei é necessário que ele sobrepuje todos os demais cidadãos “em todas as coisas boas” é o que Aristóteles afirma na Ética a Nicômaco. A aristocracia é governo dos homens bons, cujo objetivo é satisfazer as necessidades sociais. Como Politéia, entendia Aristóteles, aquele governo de muitos cuja meta primeira é atingir o bem comum. A politéia é o governo no qual todos os cidadãos se unem, para governar procurando executar uma administração voltada para a comunidade. Na timocracia o governo está nas mãos da maioria e mesmo aqueles que não têm propriedades são visto como iguais. As formas são consideradas como corrupções das formas justas, pois ao invés de se preocuparem com o bem público se orientam em satisfazer o bem particular. Por isso elas são, também, em número de três: 1. tirania; 2. oligarquia; 3. democracia. A tirania é a corrupção da monarquia sendo que a preocupação do tirano é tirar o máximo de proveito da coisa pública para si mesmo. É um governo despótico39 que se coloca acima da comunidade. A tirania surge quando o rei torna-se mau. Ao contrário da monarquia que visa ao bem comum, a tirania é o governo de um rei que leva em consideração seu próprio bem. Tirania é a monarquia exercida despoticamente no Estado. É o pior tipo de governo que existe. Para AristóO governo despótico é o governo dos homens servis e não dos homens livres. 39 34 teles não existe um só homem livre que possa viver sob a tirania. A soberania no regime oligárquico se coloca sob a égide de alguns cidadãos. Outra característica dessa forma de governo é que seus membros possuem muitas riquezas, mas em compensação eles são poucos. A origem da oligarquia está na degeneração dos súditos, os quais distribuem entre si tudo o que há de bom no Estado. O objetivo último desse governo é o dinheiro. A oligarquia tem com característica fundamental ser o governo dominado por um pequeno grupo de homens distintos e ricos. É o governo de uns poucos homens, os quais se preocupam com seu bem-estar esquecendo-se da pólis. A oligarquia é o momento em que o poder político encontra-se nas mãos daqueles que detêm as propriedades. A diferença da oligarquia para a democracia tem como critério a posse ou não de riquezas: “Poucos são ricos, mas todos partilham a liberdade: e essas são as bases de seu direito de participar da politeia: propriedade no primeiro caso, livre condição social no outro.”40 A democracia é o governo que tem sua origem na timocracia. A democracia é o momento em que as massas assumem o governo e efetivam uma administração não em prol da pólis, mas satisfazendo seus desejos. O governo democrático é aquele no qual o poder encontra-se com aqueles que não acumularam riquezas, mas têm boa condição de vida: “Desse modo, em qualquer lugar onde 40 ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 225. 35 a multidão dos pobres prevalece de acordo com a proporção que viemos indicar, deve naturalmente achar-se uma democracia, e cada espécie de democracia deve aí fixar-se de acordo com a superioridade numérica de cada classe de povo.”41 Na democracia a soberania encontra-se sob o controle do povo. Nesse governo o poder pertence a muitos que possuem poucas riquezas. Das três formas de governo pervertidos é a democracia a menos má, visto que seu desvio da forma perfeita é pequeno. Nela a maioria dos cidadãos ordena as leis42. Entretanto, ele afirma no capítulo IV da Política que o melhor governo é aquele que possa tornar o cidadão virtuoso e venturoso. “Tendo feito uma distinção entre governo constitucional e governo despótico, baseado na premissa de que o primeiro visava ao bem de todos e o último apenas o bem da classe dominante, ele aplicava essa divisão à classificação tradicional de três tipos, obtendo, assim, um grupo de três Estados autênticos (ou constitucionais) – a monarquia, a aristocracia e a democracia moderada (formas de governo) – e três Estados pervertidos (ou despóticos) – a tirania, a oligarquia e a democracia extremada, ou governo da plebe. A única diferença entre as maneiras de Aristóteles e seu mestre de abordarem o assunto – e que parece banal – era que o segundo desARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 1999, p. 195. É a lei o elemento objetivo em relação à subjetividade do governante e dos governados. Ela é, como defendiam os sofistas, uma criação humana e, como tal, ela muda de acordo com o caráter dos homens. Todo governo justo apresenta leis justas e todo governo injusto cria regras injustas. O critério de análise da validade das leis é político e não jurídico. 41 42 36 crevia os primeiros Estados autênticos como respeitadores da lei, ao passo que o primeiro apresentava-os como visando ao bem geral.”43 Para Aristóteles os fins atingidos pelo homem dependem da sua liberdade: “Ter tudo e não necessitar de nada é a verdadeira independência.”44 O homem em seu dia-a-dia não age por acaso, mas traça metas que procura seguir. Isto é confirmado pelo que acontece nos Estados: os legisladores tornam bons os cidadãos por meio de hábitos que lhes incutem. Esse é o propósito de todo legislador e quem não logra tal desiderato falha no desempenho da sua missão. Nisso, precisamente, reside a diferença entre as boas e as más constituições. SABINE, G. H.. História das Teorias Políticas. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, pp. 110-111. 44 ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 1999, p. 127. 43 37 Capítulo V O pensamento sociológico de Nicolau Maquiavel Nicolau Maquiavel nasceu em 1469 na próspera cidade de Florença. Era um diplomata de formação humanística que viveu no período de transição da Idade Média, para a Idade Moderna, por esse motivo sua concepção política diferia-se da imagem ideal de mundo existente no período clássico e medievo, para citar um exemplo dessa oposição ao período anterior não faltam afirmações que comprovem isso em seu livro: “tamanha diferença se encontra entre o modo como se vive e o modo como se deveria viver que aqueles que se ocuparem do que deveria ser feito, em vez do que na realidade se faz aprendem antes a própria derrota do que sua preservação; e, quando um homem deseja professar a bondade, natural é que vá à ruína, entre tantos maus.”45 Essa frase jamais poderia ser dita por um homem medieval, cujo respeito à honra era o maior valor. Sua formação política foi conseqüência de seu trabalho e das embaixadas que realizou pela Itália sendo sua contribuição foi tão grande para a Ciência Política que chegou a ser chamado, por Gioberti, de “Galileu da política.”46 Esse epíteto tem motivo de ser, pois foi ele o maior prócere da destruição das doutrinas políticas me45 46 MAQUIAVEL, N. O Príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 99. GIOBERTI. Risorgimento. Bari: Laterza, p. 84. 38 dievais, principalmente aquelas teorias católicas que apregoavam o poder limitado do governo e sua conduta ética na política. Considerado como o pai da política moderna, visto que rompeu com os valores políticos medievais, os quais davam relevância ao aspecto moral da vida humana, pode ser considerado o primeiro pensador político moderno, porquanto admitia que a origem do Estado47 era natural. Ainda característico de seu pensamento moderno é o seu afastamento das doutrinas que pregavam a verdade do Além: “O crédito atribuído a Maquiavel, de que ele é o primeiro cientista político moderno, é freqüentemente associado com o que Croce denominou sua descoberta da autonomia da política; isto é, a descoberta de que a vida política tem regras e um momentum que independem de considerações privadas, morais e cristãs.”48 Foi o primeiro pensador a abandonar as teorizações a respeito do comportamento do homem ideal e se ater às situações concretas que eles vivem. Também, nessa linha de abandono das idealizações foi ele quem afirmou que seria preciso estudar o Estado como ele é e não como deveria ser. Essa é mais uma marca indelével deixada pelo autor, pois a política deveria estar baseada nas De acordo com François Châtelet em sua História das Idéias Políticas: “Foi ele quem deu a esse último termo sua significação de poder central soberano legiferante e capaz de decidir, sem compartilhar esse 47 poder com ninguém, sobre as questões tanto exteriores quanto internas de uma coletividade; ou seja, de poder que realiza a laicização da plenitudo potestatis.” Foi Nicolau Maquiavel o primeiro autor a utilizar o conceito Estado no sentido de comunidade política ou República como sendo algo particular e concreto. 48 FITZGERALD, Ross (org.). Pensadores Políticos Comparados. Brasília: UNB, 1983, p. 100. 39 experiências humanas e na História. Esse é o objetivo de Nicolau Maquiavel: apreender como os homens concretos agem no seu quotidiano. A importância desse seu estudo está no abandono das tentativas metafísicas anteriores em tentar explicar o comportamento do homem. Todos os antecessores do Secretário Florentino ao tratarem da política faziam de tal forma que o primado das suas conjecturas era as puras especulações teóricas. No caso desse pensador o relevante nas análises políticas eram as considerações a respeito das realidades imediatas. Ele nega o homem teórico que marcou os períodos anteriores e defende o homem das ações políticas. O príncipe, para bem governar (manter o seu poder), deve abandonar todas as teorias que procuram descrever como o homem deve ser, pois é se ater ao mundo incerto das experiências políticas concretas, pois elas são o motor da própria política. Além disso, a idéia que o norteia é a possibilidade de repetição das ações humanas. Ao analisar as ações políticas dos homens irá buscar isso ao afirmar que na História se podem encontrar exemplos, os quais servem como modelos, com os quais possam dar soluções a problemas contemporâneos: “A História era para Maquiavel a grande mestra, a fonte mais segura de ensinamentos, pois o que ocorrera no passado tendia inevitavelmente, a seu ver, a repetir-se no presente e no futuro.”49 Quando ele lança mão desse método está deixando claro que o homem é um ser natural e como tal deve ser estudado. O homem não é totalmente bom ou mal, todavia ESCOREL, Lauro. O Pensamento Político de Maquiavel. Humanidades, jul-set (1984), v. 2, n. 88, pp. 18-52. 49 40 ele age de acordo com sua vontade, a qual é livre (esse é um aspecto determinista). No campo da política ele traz a marca do Renascimento Cultural50 deixando claro que a moral universal não era bem vinda. As virtudes cristãs medievais perdem todo seu significado nos escritos de Nicolau Maquiavel, pois para ele o importante é a vontade humana e não os desígnios de um deus. Ele pensa a vida, a existência do homem, e, portanto, não se pode encontrar nele influências platônicas ou mesmo aristotélicas. Mesmo não sendo um pensador que tenha organizado suas idéias em um sistema é fácil encontrar alguns traços que marcam sua doutrina política: 1. existência de um determinismo de forças e de necessidades na natureza; 2. defesa da anárquica relação de forças na natureza e na sociedade; 3. advoga ser o homem o verdadeiro construtor de suas ações em sociedade; 4. admissão de que a sociedade tem origem nas ações humanas e não numa provável sociabilidade humana (Aristóteles) ou uma sociabilidade conduzida por uma verdade transcendente (Platão); 5. pressuposição do individualismo humano como causa das ações políticas; 6. insistência num pessimismo a respeito do homem e suas ações; 7. conclusão sobre um fatalismo a respeito da sociedade; 8. apaixonada defesa da caoticidade do mundo social. Em relação à religião dizia que era um assunto de cunho pessoal, mas que também, servia para a sustentação dos Estados. Sua visão religiosa não tinha como fim 50 41 o reino dos céus, outrossim a consecução e a manutenção do poder na terra independente da moralidade. Para se entender o pensamento do Secretário Florentino é imediato perceber que ele tomou como ponto central de sua linha de interpretação de toda realidade na qual se via inserido o afastamento da moral religiosa. Ele é filho do Renascimento Cultural cujo pensamento se bateu contra os mil anos de moral cristã que anteriormente dominaram a Europa. Nele se encontra o ápice da negação dessa moral e de todos os valores de honra que dominaram a política até então: “Assim, a instauração política perpetrada pelo príncipe não está fundada em nenhum princípio transcendente à arena política. Maquiavel está distante da concepção grega, na qual as leis do mundo humano deviam reproduzir as leis da natureza (physis), ou da concepção medieval, no qual o exercício do poder político estava submetido ao poder maior de Deus.”51 As relações políticas dependem de circunstâncias históricas e não de causas naturais ou divinas. Com Nicolau Maquiavel a política alcança sua maioridade, torna-se independente e autônoma em relação à religião. A origem dessa cisão pode ser encontrada em Tomás de Aquino (1225-1274) e os realistas52 do século XIV continuaram-na, mas coube a Old Nick53 expor, sem meias palavras, o divórcio entre a política e a religião. Nele se encontra a separação entre a ética e a política, pois mesmo vivendo em sociedade o homem não GOMES, J. C. Lino. Ética, Política e Poder em Maquiavel. Síntese Nova fase, v. 20, n. 60 (1993): 79-91. 51 52 53 Nas obras de Willian Shakespeare (xxx) o diabo é chamado de Old Nick (Velho Nick) e é uma alusão a Nicolau Maquiavel. 42 deixa de ser mau e caso o príncipe quisesse agir moralmente seria facilmente submetido pela maldade que existe nos homens. Desse modo, a política torna-se o campo, por excelência, da ação que é julgada por sua eficácia e não por suas intenções. Ao abandonar a ética e abraçar a política Nicolau Maquiavel está afirmando que se o fim do Estado é a paz e a segurança, então qualquer meio deve ser empregado, para que se atinja esse fim. O autor não diz que o político deve agir imoralmente, pois se fizesse essa afirmação estaria negando a possibilidade de existência da política. O que ele afirma é que existe uma moral e é ela que faz com que os homens se reconheçam, mas que no âmbito da política toda moral deve ser colocada em segundo plano. Quão longe Nicolau Maquiavel se coloca dos humanistas, pois para ele não é preciso ter virtude, para se ser um bom governante, em outras palavras, um bom governante não necessariamente precisa ter uma boa alma: “A suprema obrigação do governante é manter o poder e a segurança do país que governa. Sejam quais forem os meios necessários para capacitá-lo a cumprir essa obrigação, não deve o príncipe hesitar em adotá-los. Nenhuma consideração de justiça, de clemência ou de santidade dos tratados deverá interpor-se no seu caminho.”54 Num mundo no qual os homens não são naturalmente bons, querer que o príncipe aja de acordo com princípios éticos é não perceber a insustentabilidade de tal governo. BURNS, E. M. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre: Globo, 1975, v. 1, p. 413. 54 43 Com Nicolau Maquiavel a ética não é base para se governar, daí sua ruptura com as concepções clássicas e seu afastamento da moral cristã, a qual percebia o príncipe como um enviado divino. A questão que se deve observar é que ao estudar o poder o autor não se preocupa com a moral dos atos, mas com a utilidade deles. No campo da utilidade não se julgam as ações como boas ou más, e sim, como úteis ou não. O poder conforme Nicolau Maquiavel não é um problema moral, mas técnico. Os homens apesar de serem maus esperam ser governados por um príncipe bom, sendo assim o príncipe não pode se afastar desse desejo do povo, mas ele não deve ser bom e sim parecer ser bom. Esse ato do príncipe pode parecer ser imoral, entretanto não se pode olvidar que os homens são maus e para governá-los é necessário agir como qualquer homem em sociedade. É por isso que o autor aconselha que seja preferível parecer ser a propriamente ser bom, justo, leal, etc. Nesse sentido, a moral é apenas mais uma estratégia utilizada pelo príncipe, a fim de manter o Estado. Enquanto que em Aristóteles (383. 322 a.C.) a política era o ponto mais alto da ética, em Nicolau Maquiavel estas duas concepções estão separadas, ou melhor, a política é a condição de realização da ética, visto que num mundo no qual não exista um poder, para impor as regras sociais é impossível falar em ética, pois sendo os homens egoístas eles evitariam dividir as coisas em sociedade e isso os conduziria a uma luta pelo poder tornando impossível a convivência social: “Maquiavel afirmava que todos os homens são movidos exclusivamente por 44 interesses egoístas, em particular pela ambição de poder pessoal e prosperidade material.”55 Para ele a moral era submissa ao poder e esse era um determinante fundamental para a explicação da vida em sociedade. De acordo com ele o homem era mau e se caracterizaria pelos seguintes traços anti-sociais: 1. egoísmo; 2. inveja; 3. ambição; 4. traição; 5. ferocidade; 6. vingança. Essa é uma percepção negativa a respeito do homem, visto que a bondade não está inserida na natureza humana ao criar uma associação política. Pelo contrário, a natureza humana é má e a sociabilidade ocorre devido a uma intervenção do Estado que age com o intuito de coibir a maldade inerente ao coração humano. O príncipe não deve esquecer essa característica humana, pois corre sério risco de se ver alijado do poder. O homem não pratica o bem por puro desejo do bem, mas sim por interesse de autodefesa e segurança, por isso ele se submete à lei e ao Estado. A lei para Nicolau Maquiavel educa o homem, a fim de que ele abandone seus interesses particulares e admita os interesses sociais como sendo o bem que lhe compete. O homem entra em sociedade não por que seja naturalmente sociável, mas porque sabe que a única maneira de conservar sua vida é abandonar seus instintos e se submeter à Razão, ou seja, deixar de lado sua animalidade e se submeter à lei é a única forma para os homens poderem viver em sociedade. BURNS, E. M. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre: Globo, 1975, v. 1, p. 413. 55 45 Ele se associa por necessidade, a fim de evitar a penúria e não porque é naturalmente sociável, pois caso isso fosse verdade não seria necessário a existência de um Estado, para submetê-los à lei e à ordem. Ao fazer essa afirmação ele tira a sociabilidade como condição de humanidade do homem, visto que sendo ele um indivíduo que vive sozinho somente iria participar de uma sociedade caso fosse coagido por um poder maior. A composição do Estado é formada por homens isolados, ou seja, são indivíduos que desejam satisfazer seus desejos. A natureza humana em Nicolau Maquiavel não é uma essência56, mas um fato histórico, visto que em diversas épocas uns sempre tentaram dominar os outros. É a dominação um ponto central no entendimento da política. Quando em sociedade o homem deseja dominar a todos e isso leva a uma guerra generalizada e o único meio de se evitar a destruição total é a instituição da política. O Estado deve existir, para resguardar a existência dos homens, pois somente ele tem condições de impor aos homens obediência às tarefas que devem ser executadas. A única maneira de se construir um Estado é por meio da virtù do grande líder, pois somente ele consegue fazer com que os homens egoístas e maus se reúnam sob o governo organizado. Além disso, o homem de virtù é capaz de fazer nascer no seio desses homens maus um amor pela liberdade e pela glória. É a virtù a qualidade fundamental da vida política, por esse motivo deve ser ela Essência é aquilo que torna uma coisa o que ela é. Nesse caso a essência humana é aquilo que se retirada do homem esse deixa de sêlo. 56 46 o meio e o fim de todos aqueles que desejam viver em sociedade. Além do mais é ela o fator condicionante que não deixa os homens se corromperem. Ela é a arte de criar proteções presentes à manutenção futura do poder: “não apenas prover o presente, mas antecipar casos futuros e premunir-se com muita perícia, de modo que se possa facilmente lhes dar corretivo, e não permitir que os fatos se esbocem, pois se assim for o remédio não chega a tempo, e a doença torna-se incurável.”57 O Bom político não é aquele que age de acordo com a moral, todavia aquele que consegue erigir obra com o intuito de manter seu poder, tanto presente, como no futuro. A virtù não é um dom divino, mas apenas uma técnica que se caracteriza pela habilidade e pela perspicácia do príncipe aliadas ao senso de oportunidade e à audácia ao tomar uma determinada decisão: “De qualquer modo, o príncipe só conseguirá manter-se no Poder à custa de uma virtude pouco comum, que consiste numa energia ao mesmo tempo brutal e prudentemente calculista, estranha a qualquer preocupação ética vulgar.”58 A virtude que se espera do líder é uma racionalidade calculadamente violenta que se sobreponha à ingênua moral cristã. Ao utilizar o conceito virtù quer o autor se opor ao conceito de fortuna que dominou o pensamento medieval59. Aquele dependeria da capacidade do líder e não mais de Deus, ou da natureza. Ao passo que a fortuna é a imagem usada por Nicolau Maquiavel com o intuito de MAQUIAVEL, N. O Príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p.45. TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 20. V. II. 59 Sobre esses conceitos ver o capítulo XXV de O Príncipe. 57 58 47 mostrar como as coisas da política são inconstantes: “acredito poder ser verdadeiro o fato de que a fortuna arbitre metade de nossas ações, mas que, mesmo assim, ela nos permita governar a outra metade inteira.”60 A fortuna é apenas uma dádiva natural, na qual a importância do homem está relegada a um segundo plano, porquanto representa o acaso da natureza contra o qual o homem medieval nada podia fazer. Nicolau Maquiavel diz que com a virtù se pode, não eliminar a fortuna, contudo pode-se pelo menos administrá-la em muitas situações. A imprevisibilidade política é composta tanto pela virtù, como pela fortuna. Entre eles há uma correspondência, uma vez que para Nicolau Maquiavel as coisas ocorrem comandadas tanto pela primeira, quanto pela segunda. O príncipe com virtù não é bom nem mal, pois como técnica ela é apenas útil ou não. Em seu pensamento o problema máximo que chamava atenção era o relacionamento entre a moral cristã, ou qualquer outra moral natural, com a virtù. Isso se mostra verdadeiramente complexo, quando esse pensador faz um rol de ações que deveriam ser acolhidas por aqueles que se propõem a guiar um Estado: 1. todo mal deve ser feito de uma só vez; 2. o mal não deve ser praticado sem escrúpulos, mas somente quando necessário; 3. o príncipe não deve cumprir sua palavra, caso isso ameace seu poder. São esses conselhos, e outros mais, que passaram para a posteridade como sendo o maquiavelismo, esse seria uma moral na qual os fins justificariam os meios, ou 60 MAQUIAVEL, N. O Príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 143. 48 seja, o príncipe deveria usar de todos os meios necessários (mentira, falsidade, aparência, etc.), para conseguir seu único fim (manter seu controle sobre o Estado e paz na sociedade, a fim de que pudesse tornar os homens bons). A importância da obra de Nicolau Maquiavel se vê pela separação que fez entre a ética e a política tornando essa autônoma e dando-lhe condições de se estabelecer como uma ciência. Outro ponto relevante, para os pósteros, diz respeito à lei, a qual ele não via como uma dádiva divina, mas apenas como uma criação do Estado, o qual a mantém pelo uso da força. 49 Capítulo VI O pensamento sociológico de Thomas Hobbes Seguindo o absolutismo platônico encontra-se o pensamento de Thomas Hobbes (1588-1679), o qual no século XVII elabora uma complexa teoria política na qual os elementos utópicos de Platão são vislumbrados. Suas doutrinas seguem em direção da autonomia e da laicização do Estado61. Com Thomas Hobbes, assim como com John Locke (1632. 1704), a política torna-se positiva. Sua visão é oposta à doutrina do direito natural, a qual via no homem a tendência a unir-se em sociedade62. Thomas Hobbes é materialista (pois não acredita que exista um espírito que controle o mundo humano), causalista (uma vez que para os acontecimentos ele procura uma causa material), determinista (os acontecimentos devem ocorrer de maneira pré-determinada), atomista (atomista (o mundo é formado por átomos em eterno movimento), nominalista (todas as coisas que conhecemos são apenas nomes). Thomas Hobbes se auto-exila na França, por questões de princípios e por excesso de medo (seu livro De Corpore Politico circulava clandestinamente), em 1640, visto que na luta entre o Parlamento e o Rei, ele apoiou o Ele continua o movimento de separação da religião e do Estado iniciado desde a Renascença. 62 Nesse aspecto repete o pensamento antigo de Platão, Aristóteles xxx 61 50 rei, todavia o Parlamento se revoltou contra Carlos I (1625-1649) e decaptou o rei (1649). Na França tornou-se preceptor do pretendente à Coroa Inglesa, o futuro rei Carlos II (1639-1685). Em 1651 escreve o Leviatã e, um ano depois, regressa à Inglaterra, pois Oliver Cromwell havia dominado todas as facções em luta e conseguido impor a paz, a qual era o grande anseio hobbesiano. Nessa sua estada na França elabora seu sistema filosófico, o qual se divide em três partes: 1. De Corpore (trata dos corpos em geral); 2. De Homine (procura estudar o homem); 3. De Cive (pesquisa o cidadão). Nascido em 1588, perto de Malmesbury (Inglaterra), numa família pobre, Thomas Hobbes conseguiu estudar em Oxford. Foi secretário de Francis Bacon (1561-1626), entrou em contato com Galileu Galilei (1564. 1642) e manteve relações com o círculo de René Descartes (15961650). Apesar do nascimento pobre familiarizou-se com a alta nobreza, devido à sua vivência com seu discípulo Conde Devonshire. Admirador do método de Galileu Galilei utiliza o método racional das ciências da natureza com o intuito de explicar o Estado e a sociedade humana. O pressuposto metodológico de Thomas Hobbes leva-o a aceitar que a vida dos homens é feita de causas e efeitos e sua característica principal é a satisfação de seus desejos. Por esse motivo defende que para estudar esse homem é preciso se utilizar um método que aborde os indivíduos como corpos em movimentos e o método adotado foi aquele usado: “Se é verdade que a geometria é „a única ciência com que até agora Deus resolveu presentear o gênero humano‟, a única ciência „cujas conclusões tornaram-se 51 agora indiscutíveis‟, ao filósofo moral cumpre imitá-la; mas, precisamente devido à falta de um método rigoroso, a ciência moral foi até então a mais maltratada. Uma renovação dos estudos sobre a conduta humana só pode ter lugar através de uma renovação do método.”63 Viveu o período final da decadência do mundo cristão medieval e início da Idade Moderna racional e antropocêntrica. Foi contemporâneo do desaparecimento dos valores cristãos e sua substituição pela ciência moderna. Quando tinha quarenta descobriu a geometria de Euclides de Alexandria (360-295 a.C.) e a partir de então utilizou a geometria euclidiana como método no estudo da moral e da política devido à simplicidade de suas premissas e o rigor de suas afirmações. O método hobbesiano ainda se caracteriza pelas definições precisas, pela logicidade da argumentação e pela importância dos termos a serem definidos. A consecução dessas metas é atingida por meio do processo de análise. O absolutismo de Thomas Hobbes: “Nada deve à fé cristã nem à fidelidade para com o monarca, nem ao desejo de manter instituições ou preservar interesses ligados à própria existência da monarquia.”64 A estrutura de sua filosofia é racionalista tendo como principais características: 1. mecanicismo; 2. materialismo; 3. positivismo. BOBBIO, N. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna. 3a ed. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 20. 64 TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 108. V. II. 63 52 Para ele a política deveria ser vista como uma ciência, cujas definições exatas seriam a base de suas discussões. Seu espírito é contrário ao de Aristóteles. Ele percebe ser a origem da religião a ansiedade humana. As virtudes burguesas são: o receio e a prudência. O poder é útil, e não divino, servindo à conservação da vida dos indivíduos. Sua obra, paradoxalmente, coloca-o como um dos pais do liberalismo, pois seu atomismo e nominalismo influenciará no porvir toda a doutrina liberal. Na obra de Thomas Hobbes é possível encontrar as idéias modernas do pensamento político: 1. soberania; 2. independência dos Estados; 3. limite do poder do Estado; 4. convivência social. Seu pensamento sofre duas influências marcantes: 1. do método matemático das ciências naturais; 2. do momento histórico da Inglaterra no século XVII. A preocupação de Thomas Hobbes é descobrir qual a essência do Estado e da sociedade. Seu principal interesse é construir um Estado em que não exista divisões internas e que a paz reine. Na tentativa de resolver essas questões lança mão do método lógico-matemático consagrado por Galileu Galilei: “O Estado é uma coisa que se constrói exactamente como se pensa, como um teorema, matematicamente; pensá-lo pela análise, é construí-lo; e construí-lo é ainda o mesmo que pensá-lo, revertendo da análise à síntese.”65 A obra de Thomas Hobbes, por mais paradoxal que possa parecer, é precursora do liberalismo, pois, apesar MONCADA, L. de Cabral. Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 174. 65 53 de defender o poder66 absoluto, deixa claro que se o Estado (multidão reunida em uma só pessoa) não proteger a vida do indivíduo, esse tem o direito de resistir ao poder e destruí-lo. Sua obra foi escrita como respostas aos acontecimentos violentos que presenciava e as circunstâncias que envolviam o relacionamento humano. A origem de sua Filosofia está na discussão a respeito das condições da conduta humana. Seu ponto de partida é o pessimismo em relação ao homem. Por viver num mundo de guerras civis Thomas Hobbes muito ansiava pela paz, mesmo que essa tivesse sua origem num poder tirânico. Esse poder não tem sua origem em Deus. Aliás, em Thomas Hobbes Deus não tem um papel importante na condução da vida humana. Ele aceitava que Deus havia criado o mundo, entretanto Deus se mantinha afastado do seu funcionamento. Ao abandonar Deus sua ética e sua política adquirem um traço materialista, visto que procura suas respostas a respeito das ações dos homens são dadas considerando que tudo é apenas matéria em movimento. Thomas Hobbes se auto-exila na França, por questões de princípios e por excesso de medo (seu livro De Corpore Politico circulava clandestinamente), em 1640, visto que na luta entre o Parlamento e o Rei, ele apoiou o rei, todavia o Parlamento se revoltou contra Carlos I (1625-1649) e decaptou o rei (1649). Na França tornou-se preceptor do pretendente à Coroa Inglesa, o futuro rei Carlos II (1639-1685). Em 1651 escreve o Leviatã e, um ano Thomas Hobbes tem bem claro que o poder é útil, e não divino, servindo à conservação da vida dos indivíduos. 66 54 depois, regressa à Inglaterra, pois Oliver Cromwell havia dominado todas as facções em luta e conseguido impor a paz, a qual era o grande anseio hobbesiano. As obras de Thomas Hobbes que interessam diretamente à Política são Do Cidadão (1651) e Leviatã (1651). Nessas obras, Hobbes utiliza o método empírico como um determinismo da própria matéria. Partindo do pressuposto racional do egoísmo do homem (Homo homini lupus), conclui a origem da sociedade67. Essa somente pode existir, a partir do momento que se cria uma autoridade, para se garantir a paz entre os indivíduos, visto que eles não são sociáveis por natureza. Assim, se conclui que a sociedade, como o Estado são criações artificiais do homem. Para ele a política deveria ser vista como uma ciência, cujas definições exatas seriam a base de suas discussões. Seu espírito é contrário ao de Aristóteles, pois o Estagirita dizia ser o homem sociável por natureza e a composição da sociedade era natural. Thomas Hobbes não tem tanta fé assim no homem e afirma que não existe nenhuma naturalidade na associação humana. A verdadeira origem da sociedade é o interesse do homem em viver em paz, a fim de provar esta teoria lança mão dos conceitos: estado de natureza, contrato social e estado civil. A base de seu sistema é o Do Cidadão e suas idéias políticas serão retomadas mais tarde no Leviatã. Sua idéia política depende diretamente da situação de guerra civil em que se encontra a Inglaterra, podendo ser resu- 67 Thomas Hobbes não distingue a sociedade do Estado. 55 mida como uma guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes). É por esse motivo que o Estado deve impor uma paz assentada na coerção. Não se pode esquecer que é a paz o grande objetivo de Thomas Hobbes, pois o homem é levado por suas paixões e é sempre inovador em entrar em confusões. Para ele o homem não é naturalmente sociável, mas é um indivíduo que vive isolado. É por esse motivo que Thomas Hobbes admite, contra Aristóteles, ser o indivíduo anterior ao Estado. Nessa vida isolada o homem procura satisfazer seus desejos e por essa causa entra em guerra com os outros indivíduos. Esse Estado natural não é histórico, porém, o que é aterrador, há possibilidade de ele vir a existir. É esse o sentido do pensamento social de Thomas Hobbes. Num mundo em guerra o homem torna-se um lobo para o homem (homo homini lupus)68. Nesse pessimismo hobbesiano é possível verificar que a sociedade está em constante ameaça de perder a paz. O que realmente interessa a Thomas Hobbes é a paz social. Esse é o objetivo maior de todo Estado. Ele é uma criação artificial a partir da Razão, segundo a qual s homens devem abandonar o estado de natureza (satisfação egoísta das necessidades) e irem para o estado social, artificial (satisfação racional das necessidades). O homem é um ser natural e racional. Ele racional e artificialmente cria o estado social esperando poder usufruir pacificamente os bens. 68 Essa afirmação foi recolhida do poeta latino Ovídio. 56 Qualquer homem que fosse totalmente cristão seria vítima do egoísmo alheio. O mundo preconizado pela doutrina cristã, um mundo justo, não condiz com o mundo quotidiano. O homem conhece os mandamentos divinos, mas não os seguem, visto que os outros não fazem uso da Razão e pensam somente em si mesmos. Aqueles que seguem suas paixões facilmente dominam o que segue, sozinho, os princípios da Razão. É possível o homem ser bom em suas ações, para isso é preciso que ele supere sua natureza egoísta por meio da Razão. Quando isso ocorre pode ele viver sem o temor de ser destruído pelos outros. Quando ele se reporta ao conceito de estado de natureza, sabe que se refere a um postulado da Razão e não de um fato histórico, ou seja, o estado de natureza não existiu é apenas um artifício criado, a fim de explicar o porquê os homens vivem no estado social (artificial). Os homens são maus69 e como tal eles não podem esperar viver assim por muito tempo, então eles abandonam o estado de natureza e criam o estado civil. Nesse estado eles perdem o direito de gládio e vivem sob a paz do Estado. Esse, por sua vez, deve ser absolutista, pois os homens em sua maldade não podem viver em liberdade. O regime de governo ideal é a monarquia70. No Estado de natureza ninguém podia afirmar com certeza que alguma coisa lhe pertencia para sempre. O Essa idéia da maldade original do homem se liga ao período histórico em que ele vive: a ameaça espanhola de invadir a Inglaterra e a Guerra Civil Inglesa. 70 Thomas Hobbes foi preceptor do rei inglês Carlos II. 69 57 motivo dessa negativa era a igualdade de todos que impunha uma situação constante de conflito. O homem vive para satisfazer suas necessidades e ele possui o direito natural que lhe garante essa satisfação. O direito natural lhe garante satisfazer-se com todos os bens existentes e nessa satisfação ele entra em conflito com os outros que, também, têm o mesmo direito. Esse é o estado natural em que o homem se encontra. Nesse estado leva vantagem quem ataca primeiro, por isso o homem torna-se o lobo do homem. Com o postulado da guerra de todos contra todos quer Thomas Hobbes demarcar dois pontos importantes em sua teoria política: 1. começo da história; 2. motor da História. O início da guerra entre os homens se dá, porque eles tentam usufruir dos bens oferecidos pela natureza. O objetivo dela é garantir a paz e a satisfação individuais, todavia isso jamais foi alcançado. A soberania do Estado, para ele é indivisível e o objetivo do Estado é a garantia da paz71. A paz hobessiana é racional possibilitando ao homem realizar na terra os ideais cristãos de bondade. Não há na natureza uma forma de evitar essa guerra, visto que os homens são iguais em paixões (elas dizem aos homens, para se aproximarem do que é bom e se afastarem do que é mal). Portanto, a única maneira de se evitar uma guerra generalizada é pacificar a sociedade artificialmente. Nesse aspecto ele diferencia-se de Nicolau Maquiavel, pois esse autor afirma que o objetivo do Estado é fazer guerra contra seus inimigos. 71 58 A única maneira de evitar a guerra é usar a Razão e compreender que esse objetivo é impossível. Quando isso quando os homens percebem a inutilidade da guerra eles tentam instituir a paz. Essa é a conseqüência lógica da guerra de todos contra todos. A fim de tirar os homens do estado de natureza, em que a insegurança é constante, é preciso que as propriedades sejam distribuídas igualmente. A violência utilizada pelo homem no estado de natureza não é um fim em sim mesma, mas um meio para se atingir os bens na terra. O homem não pode viver sem esses bens, entretanto pode viver sem a guerra na consecução deles. A paz é alcançada se todos evitarem o direito natural a agressão. Isso é conseguido, se todos os homens firmarem um contrato renunciando seu direito natural de atacar o outro para se proteger. Quando Thomas Hobbes descreve desse modo o estado de natureza é possível classificá-lo como pessimista, pois o indivíduo neste mundo é solitário e sua vida é tal qual à dos animais. Ele está isolado de outros indivíduos e se move livremente por meio de seus desejos. Nessa solidão ele tem experiências da inveja e do medo, principalmente o medo de não poder conservar sua vida. Mas, mesmo nesse modo decadente de vida encontram-se leis, às quais os homens seguem. Thomas Hobbes trata das leis da natureza nos capítulos XIV e XV de Leviatã72 a. “Que todo homem deve esforçar-se pela, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e casso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. [...] b. “Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando72 59 todas elas são regras de paz ou leis da natureza e podem ser resumidas no mandamento bíblico: não faça ao outro o que não quer que te façam. Em resumo os indivíduos concordaram em abrir mão de sua liberdade ilimitada, a fim de conseguir viver em paz. Ao aplicar esse método de estudo ao homem, Thomas Hobbes, vai decompô-lo e consegue mostrar que o homem nada mais é do que matéria em movimento. Esse se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. [...] c. “Que os homens cumpramos pactos que celebrarem. [...] d. “Que quem recebeu benefício de outro homem, por simples graça, se esforce para que o doador não venha a ter motivo razoável para arrepender-se de sua boa vontade. [...] e. “Que cada um se esforce por acomodar-se com os outros. [...] f. “Que como garantia do tempo futuros e perdoem as ofensas passadas, àqueles que se arrependem e o desejem. [...] g. “Que na vingança (isto é, a retribuição do mal com o mal) os homens não olhem à importância do mal passado, mas só a importância do bem futuro. [...] h. “Que ninguém por atos, palavras, atitude ou gesto declare ódio ou desprezo pelo outro. [...] i. “Que cada homem reconheça os outros como seus iguais por natureza. [...] j. “Que ao iniciarem-se as condições de paz ninguém pretenda reservar para si qualquer direito que não aceite seja também reservado para qualquer dos outros. [...] k. “Que se alguém for confiado servir de juiz entre dois homens, é um preceito da lei de natureza que trate a ambos equitativamente. [...] l. “Que as coisas que não podem ser divididas sejam gozadas em comum, se assim puder ser; e, se a quantidade da coisa o permitir, sem limite; caso contrário, proporcionalmente ao número daqueles que a ela têm direito. [...] m. “Que o direito absoluto, ou então (se o uso for alternado) a primeira posse, sejam determinados por sorteio. [...] n. “Que a todos aqueles que servem de mediadores para a paz seja concedido salvo-conduto. [...] o. “Que aqueles entre os quais há controvérsia submetam seu direito ao julgamento de um árbitro.” In HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril, 1974, p. 82. 97. 60 movimento é a busca de prazeres e a fuga da dor, mas tanto o prazer, como a dor são tão mutáveis como o próprio homem e, dessa mutabilidade, surgem as discórdias entre eles. A conseqüência imediata dessa situação é a destruição de tudo que a sociedade produz das artes ao comércio. O desejo, por excelência, do homem é a felicidade e com o intuito de conseguir esse objetivo busca o poder. E o corolário é a guerra entre os homens, a qual é causada pela competição, desconfiança e glória: “A primeira leva o homem a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação.”73 Esses três elementos são algumas das formas como o poder se apresenta aos homens, sendo por meio do poder que ele alcança a felicidade, por conseguinte todos os homens desejam aumentar seu poder o que os leva a uma guerra perene. O homem tem como preocupação constante a satisfação de suas necessidades. A própria natureza deu ao homem o direito de satisfazer essas necessidades, ou seja, todos os homens têm o mesmo direito, quanto aos bens úteis à sua sobrevivência material. Nesse estado que Thomas Hobbes chama de natural predomina a lei do mais forte, por extensão é um estado de liberdade, pois não é limitado por ninguém, mas ao mesmo tempo é um estado de medo, qualquer um pode matá-lo. Por conseqüência, essa situação é insustentável e não pode continuar, sendo assim o indivíduo procura um meio de sair dela. As condições de sair desse mundo 73 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril, 1974, p. 79. 61 ele as tem são as paixões e a Razão. As primeiras lhe mostram o temor à morte, enquanto que a segunda cria regras, para serem obedecidas por todos. Como todos os homens têm o mesmo direito e as mesmas necessidades, pois são iguais, eles entram em conflito. Como essas lutas têm sua origem na natureza humana Thomas Hobbes chama essa situação em que os homens se encontram de estado de natureza. As chances de sucesso, na satisfação de suas necessidades, aumentam para aquele que ataca primeiro, daí a conclusão de que o homem é o lobo do homem. Essa guerra de todos contra todos é o motor da História humana: “Ensinava que no começo todos os homens viviam em estado natural, sem estarem sujeitados a qualquer lei que não fosse o brutal interesse próprio. Muito longe de ser um paraíso de inocência e de bemaventurança, o estado natural era uma condição de universal sofrimento. Todos faziam guerra a todos. A vida do indivíduo era „solitária, pobre, sórdida, bruta e breve‟.”74 Então no estado de natureza não se pode falar em injustiças, pois não há uma lei que decida o justo do injusto. A propriedade que ele tem é resultado do que pode tomar para si e manter por um determinado tempo. A vida no estado de natureza é uma desolação total, quanto à propriedade, pois ninguém pode afirmar com certeza que alguma coisa lhe pertence para sempre. O motivo dessa negativa é a igualdade reinante entre todos o que impõe uma situação constante de conflito: “A natureza fez os homens tão iguais, quanto à faculdade do corpo e do BURNS, E. M. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre: Globo, 1975, p. 542. 74 62 espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestadamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.”75 Ao se constituir o Estado essa dificuldade desaparece, pois todas as propriedades têm sua origem no Estado, sendo ele que as distribui aos cidadãos. Nesse estado o indivíduo é protegido pelo direito natural, ou seja, o direito que afirma ter o indivíduo a liberdade em usar o poder, para garantir sua vida. As leis76 que regem esse estado são apenas duas e de acordo com elas o indivíduo deve procurar a paz e se defender dos ataques alheios: “As duas primeiras leis da Natureza consistem para Hobbes em se procurar a paz e em nos defendermos por todos os meios possíveis. Ora, para manter a paz e a segurança, os homens não dispõem de melhor meio do que estabelece entre eles um contrato e transferir mutuamente para o Estado certos direitos que, se os conservassem em si, prejudicariam a paz e a humanidade.”77 Para Thomas Hobbes o contrato é a condição HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril, 1974, p. 78. De acordo com Thomas Hobbes lei é simplesmente a palavra daquele que manda. 77 TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 107. V. II. 75 76 63 em que homens livres e sem coação transfere mutuamente os seus direitos. Com respeito à segurança do povo, ela se refere à proteção da vida dos súditos, como também, à garantia do usufruto dos bens necessários à felicidade. Por meio do contrato social, os homens livremente, dispensam sua liberdade natural e aceitam que o soberano defina o justo e o injusto. Independente do julgamento particular os indivíduos devem acatar as decisões do Estado. Eles não reclamam, porque o Estado está fazendo justamente o que lhe foi pedido com o contrato social: manter a paz e eliminar a guerra. No contrato hobbesiano o homem não pode fazer a justiça com as próprias mãos, como, também, determina que um outro homem pode aplicar a justiça. Esse outro homem é o soberano que recebe a força de todos os homens na execução da lei. Esse momento de paz é conseguido através de um contrato que tira todos os poderes do homem e cede-os ao soberano. A meta do contrato é dar condições, para que o homem seja bom: Trata-se de algo que não existia absolutamente em Maquiavel e que não se encontrará mais em Locke. Nessas duas idéias sociais o sentido e o objetivo do Estado não eram a realização em comum já na Terra do reino de Deus, mas a elevação e o crescimento terrestres da força e da beleza do homem pela vitória alcançada sobre seus egoísmos autodestruidores e pela intervenção de grandes propósitos na guerra e na paz, ou pela simples regulamentação da satisfação das necessidades e pelo acúmulo de riquezas pelo trabalho. O ponto de 64 partida é sempre o mesmo, inclusive o acordo formal, sendo o conteúdo e o objetivo inteiramente diferentes.78 Como não é aceitável o indivíduo viver constantemente sob a égide do medo ele decide deixar de lado seu direito natural sobre as coisas e contra com os outros, eles decidem pela criação de um representante que possa impor-lhes a paz. Esse novo representante deve ter armas em suas mãos, pois nenhum contrato é mantido à base de palavras: “E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém.”79 O resultado desse pacto é a formação de um homem artificial, de um deus mortal (Thomas Hobbes chama o Estado de deus mortal, porque caso ele não cumpra sua obrigação de proteger os súditos ele pode ser destruído). Devido a sua origem o poder desse novo soberano é absoluto. Na visão pessimista hobbesiana é melhor a paz a qualquer preço, do que a liberdade sem controle. Entretanto, não se pode entender essa passagem de maneira forte, visto que no Estado hobbesiano o cidadão é livre, pois não encontra nenhum escolho externo à sua vontade: “Por liberdade entende-se, conforme a significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e a razão lhe ditarem.”80 SCHILLING, Kurt. História da Idéias Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 218. 79 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril, 1974, p. 107. 80 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril, 1974, p. 82. 78 65 No estado natural quando um homem ataca o outro, não o faz pelo simples prazer de matar o outro, mas com o intuito de garantir sua existência. A guerra não é um fim em si mesmo, todavia um meio para sobreviver: “Não se pode renunciar seu direito aos bens, mas se pode muito bem renunciar à agressão enquanto melhor meio de obter a satisfação de suas necessidades. Na verdade, não de modo imediato, mas somente com a condição de que todos os outros renunciem a esse direito à agressão que lhes pertence no estado natural. Por isso é que precisamos representar essa renuncia como sendo ratificada sob a forma de um contrato de cada um com cada um.”81 Esse contrato assinado entre todos transfere o poder para um outro, cujo interesse substitui aos interesses dos contratantes. Esse outro poder que surge com o contrato está acima dos contrates e tem o direito e a força necessários, para fazer com que o contrato seja cumprido pelos homens. Para fugir à degradação do estado de natureza, o homem assina um contrato social com seus iguais e transfere todos seus poderes ao Estado (estado civil, artificial). É a maneira que o homem encontra de atingir a paz e não perder os bens necessários à sua sobrevivência. Dentro desse estado artificial os bens são distribuídos eqüitativamente. Por meio do contrato social, os homens dispensam sua liberdade natural e aceitam que o soberano indique o que seja justo e injusto. Independente do julgamento particular os indivíduos devem acatar as decisões do Estado SCHILLING, Kurt. História da Idéias Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 213. 81 66 sem reclamar, porque o Estado está fazendo o que lhe foi pedido: manter a paz e eliminar a guerra. Esse é o ponto inovador trazido por Thomas Hobbes: a riqueza deve ser distribuída de forma igual, de tal forma que ninguém fique sem o necessário, para sua sobrevivência, pois é isso que garante a paz entre os homens. Nesse contrato assinado entre os indivíduos fica evidente que cada um abre mão de recorrer à força. Além disso, acrescenta Thomas Hobbes um outro elemento: ao decidirem não utilizarem da força na consecução dos bens os indivíduos transferem seu poder a um outro indivíduo82, o qual não faz parte do contrato, visto que ele somente passa a existir, após a consecução do contrato. Com a assinatura do contrato os indivíduos entram para o mundo da política. É no ambiente político que a guerra de todos contra todos se extingue, porque no ato de aceitação do contrato os indivíduos transferem seus poderes a uma “pessoa moral”83 que cria as leis e as impõem aos cidadãos, a fim de conseguir a paz social. Desse arrazoado é fácil concluir que o estado artificial não poderia ter sua origem nesse estado natural. Como o estado artificial não é divino e muito menos natural, para seu aparecimento os indivíduos devem lançar mão de um contrato. Ao fazer essa afirmação Thomas Thomas Hobbes chamará a esse indivíduo de soberano, o qual retém em suas mãos toda a força existente em sociedade. O soberano, no caso hobessiano, é o próprio Estado. 83 “Uma pessoa é aquele cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como representando as palavras ou ações de outro homem, ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas, seja com verdade ou por ficção.” In HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril, 1974, p.100. 82 67 Hobbes está querendo mostrar que o Estado tem uma autonomia em relação a todas as outras coisas: “Vemos assim que Th. Hobbes funda no próprio Estado essa autonomia do político que Marsílio de Pádua pressentia, que Maquiavel justificava por meio de „provas históricas‟, que Jean Bodin deduzia: a ordem política não pode ser senão o produto de uma decisão coletiva que engendrará um artefato. Dado que o estado de natureza é insuportável, dado que o desejo de poder e o desejo de viver (e de viver em paz) se contradizem, então surge a capacidade deliberativa do homem que comanda de construir um instância superior, cujo fim é impor uma ordem que elimine a violência natural, que substitua a guerra de todos contra todos pela paz de todos com todos [...].”84 Ao se constituir o Estado essa dificuldade desaparece, pois todas as propriedades têm sua origem no poder estatal e é ele que distribuirá as propriedades a cada um. O soberano tem como meta garantir a paz e evitar a guerra na busca pelos bens materiais. Sendo assim, as propriedades serão repartidas de tal forma que se evitem os conflitos. O poder supremo do Estado (estado artificial ou civil) é o soberano que é superior ao poder de todos os homens juntos. Sua origem não é o arbítrio ou a tirania, contudo é uma conseqüência de um contrato racional aceito pelos indivíduos com o intuito de garantir a paz na fruição dos bens. Essa é o sentido do contrato social hobbesiano. CHÂTELET, François. História das Idéias Políticas. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 51. 84 68 De acordo com Thomas Hobbes a distribuição das riquezas pode ser feita de duas maneiras, nas quais cada um recebe: 1. tanto quanto o outro; 2. mais que outro devido a uma hierarquia. Quanto ao primeiro ponto não cabe dúvida, mas com relação ao segundo é preciso dizer a hierarquia se faz por diferentes meios: 1. nascimento; 2. trabalho produzido; 3. dedicação; 4. caráter; 5. coragem, etc. Em relação à soberania o monarquista Thomas Hobbes defende a unidade do soberano, porque somente sua unidade pode garantir a paz. Assim, como Jean Bodin (1530-1596), ele não aceita os governos mistos, visto que nesses governos há sempre o perigo de os interesses individuais levarem os homens a uma guerra. Quando ele defende o poder absoluto do rei o faz mais por temor ao estado de natureza, do que por amor à tirania. Um poder fragmentado corre o risco de conviver com lutas internas e externas, as quais, por conseguinte, levam à destruição do Estado. Ao entrar em sociedade os indivíduos renunciam a todos aqueles direitos naturais que são prejudiciais à vida: 1. igualdade (esse direito ameaça inclusive os fortes); 2. liberdade (a liberdade natural segue às paixões e não à Razão); 3. uso da força; 4. propriedade de tudo. Ao renunciar a esses direitos naturais o indivíduo leva em conta a utilidade de sua ação e suas conseqüências benéficas, para a garantia do direito natural maior que Thomas Hobbes considera ser a vida: “O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os 69 vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita.”85 Os objetivos, então, da criação do Estado são deixar que a morte manifeste-se somente em seu aspecto natural, bem como no âmbito das relações humanas proteger a vida dos partícipes da república. Thomas Hobbes aceita ser o Estado o resultado dos interesses dos indivíduos, os quais o constituem a fim de que ele possa proteger sua vida. E como o mal causado pela liberdade irrestrita é grande, então o benefício de se viver em sociedade também deve ser grande, por isso o poder do Estado deve ser grande, para proteger esse bem inigualável que é a vida, por meio desse poder, que é indivisível e absoluto, o rei tem o direito de criar ou acabar com a lei, caso ela não seja útil à sociedade. A soberania passa a existir depois do contrato de garantia da paz e da segurança entre os homens. Não é, como se pode ver um contrato entre os homens e o soberano, “mas entre indivíduos que decidem dar a si próprios um soberano. Em lugar de limitar a soberania, é o próprio contrato quem a estabelece; [...].”86 Essa soberania tem traços fundamentais: 1. una; 2. indivisível; 3. ilimitada. Os indivíduos ao criarem o soberano dão-lhe como única obrigação a proteção da vida dos associados. Fora essa obrigação a soberania não tem nenhum outro dever para com os contratados. É desse modo que nasce o LeHOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril, 1974, p. 107. TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 107. V. II. 85 86 70 viatã que nada mais é o poder pleno do príncipe se concretizando no Estado. Na relação com os cidadãos o Leviatã é repleto de direitos e reconhece apenas um dever, para com os cidadãos, o de proteger suas vidas. Toda e qualquer contestação contra o Estado, por parte dos associados, é rejeita no modelo hobessiano: a minoria deve aceitar as decisões da maioria. O Leviatã deve: 1. garantir a paz; 2. defender os cidadãos; 3. criar leis; 4. aplicar a justiça; 5. decidir sobre a guerra e a paz; 6. castigar ou premiar de acordo com sua vontade; 7. dar honras; 8. estabelecer hierarquias. O papel do Leviatã é garantir a vida de cada associado e para tanto ele procura distribuir os bens, de tal maneira, que as disputas sejam eliminadas. O Estado não é um tirano, visto que os indivíduos racionalmente entregaram-lhe o poder, com a intenção de se atingir a paz social. A racionalidade dessa entrega de poder é percebida no termo contrato utilizado por Thomas Hobbes, para explicar a saída dos indivíduos do estado de natureza e sua entrada no estado social. Não passou despercebido a Thomas Hobbes a quantidade de poder nas mãos do Estado, mas a isso ele respondia que era melhor o excesso de poder do que sua falta. Entretanto, fica evidente no pensamento de Thomas Hobbes que o Leviatã, apesar de manter todos esses poderes não é imortal, visto que ele pode ser destruído. A destruição do Estado torna-se possível, quando ele não mais protege os cidadãos. Nesse momento os cidadãos não protegidos pelo Estado voltam ao seu estado origi71 nal e recuperam todos os seus poderes e podem destruir o Estado. 72 Capítulo VII O pensamento sociológico de John Locke John Locke parte da filosofia social anterior, contudo dá-lhe nova base ao se fundamentar no individualismo e no liberalismo, sendo, portanto um representante do liberalismo clássico inglês. No século XVIII a oposição feita ao absolutismo pelos liberais progressistas teve a sua marca. No ano de 1632 John Locke nasceu em Wrington. Sua educação, Westminster e Oxford, é marcada pela defesa dos ideais republicanos. Em 1672 torna-se secretário Lord Anthony Ashley Cooper (1621-1683),futuro primeiro conde de Shaftesbury, este contato provocará uma grande mudança em sua vida, visto que passa a se envolver com a política. Pouco tempo depois O Conde Shafstebury é acusado de atentar contra o rei Carlos II e, para preservar sua vida, foge para a liberal Holanda. Um ano após a fuga de seu protetor, 1683, John Locke dirigese à Holanda. Em 1689 o holandês Guilherme de Orange, casado com Maria Stuart – filha de Carlos II aceitou a coroa inglesa oferecida pelo Parlamento, o qual impunha limites ao poder do novo rei. Era a vitória final da monarquia constitucional sobre a monarquia absolutista. John Locke vê seus ideais se concretizarem e em 1691 morre em Essex. 73 A origem do Estado e da sociedade se encontra no direito natural87 e não na graça divina. O direito natural é idêntico à Razão e essa afirma que os indivíduos são iguais e independentes. A gênese do Estado para ele é a Razão e não a violência como queria Thomas Hobbes. Todos os indivíduos têm alguns direitos garantidos pela Razão e eles se referem à: 1. propriedade88; 2. vida; 3. liberdade; 4. resistência ao poder iníquo. Para John Locke a única maneira de se compreender a política era partir da origem e reconstruir de modo abstrato como se formou a sociedade. Dever-seia partir do estado de natureza até se chegar ao estado civil. Em John Locke os homens, no estado natural, são livres e iguais entre si. Já para Jean-Jacques Rousseau, retomando o humanismo renascentista, o homem é naturalmente bom. O mesmo não se vê em Thomas Hobbes, que devedor à sua formação protestante apresenta o homem como naturalmente mau. Ele via o estado de natureza como uma idade de ouro e era um momento de liberdade do indivíduo: liberdade de agir e de dispor de suas propriedades da melhor forma que lhe conviesse. Nesse estado ele deve obedecer apenas à lei da natureza, a qual é dada pela “Por trás das idéias originais sobre direitos naturais estava a panóplia das idéias de lei natural e um deísmo otimista que via o mundo como governado por leis divinas inculcadas em nosso raciocínio. Tais direitos eram vistos como reivindicações não sociais, universais, inalienáveis que fundamentavam a natureza humana. A posse desse direitos e o respeito por eles era a precondição para o desenvolvimento do homem.” In VINCENT, Andrew. Ideologias Políticas Modernas. Rio de Janeiro: Zahar, p. 53. 88 John Locke entendia a propriedade tal com Aristóteles. Era seria um conjunto formado pela vida, propriedade e xxx 87 74 Razão e dizia ao indivíduo que ele deveria fazer de tudo, para conservar sua existência e a dos outros: “Tal estado não exclui certos sentimentos de benevolência entre eles, e essa lei é tão clara e inteligível como a própria luz da Razão; mais fácil de entender até do que as imaginações e intrincados artifícios dos homens.”89 O objeto dessa lei é a relação equânime entre os homens, visto que eles são iguais perante a Razão. Nesse estado o homem é ao mesmo tempo produtor e consumidor sendo o trabalho a sua essência. É por meio do trabalho que o homem procura fugir da miséria. Como nesse estado a lei da Razão afirma que todos são iguais não cabe a ninguém o poder de decidir sobre qualquer assunto em relação aos outros. Apesar de ser um estado de felicidade ele traz consigo algumas dificuldades, tal como um juiz imparcial. Então, por falta de garantias aos seus direitos o homem abandona esse estado adâmico. A fim de evitar esses transtornos eles assinam um contrato, o qual cria o estado civil que tem por meta: 1. fazer leis válidas para todos; 2. executar as leis; 3. proteger a propriedade; 4. defender o Estado dos inimigos externos. Ao entrarem em sociedade os homens deixam de lado seu direito de fazer justiça com as próprias mãos e com essa atitude fortalecem os demais direitos naturais. Os homens, tendo o poder executivo em suas mãos, podem agir com a paixão e assim os levará estado de guerra. Para evitar o transtorno causado pelos excessos MONCADA, L. Cabral de. Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 213. 89 75 do uso do poder executivo é que surge o estado civil, por meio de um contrato social. Com a aceitação desse contrato, por parte de todos, fica selado a união entre eles na formação de um corpo político: o Estado. Dentro desse os indivíduos ainda mantêm todos os seus direitos que existiam no estado de natureza, apenas perdem o direito de executar as leis: “O único papel do Estado, quando tem o poder nas mãos, é, com efeito, a proteção do indivíduo, de seu trabalho e, sobretudo de sua propriedade. O indivíduo, o trabalho e a propriedade existiam no estado natural, como premissas de associação. O que se acrescenta aqui não é senão a segurança e a proteção garantida por todos em lugar de uma proteção pessoal; quando cada um é, ele próprio, juiz e executor do julgamento, não se chega senão a conflitos, à perda da propriedade e à ruína.”90 A origem do Estado encontra-se no contrato social assinado por todos e seu objetivo é evitar a guerra entre todos. O governo que se constrói a partir do contrato social é um governo da maioria. Nesse governo, tanto o rei quanto os súditos são regidos pelas mesmas leis. Esse Estado imaginado por John Locke se caracteriza por ser liberal e manter o poder do rei limitado por leis feitas pelos representantes dos súditos: “fundava, negativamente, um Estado mero instrumento do indivíduo e uma liberdade política só definível como limite inultrapassável da ação do mesmo Estado.”91 A sociedade políSCHILLING, Kurt. História das Idéias Sociais. Tradução de Fausto Guimarães. Rio de Janeiro: Zahar, 1966. 91 MONCADA, L. Cabral de. Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 215. 90 76 tica nasce, quando os homens renunciam ao próprio poder natural e o transfere para a comunidade. Essa se torna o árbitro que julgará as contendas e aplicará as penalidades de acordo com a lei. Locke diz que vivem em sociedade política, aqueles que têm uma lei comum e uma judicatura à qual possa apelar, quando da ação de infratores da lei estabelecida. Mas, o homem volta ao estado de natureza, quando já não há mais uma autoridade sobre a terra a qual se possa recorrer. O homem nasce livre e goza da lei da natureza, que lhe garante poder sobre as suas propriedades (a vida, a liberdade92, os bens). Ele tem o poder de preservar as suas propriedades, bem como o poder de castigar, e até matar, aquele que não respeite a lei da natureza. É por meio do "poder julgador", que o homem em sociedade cria leis, as quais castigam os infratores e têm o poder de guerra e paz visando à punição daqueles que não participam do mesmo governo civil. O objetivo do poder de julgar é proteger a propriedade não de um membro determinado, mas de todos. Quando o homem vive em sociedade civil abandona o seu direito natural de julgar e o transfere para a comunidade. Essa é a origem do poder legislativo e executivo que julgam através das leis fixas, criadas pela comunidade, o grau de punição ao agressor interno ou externo. A origem da sociedade civil está no abandono do próprio poder executivo tornando-o público. Sempre que Ser livre é obedecer a lei da natureza, a qual é dada pela Razão e se baseia em dois princípios (um interno e o outro externo): o indivíduo 1) não pode se auto-destruir e nem à sua propriedade (é essa acepção é contrária ao direito romano, o qual aceitava essas destruições) e 2) não pode destruir o outro ou sua propriedade. 92 77 os homens constituem um povo ou um corpo político ele estará sobre um governo supremo. Ao entrar em uma sociedade política (ou poder legislativo) o homem autoriza-a a criar leis para governá-lo. Assim, o homem que abandona o estado de natureza e entra para a sociedade civil, que institui um juiz, o qual possa resolver as pendências e penalizar o infrator. O objetivo da sociedade civil é evitar, pois, inconvenientes da falta de um poder válido para todos, por isso o absolutismo não pode ser uma sociedade civil, uma vez que o príncipe absolutista se encontra no estado de natureza, sendo assim qualquer o homem pode declarar-lhe em estado de guerra. Quando o príncipe concentra o poder executivo e legislativo em suas mãos não há a quem possa recorrer, quando o próprio príncipe causa um dano. Como ele tem todos os poderes em suas mãos ele se coloca no estado de natureza, uma vez que os homens não encontraram na terra uma autoridade à qual possam recorrer. Em conseqüência o absolutismo é a negação do direito de defesa do homem. A resistência ao soberano absoluto se dá por meio da segurança e proteção da sociedade política, por quanto foi esse o motivo (evitar o absolutismo), que levou os homens a abandonarem o estado de natureza. Dentro desse Estado o indivíduo conserva seus direitos naturais, os quais são inalienáveis e não podem ser tocados pelo Estado, visto que caso isso ocorra o indivíduo têm o dever de resistir a esse ato iníquo do Estado. 78 John Locke sempre insistiu na necessidade de se resistir ao poder absoluto. Quando o Estado não cumprir seus objetivos, para os quais foi construído, é obrigação dos cidadãos se unirem e destruírem o Estado. Ele admitia que para impedir que uma monarquia se tornasse absolutista seria necessário que o poder não se encontrasse nas mãos de um único homem. Por isso seria necessário que o poder fosse dividido entre os membros da sociedade em três partes: 1. legislativo; 2. executivo; 3. federativo. Assim, o Direito Constitucional de John Locke apregoa a divisão dos poderes como enfraquecimento e limite do poder do rei. Nesse modelo a participação dos cidadãos se dá por meio da representatividade e é um controle indireto do Estado: Foi John Locke que desenvolveu em profundidade a teoria do consentimento. Os homens e mulheres, salientou, vivem no Estado da natureza com certos direitos naturais: vida, liberdade e propriedade. Num momento determinado, eles descobrem que é difícil preservar esses direitos sem uma autoridade comum confiada a eles e a sua proteção. Assim, concordam em estabelecer uma sociedade civil  isto é, estabelecer uma legislatura comum, um juiz comum e um Executivo comum. A primeira interpretará e preservará os direitos naturais, o segundo julgará os conflitos a respeito desses direitos e o terceiro se ocupará de sua implementação.93 O Estado tem sua legitimidade respaldada pelo consentimento dos governados. Afirma o autor, não pode nunca a origem do Estado civil se colocar sob a conquista: "na realidade, abre muitas vezes caminho à nova estruMACRIDIS, Roy C.. Ideologias Políticas Contemporâneas. Brasília: UNB, 1980, pp. 48-49. 93 79 turação de uma comunidade pela destruição da anterior, mas, sem o consentimento do povo, não é possível nunca fundar-se nova sociedade."94 A clareza de Locke não deixa dúvidas só há única maneira de se criar um Estado civil: o consentimento. O pacto que fundou o corpo político se baseia na confiança, no consentimento entre os homens. No capítulo VIII (do começo das sociedades políticas) Locke inicia afirmando, que a natureza fez os homens iguais, livres e independentes um dos outros, por isso o homem não pode ser expulso de sua propriedade e nem ser submetido a qualquer poder político a menos que haja consentido. O homem renuncia à sua liberdade natural, quando entra na sociedade civil por livre consentimento e com isso o seu conforto, a sua paz e as suas propriedades ficam protegidas não mais por si só, mas por toda a sociedade. A constituição da sociedade transforma essa comunidade em um corpo e como corpo age de acordo com a "vontade e resolução da maioria.” Essa resolução é considerada como um ato de todos, por que se isso não ocorresse de nada valeria o pacto. O homem ao sair do estado de natureza abandonou todo o poder à maioria da sociedade. Essa é a aceitação que constitui a sociedade política, que nada mais é que o consentimento de homens livres, que formam uma maioria e se reúnem em tal sociedade. 94 Idem, p. 105. 80 A fim de rebater os autores, que admitiam a origem do governo civil fundado no poder paterno Locke procura na história diversos exemplos, para mostrar que o indivíduo nasce livre e é anterior ao estado civil: para concluir, estando evidentemente a Razão de nosso lado quando dizemos que os homens são por natureza livres, e os exemplos da História mostrando que os governos do mundo começados em paz tiveram o princípio estabelecido nessa base, tendo sido formados mediante o consentimento do povo, quase não haverá motivo para duvidar-se seja onde está o direito, seja qual tenha sido a opinião ou o procedimento dos homens relativamente ao estabelecimento dos primeiros governos.95 O homem nasce livre e para gozar da propriedade ele se submete ao governo de próprio consentimento, pois a posse de propriedade obriga-o a obedecer às leis do governo. O homem, que nasce livre, ao entrar na sociedade civil estará ligado a ela para sempre, a não ser que por algum motivo o governo se desfaça. Caso isso ocorra voltará ele voltará imediatamente ao estado de natureza. Locke irá discutir os fins da sociedade política e do governo no capítulo IX. Nesse capítulo ele começa perguntando por que sendo o homem livre, no estado de natureza, se submete a outro poder? O abandono do estado de natureza se dá devido ao fato de que a fruição da liberdade e da propriedade estar constantemente ameaçada por homens, que não vivem sob a Razão, que não respeitam nem a igualdade dos outros e muito menos a justiça: 95 Locke, John. Segundo tratado do governo civil; p. 74. 81 Estas circunstâncias obrigam-no a abandonar uma condição que, embora livre, está cheia de temores e perigos constantes; e não é sem razão que procura de boa vontade juntar-se em sociedades com outros que estão já unidos, ou pretendem unir-se, para a mútua conservação da vida, da liberdade e dos bens a que chamo de "propriedade.”96 O principal objetivo da sociedade civil é a preservação da propriedade. O estado de natureza não oferece essa condição por três motivos: 1. falta uma lei estabelecida, isto é, falta um poder legislativo; 2. falta um juiz imparcial para julgar "de acordo com a lei estabelecida", ou seja, falta um poder judiciário; 3. por fim falta um poder para que se faça obedecer à lei, quer dizer falta um poder executivo. Assim, no estado de natureza há o inconveniente do exercício irregular do poder, o que leva o homem a buscar a proteção da sua propriedade sob a sociedade civil, que se organiza pelas leis que a comunidade cria ou que os seus representantes legais estabeleçam. No estado de natureza o homem tem dois poderes: o primeiro diz respeito a fazer qualquer coisa, dentro dos limites da lei da natureza, para se preservar e preservar os outros; o segundo poder se refere à aplicação de castigo a todo aquele, que infringe a lei da natureza. Contudo, ao entrar na "sociedade política privada" ou particular ele abandona esses poderes. O indivíduo na sociedade política abandona o seu poder de criar leis (legislativo), para viver sob as leis criadas pela socieda- 96 Idem, p. 82. 82 de. Abandona, também, o seu poder de castigar (executivo) a fim de auxiliar o poder executivo da sociedade, conforme a lei desta o exigir; visto como, encontrando-se agora em novo estado, no qual poderá gozar de muitas vantagens resultantes do trabalho, do auxílio e da sociedade de terceiros na mesma comunidade, tanto como proteção contra a força total dela, terá de renunciar igualmente a grande parte da liberdade natural de prover a si mesmo, conforme o exigirem o bem, a prosperidade e a segurança da sociedade, o que é não só necessário mas justo, desde que os outros membros da sociedade assim também façam.97 O homem ao entrar na sociedade política entrega "a igualdade, a liberdade e o poder executivo" à tutela do governo civil, recebendo na sociedade política de volta com a força da comunidade. Para Locke é impensável que um ser racional abandone o estado de natureza, a fim de participar de uma situação pior. Assim sendo, o poder legislativo da sociedade tem por meta o bem comum se obrigando a proteger a propriedade de cada um contra os três inconvenientes do estado de natureza. O poder legislativo criado pela sociedade governa-a por meio de "leis estabelecidas, promulgadas e conhecidas do povo..." (poder legislativo). Nessa sociedade os juízes são imparciais e julgam de acordo com as leis conhecidas por todos. Esses juízes aplicam a força da sociedade dentro do seu território objetivando executar essas leis (poder executivo) e aplicam-nas fora da comunidade para impedir invasões estrangeiras (poder federativo): a existência e o funcionamento do poder le97 Idem, p. 83. 83 gislativo, executivo e federativo visam "a paz, a segurança e o bem público.” No capítulo X (Das Formas de uma Comunidade) Locke inicia afirmando que o poder da comunidade se localiza na maioria dos homens. Por meio desse poder da maioria se faz as leis, que são executadas por membros previamente escolhidos pela comunidade. Esse governo da maioria dos homens ele o chama de democracia, enquanto o governo de alguns homens recebe o nome de oligarquia. Já o governo de um único homem é nomeado de monarquia. Essa se divide em é hereditária e eletiva. A forma que o governo toma dependerá de como o poder supremo (poder legislativo) faça as leis, dando, assim, a forma da comunidade98. A extensão do poder legislativo será o assunto do capítulo XI. De acordo com o autor, a primeira lei positiva de uma sociedade política é restabelecer o poder legislativo, pois são as leis que garantirão aos homens a paz e a segurança (esse é o motivo que força os homens a saírem do estado de natureza). A primeira lei a organizar, até mesmo o poder legislativo, reza que a sociedade deve ser preservada, enquanto tiver por fim o bem comum. Além da sociedade, também o homem tem que ser protegido por essa lei natural fundamental. Esse poder tem três características básicas: 1. é o poder supremo diretor da sociedade civil; 2. é sagrado; 3. é inalterável. Qualquer lei que não seja aprovada pelo poder legislativo perde a sua validade, visto que é o consentimen98 Locke entende por comunidade, qualquer comunidade independente. 84 to do corpo político que autoriza a criação das leis. Sendo, pois a obediência dos homens restritas ao poder legislativo e às suas leis. O poder legislativo é supremo, sagrado é inalterável, mas ele tem limites. Ele não pode ser arbitrário nas suas relações com os homens, pois não pode ultrapassar o poder que o homem tinha no estado natural. O limite do poder legislativo é o "bem público da sociedade.” E o seu objetivo é a preservação da sociedade e dos homens. Como se pode ver a lei da natureza continua valendo em sociedade. Como segundo limite ao poder legislativo, advoga John Locke, que ele não pode governar por "decretos extemporâneos e arbitrários.” Esse poder só pode governar por "leis fixas" e por "juízes autorizados", uma vez que recebe as condições que acaba com os inconvenientes do estado de natureza. O homem abandona o estado de natureza para viver em paz e em segurança, ter direitos e propriedades, em conseqüência o estado social não pode ser um poder absoluto. Para Locke o homem não abandona um estado felicidade, para se colocar em uma situação de guerra (Estado absolutista): Fazê-lo [viver sob o estado absolutista] importaria em colocar-se em condição pior à do estado de natureza, no qual tinham a liberdade de defender o próprio direito contra os malefícios de terceiros e se encontravam em termos iguais de força para sustentá-lo, fosse o mesmo invadido por um homem ou por muitos em combinação.99 99 Idem, p.88. 85 Portanto, o poder no estado social deve ser exercido por leis fixas e conhecidas e não de maneira absoluta. As leis devem ser fixadas e conhecidas por todos, devido a dois motivos: 1. para que os homens saibam os seus direitos e deveres; 2. para que o governante não vá além do poder que lhe foi outorgado. Como terceiro limite ao poder legislativo é apontado a inviolabilidade da propriedade privada, visto que o homem entra em uma sociedade política para ter a sua propriedade privada protegida. Por esse motivo o poder legislativo não pode agir de maneira arbitrária em relação à propriedade dos contratados. Até mesmo os impostos terão que ser consentidos pelos associados ou seus representantes. O último limite que Locke impõe ao poder legislativo está na faculdade própria do legislativo de fazer as leis e em hipótese alguma poderá ele transferir esse poder a qualquer um outro, visto que o poder supremo é uma delegação do povo. Esse está somente obrigado a obedecer às leis feitas pelo legislativo e a ninguém mais. Em resumo os limites ao poder legislativo impõemlhe quatro obrigações básicas: 1. "primeiro, tem de governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas"; 2. as leis visam o bem do povo; 3. todo imposto deve ter o consentimento do povo; 4. as leis devem ser elaboradas somente pelo legislativo, o qual não pode transferir esse direito a ninguém. Locke apresenta os argumentos para a divisão dos poderes no capítulo XII (Dos Poderes Legislativo, Executivo e Federativo). É o poder legislativo que diz como será usada a força da comunidade, para que ela seja pre86 servada. Como as leis são constantes esse poder não tem necessidade de se manter em exercício contínuo. Após a elaboração das leis os membros do poder legislativo põem-se sobre a sua ação, porquanto toda a lei objetiva o bem comum. As leis devem ter uma força imediata e constante, no entanto o poder legislativo se dissolve imediatamente após a elaboração das leis. Mas surge uma nova questão: Como executar as leis se já não existe mais o poder legislativo em funcionamento? Diz Locke: o poder que executa a lei deve estar separado do poder que as cria. Quando o poder executivo busca a paz ou guerra com membros fora da comunidade ele chama-se "federativo.” Esse poder não se guia por leis positivas, mas pela prudência e sabedoria daqueles homens, os quais buscam o bem em geral: “eis que as leis que dizem respeito aos súditos, uns em relação aos outros, devendo dirigirlhes as ações, bem como a variedade de desígnios e interesses, deve deixar-se em grande parte à prudência daqueles a quem tal poder se entregou, para que o administrem com a maior habilidade para proveito do bem geral.”100 Os poderes, executivo e federativo, têm objetivos diferentes, porém eles estão nas mãos das mesmas pessoas, visto que eles necessitam da força da sociedade e se os seus comandos partissem de lugares diferentes "poderia ocasionar, em qualquer ocasião, desordem e ruína." A teoria da resistência ao poder iníquo desenvolvida por John Locke começa a ser concretizada no capítulo 100 Idem, p. 92. 87 XIII, que trata da subordinação dos poderes da comunidade. Todos os capítulos anteriores é uma preparação, para sua teoria da resistência moral ao poder. Partindo do pressuposto de que só existe um poder supremo na sociedade, Locke afirma que o povo tem direito de afastar o poder legislativo caso ele não cumpra sua finalidade, que é o de preservar a comunidade. Sempre que o poder supremo falhar em proteger o indivíduo, esse mesmo indivíduo toma o poder que concedeu ao Estado. Como conseqüência o homem sempre conserva o poder de destituir o poder supremo caso não cumpra a sua finalidade: Porque, não tendo qualquer homem ou sociedade de homens o poder de renunciar à própria preservação, ou, conseqüentemente, os meios de fazê-lo, a favor da vontade absoluta e domínio arbitrário de outrem, sempre que alguém experimente trazê-los à semelhante situação de escravidão, terão sempre o direito de preservar o que não tinham o poder de alienar, e de livrar-se dos que invadem esta lei fundamental, sagrada e inalterável da própria preservação em virtude da qual entraram em sociedade. E assim pode dizer-se neste particular que a comunidade é sempre o poder supremo, mas não considerada sob qualquer forma de governo, porquanto este poder do povo não pode nunca ter lugar senão quando se dissolve o governo.101 Nenhum homem pode renunciar a sua preservação ou se colocar sob o arbítrio de outros, desta feita o homem tem que resistir a todo aquele que tentar escravizálo. Nesse sentido é correto afirmar que o poder supremo é a comunidade, contudo o poder da comunidade só existe no caso da desintegração do Estado social. 101 Idem, p. 93. 88 É necessário chamar a atenção para que, enquanto houver um governo constituído o poder supremo será o poder legislativo. Em sociedades nas quais o poder legislativo não se reúne constantemente e o executivo (está nas mãos de uma única pessoa) toma parte do legislativo, esse executivo não pode agir em benefício próprio, porque caso assim o faça ele torna-se uma "pessoa particular e isolada" deixando aos associados o direito de obedecer "a vontade pública da sociedade.” O poder executivo, separado do legislativo, tem como único poder aquele, que a comunidade lhe outorgou. Como foi dito anteriormente o poder legislativo não necessita estar sempre reunido, mas é obrigatória e constante a presença do executivo. Entretanto, se a execução das leis não obedecer à proteção da comunidade, o poder legislativo retoma a sua execução e pode castigar aquele que não as cumpria. Essa mesma situação se aplica ao poder federativo. O poder de escolha dos membros do legislativo é periódica e exercido pelo povo, cuja convocação, para escolher os membros do legislativo, é primazia do executivo102. Quanto ao período para essa convocação John Locke aponta dois aspectos: 1. o período está assinalado na constituição; 2. por prudência visando ao bem-estar comum. O autor levanta a hipótese sobre o que possa ocorrer caso o poder executivo (senhor da força da comuni“Locke, apesar de preparar o caminho para a discussão do critério da maioria,não estava nem um pouco interessado em estendê-lo ao sufrágio, às leis periódicas, ou mesmo à supremacia parlamentar.” In VINCENT, Andrew. Ideologias Políticas Modernas. Rio de Janeiro: Zahar, p. 38. 102 89 dade) tente "impedir a reunião e a ação do legislativo"? Caso o executivo não obedeça à constituição original, que exige a reunião do legislativo ele estará declarando guerra ao povo, o qual "tem o direito de restabelecer o poder legislativo no exercício dos seus poderes", ou mais enfaticamente, o povo deve tirar, por meio da força, os empecilhos à ação e reunião do legislativo. Sempre que o executivo impor "a força sem a autoridade" o povo tem o direito de lhe opor à força. E conclui o autor: "o emprego da força sem autoridade coloca sempre quem dela faz o uso num estado de guerra, como agressor, e o sujeita a ser tratado da mesma forma."103 O executivo tem o poder de convocar e dispensar o legislativo, para melhor dar segurança ao povo, mas esse poder não torna o executivo superior ao legislativo. Essa é somente uma relação de confiança nada mais do que isso, porquanto não entendo como prever os acontecimentos no futuro confia-se na "prudência de alguém que devesse estar sempre presente e cujo papel fosse zelar pelo bem público." Locke encerra esse capítulo partindo da máxima: "a lei suprema é a salvação do povo", esta lei sendo obedecida jamais se poderá cometer algum erro grave. Portanto, compete ao executivo mudar a proporcionalidade dos membros do legislativo, não por meio do costume e sim pela Razão. Então, a justiça do governo está em conseguir "uma representação adequada e igual do povo no legislativo." 103 Idem, p. 95. 90 Capítulo VII O pensamento sociológico de Jean-Jacques Rousseau O homem do Iluminismo defendia a idéia de uma ciência do homem e do uso da Razão autônoma e secularizada. Esta era a base sobre a qual haveria um progresso contínuo de desenvolvimento e onde se realizaria a natureza racional do homem. A sociedade e a história representariam este progresso. O otimismo iluminista é posto em xeque, quando em contato com a realidade do mal, que também coloca em dúvida a bondade e a providência divina. Os iluministas, então, concluem que a salvação compete ao homem e não a Deus e será realizada na sociedade e na História em conformidade com as atitudes sociais. Em conseqüência, a sociedade assume grande importância, pois a ordem social, a origem da sociedade, a natureza da sociedade, a teoria da organização social, etc. são questões da ciência do homem. Também, de fundamental importância, é o fato de que as questões que angustiam o homem são abordadas na própria sociedade: os problemas que afligem o homem fogem do domínio da divindade e se colocam na sociedade. É nessa que se pode encontrar a solução, para as dificuldades materiais e morais. O pensamento de Jean-Jacques Rousseau desenvolveu-se dentro do período do Iluminismo, entretanto é difícil caracterizá-lo como iluminista, visto que suas percepções formaram os pilares do Romantismo. Pode-se 91 caracterizá-lo como iluminista no instante em que questiona a: 1. História; 2. tradição; 3. sociedade. Como anti-iluminista é possível encontrar os seguintes traços, os quais ele valoriza: 1. sentimento; 2. espontaneidade natural. Esse autor não dá continuidade às contribuições de John Locke, pois volta suas vistas para o totalitarismo, o qual não é realizado na pessoa do príncipe104, mas no seio do povo, por meio de uma “democracia totalitária absoluta.” Sua idéia política tem como fundamento a bondade do homem que mesmo perdida pode ser recuperada pela educação ou pela força. É essa bondade a condição que o homem tem para se auto-governar numa comunidade totalitária. Essa base moral rousseauniana não se encontra no indivíduo, contudo na comunidade. Jean-Jacques Rousseau é mais filósofo do que sociólogo e a sua importância está em ter influenciado o pensamento dos posteriores. Ele representa uma reação ao racionalismo cartesiano dando aos sentimentos a primazia que os racionalistas davam à Razão, por isso os seus escritos não seguem uma linha sistemática e racional. Mesmo pautada por muitas incoerências e contradições é possível delimitar três pontos fundamentais no seu pensamento: 1. o homem natural é bom; 2. o estado civil é um mal necessário; 3. o estado civil pode ser melhorado. Ele foi o filósofo ilustrado que mais se destacou nesta área. O seu ponto de partida é uma crítica ao Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes colocava todo poder nas mãos do príncipe. 104 92 artificialismo da vida social e da civilização, que no Iluminismo era vista como progresso: “O grande problema de Rousseau consiste em assegurar a solidariedade do corpo social. Pela educação, pela religião, por um ideal comum de civismo, de patriotismo, de frugalidade e de virtude. Emílio, Le Vicaire Savoyard, La Nouvelle Heloise, completam o Contrato Social.”105 A preocupação do autor genebrino está em construir uma sociedade em que as desigualdades sejam eliminadas. Dizia que os homens se diferenciavam no aspecto natural (físico) e no aspecto moral (político). Todavia, em suas obras, afirma que tratará apenas da segunda diferença, visto que com a primeira não é possível fundar um Estado. O objeto que será estudado no livro Do Contrato Social é a necessidade de uma nova base para a política. Nesta obra Jean-Jacques Rousseau deseja que haja uma unidade da sociedade, em outras palavras, ele quer que o indivíduo se submeta à vontade da sociedade: “A principal obra de Rousseau, o Contrato Social, propõe aos homens firmarem finalmente um pacto legítimo que lhes permita reconquistar a liberdade, „encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça contudo a si mesmo‟.”106 TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 209. V. II. 106 CHÂTELET, François. História das idéias políticas. Tradução de C. N. Coutinho. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 73. 105 93 Jean-Jacques Rousseau é o filósofo moderno que mais se aproxima dos valores da pólis grega. Seu pensamento é uma reação contra o racionalismo iluminista. Ele transforma a democracia liberal inglesa (o indivíduo tem direito naturais) numa democracia totalitária (o indivíduo deve se submeter à sociedade). Sua obra que trata sobre a política é o Do Contrato Social. Jean-Jacques Rousseau vê o poder como o resultado dos interesses dos indivíduos e nesse ponto abandona a concepção que o via como divino ou como fruto da conquista militar. No pensamento político rousseuaniano há uma recusa em aceitar a vida do homem numa sociedade artificial que o deforma tirando-lhe a liberdade e a bondade natural. No estado de Natureza o homem era bom. No estado da sociedade nascente era feliz e era nele que deveria ficar. No estado civil é infeliz. A origem dos conflitos entre os homens é identificada, por ele, a partir do momento em que surge a propriedade privada dos bens. Como conseqüência, a vida feliz do homem entra em decadência, pois separam os homens em dois grupos: 1. proprietários; 2. nãoproprietários. Essa divisão é uma negação da situação natural dos homens, os quais em sociedade deixam de se responsabilizar uns pelos outros. Essa decadência é garantida pelo Estado, por esta causa Jean-Jacques Rousseau se opõe a ele. Seu objetivo é tornar a sociedade justa, por isso ele tenta resolver o seguinte problema: por qual motivo essa sociedade tornou-se injusta? Para se saber 94 por que a atual sociedade é deficiente e injusta, devese buscar a compreensão de como e porque o homem sai do estado de natureza e entra no estado social. Ele não procura criar uma utopia para resolver os problemas sociais, mas estuda a própria sociedade para conhecê-la e não para reformá-la. Sua crítica pretende esclarecer dois pontos: 1. a cultura, as ciências e a arte implicaram num progresso do homem (moralidade e felicidade)? 2. o progresso da sociedade burguesa (organização social moderna) faz do homem um ser unitário, total e livre? As respostas que ele oferece a essas questões são negativas. A negatividade da resposta é importante, mas há mais importância na intenção e no alcance delas, pois Rousseau não rejeita indiferenciadamente a cultura e a sociedade, pregando a volta ao estado natural e adâmico. O que ele rejeita é a “ordem social existente, da idéia vigente de cultura e do indiscriminado otimismo no progresso. A propósito e partindo da organização fática da sociedade, é preciso distinguir entre: a. que a sociedade é por essência má e que o social vem por isso a prejudicar o natural, isto é, a 'natureza' do homem; b. que a estruturação fática e atual da sociedade é deficiente e injusta. Para Rousseau, a questão reside nesse último ponto.”107 Ele se opõe aos otimistas que viam na história um progresso, um aperfeiçoamento. Aliás, estava evidente para ele que a sociedade por ser má corromperia o homem, que é bom por natureza. 107 Cordon, Juan. História da Filosofia, p. 168, v.2. 95 Entretanto, o mais relevante para ele era a injustiça da sociedade atual. Partindo do pressuposto de que os males sociais são causados pela sociedade e pela civilização ele admitia ser necessário voltar à natureza que era boa: “Rousseau entende a natureza imediatamente no sentido cronológico, como sendo estado primitivo, originário da humanidade. Depois a entende no sentido espiritual, como espontaneidade, liberdade, contra todo vínculo natural e toda escravidão artificial. O homem não deve ser a roda de uma máquina em uma sociedade materialista; a vontade individual não deve ser prisioneira de uma vontade coletiva. O espírito não deve ser exterioridade, e sim interioridade. A liberdade não apenas um direito, mas um dever imprescindível da natureza humana, que exige também a igualdade dos homens, em virtude, precisamente, da natureza comum. Tal natureza humana, sem os males da civilização, produzirá frutos de fraternidade universal.”108 Jean-Jacques Rousseau vê num primeiro momento a Natureza como sendo a condição primeira da vida humana. Depois diz que é a Natureza o lugar da liberdade e que a liberdade por ser natural torna todos os homens iguais. No que diz respeito ao homem não o considera como mais importante que a comunidade, pois é essa que criará os laços fraternos universais, caso a maldade inserida nela seja eliminada. O que interessa é saber o quanto o indivíduo se submete à lei e qual o seu grau de liberdade no estado social: A lei deve ser universal e aplicada a todos: “Não 108 PADOVANI, XXX 96 por razoes formais de procedimento jurídico, mas porque é precisamente nessa universalidade absoluta que reside seu caráter de mandamento moral.”109 É nesse estado que ele deseja acabar com as injustiças e possibilitar a felicidade do indivíduo. É a isso que se dedica ao escrever sobre esse tema: “A principal obra de Rousseau, o Contrato Social, propõe aos homens firmarem finalmente um pacto legítimo que lhes permita reconquistar a liberdade, „encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça contudo a si mesmo‟.”110 O objeto que será estudado no Contrato Social111 é a necessidade de uma nova base para a política, ou seja, como tornar o homem livre e feliz numa sociedade injusta? Esse é um livro que trata de política e da possibilidade da liberdade frente à autoridade, ao mesmo tempo, que questiona a existência do indivíduo face ao Estado. Jean-Jacques Rousseau deseja que haja uma unidade da sociedade, em outras palavras, ele quer que o indivíduo se submeta à vontade do Estado. No Discurso sobre a Desigualdade, ele afirma que a igualdade é condição essencial da existência da sociedade e a desigualdade é o reflexo de sua decadência. A desigualdade existia, também, no estado de natureza, mas SCHILLING, Kurt. História da Idéias Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 257. 110 CHÂTELET, François. História das idéias políticas. Tradução de C. N. Coutinho. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 73. 111 Essa obra foi condenada pelas autoridades da época e até mesmo no século XIX ela era vista com receio pelas autoridades constituídas. 109 97 não criava privilégios como no estado social112: “Concluise dessa exposição que, sendo quase nula a desigualdade no estado de natureza, deve sua força e seu desenvolvimento a nossas faculdades e aos progressos do espírito humano, tornando-se, afinal, estável e legítima graças ao estabelecimento da propriedade e das leis.”113 A desigualdade no estado social é criadora de privilégios, os quais por sua vez criam as injustiças sociais. Ele não quer uma volta ao estado de natureza, pois é impossível. Ele quer saber qual a melhor maneira de resguardar a liberdade dos indivíduos dentro da sociedade como existe. Sua resposta é a lei. O ideal de Jean-Jacques Rousseau era uma sociedade que tivesse unidade, fosse feliz e reinasse a paz. Esse ideal seria conseguido por meio da religião, mas não a religião da revelação e sim a religião civil. Assim, ele, como Thomas Hobbes, une a política e a religião em contraposição à separação feita por Nicolau Maquiavel. A religião civil não é dogmática, mas o modo de mostrar que os homens são sociáveis: “Há, pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano tem de fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser bom cidadão ou súdito fiel.”114 A coesão social seria dada pela religião civil. Sua preocupação não é uma reli“O Discurso sobre a desigualdade tem deste modo acentos prémarxistas que foram sublinhados por Engels no seu Anti-During.” In TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 206. V. II. 113 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Desigualdade. São Paulo: Abril, 1978, p.282. 114 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Abril, 1978, p. 144. 112 98 gião da revelação, mas uma religião civil. Essa não admitiria a intolerância. Entretanto, o próprio Jean-Jacques Rousseau é intolerante, para com aqueles que não aceitam os dogmas da religião civil e aconselha a expulsão do Estado de todo aquele que não seguir as ordens emanadas dessa religião. O primeiro momento da existência do Estado é a forma absolutista, a qual deve ser abolida e substituída por um Estado em que prevaleça a liberdade. Para ele o Estado deveria se constituir de acordo com a boa natureza do indivíduo. A autoridade existente no Estado teria como base apenas o indivíduo associado a seus iguais. Portanto, quer saber como a sociedade tornou-se deficiente e injusta. A explicação deve ser procurada na natureza do homem, por isso ele dividirá a natureza em duas: 1. estado de natureza; 2. estado social. O estado de natureza refere-se à condição humana antes de entrar em sociedade115. Neste estágio o homem era guiado pelo “amor de si” e, além disso, era bom e feliz. Jean-Jacques Rousseau não quer uma volta ao estado de natureza, pois é impossível. Ele quer saber qual a melhor maneira de resguardar a liberdade dos indivíduos dentro da sociedade como existe. Sua resposta é a lei. Como estabelecer a passagem do estado natural para o social? Ou, qual a origem da sociedade e o contrato que funda a vida social e política? Essas são as perguntas que ele desejará responder. Ele começa afirmando que o homem passou por três estados: 1. no estado de Estado de natureza para ele é uma hipótese. 115 99 Natureza o homem era bom; 2. no estado da sociedade nascente era feliz e era nele que deveria ficar; 3. no estado civil é infeliz. É importante ter em vista que o estado de natureza não é um fato empírico, histórico ao qual Jean-Jacques Rousseau deseja voltar: "O estado de natureza” (e seus conceitos correlativos) é, pois, um conceito ou categoria sociopolítica com a qual e a partir da qual possamos compreender a gênese e a condição de possibilidade da sociedade, analisar e compreender a sua estrutura a partir desse fundamento e gênese; e relativamente a esse ideal de natureza e liberdade humanas possamos ajuizar e valorizar o estado presente e habilitar teoricamente a reestruturação de uma nova ordem social que permita e realize o que o homem tem de tornar-se porque é exigido por sua “natureza.” Por conseguinte, a crítica da injusta ordem social e da cultura não significa em Rousseau um retorno a um estado natural, anárquico (enquanto ordem livre) e de barbárie, mas a transformação de uma ordem social estabelecida por uma força (Hobbes) e vivida em heteronomia, numa ordem estabelecida em igualdade e liberdade e vivida em autonomia.116 Jean-Jacques Rousseau diz que quando diversos pensadores falavam de modo negativo a respeito do estado de natureza eles se enganavam, pois simplesmente transpunham os valores do homem civilizado, para a natureza: “Enfim, todos, falando insensatamente de necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho, transportaram para o estado de natureza idéias que tinham adquirido em sociedade; falavam do homem 116 Cordon, Juan. História da Filosofia, pp. 169-70, v.2. 100 selvagem e descreviam o homem civil.”117 Nada mais errôneo do que ver a maldade no estado de natureza, visto que ela não existia naquele estado, pois a maldade é fruto da sociedade. O certo é que o estado de natureza não era nem bom, nem mau, porque esses valores morais somente surgem com estado social. No estado natural, há o instinto, a impulsão física, o apetite, enquanto que no estado social há a moralidade, o dever e a Razão: “A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhes faltava.”118 O estado social (civil) retrata o homem vivendo em sociedade como sendo mau e se guiando pelo “amor próprio” (é a presença do egoísmo que torna o homem um ser artificial). Nesse estágio reina a injustiça, a opressão e a falta de uma autêntica liberdade: “De onde nascem todos esses abusos senão da funesta desigualdade introduzida entre os homens pelo privilégio dos talentos e pelo aviltamento das virtudes?”119 A desigualdade surge entre homens, quando estes passam a viver em sociedade. O estado de natureza rousseauniano tem os traços a seguir: 1. não há previdência e nem recordação; 2. o ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Desigualdade. São Paulo: Abril, 1978, p.236. 118 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Abril, 1978, p.36. 119 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as Ciências e as Artes. São Paulo: Abril, 1978, p. 348. 117 101 presente é o que importa; 3. as necessidades são simples e na turais; 4. a felicidade é um aspecto da vida interior; 5. a dureza da vida é regra; 6. a violência existe como entre os animais; 7. não existe a covardia e nem mentira; 8. os homens são fortes, independentes, felizes, bons, livres. O estado natural de Jean-Jacques Rousseau é original, pois o homem vive: 1. com segurança; 2. protegido; 3. feliz; 4. livre; 5. sem conflitos. Ele sabe que sabe que não é possível uma volta ao estado de natureza, pois é impossível voltar no tempo. Por isso ele quer resolver o seguinte problema: como é possível o homem recuperar sua felicidade e bondade naturais vivendo numa reunião artificial? A condição vislumbrada, por Jean-Jacques Rousseau, está na livre aceitação de um contrato que deixa os homens tão livres como no estado de natureza: Ele tem essa possibilidade na medida em que reconhece como um todo, em seus objetivos internos e externos, a si mesmo na vida política, sua substância moral aumentada pela comunidade, elevada e temporalmente ampliada mesmo em face da vida e da morte do indivíduo. Assim a vontade moral (e não mais o trabalho e a propriedade) torna-se a essência e a substância do homem, e essa vontade moral de cada cidadão tomado isoladamente deve ter sempre por objetivo o bem comum.120 O indivíduo faz o contrato social não com outros indivíduos (como em Thomas Hobbes), mas com a comunidade. SCHILLING, Kurt. História da Idéias Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 250. 120 102 A garantia da igualdade e da liberdade121 (essa depende daquela) é dada pelo contrato social. Esse é a representação da soberania do povo. Para Jean-Jacques Rousseau o indivíduo deve se submeter a essa soberania. Ele nega o Estado de Thomas Hobbes, uma vez que um Estado imposto pela força não consegue dar ao homem uma liberdade política e social. Portanto, o contrato social assinado entre os indivíduos é um contrato de liberdade, o qual tem como prerrogativa o respeito às leis.122 O indivíduo faz o contrato social não com outros indivíduos (como em Thomas Hobbes), mas com a comunidade. Por conseguinte, o indivíduo deve se submeter às decisões tomadas pela sociedade. A garantia da igualdade e da liberdade123 (essa depende daquela) dentro do Estado é dada pelo contrato social. Esse é a representação da soberania do povo. O homem em sociedade ao limitar seu egoísmo e buscar o bem comum consegue superar sua alienação (que se caracterizaria pelas paixões artificiais do homem numa sociedade artificial). Ao se libertar das paixões Ser livre é obedecer às leis. Ao analisar, em termos lógicos, a noção rousseauniana de contrato social Louis Liard afirma: “quando Jean-Jacques Rousseau atribui a origem das sociedades humanas a um pretenso contrato social, fazendo dimanar do mesmo os deveres que os homens assumem na sociedade, comete uma dupla petição de princípio. Por um lado, com efeito, como poderia suceder o coligarem-se, por um contrato, homens que não viviam ainda em sociedade. E, por outro lado, como poderia esse contrato gerar obrigações, se anteriormente não existisse a obrigação de respeitar os contratos?” In LIARD, Louis. Lógica. São Paulo: ed. Nacional, 1979, p. 189. 123 Ser livre é obedecer às leis. 121 122 103 artificiais o homem participa da sociedade de acordo com sua capacidade. O soberano é o conjunto da sociedade que elabora as leis. Sua tarefa principal é fazer as leis. Essas devem ser o menor número possível e terem como objeto o interesse geral. A soberania do Estado encontra-se no próprio po124 vo e como tal precisa do consentimento dele, caso contrário o governo deve ser substituído. É por esse motivo que Jean-Jacques Rousseau exige que o governo, deva, em qualquer assunto importante, fazer plebiscitos, a fim de que o povo possa definir sobre sua aprovação ou não. Aqui se escuta os ecos da pólis grega, em que os cidadãos eram convocados, para opinarem sobre os aspectos relevantes da vida na pólis. A vontade da maioria, como vontade moral comum, tem como pressuposto básico ser o homem bom por natureza. Se o homem, hoje, é mau isso se dá devido à educação que ele recebeu. Sem essa idéia da bondade original do homem, toda a idéia política de Jean-Jacques Rousseau cai por terra. Em sua visão as vontades individuais devem se submeter à vontade do Estado, tal como na pólis antiga, onde não havia espaço, para as liberdades individuais. O Estado que ele tem em mente é a própria comunidade, sendo desse modo autoritário. A soberania do Estado baseada no povo é intransferível e inalienável. O governo é um simples mandatário Essa posição adotada por Jean-Jacques Rousseau, também, foi adotada por Johann Althusen (Althusius) Jean Bodin e Thomas Hobbes. 124 104 da vontade do povo, que pode removê-lo, quando bem entender. Para Jean-Jacques Rousseau o indivíduo deve se submeter a essa soberania. Essa é identificada com a vontade geral: “Existe uma diferença não de grau, mas de natureza, entre a vontade geral e a vontade dos particulares. Rousseau vê na vontade geral o melhor refúgio contra os cometimentos dos particulares.”125 É a vontade geral a resposta final aos problemas sociais, portanto o indivíduo deve acatar todas as decisões tomadas por ela. Jean-Jacques Rousseau não definiu claramente o significado de vontade geral, apesar desse conceito ser um dos pilares sobre os quais se ergue sua doutrina política: “De facto, Rousseau ora parece entender por ele uma simples abstracção ou um „artifício‟; ora uma realidade psicológica empírica (la volonté de tous); ora um conceito ético (conformer as volunté à as raison); ora como uma comunidade de interesse, ora finalmente como uma realidade metafísica”126. “A vontade geral é a verdadeira comunidade social, do Estado, isto é, onde a vontade do todo e ao mesmo tempo a vontade moral de cada cidadão, não-submissa ao jugo do egoísmo, não-alienada da propriedade privada, coincidem formalmente.”127 “Vontade de todos (careceria aqui empregar o plural) são as vontades egoístas, isoladas, sem laço entre TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 207. V. II. 126 MONCADA, L. de Cabral. Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 239. 127 SCHILLING, Kurt. História da Idéias Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 251. 125 105 elas, deslocando reciprocamente suas esferas de propriedade segundo o direito privado.”128 Por esse motivo seu pensamento é cheio de contradições. Devido à sua religiosidade pode-se dizer que a visão metafísica da vontade geral prevalece em sua obra. “Existe uma diferença não de grau, mas de natureza, entre a vontade geral e a vontade dos particulares. Rousseau vê na vontade geral o melhor refúgio contra os cometimentos dos particulares”129. Para Jean-Jacques Rousseau a separação dos poderes é inconcebível, visto que destrói o Estado, pois divide a sempre uma e incondicional vontade geral do povo. A separação entre os poderes é somente uma questão técnica. O corolário imediato é que a soberania tornase absoluta, mas não arbitrária, visto que num poder arbitrário a vontade geral deixa de ser soberana. A soberania tem como características: 1. inalienabilidade: a soberania não pode ser delegada130; 2. indivisibilidade: o poder é indivisível; 3. infalibilidade: a vontade geral é infalível131; 4. absolutismo: a soberania é absoluta. O soberano é o conjunto da sociedade que elabora as leis, sendo sua tarefa principal a criação das leis. Essas devem existir em menor número possível e terem como objeto o interesse geral: “Afirmo, pois, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais SCHILLING, Kurt. História da Idéias Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 251. 129 TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 207. V. II. 130 A inalienabilidade faz que Jean-Jacques Rousseau se afaste do regime representativo. 131 Ela é infalível, porque a vontade geral é justa e visa ao bem comum. 128 106 pode alienar-se, e que o soberano, que nada é senão um ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo. O poder pode transmitir-se; não, porém, a vontade.”132 A inalienabilidade da soberania faz que Jean-Jacques Rousseau se afaste do regime representativo. E, quanto ao seu caráter é infalível, porque a vontade geral é justa e visa ao bem comum. Há uma visível separação entre a noção de soberano da de governo. Este é um corpo intermediário, entre os súditos e o soberano, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade tanto civil como política. É no governo que se encontram as forças intermediárias, cujas relações compõem a intermediação do soberano com o Estado. O governo como um novo corpo no Estado é intermediário entre o povo e o soberano, mas é diferente de ambos. O governo é grupo de homens que executam as leis. Ele não tem o poder, mas apenas é o depositário do poder. Enquanto que a soberania é indivisível, o mesmo não acontece com o governo, visto que existem três formas. Cada lugar deve ter um governo específico e deve ser relativo a cada região, pois a melhor forma de governo é aquela ditada pelo momento histórico. Jean-Jacques Rousseau identificada três espécies de governos: 1. monárquico; 2. aristocrático; 3. democrático (a democracia não foi feita para os homens, mas para os deuses. A verdadeira democracia é impossível). O governo é grupo de homens que executam as leis. Ele não tem o poder, mas apenas é o depositário do ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Abril, 1978, p. 44. 132 107 poder, o qual é o resultado dos interesses dos indivíduos. Nesse ponto Jean-Jacques Rousseau abandona a concepção que admitia ser o poder divino ou fruto da conquista militar. 108 Capítulo VIII O pensamento sociológico de Auguste Comte A obra de Auguste Comte (1798-1857) é um grande edifício construído de forma sistemática. Em termos epistemológicos podemos afirmar que seu pensamento é um monismo metodológico do positivismo.Ele admitia ser a sociologia, posterior a todas as ciências cuja característica marcante seria sua grande complexidade e pouca generalidade. São três características fundamentais da filosofia positiva: 1. agnosticismo ou idéia de limite; 2. historicismo ou idéia de evolução; 3. monismo ou idéia da unidade mental. O grau de importância vai do agnosticismo ao historicismo e monismo. Após sua morte, o positivismo se dividiu em dois grupos liderados por: 1. Émile Littré (1801-1881)133; 2. Pierre Laffite (1828-1881)134. Émile Maximilien Paul Littré descobriu as obras de Auguste Comte aos quarenta anos de idade. Rendeu-se ao caráter científico dessas obras a tal ponto que admitiu serem elas o ponto central de sua vida.A partir desse contato iniciou a divulgação do positivismo, mas em 1851 abandonou a sociedade positivista, por não concordar com os caminhos tomados. Ele aceitava a primeira fase do pensamento comteano, entretanto renegava o segundo por entender se tratar de uma ilusão político-religiosa. Era defensor do parlamentarismo e opositor moderado do clericalismo. 134 Pierre Laffite, chefe dos positivistas ortodoxos, ao contrário de Émile Littré, aceitou a religião da humanidade proposta por Auguste Comte. Para Pierre Laffite os cargos governamentais e do ensino superior não deveriam ser remunerados. 133 109 Auguste Comte elabora em seu Curso de Filosofia Positiva um dos mais bem sistematizados planos teóricos. Ele desejava responder às seguintes perguntas: como conhecer o mundo? O que é o homem? O que é a sociedade? Como viver em sociedade? A filosofia positiva se compõe de uma: filosofia da ciência; filosofia política e social. Auguste Comte afirma com relação à filosofia positiva que: “Para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o caráter próprio da filosofia positiva, é indispensável ter, de início, uma visão geral sobre a marcha progressiva do espírito humano, considerado em seu conjunto, pois uma concepção qualquer só pode ser bem conhecida por sua história.”135 Os conceitos principais utilizados por ele são: espírito positivo; sociedade; sociologia; humanidade. Seu mérito está na clarificação do conceito positivista. Sua doutrina sociológica se encontra no Curso de Filosofia Positiva (1830-42) em que se pode ver uma teoria geral das ciências. Nessa obra, ele divide a sociologia em duas partes: 1. dinâmica social; 2. estática social. Com o conceito dinâmica social, Auguste Comte, aceitava que a sociedade humana fazia progressos. O centro do pensamento comteano é a dinâmica social que mostra como a sociedade passou por três estágios. Ele acredita ter descoberto a lei fundamental do progresso humano: “Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históriCOMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Abril, 1978, p. 03. 135 110 cos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo.”136 Esta teoria dos três estados é válida tanto para os indivíduos, como para as sociedades. Estes estados podem conviver ao mesmo tempo, mas um estado termina por ser dominante. COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Abril, 1978, p. 04. 136 111 112 Teológico ou fictício Método científico, experimental e dedutivo Maturidade Economistas e sábios Teológico ou fictício Teológico ou fictício Classes dominantes Estágios Juventude Racional Filósofos e jurisconsultos Pensamento Infância Sobrenatural (Deus) Sacerdotes e guerreiros Estado Mental Lógica superior Experiência Imaginação Domínio Lógica secundária Racionalização Imaginação Lógica Lógica superior Experiência Imaginação Ações Lógica secundária Racionalização Imaginação Objetivos No primeiro estágio o espírito humano se ocupa com o absoluto apresentando os fenômenos com resultado da ação direta de agentes sobrenaturais. O segundo estágio, uma modificação do primeiro, o sobrenatural é substituído por abstrações capazes de determinar os fenômenos. A explicação dos fenômenos é feita por intermédio de uma entidade correspondente. No último estágio o espírito humano se preocupa em procurar as leis efetivas dos fenômenos. Auguste Comte admite que a validade do conhecimento é dada pela observação dos fatos. Esta é a base da filosofia positiva, a qual é o ponto máximo do progresso do espírito humano. O caráter fundamental da filosofia positiva é a busca de leis que descrevam os fenômenos. Ao contrário dos estágios anteriores ela não se interessa por encontrar as causas primeiras ou últimas. O seu olhar vai em direção a análise das circunstâncias que produzem os fenômenos relacionando-as entre si identificando “as relações normais de sucessão e de similitude.”137 O método comparativo é usado por Auguste Comte de forma interessante. Ao estudar os três estágios da evolução da sociedade, ele não utilizou uma hipótese científica e sim apenas uma opinião filosófica. A estática social Ao utilizar o termo estática social ele voltava sua atenção às leis de coexistência humana, isto é, ele buscava ordem na sociedade. A estática social olha para o e- COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Abril, 1978, p. 07. 137 113 quilíbrio entre estas instituições: família, sociedade e interferências dos fatos sociais. O mais importante é o estudo da sociedade e não o indivíduo. É o campo de estudo da sociologia que afirma que existe somente um princípio absoluto: “tudo é relativo”. A sociologia deve estudar em primeiro lugar a família; depois a propriedade e, por fim a pátria. A estrutura social se fundamenta na família monogâmica que é a união de duas pessoas. A propriedade entendida como bens necessários aos homens. A propriedade é a base por intermédio da qual os homens têm condições de desenvolver suas capacidades humanas. É ela que possibilita o trabalho, o qual deve se dirigir à solidariedade social. O último objeto de estudo na estática social é a pátria. Ela é a origem da coesão social. Este consenso é indispensável para a continuidade da sociedade. Sociedade industrial Na concepção comteana era a sociedade industrial o momento máximo do progresso da humanidade. É nesta sociedade que a justiça social será conseguida. O poder político se encontra nas mãos de banqueiros e empresários. Como em qualquer sociedade é uma elite que está no poder. O poder temporal se edifica sobre a riqueza e a força, enquanto que o temporal no mérito moral. O objetivo do homem é conseguir alcançar o primeiro lugar na ordem espiritual. Nesta não é o dinheiro 114 ou a posição social que tem validade e sim o valor moral, o qual deve ter como preocupação o interesse social. O poder espiritual regula as paixões e une os homens no trabalho e para o trabalho. Preocupa-se com os governos moderados, como também com a arbitrariedade dos governos, pois o homem, não se deve esquecer, é egoísta (isto se deve, porque os homens agem por intermédio das paixões e não pela Razão). Os homens têm tendências altruístas, as quais podem ser desenvolvidas pela religião que realizaria os ideais do positivismo: o amor; a ordem; o progresso. O pensamento sociológico de Auguste Comte tem importância, para esta ciência porquanto ele: 1. determinou o seu lugar no campo das ciências; 2. demarcou a sua essência; 3. mostrou a importância da evolução do estudo da sociedade; 4. fez a relação entre o grupo "e o seu desenvolvimento espiritual"; 5. percebeu que a realidade social deveria ter um tratamento de realidade natural; 6. afirmou ser a sociedade um organismo coletivo. Auguste Comte admitia que o espírito positivo deveria guiar o homem. Contudo, a sua sociologia ainda carregava a marca do século XIX ao generalizar e sistematizar o estudo da sociedade. 115 Capítulo IX O pensamento sociológico de Herbert Spencer Herbert Spencer (1820-1903) aplicou a idéia de evolução a todos os fenômenos do Universo. Para ele, a sociedade é o ponto mais alto que essa evolução atingiu. Sua teoria tem como base: 1. indestrutibilidade da matéria; 2. força; 3. movimento; 4. integração da matéria; 5. diferenciação da forma. Sua teoria evolucionista refere-se ao todo real como um sistema único em que a matéria inorgânica segue a matéria orgânica que, por sua vez, segue a matéria super-orgânica. Para ele, há uma diferenciação progressiva. Esta se realiza com o passar do homogêneo para o heterogêneo. Por exemplo, a sociedade mais homogênea é militar e autoritária. A sociedade industrial é individualista e caracteriza-se pelo individualismo e pela menor intervenção do Estado na vida dos homens. Desta forma desaparece a coerção externa nas ações dos homens. Herbert Spencer é um continuador de Auguste Comte caso se tome em consideração sua teoria geral das ciências e o seu organicismo. Entretanto, na classificação das ciências, ele colocou a psicologia que não se encontrava na classificação comteana. Outra diferença entre Herbert Spencer e Auguste Comte é que, enquanto este valoriza o intelectualismo, aquele valoriza o sentimento. Para Spencer, o sentimento 116 é o ponto central para se desenvolver a pessoa e a sociedade. Spencer vê a sociedade como um organismo a tal ponto que aplica a ela leis e teorias evolucionistas, tornando a sociologia uma "biologia ampliada.” 117 Capítulo X Socialismos inglês e francês Socialismo inglês O socialismo surge na Inglaterra e na França na primeira metade do século XIX. Nesta época seu significado é impreciso: ora é tomado como uma oposição ao individualismo (Robert Owen), ora como um regime de associação de cooperativas (Pierre Leroux138). Na Inglaterra o socialismo é sinônimo de owenismo. Neste período as idéias socialistas não são populares e mesmo o Movimento Cartista não foi socialista. Robert Owen Robert Owen (1771-1858), político do país de Gales, é um dos primeiros defensores do movimento cooperativo. Após tornar-se um rico industrial ele inicia reformas na estrutura de duas indústrias diminuindo o horário de trabalho e construindo casas e escolas para seus empregados. Tinha como ideal a educação física e mental dos homens, os quais deveriam sempre utilizar a Razão em todos os momentos da vida. Pierre Leroux (1798-1871), filósofo e político francês, procura conciliar o indivíduo e a sociedade por meio da lei da solidariedade. O socialismo para ele era uma concepção moral de uma nova vida. 138 118 Os homens são influenciados pelo meio em que vivem. Sua preocupação é a transformação da sociedade. E na tentativa de se colocar em prática essa idéia ele deixa de ser a filantropia de lado e adere ao messianismo social: num primeiro momento o seu ideal é melhorar as condições de trabalho; em outro busca o auxílio estatal a fim de colocar em prática suas idéias; não satisfeito com a indústria deseja construir uma sociedade baseada num comunismo agrário139; pensa um socialismo baseado na cooperação e no mutualismo140; por fim defende o messianismo social. Com suas críticas ao capitalismo tenta convencer as autoridades inglesas a mudarem as condições de produção. Fundou nos Estados Unidos uma colônia socialista (Nova Harmonia em New Lanark), entretanto seu projeto fracassou. É devido a ele que duas idéias se fixaram na teoria sociológica: uma comunidade exemplar pode transformar a sociedade e a possibilidade de se mudar a sociedade independente da mudança política e de quem esteja no poder. Essa idéia também será partilhada por Charles Fourier (1772. 1837), não obstante as comunidades de Robert Owen se distinguem dos falanstérios de Fourier: Owen deseja comunidades agrícolas, enquanto que Fourier não se preocupa em especializar suas comunidades; aquele deseja o fim da propriedade privada, ao passo que esse defende a divisão da riqueza de acordo com a contribuição de cada. 140 Esse socialismo será em parte defendido por Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). O socialismo proposto por eles se preocupa com a troca e não com a produção. 139 119 Cartismo O cartismo é um movimento inglês da classe trabalhadora que foi iniciado por William Lovett (discípulo de Robert Owen), o qual escreveu uma Carta do Povo (1838) endereçada ao Parlamento inglês pedindo mudanças eleitorais em contraposição ao Reform Act que proibia o voto aos operários. Em contraposição ao pensamento de Robert Owen, o qual não admitia a mudança social via a política, o movimento cartista defendia ser transformações sociais de caráter político. Para tanto eles exigiam: que os parlamentares fossem eleitos de ano em ano; fim da inegibilidade; voto secreto entre outras medidas. Alguns dos participantes do movimento eram antigos aliados de Robert Owen, os quais não aceitavam seu dogmatismo na condução da reforma social. Eles admitiam que a luta política seria o caminho de se conseguir as mudanças sociais e que seria por intermédio da democracia que se chegaria ao socialismo. Quando o movimento chega aos condados industriais do noroeste ele é tomado de assalto pela oratória inflamante de Feargus O´Connor. O Cartismo ainda não é um movimento tipicamente socialista: no máximo uma luta contra a invasão das máquinas e a pobreza dos trabalhadores. 120 Socialismo francês O socialismo francês pode ser dividido em dois grupos de autores, mais por questões didáticas do que por questões ideológicas: 1. Saint-Simon (1760-1825), Charles Fourier (1772. 1837) e Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865); 2. Étienne Cabet (1788-1856); Louis Jean Joseph Charles Blanc (1881-1882); Louis Auguste Blanqui (1805-1881). O primeiro grupo defende uma reforma econômica, mas não aceitam que ela possa passar pela democracia política. O segundo grupo admite que a reforma econômica deve se dar pela democracia. Saint-Simon O Conde Claude-Henri de Rouvroy, também conhecido como conde de Saint-Simon (1760-1825), viu na Revolução Americana o início de um novo tempo para a política. O pensamento de Saint-Simon exerceu influências entre os dirigentes franceses. Preconizava a criação de uma ciência positiva que tomasse o lugar das abstrações sociais. Seu positivismo toma tons de quase uma religião. Em 1814 escreve A Reorganização da Sociedade Européia e, pouco antes de morrer, Novo Cristianismo (1825). 121 Após sua morte um grupo de seguidores cria uma escola, a fim de expor suas principais doutrinas. A preocupação deles passa por questões práticas e pouco desenvolveram as teorias saint-simonianas. O movimento saint-simoniano tem como preocupação basilar a produção. Ele via a política como especificamente voltada à produção. O interesse dele voltava-se, para os produtores141 que ele considera como a classe mais importante, visto que é ela que alimenta a sociedade142. Para ele industrial é todo aquele que produz alguma coisa, desde o banqueiro até o sapateiro. A tarefa imediata que ele se propõe é organizar a economia, posto que ela tem uma primazia sobre a política: “Saint-Simon não sugere apenas a distinção, que se tornará clássica, entre as liberdades formais e as liberdades reais: põe em causa os próprios princípios do liberalismo político e da democracia”143. Não confiando nos políticos pede que o governo se preocupe com a organização da economia. Sua visão de mundo não é democrática, pois considera as diferenças como um bem e exalta as virtudes das elites. No topo da pirâmide social ele coloca os banqueiros. A crítica de Saint-Simon à economia liberal e à sociedade é uma antecipação das críticas de Karl Marx. Seu ideal é a reforma social e para tanto admite ser preciso Adam Smith se preocupava com os consumidores e Karl Marx com os trabalhadores. 142 Karl Marx, também com uma visão salvívica, vê o proletariado como a classe mais importante. 143 TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 124. V. III. 141 122 melhorar as condições físicas e morais das classes mais pobres. Ressalta ser determinante a economia e a diferença de classes. Então, para que haja um novo ordenamento social é urgente que se modifique a propriedade. Seus seguidores preconizam a reforma social universal, ou seja, toda e qualquer reforma social somente terá validade se atingir toda a humanidade. Entretanto, a paz social é um alvo que somente será atingido no futuro. Sua influência no pensamento de Karl Marx diz respeito aos conceitos de classe social e propriedade. Além disso, ele percebeu: 1. a importância da revolução industrial; 2. a relevância do momento econômico; 3. a existência de períodos orgânicos e críticos; 4. a análise social tem que considerar a história. Ele distingue dois períodos na história (crítico e orgânico), bem como defende uma nova moral. Esse pensamento saint-simoniano irá influenciar Auguste Comte e seu desejo de uma ordem social. Karl Marx chama o período crítico de revolucionário, bem como, a preocupação com a moral é um traço marcante nas teorias marxistas. 123 Charles Fourier Charles Fourier (1772. 1837) deseja uma “interpretação global do universo”144, faz uma crítica ao capitalismo e planeja associações voluntárias. Ele admitia que a força de atração não ocorria somente no mundo da física, mas, também, no mundo social. O mundo industrial era um mundo ao contrário. Enquanto os saint-simonianos defendem a indústria, Charles Fourier não via nela nada de especial, a não ser que ela empobrecia o operário. Se não sentia simpatias pela indústria ele mostra uma ojeriza enorme em relação ao comércio: “O liberalismo econômico engendra uma anarquia e uma miséria de que a Inglaterra oferece o triste espetáculo: Fourier fala sem qualquer espécie de tolerância dos „comerciantes de Londres‟ e da cupidez inglesa.”145 Charles Fourier desconfia da transformação econômica e deseja o bem-estar do consumidor e assim ele se mostra o avesso das teorias saint-simonianas. A fim de conseguir a melhoria de vida dos consumidores ele irá propor a construção dos falanstérios. Os falanstérios seriam pequenas sociedades fechadas, nas quais seus membros deveriam exercer todas as funções sociais, a fim de que não houvesse uma especiaTOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 125. V. III. 145 TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 127. V. III. 144 124 lização tal como ocorria na indústria. A criação dos falanstérios não deveria passar pela mão do Estado, mas deveria ser uma iniciativa dos próprios operários. Aí se vê outra diferença para com os saint-simonianos que desejam a participação do Estado nas reformas sociais. Essa posição de Charles Fourier, evitar a intervenção do Estado nas reformas sociais, tem idêntico teor de Proudhon, ou seja, a aversão aos regimes totalitários. Quando propõe as reformas sociais não quer dizer que deseja a democracia e a igualdade. Pierre-Joseph Proudhon Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) tinha como objetivo a melhoria de vida dos trabalhadores. Ele defende a propriedade camponesa. Ele se posiciona ao lado de Saint-Simon e Charles Fourier, quando se trata da relação entre o problema social e a política, pois como esses não aceitava haver uma dependência do social ao político. A questão do social deveria se ligar intimamente à economia e sua solução deveria passar pela criação do Banco do Povo. Como aqueles pensadores também desconfia da democracia e não aceita o voto universal. Mas, também, não admitia a presença do Estado. Em seu anarquismo prefere as associações de trabalhadores à política. Para ele a autoridade do clero e do Estado não têm motivo de ser. Ao contrário de Saint-Simon ele se opõe à religião e seu afastamento de Karl Marx, em 1846, se deu por ter 125 identificado, corretamente, esse autor como um intolerante fundador de religião. A doutrina de Pierre-Joseph Proudhon preconiza a igualdade e a liberdade e mais uma vez ele se põe ao largo em relação a Saint-Simon e Charles Fourier que não aceitavam essas idéias. O princípio de toda e qualquer sociedade é a própria igualdade. Sua solução para os problemas sociais passa pelo mutualismo: uma organização social em que por meio da fraternidade fosse possível trocar serviços, segurança, informação, etc. o Banco do Povo era a instituição por excelência, para o mutualismo. 126 Capítulo XI O pensamento sociológico de Émile Durkheim Biobibliografia 1858: nasce em Epinal, Lorraine; 1882: é nomeado professor em Sens e Saint-Quentin; 1889: edita Elementos de Sociologia; 1893: publica Divisão do Trabalho Social; 1895: aparece As Regras do Método Sociológico; 1896: cria os Anais Sociológicos; 1897: edita O Suicídio; 1906: surge A Determinação do Fato Moral; 1912: divulga As Formas Elementares da Vida Religiosa; 1917: morre em Paris; 1922: publicam Educação e Sociologia; Educação Moral e Sociologia e Filosofia; 1955: divulga Pragmatismo e Sociologia; 1970: surge A Ciência Social e a Ação. Suas obras serviram de base, para a construção da sociologia moderna. Muito se discute porque Émile Durkheim se preocupou com a solidariedade do grupo. Existem três hipóteses que podem tê-lo influenciado: 1. ter nascido numa região nacionalista; 2. ser contemporâneo da Guerra Franco-Prussiana; 3. ser judeu. Ele não aceita as afirmações metafísicas de seus antecessores, quando se tratava de explicar a sociedade, 127 por isso sua sociologia é baseada num empirismo rigoroso, o qual trata a sociedade como uma coisa: “Dizendo isso, não só se afasta de qualquer pretensão ontológica, que considera o homem como uma criatura indeterminada (o Ser), mas também, precisamente, da psicologia individualista.”146 Émile Durkheim procura mostrar que a Sociologia é uma ciência autônoma, por isso delimita seus objetos, seus objetivos e seu método de pesquisa. Para ele, a Sociologia não é uma ciência enciclopédica, e ela apenas pode existir como ciência, caso busque o diálogo com outras ciências. A Sociologia geral, afirma, tem possibilidade de existência, mas numa fase posterior. Método sócio-funcional147 A origem do funcionalismo está ligada diretamente à oposição ao método histórico. O método funcionalista, como o próprio nome indica, tem como proposta o estudo das funções de cada parte da sociedade, mas tendo como objetivo fundamental destacar a harmonia existente na sociedade. Sua gênese está relacionada com os estudos sobre a Biologia, desenvolvidos no século XIX, mas a propensão a fazer analogias entre a política e o corpo humano é uma forma de estudo que existe desde a antigüidade clássica. Ao analisar a sociedade, o funcionalismo está inteCHÂTELET, François. História das idéias políticas. Tradução de C. N. Coutinho. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 323. 147 DAU, Sandro. Fundamentos Gnosiológicos do Método Descritivoreferencial. Juiz de Fora: Alexandria, 2007. 146 128 ressado em saber como os indivíduos e as instituições desempenham um determinado papel na vida social. O primeiro cientista a usar o conceito de função foi Herbert Spencer (1820-1903). Para ele, existia uma grande correspondência entre a sociedade humana e os organismos biológicos, pois a existência desses dois grupos depende, diretamente, da interdependência que há entre suas partes. Na sociedade humana, a função é uma obrigação. O funcionalismo dá seus primeiros passos com Émile Durkheim (1858-1917), a partir do momento em que ele une o conceito função148 ao conceito estrutura, a fim de conseguir estudar como funciona a estrutura. Para ele, a função é a relação de correspondência existente entre uma instituição social e suas necessidades. Em sociedade, as instituições atuam como se fizessem parte de um organismo, no qual cada parte, por menor que seja, age para o bem comum do corpo. Émile Durkheim tinha como primeira preocupação encontrar os elementos que comprovavam a existência da ordem e da estabilidade social, mas, também, se interessava pela desintegração social, causada pelo egoísmo dos indivíduos. Esse método toma novo fôlego com Alfred Reginald Radcliffe Brown (1881-1955), o qual estuda o funcionamento da estrutura social da vida de uma comunidade. Para ele, pensar a função de uma estrutura é pensar nas relações entre suas unidades. Por extensão, a estrutura sociNo dia-a-dia, a palavra função é usada significando obrigação ou responsabilidade, mas, na ciência, o conceito função social deve ser compreendido como a contribuição feita pelo fenômeno ao sistema ao qual pertence. 148 129 al somente pode ser estudada por meio de seu funcionamento. Toda idéia ou bem material, dizia Bronislav Malinowski (1884-1942), realiza uma tarefa que se torna indispensável ao funcionamento do todo. Ele afirma que a função de uma atividade social se relaciona com seu papel na vida em grupo. O funcionalismo ganhou grande ímpeto no século XX, graças aos trabalhos de Robert King Merton (19102003) e Talcott Parsons (1902-1979). A sociedade é um complexo formado de indivíduos, de grupos e de instituições, os quais se inter-relacionam. Nesse sentido, é um complexo sistema em funcionamento e suas partes exercem determinadas funções na organização mais ampla. O método funcionalista tem por orientação a interpretação da realidade e não a sua investigação: “Levando-se em consideração que a sociedade é formada por partes componentes, diferenciadas, inter-relacionadas e interdependentes, satisfazendo, cada uma, funções essenciais da vida social, e que as partes são mais bem entendidas compreendendo-se as funções que desempenham no todo, o método funcionalista estuda a sociedade do ponto de vista da função de suas unidades, isto é, como um sistema organizado de atividades.”149 O funcionalismo admite que a sociedade seja formada por diferentes partes, as quais se inter-relacionam. Essas partes, que têm dependência entre si, exercem funções específicas que são desempenhadas tendo o todo como finalidade. O LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos da Metodologia Científica. 5a ed. são Paulo: Atlas, 2003, p. 110. 149 130 funcionalismo, ao pesquisar as funções das partes em sociedade, nada mais incita que não seja o estudo de como as atividades se organizam em um sistema. Ao se utilizar esse método, o pesquisador tem que ter em mente que a preocupação que o move é encontrar as explicações adequadas, para o funcionamento organizado da sociedade. O método funcionalista interpreta os elementos da sociedade, dando primazia à sua função nela. Um elemento é funcional, caso ele atenda às necessidades do grupo social. Os pesquisadores que usam esse método “se mostram inclinados a justificar o que é em função do que deve ser para que a sociedade possa subsistir.”150 Com o funcionalismo, a sociedade é vista como estática e não se consideram os elementos que podem provocar mudanças nela. Nesse método, tanto a sociedade como a cultura estão ligadas a um sistema de funções. Ele tenta explicar a sociedade como sendo meio de satisfazer as necessidades dos indivíduos. A análise funcionalista procura fazer relações entre os elementos sociais e o sistema social, bem como entre os próprios elementos, a fim de que possa encontrar as conseqüências imediatas que interferem no sistema social, contribuindo para sua manutenção. O método funcionalista apresenta as vantagens de: 1. comparar os sistemas políticos; 2. utilizar variáveis acessíveis; 3. usar categorias padronizadas. RUMNEY, Jay. Manual de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 48. 150 131 Esse método torna-se mais eficiente do que outros no que diz respeito à riqueza de seleção e à orientação de dados. Sendo da maior importância seus estudos sobre a conservação dos padrões e da regulação dos sistemas. O uso do método funcionalista discute pontos como as funções de conversão e de capacidade, bem como da adaptação e da conservação. A maioria das pesquisas feita com esse método procura perceber como funcionam as relações estáticas. É uma pesquisa voltada para o estudo dos problemas de manutenção e de adaptação do sistema. Ele recebe as seguintes críticas: 1. cria sistemas de modo forçado; 2. postula um funcionalismo universal; 3. torna-se um sistema estático de análise; 4. justifica o sta- tus quo. A partir dos anos 60, o funcionalismo recebeu uma série de críticas, quanto à sua tentativa de explicar a sociedade. Uma dessas críticas refere-se à sua incapacidade de estudar as mudanças sociais e os conflitos. Uma outra se apropria do argumento epistemológico, para afirmar que o funcionalismo explica a sociedade pelos seus efeitos, mas é incapaz de explicar a causa desses efeitos. Na atualidade, ele dá lugar ao método estruturalfuncionalista, o qual vê a sociedade como formada por diversas partes, as quais agem com certa interdependência, objetivando conseguir a estabilidade social. É considerada uma teoria do consenso e seus defensores são acusados de serem pensadores conservadores. 132 O primeiro livro importante de Émile Durkheim é Da Divisão do Trabalho Social de 1893. A análise feita sobre a divisão do trabalho não se identifica com a análise dos economistas, para ele, o importante é a multiplicidade de profissões e atividades industriais, que têm sua origem no desaparecimento da solidariedade mecânica. Os fenômenos sociais têm como causa o modo como ocorre a divisão do trabalho na sociedade. Essa é uma variável independente, ou melhor, não é determinada por nenhum outro fato. Ao estudar a divisão do trabalho, ele utiliza conceitos tirados da lei jurídica. Isso porque essa lei é observável, e tem as características de um fato social: 1. coercibilidade; 2. exterioridade; 3. organicidade. O tema desse livro são as relações entre os indivíduos e a sociedade. Seu problema é entender como os indivíduos vivem em sociedade, por meio do consenso. A fim de responder a esse problema, ele distingue duas espécies de solidariedades entre os homens em sociedade: 1. solidariedade mecânica; 2. solidariedade orgânica. Sobre essas solidariedades escreveu Sandor Halebsky que essa transição histórica era para Émile Durkheim irreversível: A discussão, por Durkheim, da irreversível transição histórica da sociedade, da solidariedade mecânica para a orgânica, é hoje tema bem familiar na história intelectual recente. Essencialmente, temos uma teoria da mudança relacionada com uma crescente divisão do trabalho, ou processo de diferenciação de papel, capaz de provocar uma heterogeneidade também crescente e uma interdependência funcional, com a unidade social condicionada à interdependência ou realização recíproca 133 de obrigações e expectativas correspondentes de aceitação. Esse contraste com a solidariedade mecânica das sociedades não diferenciadas, pré-industriais, rurais e mais primitivas, baseia-se numa similaridade de crenças, ou em crenças e sentimentos comunais partilhados, dentro de uma tradição comunitária.”151 A solidariedade mecânica caracteriza-se pela semelhança entre os participantes: 1. sentimentos; 2. valores; 3. objetos sagrados. É uma sociedade baseada na igualdade, porque não há ainda uma diferenciação entre os indivíduos, visto que a divisão do trabalho é quase inexistente. A característica dos indivíduos, que vivem nas sociedades arcaicas, é a semelhança no comportamento dos seus membros. Nessas sociedades, é marcante a consciência coletiva (as crenças e os sentimentos dos indivíduos formam um sistema específico). A consciência coletiva permanece no tempo e é o elo que une uma geração a outra. Caso ela não existisse cada próxima geração deveria partir do zero e construir todas as manifestações culturais novamente. Numa sociedade dominada pela solidariedade mecânica, as sanções sociais pesam sobre aqueles que transgridem as suas regras sociais. A manifestação da coerção se dá por meio de leis criminais severas, cujo objetivo é manter a união do grupo. Na solidariedade orgânica, o consenso que mantém a sociedade em funcionamento é dado pelas diferenças entre os seus membros. HALEBSKY, Sandor. Sociedade de Massa e Conflito Político. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, pp. 42. 3. 151 134 É chamada de orgânica, porque é uma analogia com os órgãos do corpo humano. Nele cada órgão exerce sua função, visando ao bem-estar do todo. Os órgãos são diferentes, mas são todos essenciais à vida do corpo. Uma sociedade que se caracteriza pela solidariedade orgânica apresenta uma diferenciação entre os indivíduos. Essa diferença aumenta com o crescimento da divisão do trabalho. Quanto maior é a divisão do trabalho, maior é a independência existente entre os indivíduos. Essa independência se reflete nos seus pensamentos e moralidade. Nesse tipo de sociedade, dominada pela solidariedade orgânica, a consciência coletiva diminui a pressão sobre o indivíduo. A lei que rege esse grupamento é a lei civil e administrativa que têm como relevância a reparação de um dano causado e não só a punição. Não quer dizer que não haja coação externa na sociedade, pelo contrário ela continua a existir uma vez que a lei não é feita pelas partes, mas já existem antes dos indivíduos. Uma idéia importante desenvolvida, a partir desses estudos, é a de consciência coletiva. Esse conceito é definido no seu livro Da Divisão do Trabalho Social da seguinte maneira: "o conjunto de crenças dos sentimentos comuns à média dos membros de uma sociedade.” Esse sistema tem uma vida própria. A consciência coletiva somente tem existência em virtude dos sentimentos e crenças, presentes nas consciências individuais. Ela não é fruto de um único indivíduo, mas subsiste em toda a sociedade. Ela não depende da condição em que se encontram os indivíduos porque, mesmo após a morte deles, ela continua a existir. A consciência coletiva 135 existe em qualquer lugar e não muda de uma geração para outra, pelo contrário, é ela que liga a geração passada à presente. Se ela não existisse a geração seguinte teria que aprender as práticas sociais, a partir do zero. Ela não pode ser confundida com a consciência individual, apesar de se realizar no indivíduo: "É o tipo psíquico da sociedade, tipo que tem suas propriedades, condições de existência, seu modo de desenvolvimento, exatamente como os tipos individuais, embora de outra maneira."152 Quanto mais semelhante é a sociedade, mais forte é a manifestação da consciência coletiva, por exemplo, nas sociedades arcaicas o pensamento e a moralidade do indivíduo são quase totalmente submetidos às sociedades. A coesão da consciência coletiva depende da sociedade em que ela se encontra. Onde há a predominância da solidariedade mecânica, esta atinge a maioria dos indivíduos. Nessas sociedades as ações dos indivíduos são orientadas pelos imperativos e proibições sociais.153 Nas sociedades dominadas pela solidariedade mecânica, a consciência coletiva domina quase que por completo a vida dos indivíduos, e os sentimentos coletivos têm um grande predomínio nas ações individuais manifestando-se por proibições rigorosas àqueles que Durkheim, Émile. Da Divisão do Trabalho Social; p. 46. "O adjetivo social significa, neste momento do pensamento de Durkheim, apenas que tais imperativos e proibições se impõem à média, à maioria dos membros do grupo; que eles têm por origem o grupo, e não o indivíduo, denotando o fato de que este se submete a esses imperativos e proibições como a um poder superior.” Aron, p. 300. 152 153 136 violam as normas sociais. A indignação com o crime é diretamente proporcional à força da consciência coletiva. A consciência social caracteriza-se, também, por ser particularizada, pois cada momento da existência social é bem definido. As ações são dadas pela consciência coletiva e não pelo indivíduo. Nas sociedades que são dominadas pela solidariedade orgânica os indivíduos têm condições de terem opiniões próprias, crenças diferentes do resto da sociedade, liberdade de crença etc. Nessas sociedades há um enfraquecimento da indignação, quanto à violação das proibições sociais e há um maior questionamento individual dos imperativos sociais. Daí, ele concluir que o indivíduo é produzido pela sociedade contrariando, assim, os sociólogos ingleses que diziam ser o indivíduo o criador da sociedade. Essa afirmação será o fio condutor de toda sociologia de Émile Durkheim. Quando afirma que o indivíduo nasce da sociedade ele exprime essa idéia tendo dois sentidos fundamentais. O primeiro diz respeito à prioridade histórica de determinadas sociedades onde os indivíduos são todos parecidos e não há uma individualidade pessoal marcante. Essas sociedade coletivistas surgem historicamente primeiro. O segundo relaciona-se com a prioridade lógica "na explicação dos fenômenos sociais", porque caso a solidariedade mecânica anteceda, realmente, à orgânica então é necessário explicar a diferenciação social e a solidariedade orgânica a partir da sociedade. 137 Assim, para Émile Durkheim os economistas enganam-se, quando tentam explicar a divisão do trabalho, a partir dos interesses próprios dos indivíduos e que por extensão fazem crescer a riqueza social. O autor inverte a máxima dos economistas ao afirmar que as diferenças sociais não dependem das vontades dos indivíduos, ele quer dizer que a divisão do trabalho ocorre não porque o indivíduo quer, mas porque a sociedade se dividiu. Nessa passagem encontra-se uma idéia fundamental da sociologia durkheimiana: a sociologia estuda o todo e não as partes, ou melhor, o conjunto social não se resume às suas partes, ou ainda, os elementos individuais são explicados pelo todo. Ao estudar a divisão Émile Durkheim chegou a duas idéias importantes sobre a sociedade: 1. ela é mais importante que o indivíduo; 2. ela explica o indivíduo e não o contrário. A divisão do trabalho é uma estrutura existente em toda a sociedade, em que as divisões técnica ou econômica são suas representações. Com respeito ao método de estudo da divisão do trabalho, o autor admite que o estudo de um fenômeno social deverá ser feito de maneira objetiva, ou melhor, deve-se partir do exterior e encontrar um meio de explicar a consciência individual. Na obra Da Divisão do Trabalho Social, identificamse os fenômenos da consciência com o aspecto jurídico da sociedade. Para ele há dois tipos de direito: 1. repressivo; 2. restitutivo. O direito repressivo trata das punições àqueles que violam as regras sociais aceitas. É típico das sociedades 138 simples, em que prevalece a solidariedade mecânica, pois, a multiplicação das sanções, mostra como os sentimentos comuns são fortes. Nessas sociedades o número de casos, considerados como crimes, estão ligado diretamente à força da consciência coletiva. Na concepção sociológica de Émile Durkheim, crime é tão-somente uma ação que a sociedade não aceita. O criminoso não é culpado perante Deus ou a uma determinada concepção jurídica, mas perante aquele que obedece às leis de uma sociedade. Essa concepção sociológica do crime é totalmente relativista. Após elaborar a teoria do crime, o autor vai deduzir uma teoria das sanções. Ele não aceita a definição clássica, de acordo com a qual a sanção tem por objetivo impedir a repetição um ato culpado. De acordo como ele, a punição não visa a amedrontar as pessoas, mas satisfazer a necessidade de reparação que a consciência coletiva exige, quando ocorre um crime. Com essa concepção, a justiça e a autoridade das sanções ficam enfraquecidas. O direito restitutivo é, também, chamado de cooperativo e tem com objetivo ordenar a sociedade, quando uma falta é cometida visando à reorganização da cooperação. Este direito não procura punir o transgressor, mas ordenar as coisas como a justiça exige. Ele é típico das sociedades em que prevalece a solidariedade orgânica. Para Émile Durkheim a sociedade moderna não se originou a partir de um contrato livre entre os indiví- 139 duos154, porque ela não pode ser explicada por meio de seus comportamentos. Em sua concepção o contrato social tem uma importância, mas ele prega que o contrato é derivado da própria sociedade: "Para que haja uma esfera cada vez mais ampla, onde os indivíduos possam concluir livremente acordos entre si, é preciso que a sociedade tenha uma estrutura jurídica que autorize essas decisões autônomas dos indivíduos."155 Eis aí o primado de Émile Durkheim que admite ser a sociedade anterior ao indivíduo. Émile Durkheim procura estudar, em As Formas Elementares da Vida Religiosa, a religião mais primitiva da sociedade mais simples conhecida: os Arunta da Austrália. Nessa pesquisa, ele utilizou fontes secundárias, fazendo um trabalho intenso e profundo. A forma de manifestação dos Arunta era o totemismo e foi considerado, pelo autor, como a religião mais simples que existia. A base do totemismo está no princípio sagrado que impõe sanções a todo aquele que violar um tabu. Esse princípio misterioso impõe responsabilidade sociais e dá alma ao totem, que pode ser um animal ou uma árvore ou um objeto natural que é o símbolo do grupo. A partir desses estudos Émile Durkheim elaborou suas principais teses sobre a religião: 1. tem como causa a vida grupal; 2. simboliza o grupo; 3. o sagrado e o profano estão separados em todas as sociedades. “Seguindo-lhes o exemplo, Emile Durkheim, o erudiOs contratualistas admitem essa hipótese. Aron, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1977, p. 304. 154 155 140 to francês, formulou uma teoria das origens e funções da religião. Reuniu provas para mostrar que nas práticas totêmicas australianas cada grupo social. clã ou outro grupo de parentesco cultua determinado animal totêmico, ou outro fenômeno natural, e, com isso, esses grupos estão realmente cultuando-se: o animal ou planta totêmicos são símbolo do próprio grupo social. Durkheim concluía: “Em geral, é fora de dúvida que a sociedade tem tudo o que é necessário para despertar a sensação do divino nas mentes, simplesmente pelo poder que tem sobre elas; pois para seus membros, ela é o mesmo que um deus para os seus adoradores... a força religiosa nada mais é do que a força coletiva e anônima do clã [...]. Seus estudos de outras instituições e costumes humanos também recorrem freqüentem ente à forma pela qual eles contribuem para a manutenção da sociedade.”156 A religião deve tratar das crenças sagradas. São essas crenças que dão coesão à sociedade num grupo moral. O mundo do sagrado não toca o homem externamente, mas tão só internamente. É na vida coletiva que se encontra a origem e o objeto da religião. Para Émile Durkheim o sagrado personifica a sociedade. Para ele, é a religião o cimento que une o grupo e sua função social é a manutenção da solidariedade social. Em As Regras do Método Sociológico Émile Durkheim aprofunda a definição de consciência coletiva. Para que se possa fazer uma análise sociológica, com valor científico, é necessário estudar a sociedade e não o indivíduo. Com essa afirmação o autor delimita o campo de PELOT, Pertti. Iniciação ao Estudo da Antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 41. 156 141 ação da Sociologia, separando-a da Psicologia. O objeto de estudo da Sociologia é a sociedade e não o indivíduo isolado. Todo fato social deve ser explicado pelo comportamento do grupo e não pelo comportamento do indivíduo. Apesar de ser exterior ao indivíduo, ele faz exerce uma pressão sobre o indivíduo. A raiz dos fenômenos sociais encontra-se no seio do grupo social. Os fatos sociais não podem ter como característica a universalidade. Uma determinada ação, repetida várias vezes, ultrapassa o mundo do indivíduo, tornando-se um padrão social, que está além do indivíduo. Os fatos sociais são os objetos de estudo, por excelência, da Sociologia. Eles se manifestam de duas maneiras: 1. através da coação ao indivíduo. Caso não se obedeça a uma regra social, há uma sanção; 2. por intermédio da generalização. Um fato somente é social se ele afetar a sociedade como um todo. Um fato social típico são as instituições. As instituições são crenças e costumes aceitos pelo grupo. Por isso, Émile Durkheim admite ser a Sociologia a ciência que estuda a origem e o funcionamento das instituições. A maneira de se estudar cientificamente um fato social é tratá-lo como coisa, com essa perspectiva ele se afasta dos primórdios da Sociologia que o tratava como conceito. Por esse motivo ele critica Auguste Comte (1798-1857) e Herbert Spencer (1820-1903) que estudavam o progresso humano. Ocorre que o progresso humano é um conceito (uma abstração não encontrada no mundo), uma concepção mental e não um fato histórico. 142 O estudo do fato social não pode ter como método a introspecção, visto que não se pode afirmar que as idéias correspondem ou não às coisas. Quando um sociólogo se propõe a estudar a sociedade, ele deve esforçar por vê-la na perspectiva da objetividade, admitindo que se encontra no âmbito do desconhecido. É preciso então, pesquisar os fenômenos e verificar como eles são influenciados pela sociedade. Um fato social não depende do desejo do indivíduo, visto que ele é externo ao indivíduo. O fato social diferencia-se do fato psicológico qualitativamente, portanto a sua análise deverá ser também distinta. 143 As Regras do Método Sociológico Prefácio à primeira edição O que se lê no prefácio da primeira edição de As regras do método sociológico é a afirmação de que o objetivo da ciência é fazer descobertas, mas, para isso, é necessário que se evitem os preconceitos. Por esse motivo, o objetivo último, do autor, é tornar as condutas humanas racionais. Para ele, a sociologia deve abandonar o caminho da subjetividade e se enveredar pelo caminho da objetividade. Prefácio à segunda edição Já no prefácio á segunda edição, é possível ver que o método durkheimiano de se fazer ciência considera os fatos sociais como coisas e como sua natureza não é modificada pelo indivíduo. Além disso, seu método aconselha a só usar o conceito, quando ele estiver “cientificamente constituído”. Por isso, ele irá usar o seguinte conceito de coisa: É coisa todo objeto de conhecimento que não é naturalmente compenetrável pela inteligência, tudo aquilo de que não podemos ter uma noção adequada por um simples procedimento de análise mental, tu- 144 do o que o espírito só consegue compreender na condição de se extroverter por meio de observações e de experimentações, passando progressivamente dos caracteres mais externos e mais imediatamente acessíveis aos menos visíveis e aos mais profundos. Tratar certos fatos como coisa não é, portanto, classificá-los numa ou noutra categoria do real: é ter para com eles uma certa atitude mental; é abordar o seu estudo partindo do princípio de que se desconhecem por completo e que as suas propriedades características, tal como as causas de que dependem, não podendo ser descobertas pela introspecção, por mais atenta que seja.157 Assim, coisa é tudo aquilo que não foi racionalizado (não foi conhecido pela Razão). Tratar um fato como coisa é admitir não conhecê-lo por completo, por esse motivo o sociólogo deve ter cuidado, ao estudar a sociedade, visto que ela é algo desconhecido. Um fato é desconhecido pelo cientista até o inicio de sua pesquisa. A maneira como o cientista via um fato antes de pesquisar não deve ser levado em consideração, pois esse conhecimento não tem valor científico. O que se percebe, numa pesquisa sociológica, é que o fato mais difícil de se interpretar, mas, por outro lada, é mais fácil de se atingir. Émile Durkheim. As regras do método sociológico. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Os pensadores, p. 76. 157 145 O que é um fato social? No capítulo primeiro, Émile Durkheim afirma que, em sociedade, os fatos que ocorreram são fatos sociais (os modos de agir, de pensar e de sentir). Eles são exteriores à consciência do indivíduo. Além de serem exteriores, eles também são coercivos e imperativos, impondo-se ao indivíduo mesmo contra sua própria vontade. A coação dos fatos sociais não impede a manifestação da personalidade dos indivíduos. A ação do indivíduo é diferente de um fato social. Esse é coercivo e externo, cuja presença é marcada pela existência da sanção e de uma resistência. Os fatos sociais tornam-se parte da vida coletiva e se concretizam nas práticas de um grupo. Quando uma prática é repetida infinitas vezes, ela se torna social e independente das práticas individuais. A Sociologia é o estudo dos fatos sociais. Eles têm duas características: 1. coerção sobre o indivíduo; 2. difusão geral. Entre os fatos sociais encontram-se as instituições que são fundamentais para a vida social. Por isso, Émile Durkheim diz que a sociologia é o estudo das instituições, de sua origem e de seu funcionamento. O fato social tem uma existência independente do indivíduo, não se ligando, pois, à vontade individual. Conseqüentemente, a sociologia pode estudá-los objetivamente, uma vez que eles não dependem de quem age. 146 Regras relativas à observação dos fatos sociais No capítulo segundo, é observado que o método sociológico é composto por três regras. A primeira aconselha a evitar todos os preconceitos. Essa regra não é característica somente da Sociologia, mas de todas as ciências. Evitar a noções prévias em Sociologia é mais difícil do que em outras ciências, pois as crenças dos indivíduos agem como forças poderosas. A respeito da segunda regra, Émile Durkheim diz que o sociólogo deve definir o assunto a ser tratado, para que todos, inclusive ele próprio, saibam o que está sendo estudado. É necessário que se defina o tema de modo objetivo (ou seja, a definição não deve depender de seu gosto, crença etc). A objetividade é alcançada não por meio da idéia, contudo por via de uma concepção baseada nas características concretas do fenômeno. Deve-se adotar: “[...] a seguinte regra: tomar sempre para o objeto de investigação um grupo de fenômenos previamente definidos por certas características exteriores que lhe sejam comuns, e incluir na mesma investigação todos os que correspondam a esta definição”.158 A terceira regra diz que se devem afastar os dados sensíveis, uma vez que eles são muito pessoais e tornam a compreensão dos fenômenos somente o que é objetivo, quanto mais livre dos fatos individuais, maior é objetividade do conhecimento científico. 158 Ibidem, p. 104. 147 Regras relativas à distinção entre o normal e o patológico O capítulo terceiro apresenta as regras, para se distinguir os fatos sociais, visto que eles são de dois tipos: 1. normais; 2. patológicos (mórbidos). Os fatos normais “são o que devem ser”: os fatos mais gerais. Eles são considerados normais em relação ao desenvolvimento de uma determinada sociedade. Uma proposição científica relativa ao estado normal será aplicada, com mais facilidade a um caso particular se for justificada. O sociólogo, ao definir um fato como normal, procura no passado as causas que o fizeram normal e, após isso, verificará se a mesma condição se repete ou não no presente. O importante na investigação sociológica é definir, logo no início, se o fato é ou não normal. Um fato normal é sempre útil. Existem três regras básicas para identificar um fato normal: 10 - Um fato social é normal para um tipo social determinado, considerado numa fase determinada de desenvolvimento, quando se produz na média das sociedades desta espécie, consideradas numa fase correspondente de desenvolvimento. 20 - Os resultados do método precedente podem verificar-se mostrando que as generalidades do lado do fenômeno está ligada às condições gerais da vida coletiva do tipo social considerado. 30 - Esta verificação é necessária quando este fato diz respeito a uma espécie social que ainda não cumpriu uma evolução integral.159 159 Ibidem, p. 118. 148 Émile Durkheim, para melhor explanar sua teoria dos fatos normais, utiliza o exemplo do crime. O que é um crime? Crime é toda ação que ofende os sentimentos coletivos. Apesar de parecer paradoxal o crime é um fato normal, pois “é um fator de saúde pública”. A normalidade do crime não é um absurdo, por que uma sociedade sem crimes é impossível. O crime desaparecerá, quando, nas camadas sociais “de onde provêm os assassinos”, não mais se aceitarem o derramamento de sangue, porém isso só aconteceria quando esse sentimento atingisse toda a sociedade. O que torna um ato criminoso não é o consentimento individual, mas a consciência comum: “o crime é, portanto, necessário; está ligado às condições fundamentais de qualquer vida social que, precisamente por isso, é útil; porque estas condições a que está ligado são indispensáveis para a evolução normal da moral do direito”.160 O crime, em termos sociológicos, não é só um assassinato, porém, como foi visto anteriormente, é tudo aquilo que ofende a consciência comum. Nesse aspecto, a luta de Sócrates pelo livre pensamento foi um ato criminoso, para a época. O resultado é que seu crime teve como fruto a liberdade de pensamento existente hoje. Daí, o autor concluir que o criminoso não é um ser parasitário, contudo “é um agente regular da vida social”. 160 Ibidem, p. 121. 149 Regras relativas à constituição dos tipos sociais Nesse capítulo, apresentam-se as regras para construir os tipos sociais. Para ele, um fato social, somente é considerado normal, ou patológico em relação a “uma espécie social determinada”. A espécie social é o intermediário entre as “sociedades históricas e o conceito único‟”. A construção de uma espécie social dá-se quando são selecionados os fatos decisivos em determinada sociedade, ou melhor, a partir do momento que se isola as características essenciais do fato. A classificação de uma sociedade deve partir das sociedades mais simples. Uma sociedade simples é aquela onde não se encontra uma outra anterior a ela. A mais simples de todas as sociedades são as hordas, cuja característica é não se decompor em outra sociedade. Seu menor elemento é o próprio indivíduo. Após essa definição de sociedade simples (não interessa se é histórica ou postulado da Razão), é possível construir uma escala completa dos tipos sociais “. O princípio que rege esse método de classificação das sociedades pode ser resumido na seguinte passagem: Começar-se-á por classificar a sociedade segundo o grau de composição que apresentam, tomando como base a sociedade perfeitamente simples ou de segmento único; e no interior destas classes proceder-se-á a distinção das diferentes va- 150 riedades conforme se produz ou não coalescência concreta dos seguimentos iniciais.161 Como conclusão, é possível afirmar que as diferentes sociedades são combinações de uma “única sociedade original”. Regras relativas à explicação dos fatos sociais Esse capítulo inicia-se com uma crítica de Émile Durkheim a August Comte e Herbert Spencer, pois afirma o autor de As regras do método, que eles julgaram ter explicado os fenômenos ao definir “sua utilidade e papel que desempenham”. A atitude desses autores levou-os a confundir dois aspectos diferentes: Mas este método confunde duas questões muito diferentes. Mostrar a utilidade de um fato não explica seu nascimento nem a aparência com que nos surge, pois as fundações para que servem supõem que as propriedades específicas que o caracterizam, mas não o criam. A nossa necessidade das coisas não as determina; tal necessidade não pode extraí-las do nada e conferir-lhes existência. Esta depende de causas de um outro gênero. O nosso sentimento da sua utilidade pode incitar-nos a provocar essas causas e a aproveitar os resultados que implicam, mas não a suscitar estes resultados a partir do nada.162 161 162 Ibidem, p. 130. Ibidem, p. 133. 151 Existem fatos no mundo que não servem para nada, visto que perderam sua utilidade, mas continuam existindo por força do hábito. È por esse motivo que, em Sociologia, quando se explica o fenômeno social, é necessário investigar a causa do fenômeno separado de sua função. O autor chama a atenção para o conceito função. Ele utiliza-o, em detrimento do conceito objetivo, porque os fatos sociais não existem por serem úteis. A fim de se entender a vida social, é necessário conhecer sua natureza, e esta é a própria sociedade. Essa não é uma simples soma de individualidade, mas algo diferente. É por esse motivo que toda explicação social que se funda na psicologia é falsa. A parti do que foi dito Émile Durkheim elabora a seguinte regra: “a causa determinante de um fato social deve ser procurada nos fatos sociais antecedentes e não nos estados de consciência individual”. Por não ter considerado essa regra, as conclusões de muitos autores tornaram-se vazias. Toda e qualquer causa de um fenômeno social tem sua origem no meio social. Um meio social é composto por: 1. coisas; 2. pessoas. As coisas (direito, costumes, obras de arte etc.) não põem em movimento a evolução social, apesar de ter uma influência. Quem a coloca em movimento são as pessoas. A possibilidade da Sociologia encontra-se na afirmação: é o meio social determinante na evolução coletiva. Ao aceitar essa proposição, o sociólogo estará apto a encontrar as causas dos movimentos sociais. 152 Regras relativas ao estabelecimento das provas No sexto é último capítulo, encontram-se as regras relativas ao estabelecimento das provas. A experimentação direta é um método de pesquisa que é usado, quando um cientista pode produzir os fatos, segundo seu próprio gosto. Entretanto, quando os fatos não dependem do indivíduo, o método de pesquisa sugerido é o comparativo ou experimentação direta. Por isso, o método que convém ser utilizado na Sociologia é o método comparativo, pois os fatos não dependem do observador. Nessa ciência, a explicação se dá por meio da procura das causas dos fenômenos: “Se quisermos portanto utilizar de uma forma científica o método comparativo, isto é, respeitando o princípio de causalidade tal como ele se deduz na própria ciência, deveremos tomar como base para as comparações que se estabelecem a seguinte proposição: a um mesmo efeito corresponde sempre uma mesma causa.”163 Um método adequado à Sociologia é o das variações concomitantes, visto que “o simples paralelismo dos valores que passam estes dois fenômenos [...] é a prova de que existe uma relação entre eles”. Esse método procura as causas no interior dos fatos e com isso consegue mostrar a relação entre eles: “a concomitância é portanto, por si só, uma lei, qualquer que seja o estado dos fenômenos que não entraram na comparação”. 163 Ibidem, p. 152. 153 Além disso, existe um outro motivo para se utilizar esse método na Sociologia: porque o número de fatos não precisa ser grande: “para que dê resultado bastam alguns fatos”. Como todo método, sua eficiência está diretamente ligada ao rigor de seu uso: “Só pode explicar um fato social de uma certa complexidade se acompanharmos o seu desenvolvimento integral através de todas as espécies sociais. A sociologia comparada não é um ramo particular da sociologia; é a própria sociologia, na medida em que deixa de ser puramente descritiva e ambiciona explicar os fatos.”164 Um fato social somente pode ser explicado caso se acompanhe seu desenvolvimento por completo. Sendo assim, é possível dizer que a sociologia comparada não é uma parte da Sociologia, mas “a própria Sociologia”. E como tal ela não quer descrever os fatos, porém explicálos. Conclusão A conclusão de Émile Durkheim sobre o método sociológico comparativo é que este: 1. não depende da filosofia e deve buscar as causa dos fenômenos tentando exprimir os fatos e não os reformar; 2. deve ser objetivo, deve evitar os preconceitos, além de distingui-los em normais e patológicos “como, por fim, deveria inspirar no mesmo princípio tanto para antecipar explicações como para prová-las”. 3. é exclusivamente sociológico. 164 Ibidem, p. 156. 154 O Suicídio Na época em que Émile Durkheim escreveu o livro O Suicídio a análise feita por pensadores da época davam importância a determinadas características individuais no suicídio. Contrariando seus contemporâneos ele indicou as relações do indivíduo com a sociedade com a causa do suicídio. Antes de iniciar sua explanação ele define, logo na introdução, o que entende por suicídio, a fim de evitar possíveis equívocos: “On appelle suicide tout cas de mort qui résulte directement ou indirectement d'un acte positif ou négatif, accompli par la victime elle-même et qu'elle savait devoir produire ce résultat. La tentative, c'est l'acte ainsi défini, mais arrêté avant que la mort en soit résultée.”165 Ao estudar o suicídio Émile Durkheim tinha claro que seu objetivo: “Notre intention n'est donc pas de faire un inventaire aussi complet que possible de toutes les conditions qui peuvent entrer dans la genèse des suicides particuliers, mais seulement de rechercher celles dont dépend ce fait défini que nous avons appelé le taux social des suicides.”166 Na tentativa de provar a sua hipótese havia muito mais do que uma simples pesquisa científica, uma vez que se conseguisse provar a influência da sociedade sobre o DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre I, p. 15. “Chama-se suicídio todo caso de morte que resulta direta ou indireta165 mente de um ato positivo ou negativo praticado pela própria vitima, ato que a vítima sabia dever produzir este resultado.” 166 DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre I, p. 24. 155 suicida ele conseguiria mostrar a importância e utilidade da sociologia. Ele define o suicídio como a morte resultante de um ato positivo ou negativo realizado conscientemente pela própria vítima. Émile Durkheim ao estudar o suicídio o faz ligandoo a causas sociais, portanto sua origem não pode ser identificada com um ato individual isoladamente. A fim de diagnosticar as suas causas é preciso estudar os fatos sociais que o influenciam. O suicídio é causado por uma integração deficiente do indivíduo na sociedade. Para ele os fatos físico-sociais influenciam na conduta do suicida. Seria errôneo identificar essa ação com características geográficas ou hereditárias. Ele se liga ao grau de felicidade do indivíduo, quanto mais infeliz ele está mais provável é tendência ao suicídio. Ele ocorre em todas as sociedades se diferenciando de um grupo para o outro, contudo sua taxa permanece estável. Desta ocorrência e estabilidade conclui Émile Durkheim que o suicídio não depende da vontade do indivíduo e sim das condições sociais. Sendo assim, não podemos considerar que o homem seja fruto de condições psicológicas ou biológicas. A origem do suicídio deveria ser procurada na falta de grupos sociais que apóiem o indivíduo e na sua frustração na busca de determinados objetivos. Além destes elementos provocadores do suicídio podemos enumerar: aumento das necessidades; falta de controle moral; ausência de solidariedade social; instabilidade política; inexistência de uma conduta sócio-religiosa. 156 Émile Durkheim classifica o suicídio em três tipos: egoísta; anômico; altruístico. O primeiro tem como origem a falta de interação social de alguns indivíduos. Por viverem isolados eles não partilham dos valores sociais, das normas e das tradições que fazem a amalgama do indivíduo com a sociedade. A conseqüência imediata é que eles inseridos neste grupo têm maior probabilidade de cometerem o suicídio. A tendência à autodestruição surge, quando o indivíduo vive isolado ou não se sente como participante do todo social. O grupo mais suscetível a este ato são identificados com os homens solteiros, pois eles não têm uma forte ligação com as normas e objetivos sociais. No egoísmo os laços sociais dos indivíduos são frágeis, desta forma o indivíduo crê que sua morte será de pouca importância, para o restante da sociedade. Émile Durkheim identificou o grupo dos divorciados como os mais propensos a este tipo de suicídio. Este suicídio é típico de sociedades desintegradas, nas quais a predominância do individualismo coloca-se acima dos objetivos coletivos. Ele analisa o suicídio em relação à sua taxa e os fatos integradores sociais (religião, família). Esta taxa varia de acordo com: a idade; o sexo; a religião; a condição civil. No segundo caso (suicídio anômico) as normas sociais não estão bem claras ou simplesmente não existem. Estas causas externas afetam o indivíduo a tal ponto que ele não consegue suportar esta pressão. Além deste aspecto existe a falta de controle social, por isto comete suicídio. 157 Émile Durkheim se interessa, particularmente, por este tipo de suicídio, pois ele o identifica com a sociedade moderna. Ele se relaciona diretamente com os ciclos econômicos. Quando o indivíduo persegue um objetivo e percebe que não consegue alcançá-lo surge um desapontamento com os objetivos buscados. Isto ocorre nos momentos de crescimento econômico, como, paradoxalmente, também nas épocas de crises. Émile Durkheim definiu a anomia como um estado de pouca regulamentação social, causada por transfomações sócio-econômicas radicais. Nesta situação as normas sociais e as leis da sociedade não representam os objetivos da vida individual. O indivíduo passa a não se identificar com o meio social em que vive e vê no suicídio uma alternativa. É um tipo de suicídio que ocorre principalmente entre os protestantes. Ele descobriu que há mais suicídios entre protestantes do que entre católicos, visto que o protestante vive sob um fraco controle social. Os católicos tendem a ser mais integrados socialmente que os protestantes. É um suicídio comum em épocas de crises. Outro tipo de anomia é a doméstica, na qual existe um rgande abalo familiar. O terceiro tipo de suicídio é denominado pelo autor de altruístico. Há nele uma diferença marcante em relação aos tipos anteriores: neste caso específico o indivíduo espera que sua morte beneficie à sociedade. Neste tipo de suicídio a responsabilidade social se coloca acima dos interesses particulares. É uma ação orientada por determinados valores. Ao contrário do indivíduo egoísta, o 158 altruísta está profundamente ligado à sociedade a tal ponto que sua vida tem pouco valor. Neste suicídio a morte se liga diretamente aos imperativos sociais. Neste caso o indivíduo não leva em conta sua própria vida, pois para ele a sociedade é mais importante. Para estes indivíduos sua integração é tão grande com a sociedade que se tornam incapazes de resistir às transformações sociais. O suicídio altrista foi dividido por Émile Durkheim em três tipos: obrigatório; facultativo; agudo. O suicídio altruísta obrigatório é cumprido como um dever imposto pela sociedade: nas sociedades antigas os idosos deveriam suicidar para se tornarem um peso à sociedade. No suicídio altruísta facultativo não há necessidade obritoria da morte do individuo: uma viúva pratica o suicídio logo após a morte do seu parceiro. O suicídio altruísta agudo o indivíduo age como parte de um sacrifício. 159 O Suicídio Émile Durkheim 160 Livro I Os fatores extra-sociais Neste livro Émile Durkheim tentará mostrar “que cada grupo social tem uma tendência específica para o suicídio.” Ele, aqui, se contentará simplesmente em explicar a constituição orgânico-sociológica dos indivíduos e discutir a influência do meio físico no suicídio. De acordo com Mirela Berger: “É interessante notar como Durkheim constrói o livro, que é considerado um modelo em termos de rigor científico. Ele vai nesta ordem: 1) define o problema, como fez com os fatos sociais; 2) diferencia o fenômeno social, portanto, o objeto da sociologia e não da psicologia; 3) refuta as interpretações anteriores; 4) estabelece tipologias; 5) com base nas tipologias, desenvolve uma teoria geral do fenômeno estudado; 6) procura pensar respostas para um problema social através de outros 167fatos sociais, como as corporações.” 167 BERGER, Mirela. 161 Capítulo I O suicídio e os fatores psicopáticos Este capítulo é dedicado à análise de fatos extrasociais que podem influenciar no aumento do suicídio: raça; temperatura; clima. Existem semelhanças entre o suicídio e a loucura, caso aquele seja visto como alienação mental. Para Émile Durkheim os tipos de suicídios são: maníaco; melancólico; obsessivo; impulsivo ou automático. O suicídio maníaco é fruto de delírios. Este suicídio ocorre, geralmente, devido a confusões de idéias e sentimentos. Enquanto de o suicídio melancólico é tipicamente relacionado à depressão, a qual afasta o indivíduo dos vínculos sociais. Tem em comum com o suicídio anterior a presença de alucinações, entretanto diferencia-se por ter idéias fixas. O ato de auto-destruição é preparado com muita determinação. Já o suicídio obsessivo se aproxima do instinto. Neste caso específico a idéia de morte torna-se uma constante no dia-a-dia do indvíduo. Por mais paradoxal que possa ser o indivíduo sabe do absurdo que é a idéia de suicídio, sem embargo ele luta constantemente contra 162 este sentimento, visto que a ânsia de cometer o ato pode vencê-lo. Quanto ao suicídio impulsivo ou automático não há nada na realidade, ou na imaginação do indivíduo, que possa sustentar esta tendência suicida. Com o passar do tempo a idéia toma conta dos seus pensamentos e ele executa a ação destrutiva. Émile Durkheim sabe que esta tipologia do suicídio não abarca todas as formas possíveis de sua execução. Ele afirma que a maioria dos suicídios são previamente preparados e não são simplesmente casos de alucinações. Émile Durkheim afirma ao final deste capítulo: “En résumé, tous les suicides vésaniques ou sont dénués de tout motif, ou sont déterminés par des motifs purement imaginaires. Or, un grand nombre de morts volontaires ne rentrent ni dans l'une ni dans l'autre catégorie ; la plupart d'entre elles ont des motifs et qui ne sont pas sans fondement dans la réalité. On ne saurait donc, sans abuser des mots, voir un fou dans tout suicidé.”168 168 DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre I, p. 35. 163 Capítulo II O suicídio e os estados psicológicos normais A raça Neste capítulo conclui que o suicídio não é influenciado pela raça, porque senão ele seria hereditário. Como não existem provas suficientes para comprovar esta situação Émile Durkheim abandona esta hipótese de trabalho. Capítulo III O suicídio e os fatores cósmicos O autor, também, não aceita a possibilidade do clima influenciar na ação do suicida, por isso ele se preocupa com a relação da temperatura com o suicídio. Nos estudos existentes em sua época apontaram que o maior índice de suicídios ocorriam nos meses de maço a agosto, ao passo que no período seguinte o número de suicídios decresce. A conclusão que os pesquisadores chegavam era que no período quente havia um aumento das atividades sociais e cerebrais, as quais tinham por con- 164 sequencia o aumento na taxa de suicídios, por isso eles relacionavam esta ação auto-destrutiva como o tempo. Émile Durkheim se opõe terminantemente a esta hipótese de Morselli169, pois não admite que a causa do suicídio tenha um antecedente psicológico. Para o autor francês a origem do suicídio, por um lado tem que ser buscada na depressão, por outro o aumento da temperatura afeta as pessoas de maneiras diferentes. De acordo com a teoria de Dietrich170 a variação de temperatura está diretamente relacionado com o índice de suicídios, visto que esta mudança altera o comportamento do indivíduo. Este devido ao aumento ou queda da temperatura tem as suas funções orgânicas alteradas levando a ter delírios, que se não controlados, propiciam as condições extremas do suicídio. Émile Durkheim responde a esta teoria com uma negativa, pois, como argumenta, as estatísticas não a comprova: na primavera e no verão a amplitude térmica é grande, não obstante a taxa de suicídios é baixa. Esta relação pode ser identificada no outono e no inverno. Outro argumento, contra a teoria de Dietrich, refere-se aos diferentes países, pois nos países mais quentes a taxa de suicídios não é maior do que nos países frios. Enrico Morselli (1852-1929) publicou em 1879 um estudo sobre o suicídio. 169 170 165 Por este motivo Émile Durkheim conclui que não é o meio físico que favorece ou não o suicídio. Sndo assim, afirma que a causa é social. Capítulo IV A imitação Antes de iniciar a sua argumentação a respeito dos fatores sociais que contribuem para o suicídio, Émile Durkheim passa a analisar a teoria que afirma ser o suicídio um fenômeno psicológico caracterizado pela imitação. Ele começa afirmando que a imitação pode ocorrer entre pessoas que não tenham relações sociais. Caso se aceite esta explicação para o suicídio devemos concluir, então, que as causas do suicídio são de natureza individual. O autor aceita a imitação, que influencia o suicídio, como sendo “quando um ato tem como antecedente imediato a representação de outro ato semelhante, anteriormente realizado por outro, sem que entre esta representação e na execução não se intercala nenhuma operação intelectual, explícita ou implícita, que se relacione com os caracteres intrínsecos dos atos reproduzidos.” Para ele o suicídio é contagioso, uma vez que quando um indivíduo suicida outros repetem este ato, 166 entretanto suas causas não são individuais e sim coletivas. Caso a imitação influencie um comportamento social será o suicídio o campo no qual ela mais aparecerá. E para confirmar isto basta comparar os índices de suicidios entre as diversas regiões. Mas não pode haver imitação caso não se apresente um modelo para a imitação. Em suma se o suicídio é contagioso a imitação não é suficiente para aumentar a sua taxa geral. A imitação não é a causa do suicídio, mas não se pode olvidar que raramente ela infuencia o suicídio. 167 LIVRO II Causas sociais e tipos sociais Capítulo I Método para sua determinação Para estudar o suicídio Émile Durkheim procura criar um tipo social, desejando classificar as causas que o produzem. A sua classificação será etiológica, porque será a maneira mais eficiente de penetrar a natureza de um fenômeno. Além disso, seu trabalho será mais simplificado, pois ele já conhece as causas do suicídio. Apesar de conseguir estabelecer a natureza dos suicídios e seu número, ainda falta definir suas características distintivas. O primeiro passo dado é a fixação das suas causas que podem ser encontradas nas buscas judiciais e nas tabelas estatísticas sobre eles. Estes dois meios nos oferecem os antecedentes imediatos dos vários suicídios. 168 Capítulo II O suicídio egoísta Num primeiro momento Émile Dukheim analisará a influência da religião no número dos suicídios. Na Europa constata-se que o número de suicídios é menor nos países católicos que nos protestantes171. A fim de poder chegar a uma conclusão científica ele propõe comparar essas religiões, a partir da sociedade. Há uma diferença que Émile Durkheim considera relevante entre os católicos e os protestantes: estes admitem o livre exame em extensão do que aqueles. Devido ao livre exame a Bíblia e a falta de uma interpretação oficial isto leva o protestante a um individualismo. Daí, o autor concluir que o livre exame se relaciona diretamente com o suicídio. Ao proporcionar o livre pensamento individual o protestantismo rompe com diversos laços sociais. Quanto aos judeus o autor afirma que a taxa de suicídios é menor que a dos católicos: “Pour ce qui est des juifs, leur aptitude au suicide est toujours moindre que celle des protestants ; très généralement, elle est aussi inférieure, quoique dans une moindre proportion, à celle des catholiques.” In DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre II, p. 26. 171 169 Ele chega a duas conclusões: quanto maior o progresso da ciência maior o do suicídio; quanto maior a integração social mais forte é a comunidade religiosa. Capítulo III O suicídio egoísta (continuação) Neste capítulo estudará a influência da família e da sociedade política. A fim de analisar o número de suicídios entre os solteiros e os casados Émile Durkheim utilizará o seguinte método: estudará os indivíduos de mesma idade tanto casados, como solteiros. Pretende chegar a conclusão de que estes se matam mais do aqueles. Os indivíduos casados são menos propensos ao suicídio do que os solteiros. Tal situação pode ser encontrada entre os viúvos, os quais cometem mais suicídios do que quaisquer outros grupos que tenham a mesma idade. Émile Durkheim a partir de diversos dados elabora as seguintes leis: 1. os homens que casam muito novos tendem a suicidar mais: “Les mariages trop précoces ont une influen- 170 ce aggravante sur le suicide, surtout en ce qui concerne les hommes.”172 2. depois dos vinte anos o coeficiente de suicídios é menor que o do grupo dos solteiros: “A partir de 20 ans, les mariés des deux sexes bénéficient d'un coefficient de préservation par rapport aux célibataires.”173 3. entre os casados e os solteiros há uma varição: “Le coefficient de préservation des mariés par rapport aux célibataires varie avec les sexes.”174 4. a viuvez não diminui o número de suicídio: “A viuvez reduz o coeficiente de cônjuges de ambos os sexos, mas a maior parte das vezes isso não o elimina completamente.”175 Os casados cometem menos suicídios que os solteiros, por causa: da influência do meio doméstico; da seleção matrimonial. Os casados suicidam-se menos devido à sociedade familiar. Nas associações políticas o nível de suicídios enter os jovens é menor do que em outras associações. DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre II, p. 47. DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre II, p. 49. 174 DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre II, p. 49. 175 DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre II, p. 49. 172 173 171 Nas agitações sociais aumenta a integração social, por conseguinte o indíviduo passa a pensar mais na sociedade que em si mesmo. Podemos dizer que a variação do suicídio é inversamente proporcional ao grau de desintegração social: “La cause ne peut s'en trouver que dans une même propriété que tous ces groupes sociaux possèdent, quoique, peut-être, à des degrés différents. Or, la seule qui satisfasse à cette condition, c'est qu'ils sont tous des groupes sociaux, fortement intégrés. Nous arrivons donc à cette conclusion générale : Le suicide varie en raison inverse du degré d'intégration des groupes sociaux dont fait partie l'individu.”176 Por mais paradoxal que pareça a explicação, para essa aparente incoerência se deve ao fato de que quando a sociedade está integrada ela mantém os indivíduos sob sua dependência. Daí conclui que o egoísmo não é um fator secundário, ao contrário, é fundamental. Os acontecimentos particulares na vida do indivíduo não são fatores determinantes para o suicídio, contudo são exceções. 176 DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre II, p. 79. 172 Capítulo IV O suicídio altruísta Não só o falta de integração conduz ao suicídio, do mesmo modo uma grande integração propicia este ato destutivo. O homem separado da sociedade tende mais ao suicídio. Nas sociedades primitivas o suicídio egoísta é raro, entretanto nelas podemos encontrar outras formas de suicídio: por velhice ou doença; por ficar viúva; por ter o chefe morrido. “Le suicide est donc certainement très fréquent chez les peuples primitifs. Mais il y présente des caractères très particuliers. Tous les faits qui viennent d'être rapportés rentrent, en effet, dans l'une des trois catégories suivantes : “1o. Suicides d'hommes arrivés au seuil de la vieillesse ou atteints de maladie; “2o. Suicides de femmes à la mort de leur mari. “3o. Suicides de clients ou de serviteurs à la mort de leurs chefs. “Or, dans tous ces cas, si l'homme se tue, ce n'est pas parce qu'il s'en arroge le droit, mais, ce qui est bien différent, parce qu'il en a le devoir. S'il manque à cette 173 obligation, il est puni par le déshonneur et aussi, le plus souvent, par des châtiments religieux.”177 O suicídio nestes casos é uma obrigação, a qual não sendo cumprida faz com que o indivíduo seja penalizado. Estas formas de suicídios são possíveis, porque o indivíduo conta muito pouco em relação à sociedade: “Voilà donc constitué un second type de suicide qui comprend lui-même trois variétés : le suicide altruiste obligatoire, le suicide altruiste facultatif, le suicide altruiste aigu dont le suicide mystique est le parfait modèle.”178 Émile Durkheim denomina este suicídio de altruísta: situação na qual o eu está situado fora de si mesmo. Mas este é apenas uma forma de suicídio altruísta que pode ser caracterizado como obrigatório. A morte do indivíduo é imposto pela moral social. Típico deste suicídio ocorria no mundo antigo, quando os velhos eram obrigados a suicidarem. Outro suicídio altruísta é o facultativo: este não é exigido pela sociedade. A situação em que se encontra o indivíduo não é exigido dele o suicídio. Por exemplo, o suicídio de uma viúva. 177 178 DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre II, p. 87. DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre II, p. 93. 174 Por fim há mais um tipo de suicídio altruísta denominado de agudo: identificado com o suicídio místico. Neste caso a impessoalidade do indivíduo é extrema. Capítulo V O suicídio anômico “Mais la société n'est pas seulement un objet qui attire à soi, avec une intensité inégale, les sentiments et l'activité des individus. Elle est aussi un pouvoir qui les règle. Entre la manière dont s'exerce cette action régulatrice et le taux social des suicides il existe un rapport.”179 Émile Durkheim inicia este capítulo afirmando que em épocas de crises econômicas o nível de suicídios aumenta, contudo quando ocorre períodos de crescimento a taxa de suicídio não diminui com a mesma velocidade. A causa disto ele identifica como a perturbação na ordem social. Numa situação de anomia as paixões humanas encontram-se menos disciplinadas. Com isso os resultados obtidos ficam aquém dos desejos, porque o indivíduo não está em condições de identificar os seus limites de ação. A pobreza é um freio ao suicido, pois os sonhos são limitados por ela. Quanto à riqueza ela nos mostra ao 179 DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre II, p. 106. 175 indivíduo a sua imagem no mundo mais ampla. Com isso ele crê poder superar qualquer limite e quanto menos se sente limitado, mais o limite se torna insuportável. Nas sociedades modernas a anomia está relacionada diretamente com o número de suicídios, pois a vida social se encontra agitada e aumenta o sofrimento do indivíduo. Capítulo VI Formas individuais dos diferentes tipos de suicídios A partir desde ponto a preocupação durkheimiana volta-se para a divisão etiológica180 do suicídio. Cada suicidio deve ser explicado pela sua característica social. Uma primeira forma de suicídio é carcterizado pelo estado de espírito melancólico do indivíduo tornando invisível aos que estão à sua volta. Nesta situação a morte não ocorre de maneira violenta. O seu caráter intelectual lembra o suicídio egoísta naquilo que contém de científico e reflexivo. Na perspectiva de Émile Durkheim este suicídio é uma forma superior do suicídio egoísta. A única preocupação do indivíduo é satisfazer as suas necessidades, caso isso não seja possível a vida perde o seu significado. A etiologia é a ciência que busca as causas de determinado objeto ou conhecimento. 180 176 No momento final o sangue frio substitui a melancolia e a morte acontece de maneira tranqüila. Dentro do suicídio altruísta existe o suicídio executado por obrigação: a consciência do indivíduo lhe ordena morrer. A cólera é a marca do terceiro tipo de suicídio: geralmente ocorre quando um indivíduo mata o outro e logo após suicida. É um tipo de suicídio anômico. Existe um tipo de suicídio que Émile Durkheim não encontra uma classificação específica O suicídio anômico se aproxima do altruísta: “L'anomie peut également s'associer à l'altruisme. Une même crise peut bouleverser l'existence d'un individu, rompre l'équilibre entre lui et son milieu et, en même temps, mettre ses dispositions altruistes dans un état qui l'incite au suicide. C'est notamment le cas de ce que nous avons appelé les suicides obsidionaux.”181 Uma determinada situação faz com o indivíduo destrua o equilíbrio entre ele e a sociedade. Ao mesmo tempo ele põe suas disposições altruístas num estado que o leva ao suicídio. A estes suicídios, Émile Durkheim, denomina de obsessivos. 181 DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre II, p. 151. 177 Classificação etiológica e morfológica dos tipos sociais do suicidio182 Formas individuais Tipos elementares Característica fundamental Suicídio egoista Tipos mistos Melancolia preguiçosa com complacência por si mesmo. Sangue-frio desiludido do cético. Com sentimento calmo do dever. Suicídio altruísta Suicídio anômico 182 Apatia Variedades secundárias Energia passional ou voluntário Com entusiasmo místico. Com coragem pacífica. Recriminação violenta contra a vida em geral. Irritação desgosto Recriminação violenta contra uma pessoa em particular (homicídio-suicídío). Suicídio ego-anômico Mistura de agitação e de apatia, de ação e de sonhos. Suicídio anômico-altruísta Efervescência exasperada. Suicídio ego-altruísta Melancolia temperada por uma certa firmeza moral. DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre II, p. 157. 178 Livro III O suicídio como fenômeno social em general Capítulo I O elemento social do suicídio “Maintenant que nous connaissons les facteurs en fonction desquels varie le taux social des suicides, nous pouvons préciser la nature de la réalité à laquelle il correspond et qu'il exprime numériquement.”183 Para o autor cada sociedade tem uma determinada atitude para com o suicídio e esta atitude influencia os indivíduos, pois os atos individuais são extensões do estado social. Em todas as sociedades se encontra um número invariável de suicídios. Este número somente se altera, quando se muda a própria sociedade: “Ainsi, la théorie de l'homme moyen ne résout pas le problème. Reprenonsle donc et voyons bien comme il se pose. Les suicidés sont une infime minorité dispersée aux quatre coins de l'horizon ; chacun d'eux accomplit sont acte séparément, sans savoir que d'autres en font autant de leur côté ; et 183 DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre III, p. 13. 179 pourtant, tant que la société ne change pas, le nombre des suicidés est le même.”184 O suicídio não tem sua origem numa predisposição individual e sim no meio social, as quais são assimiladas pela consciência individual. Capítulo II Relações do suicídio com outros fenômenos sociais O objetivo deste capítulo é saber se o suicídio é moral ou imoral. Ele afirma que o suicidio é imoral: Ele inicia comparando o suicídio com o homicídio, a partir de duas questões: 1. quais são as condições psicológicas? 2- quais são as condições sociais das quais eles dependem? Quanto à primeira pergunta, Émile Durkheim, responde negativamente já que analisa fatores não sociais. Com relação à outra pergunta temos duas possibilidades: 1. não há antagonismo; 2. existem tipos distintos de suicídios. 184 DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre III, p. 19. 180 Capítulo III Conseqüências práticas As soluções que ele propõe considerar o fato como normal ou anormal. Conforme o autor a atitude em relação ao suicídio é demasiada frouxa, admitindo que ofende a moral e deve ser condenado. Uma forma de solucionar seria a educação. Esta ela não cria a moral da sociedade, contudo é o seu reflexo: “Mais c'est prêter à l'éducation un pouvoir qu'elle n'a pas. Elle n'est que l'image et le reflet de la société. Elle l'imite et la reproduit en raccourci ; elle ne la crée pas. L'éducation est saine quand les peuples eux-mêmes sont à l'état de santé ; mais elle se corrompt avec eux, sans pouvoir se modifier d'elle-même.”185 A fim de evitar o suicídio egoísta o caminho é aumentar a solidariedade do grupo. Sua conclusão final é que o aumento dos suicídios no mundo atual se relaciona com a decadência moral em que se encontra a sociedade. Admite que deveria acabar com os grupos intermediários entre os indivíduos e o Estado. 185 DURKHEIM, Émile. Le Suicide: étude de sociologie. Livre III, p. 77. 181 182 Capítulo XII O pensamento sociológico de Karl Marx Biobibliografia 1818: Karl Marx nasce no dia 15 de maio em Trier (Prússia); 1835-6: estuda Direito em Bonn; 1836: muda-se para Berlim onde passou a freqüentar o Doktor Club e manteve contatos com os hegelianos de esquerda; 1841: doutora-se em Filosofia em Iena com a tese Diferença da Filosofia da Natureza em Demócrito e Epicuro; 1842: torna-se redator da Gazeta Renana (jornal liberal); 1843: escreve Questão Judaica e Introdução à Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Por ordem do governo alemão a Gazeta é fechada. Karl Marx casa-se com Jenny Von Westphalen; participa da unica publicação dos Anais Franco-Prussianos; 1844: vai para Paris, escreve os Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Conhece Friedrich Engels e ambos escrevem A Sagrada Família; 1845: é expulso da França a pedido do governo prussiano e vai para Bélgica, redige a obra Teses contra Feuerbach; 1846: em Bruxelas, escreve A Ideologia Alemã contra os hegelianos de esquerda; 1847: publica a Miséria da Filosofia essa obra faz parte de uma querela com Proudhon. Filia-se à sociedade secreta Liga dos Comunistas; 183 1848: escreve, com Friedrich Engels, o Manifesto do Partido Comunista186. É expulso da Bélgica e volta à França e depois à Alemanha onde se torna chefe de A Nova Gazeta Renana. Pouco depois foi expulso da Alemanha e volta para a França; 1849: é expulso novamente da França e vai para Londres; 1851: torna-se colaborador do New York Tribune; 1852: redige o 18 Brumário de Luís Bonaparte; 1859: publica A Crítica de Economia Política; 1862. 63: aparece o livro Teorias da Mais-valia; 1864: é criada a I Internacional Comunista (Associação Internacional dos Trabalhadores); 1865: apresenta a obra Salário, Preço e Lucro; 1867: escreve o primeiro volume de O Capital; 1871: cai a Comuna de Paris; 1872: é transferida para Nova York a I Internacional; 1883: falece no dia 14 de março em Londres; 1885: Friedrich Engels publica o segundo volume de O Capital; 1894: Friedrich Engels publica o terceiro volume de O Capital; 1905: Karl Kautski publica o quarto volume de O Capital. Karl Marx é um sociólogo do capitalismo sendo que sua teoria apresenta a influência desse modo de produção na vida do homem, bem como as mudanças que esse sistema sofrerá. No entanto ele não sabia bem o que era o É o livro no qual é visto a ruptura com suas teorias passadas e a consolidação de seus novos pensamentos. Desse texto, não se pode dizer que é científico e sim que é panfletário, mas nele se encontra algumas idéias importantes do marxismo. 186 184 socialismo e afirmava ser impossível ao homem conhecer o seu futuro. Karl Marx vê a filosofia como uma força capaz de transformar o mundo. Cabe à filosofia mostrar que a partir de um mundo alienado, devido a suas estruturas econômicas, é possível surgir um movimento revolucionário contra a própria alienação. A superação da alienação está em conseguir o ideal do homem primitivo de JeanJacques Rousseau. O pensamento marxista é marcado pela convicção filosófica de que a mudança histórica se relaciona com a filosofia, pois o socialismo é uma etapa própria da humanidade. Segundo ele, a sucessão das sociedades representa as etapas da filosofia e da humanidade. Essa é uma herança hegeliana que acompanhá-o por toda sua vida. Karl Marx tenta mostrar a mudança do capitalismo, para ele na compreensão da sociedade é preciso entender a economia, bem como para entender a economia é necessário entender o funcionamento da sociedade: “A sociedade é, pois, a plena unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo acabado do homem e o humanismo acabado da natureza.”187 Considerava-se um crítico da economia política inglesa, e em seu livro O Capital procura estudar o valor, a troca, a exploração, a mais-valia, o lucro, etc. Nessa pesquisa ele age tanto como economista, como sociólogo. 187 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo: Abril, 1978, p. 09. Os Pensadores. 185 Seu objetivo, ao analisar o funcionamento do capitalismo, é buscar a compreensão da forma como os homens são explorados e como a revolução se desenvolvia no interior desse capitalismo. Quando ele estuda o desenvolvimento e a história do capitalismo, tentava descobrir como os homens viveram em outros modos de produção e como o capitalismo iria desaparecer. Suas doutrinas causaram diferentes interpretações a possível causa dessas distinções pode ser: 1. a sua interpretação sociológica do capitalismo tem como base a filosofia. Daí, que interpretações diferentes entre a sociologia e a filosofia dêem origem a compreensões diferentes; 2. como os conceitos de infra-estrutura e superestrutura188 não são bem definidos as discussões tornam-se infinitas; 3. quando Karl Marx relaciona a economia à sociologia é possível fazer inúmeras interpretações. Para ele a sociedade é compreendida a partir da economia, entretanto as relações entre economia e sociedade não são unívocas. Além disso, sua obra não é um todo sistematizado, como pode transparecer quando Lênin, seguindo Friedrich Engels, afirma que aquela obra tem três fontes. Em termos esquemáticos189 eles apresentam a influência recebida por Karl Marx da seguinte forma: A infra-estrutura é formada pelas forças de produção e pelas relações de produção e a superestrutura apresenta os aspectos jurídicos, políticos, ideológicos e as filosofias. É a infra-estrutura que determina a superestrutura. 189 Esse esquema é apresentado aqui mais como uma curiosidade, visto que os escritos de Karl Marx não formam um sistema, pelo contrário ele não conseguiu elaborar uma teoria coerente. Esse esquema foi preparado por Lênin seguindo a mesma linha de Friedrich Engels e, ainda hoje, muitos marxistas repetem esse velho chavão. 188 186 Karl Marx Filosofia idealista alemã Economia clássica inglesa Socialismo utópico francês Georg Wilhelm Friedrich Hegel David Ricardo Saint Simon Roy Macridis interpreta essas influências da seguinte forma: “A primeira dessas fontes deu a Marx uma teoria da história dinâmica e evolucionária. baseada no conflito; a segunda lhe forneceu uma nova análise objetiva dos fenômenos econômicos na qual todos os fatores econômicos eram vistos em termos abstratos como objetos ou variáveis relacionadas entre si. na base de leis demonstráveis e quantitativas; a terceira forneceu insinuações sobre a construção da sociedade futura.”190 Apesar do pensamento de Karl Marx não ser um todo coerente, no entanto não faltam aqueles que tentam encontrar um ponto comum nos escritos do pensador maior do marxismo: MACRIDIS, Roy. Ideologias Políticas Contemporâneas. Brasília: UNB, 1980, p. 118. 190 187 1. ontologia científica (stalinismo seguindo Friedrich Engels); 2. moral (Maximilien Rubel); 3. economia política (Karl Kautsky); 4. ciência da sociedade (Antonio Gramsci); 5. teoria do conhecimento (Max Raphael, Henri Lefebvre); 6. ciência da história (Louis Althusser). O pensamento de Karl Marx pode ser denominado de ontologia materialista, visto que a essência do homem se encontra no trabalho material. Costuma-se dividir sua obra em dois períodos distintos: 1. juventude e 2. maturidade. Aquelas referem-se à sua produção entre os anos de 1841-48 e nesse período as suas obras são mais filosóficas: 1. Introdução à Crítica do Direito de Hegel; 2. Ensaio sobre a Questão Judaica; 3. Manuscrito EconômicoFilosófico; 4. A Ideologia Alemã; 5. Miséria da Filosofia; 6. Manifesto Comunista. No segundo período pode-se perceber claramente que Karl Marx se preocupa mais com a sociologia e a economia: 1. Contribuição à Crítica da Economia Política191; 2. O Capital. Nesse livro encontra-se um resumo das doutrinas sociológicas de Karl Marx. É nele que se poderá ver o fio condutor do pensamento marxista, pois afirma que em sua vida social o homem estabelece relações sociais, as quais formam a estrutura econômica da sociedade produtora de comportamentos específicos. Nessa estrutura econômica, apóia-se as estruturas jurídico-políticas da sociedade. Desse mo191 188 Quando a Gazeta Renana foi fechada em 1842, Karl Marx era o redator desse jornal liberal. Nessa época ele via o Estado como o instrumento que resolveria as desigualdades sociais. Ainda pensava, nesse momento, que ao se reformar o Estado se reformaria a sociedade. Mas, já em 1843 e em 1844 surgem a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e o artigo sobre o Problema Judaico que têm como característica o abandono da idéia sobre o papel reformista da sociedade por parte do Estado. São a sociedade e suas relações de produção econômica vigentes que determinam o Estado, sendo assim qualquer emancipação política deve passar antes pela mudança dessas relações de produção. Com essa obra, inicia seu caminhar pela política prática192, após o rompimento com hegelianismo e o aristotelismo não sobrou a ele outra opção a não ser romper com a crença em Deus. Ainda em 1844, na França, inicia seus estudos sobre a economia clássica inglesa. Nesse ano publica o Manuscrito de Economia Política e Filosofia. O traço que marcou esse período é a não aceitação da reforma do Estado, por isso desenvolve uma teoria dos mecanismos de funcionamento do capitalismo e de suas crises inevitáveis. Nesse livro afirma que a natureza considerada isolada do homem não existe, bem como homem isolado da natureza, também, não pode existir. Karl Marx critica a do, a vida humana é determinada pelo modo como se produz a vida material. 192 Para Karl Marx a práxis não é a simples interpretação do mundo, mas sua própria transformação. 189 posição dos economistas clássicos que aceitava o indivíduo não como fruto da história, mas como produto posto pela natureza. Para ele está visão do homem, como indivíduo isolado, era apenas fruto da sociedade burguesa do século XVIII. O homem para ele é um zoon politikon, não só social, mas cujo isolamento ocorre em sociedade.193 Os homens tomam consciência de suas existências nas trocas entre si, como também com a Natureza. Essa é a marca do materialismo marxista: nem todas as coisas dependem exclusivamente do mundo sensível exterior (o mundo das coisas, o mundo da natureza). É desse ano e de 1845 (A Sagrada Família e Teses contra Feuerbach) sua convicção de que a revolução deveria ser conduzida pelo proletariado194. Nas Teses contra Feuerbach encontram-se os primeiros germes do materialismo histórico. Em 1846 inicia sua atividade política revolucionária prática ao criar em Bruxelas o Comitê de Propaganda Comunista. Nesse mesmo ano escreve A Ideologia Alemã com a qual rompe com a esquerda hegeliana195. Esse grupo tinha em comum a tentativa de construir um Estado, a partir dos princípios da política de Friedrich Georg WiVer Para a Crítica da Economia Política. O proletariado é aquele grupo que possui apenas a sua própria força de trabalho. São os trabalhadores assalariados. 195 Os principais pensadores dessa linha foram os irmãos Bruno Bauer (1809-1882) foi colaborador da Gazeta Renana e orientador acadêmico, mas não conseguiu ajudá-lo a assumir uma cátedra, pois foi expulso da universidade de Bonn e Edgar Bauer (1820-1886), Arnold Ruge (1802. 1880) publicou junto com Karl Marx na França uma revista radical para os alemães, Mikhail Bakunin (1814. 1876), Max Stirner (18061856), Aleksandr Herzen (1812. 1870) e o próprio Karl Marx. 193 194 190 lhelm Hegel, expostos nos Princípios da Filosofia do Direito. Karl Marx abandona esse grupo por crer que eles não fundamentavam seus pensamentos na realidade. Ele retoma a leitura dos Princípios de Hegel e critica-os em Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Para ele o hegelianismo não consegue explicar a sociedade, porque não reconhece que essa é dinâmica. A partir daí desenvolve uma teoria dos mecanismos de funcionamento do capitalismo e de suas crises inevitáveis: “Politicamente, retira dessa teoria um ensinamento decisivo: a luta da classe operária só pode ter como objetivo a supressão dessa extorsão e a instituição de uma sociedade na qual os produtores seriam senhores de sua produção e organizariam seu trabalho de tal modo que o fim da atividade de trabalho não seria a troca–simples meio -, mas o uso, a fruição empírica.”196 A luta de Karl Marx, também, inclui o anarquismo, o qual considera ingênuos seus teóricos, pois eles defendem ser o Estado o criador do capital concluindo que a destruição daquele leva à destruição deste. O erro dos anarquistas, diz Karl Marx, é o mesmo erro dos liberais: acreditam que o Estado constrói a sociedade civil. Os anarquistas julgam o Estado como o maior dos males e defendem o afastamento do mundo da política. A crítica que Karl Marx faz à teoria anarquista é marcada por três pontos: 1. é voluntarista e não científica; 2. não compreende a dialética da história; 3. não per- CHÂTELET, François. História das idéias políticas. Tradução de C. N. Coutinho. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 135. 196 191 cebe que a revolução não se faz no mundo das idéias, mas no mundo da prática197. Em 1847 vem a público seu livro: Miséria da Filosofia da Miséria do Sr. Proudhon. Nessa obra há a ruptura com os socialistas utópicos198. Apesar de se opor a esse tipo de socialismo, afirma que ele conseguiu perceber: 1. o mal causado pela propriedade privada199; 2. o sofrimento do proletariado. Entretanto, o socialismo utópico não foi capaz de entender que: 1. a alienação era causada pela divisão do homem em cidadão e indivíduo; 2. caso a propriedade fosse distribuída a todos ainda se manteria a alienação humana; 3. a supressão do Estado não é o objetivo do comunismo, mas o meio para se atingir esse objetivo. A diferença entre a sociologia de Karl Marx e o socialismo francês está no ponto de partida: decadência do sistema cristão-absolutista de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Karl Marx acreditava ter descoberto uma lei do capitalismo, o trabalho: “A essência subjetiva da propriedade privada, a propriedade privada como atividade para “A teoria da prática revolucionária requer a superação do pontode-vista espontâneo ou instintivo adotado pela consciência comum do proletariado.” In VÁSQUEZ, A. S.. Filosofia da Práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.08. 198 Foi Karl Marx quem assim designou esses socialistas, a fim de diferenciá-los de seu socialismo que ele considerava científico, visto que acreditava ter encontrado a lei que movimenta o mundo: o materialismo dialético. Os chamados socialistas utópicos foram: Saint-Simon (); Robert Owen (); Charles Fourier (). 199 Essa idéia é uma repetição do pensamento dos retores medievais (Alberto Mussato e Brunetto Latini), bem como de Jean-Jacques Rousseau: é a riqueza privada que causa os males sociais. 197 192 si, como sujeito, como pessoa, é o trabalho.”200 No momento em que se compreende o trabalho como essência da propriedade privada é que podemos entender a economia em sua determinidade. Esse ao garantir a existência material do homem aumentava o capital: “o capital também é um instrumento de produção, é também trabalho passado e objetivado. Logo, capital é uma relação natural, universal e eterna.”201 O trabalho, essência do homem, não mais o torna humano no capitalismo, mas um apêndice da máquina. Com a máquina as características próprias de cada trabalhador desaparecem e ele se torna um ser abstrato: “instrumento de trabalho, custo de produção.” Essa condição econômica do proletariado se reflete na sua vida: tanto numa, quanto na outra, ele é dominado. Num primeiro momento o proletariado não se reconhece como classe (não defende seus interesses) e se alia à burguesia defendendo os interesses dessa. Entretanto, essa situação começa a mudar, quando o proletariado principia por defender seus interesses econômicos e seu trabalho, por meio de organizações operárias que aumentam sua pressão sobre o poder da burguesia. Quando a exploração burguesa atingisse todos os momentos da vida do proletariado, esse tomaria consciência de seu papel revolucionário. Nessa revolução ao 200 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo: Abril, 1978, p. 03. Os Pensadores. 201 M A R X , K a r l . P a r a a C r í t i ca d a E co n o mi a P o l í t i ca . S ã o P a u l o : A b r i l , 1 9 7 8 , p . 1 0 5 . O s P e n s a d o re s . 193 destruir a classe burguesa o proletariado estaria se destruindo como classe, pois ele atingiria quase todos os homens em sociedade. Ele segue a divisão feita por Auguste Comte (17981857) entre as sociedades do passado (militares e teológicas) e as do presente (industriais e científicas), entretanto, para Karl Marx o antagonismo não está entre as sociedades do passado e as do presente e sim dentro do próprio capitalismo. Para Auguste Comte a luta entre trabalhadores e patrões era apenas uma imperfeição do capitalismo, cuja eliminação seria fácil. Na visão de Karl Marx essa luta é o que há de mais importante no capitalismo e mostra a sua essência e o seu futuro desenvolvimento. O caráter marcante do pensamento marxista é a oposição inerente ao capitalismo, ou melhor, é a afirmação de que o capitalismo se auto-destruirá. Por isso, ele incita os homens a executarem o destino do capitalismo. O objetivo de Karl Marx era destruir o capitalismo, e todo o seu pensamento foi direcionado com o intuito de acelerar essa destruição. Por esse motivo, ao analisar o capitalismo, não o faz de maneira científica, pois primeiro ele condena-o e depois escreve a respeito desse sistema. Ele parte da visão preconceituosa da maldade do capitalismo, por esse motivo deseja sua destruição. Ao analisar as condições de trabalho Karl Marx compreende que para se estudar a dinâmica da sociedade é preciso analisar a economia, bem como para conhecer a economia é necessário entender o funcionamento da sociedade. Por isso, ele quer entender o funcionamento, a estrutura e o desenvolvimento futuro do capitalismo. 194 Entretanto, devemos chamar atenção para o fato de que Karl Marx repetiu um esquema já conhecido e o aplicou ao estudo da sociedade: “O exemplo judaico de história, passada e futura, é de molde a atrair poderosamente os oprimidos e infortunados de todos os tempos. Santo Agostinho adaptou esse modelo ao Cristianismo; Marx, ao socialismo. Para se compreender, psicologicamente, Marx, dever-se-ia empregar o seguinte dicionário: Jeová = Materialismo dialético O Messias = Marx Os Eleitos = O proletariado A Igreja = O partido comunista O Segundo Advento = A revolução O inferno = O castigo dos capitalistas O milênio = O Estado comunista Os termos da esquerda dão o conteúdo emocional dos termos da direita, e é esse conteúdo emocional, familiar àqueles que tiveram uma educação cristã ou judaica, o que torna crível a escatologia de Marx. Um dicionário semelhante poderia ser feito para os nazistas, mas suas concepções são mais puramente estilo Antigo Testamento e menos cristãs que as de Marx – e o seu Messias é mais análogo aos macabeus do que a Cristo.”202 Sua preocupação é compreender a sociedade, a partir de sua infra-estrutura. Essa se relaciona com as forças de produção203 e com a organização do trabalho. Entretanto, as técnicas ligam-se ao conhecimento científico que por sua vez une-se às idéias que se encontram unidas à superestrutura. Logo, o conceito de infraestrutura traz consigo elementos da superestrutura, daí a dificuldade de separar o que pertence aos dois planos. Russel, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1969, pp. 66-7. 203 Conjunto de equipamentos técnicos de uma sociedade. 202 195 O fundamento de sua teoria encontra-se na afirmação de que a História é fruto da ação dos homens, mas ela é superior a cada um deles individualmente. Os liberais admitiam que o egoísmo de cada um construiria o interesse comum. Em Karl Marx é possível encontrar uma elaboração intelectual que vai de encontro aos liberais, pois, para ele, o egoísmo de cada um destruiria o interesse comum. O capitalismo teria algumas características distintas das sociedades anteriores: 1. a burguesia, para sobreviver, deve revolucionar constantemente os meios de produção e, por conseqüência, as condições de existência da sociedade; 2. o desaparecimento da burguesia não se dará por uma força externa, porém interna: o proletariado. Dentro da sociedade capitalismo encontram-se dois tipos de contradições internas: 1. forças de produção X relação de produção: para sobreviver a burguesia precisa inovar as forças de produção e, no entanto, as relações de produção não se modificam no mesmo ritmo. Apesar de aumentar a riqueza da sociedade, o proletário continua cada vez mais pobre; 2. aumento da riqueza X miséria do proletariado: esse antagonismo dará origem à crise que revolucionará o regime capitalista. A exploração cada vez maior do proletariado o transformará em classe social, que fará uma revolução da maioria, em benefício da própria maioria. Assim, chegará o fim o antagonismo do capitalismo e das classes sociais, como também do Estado. 196 A origem dessa revolução estaria nos próprios fundamentos do capitalismo, que precisaria continuamente revolucionar os meios de produção e por extensão as relações sociais. Quanto mais se aumentasse a produção, maior seria a exploração dos trabalhadores e maior seria a sua pobreza. No capitalismo, reina um paradoxo: quanto mais crescem os meios de produção, mais o proletário se empobrece. Com o aumento da pobreza do proletário, estará dada a condição, para a revolução, na qual as duas classes antagônicas lutarão e a vitória final seria do proletariado e todo o antagonismo que marcou a História de todas as outras sociedades, terá desaparecido. O resultado é que o Estado deixará de ser o Estado de uma classe e tornar-se-á público, por isso o domínio da maioria não seria um governo de classe. A nova sociedade seria marcada pelo livre desenvolvimento de cada um que se baseará no livre desenvolvimento de todos. Ao término da luta entre burgueses e proletários, serão extintos a política e o Estado, porquanto eles são manifestações dos conflitos sociais. Karl Marx recusou as conclusões hegelianas, entretanto não conseguiu abandonar sua dialética. Ele a usou fazendo uma alteração, e é isso que ele considera importante, visto que enquanto em G. W. F. Hegel as Idéias eram a realidade, Karl Marx admite ser o mundo físico sua realidade, por isso chama seu sistema de materialismo dialético. A dialética hegeliana era considerada por Karl Marx a maior conquista da filosofia clássica: “Assim pois, a dialética é, segundo Marx, „a ciência das leis gerais do 197 movimento, tanto o do mundo exterior como o do pensamento humano.”204 A dialética marxista parece ser um caminho já percorrido, entretanto traz como diferencial ocorrer como negação da negação. Nela o desenvolvimento não ocorre em linha reta, mas em uma espiral, pois o progresso dá saltos, os quais representam a ruptura revolucionária que transforma que a quantidade em qualidade. O materialismo dialético admite a existência de um mundo exterior independente do homem, que se desenvolve, por meio de um processo dialético. É uma visão, em termos filosóficos, realista205. Essa é a visão de mundo do homem ingênuo. O materialismo dialético tem duas funções dentro do marxismo: 1. há uma natureza material e autosuficiente, que possui leis próprias de funcionamento e não necessita da mente humana para nada. O que não está errado; 2. o erro é uma minoria admitir que os homens estão submetidos às mesmas leis da natureza. Mas os marxistas aceitam isso como certo e, por conseqüência os absurdos das conclusões marxistas são aceitos como verdades científicas. Os exemplos dados por Karl Marx, para provar que há uma lei de progresso da sociedade não são provas, e sim “ilustrações selecionadas” que têm por objetivo mais forçar o argumento, a ser aceito, do que mostrar a veracidade dos argumentos. Caso, com muita boa vontade, se LÊNIN. Marx-Engels Marxismo. Moscou: Progresso, p. 13. O realismo admite que existe um mundo fora do homem e independente dele. O realismo defende que o conhecimento existente na mente do homem é fruto do mundo exterior. 204 205 198 aceite ser a natureza dialética, não se pode concluir ser a história dialética. A dialética somente tem importância, caso seja vista como um processo contínuo no tempo. O interesse hegeliano era explicar como eram possíveis as mudanças históricas. A maneira como se usa a dialética pode ser conservadora, quando se olha para um aspecto da História e o justifica como necessário. Mas, pode ser revolucionária, ao se aceitar que um momento dará lugar a outro, que lhe seguirá, e assim é possível justificar aquele momento. A dialética tem uma falha mortal, pois não define o que é necessário ou apenas aparência. Ou se pede a opinião de alguém para decidir se algo é necessário ou não, ou então espera ocorrer o fato para saber se era necessário ou não. Isso foi proposto por G. W. F. Hegel ao dizer que a prova da necessidade da realidade era sua efetivação. Como a dialética é cheia de ambigüidades ela bem serve aos interesses dos dialéticos. Quando ela é aplicada à História, o resultado depende de quem está analisando, pois: 1. qualquer momento histórico pode ser tomado como tese; 2. qualquer diferença tem que ser aumentada numa oposição; 3. toda tese admite uma antítese que, por sua vez, requer um outro sem número de sínteses. Resumindo, é possível afirmar que, em sua origem Platônica, a dialética era somente um método, para se compreender como uma Idéia chegava a ser Verdade. Com G. W. F. Hegel, a dialética tornou-se um método, para se interpretar a História e a natureza, visto que para 199 ele a História e a natureza são reflexos do Espírito Absoluto (Idéia). Ao aplicar a dialética à História, ele simplesmente queria mostrar, que a História seguia o caminho que o próprio G. W. F. Hegel havia traçado para ela. A dialética, tanto a hegeliana, como a marxista, é apenas um truque e nada mais do que isso. O termo marxismo pode ser entendido de três maneiras diferentes: 1. as doutrinas sócio-políticofilosóficas e econômico-históricas de Karl Marx; 2. as doutrinas de Karl Marx e Friedrich Engels que juntas pretendiam erguer um sistema, o qual não é coerente; 3. a utilização do sistema doutrinal anterior. Quanto à primeira maneira de se entender omarxismo podemos dizer que Karl Marx foi influenciado pelo pensamento de G. W. F. Hegel, mas, desde o início, questiona o pensamento especulativo que pode se combinar em diversas formas ideológicas206. Nos seus escritos jovens, a influência hegeliana é grande e Karl Marx apresenta uma visão existencial do mundo. Nesses mesmos escritos, é possível ver a sua separação do idealismo e a conservação do método hegeliano (método dialético). Com o amadurecimento do seu pensamento ele afasta-se do idealismo do mestre e aproxima-se do materialismo207, devido a sua relação com Ludwig Feuerbach. Karl Marx considerava ideologia aquele conhecimento que se quer fora das relações sociais que o criou, ou seja, aquele conhecimento que se acredita filho legítimo da própria consciência e não das relações sociais. 206 207 Idealismo O Espírito é eterno: a matéria deriva dele. 200 Materialismo A matéria é eterna: o Espírito deriva dela. Enquanto G. W. F. Hegel explicava a História como o progresso do Espírito Absoluto, Ludwig Feuerbach explicava por meio das condições materiais. A característica desse marxismo é a consciência histórica, ou seja, estuda a História em seus momentos concretos. A História é a história das verdades parciais. Outra característica é a tentativa de unir o sistema conceitual com a realidade concreta que tal sistema pretendia explicar. Quanto ao segundo modo de se compreender o marxismo temos que o sistema marxista de Marx-Engels engloba o materialismo dialético e o materialismo histórico. Esse sistema, chamado de Diamat, não é fiel ao pensamento de Karl Marx, o qual via o homem como um ser criador, livre e natural. O homem é um ser que procura fugir da opressão natural ou histórica. Por outro lado essa segunda visão do marxismo completa algumas lacunas que Karl Marx tinha deixado. É um realismo no qual a existência (matéria) precede a essência (espírito). O Ser é matéria e nesse aspecto a sua filosofia é um materialismo, mas não um materialismo mecanicista208. Os fenômenos do universo são causados pelo Espírito. O movimento e a criação são frutos do Espírito. O Espírito não pode ser conhecido. A vida espiritual determina a vida material. A essência precede a existência. 208 201 Os fenômenos do universo são causados pela matéria. O movimento e a criação são frutos da matéria. A matéria pode ser conhecida. A vida material determina a vida espiritual. A existência precede a essência. Por fim a última maneira é de se entender o marxismo é fruto da transformações sofridas pelas visões anteriores. Em sua leitura posterior há uma preocupação mais política do que filosófica. O materialismo dialético (base filosófica do marxismo) é uma inversão da filosofia de G. W. F. Hegel, ao mesmo tempo é uma apropriação do seu método dialético, o qual deve ser aplicado à realidade de acordo com as próprias leis da dialética: 1. lei da transformação da quantidade em qualidade; 2. lei da unidade e conflito entre os opostos; 3. lei da negação da negação. Essas leis seguem o esquema de Hegel: 1. tese (afirmação ou em si); 2. antítese (negação ou para si); 3. síntese (negação da negação ou em si para si)209. As leis da dialética marxista são aplicáveis tanto à natureza, quanto à sociedade: esse é o seu grande proMaterialismo mecanicista 1. Século XVIII; 2. Denis Diderot (1713. 1784); PaulHenri Thiry, baron d'Holbach (1723 – 1789); Claude Adrien Schweitzer – Helvetius (1715 – 1771). 3. Estático: a-histórico; 4. O mundo é um conjunto de coisas acabadas; 5. Antecedentes históricos: a ciência do século XVIII não conhecia senão as leis da simples mudança de lugar. Explicava-se a vida e o pensamento, pelas leis mecânicas. Admitiam que as mudanças eram quantitativas. Materialismo dialético 1. Século XIX; 2. Karl Marx (1818-1883); Friedrich Engels (1820-1895); 3. Dinâmico: histórico; 4. O mundo é um conjunto de coisas em processo; 5. Antecedentes históricos: a ciência do século XIX estuda o calor, a eletricidade, o magnetismo, os processos químicos, a vida provando que a matéria é capaz, além de movimentos mecânicos, de transformações qualitativas. A síntese não é uma negação lógica, porque ela suprime os termos anteriores ao invés de conservá-los. 209 202 blema. Essa segunda maneira de se ver o marxismo se apóia nas teses da primeira maneira. Quando Karl Marx muda o objetivo da crítica para a política e para a História dos homens, é o momento em que ele rompe com o método hegeliano (dialética das Idéias) e cria seu próprio método: o materialismo dialético. Essa inversão mostrou que o aspecto jurídicopolítico de uma sociedade não pode ser compreendido em si mesmo. Ele necessita de uma explicação externa, mas que nada tem a ver com o progresso do Espírito humano como queria G. W. F. Hegel. O materialismo dialético deveria apenas se referir ao mundo físico e ao modo como o homem conheceria esse mundo, mas o marxismo torna a História igual à dialética. Quando Karl Marx aplicou a dialética à história, isso era apenas uma pequena parte do que ele queria realmente: estudar a sociedade com o intuito de mudá-la. A herança de G. W. F. Hegel e Karl Marx pode ser identificada com a ênfase dada ao aspecto dinâmico da vida, mas o conflito como necessidade da natureza é algo que já está bem solidificado no pensamento ocidental, e não necessita de nenhuma dialética para sustentá-lo. Karl Marx tinha uma perspectiva universalista e procurava submeter a sociedade e o cosmos às mesmas leis. Influenciado pela idéia de progresso dominante no século XIX, ele a concebeu na História. Assim ele admitia que, depois do Capitalismo, surgiria um modo econômico não diferente, mas melhor. É por esse motivo que ele não aceitava a História como causa e efeito porque, se assim o fosse, a sociedade não alcançaria um estágio mais per203 feito. Para ele, tanto a sociedade, como a natureza obedecem às leis da dialética. As teses do materialismo dialético são três: 1. na dialética a lei fundamental é a lei do eterno devir. Tanto o homem como a natureza estão em perpétua mudança. O mundo moral e humano modificam-se da história; 2. existe uma mudança qualitativa, que vai do mundo inorgânico ao mundo da História, e, nesse mundo, também, há uma mudança qualitativa, que vai do modo de produção primitivo até ao socialismo; 3. as mudanças são controladas por leis abstratas. Toda mudança é uma mudança revolucionária, isto é, violenta. Todas as mudanças obedecem à lei da contradição210 e da negação da negação. O materialismo dialético afirma que a economia determina a História, a qual pode ser apresentada por meio de leis eternas. É possível encontrar cinco leis básicas da História, dentro do pensamento de Karl Marx: 1. as forças produtivas ou modos de produção, são a base econômica da sociedade, determinam a superestrutura da sociedade. É a existência material do homem que define a sua consciência; 2. os modos de produção entram em conflito e criam uma nova relação de propriedade; 3. todo conflito histórico manifesta-se na luta de classe; 4. depois de algum tempo a luta de classe torna-se intolerável; 5. a ditadura do proletariado dará fim ao Capitalismo, e abrirá Em Contribuição à Crítica da Economia Política é afirmado que o movimento da História se dá pelo antagonismo entre as forças de produção e as relações de produção, por outras palavras, a dialética da História é a contradição entre forças de produção e as relações de produção. 210 204 as portas para uma sociedade sem classes e sem Estado. Isso ocorrerá em todo mundo. Em resumo, o materialismo dialético pode ser apresentado da seguinte forma: 1. a História é explicada por leis dadas pelos fatos históricos. As leis da História mostram um progresso da História; 2. o progresso da História é devido a conflitos que são o seu motor; 3. as forças que movem a História são forças econômicas que se encontram em duas classes opostas: a burguesia e o proletariado; 4. o progresso da História se dá por meio da dialética; 5. a vitória final do proletariado produzirá um modo de produção diferente, e melhor, que todos os anteriores, pois não mais existirá classes sociais. Com o fim das classes sociais desaparecerá o Estado, uma vez que todo Estado é um instrumento de dominação de uma determinada classe; 6. a filosofia não deve interpretar o mundo, mas mudá-lo. Daí concluir que toda atividade humana é uma atividade revolucionária211. Karl Marx advoga o materialismo dialético e tenta diferir seu posicionamento do materialismo mecânico no qual o homem é considerado uma máquina, e as suas ações podem ser definidas por leis físicas e químicas. A diferença entre o materialismo dialético e o mecânico está em sua natureza212. Para Karl Marx a história do homem era a história da relação entre o homem e a natureza e dos homens entre si. A origem da história estava no primeiro intermediário de suas relações: o trabalho. A história era a história da criação do homem em geral por meio do traba211 212 Ver 11a tese contra Ludwig Feuerbach. Ver nota 36. 205 lho. A história tinha como fundamento a própria realidade, a qual é dialética e como tal se submete a um futuro. O materialismo dialético não aceitava existir algo além do mundo sensível (mundo das experiências). O materialismo histórico213 desejava que as interpretações históricas partissem dos fatos históricos, em outras palavras, não aceitava a intervenção de um deus qualquer, ou de idéias sobre o homem, o Estado, etc. O materialismo histórico214 não se difere do materialismo dialético (a realidade é dialética), mas é apenas o caso particular desse ao ser aplicado à história. Com seu materialismo histórico ele se separou de G. W. F. Hegel, que via a história como a realização do Espírito. Também, se afastou de Bruno Bauer que pensava ser a história uma luta entre idéias. Karl Marx, ao não aceitar os posicionamentos de seu mestre e de seu orientador, procurou outra origem para a História que se estabelecesse no mundo das experiências (esse era seu pressuposto para a História). E esse primeiro ato criador ele o viu no trabalho humano, o qual para satisfazer as necessidades do homem. Era o “A doutrina do materialismo histórico não está encerrada, ainda, num livro clássico e definitivo, com o qual se ache como que identificada, de tal modo, que discutir esse livro e a doutrina possa parecer uma só coisa; está disseminada numa série de escritos, compostos num período de meio século com largos intervalos, nos quais dela se faz menção da mesma forma ocasional na maior parte das vezes e de quando em quando é simplesmente subentendida ou implícita. Quem quiser ordenar todas as fórmulas que dela deram Marx e Engels, cairia em expressões contraditórias, que tornariam difícil ao cauto e metódico intérprete estabelecer o que é, assim em geral, para eles, o materialismo histórico.” In CROCE, B.. Materialismo Histórico e Economia Marxista. São Paulo: IPÊ, 1948, p. 89. 214 “O materialismo histórico deve valer como simples cânone de interpretação.” Benedetto Croce 213 206 trabalho o caráter diferenciador entre os homens, os animais e a natureza. A História começou com o trabalho215 e conta a História do homem (um ser formado de necessidade que são satisfeitas pelo trabalho). As relações sociais, após a introdução do trabalho, são determinadas pelas forças de produção. Essas dão origem à propriedade privada que criam novos meios de produção: “A propriedade privada é apenas a expressão sensível do fato de que o homem se torna objetivo para si e, ao mesmo tempo, se converte bem mais em um objeto estranho e inumano, do fato de que a exteriorização de sua vida é a alienação da sua vida e sua efetivação é a desefetivação, uma efetividade estranha, a superação positiva da propriedade privada, isto é, apropriação sensível pelo e para o homem da essência e da vida humanas só no sentido do gozo imediato, exclusivo no sentido da posse, do ter.”216 Na visão do filósofo italiano Benedetto Crocce o materialismo histórico não é uma nova filosofia da história e muito menos um método para se estudar a história. Ele é tão somente “uma soma de novos dados, de novas O ponto central das análises de Karl Marx coloca o trabalho como a essência do homem (o que torna o homem homem é o trabalho). Com as pesquisas desenvolvidas no século XX mostrou-se que alguns animais produzem instrumentos e até trabalham em grupos. Sendo assim, a essência do homem não é o trabalho e todas as conseqüências que Karl Marx tira são apenas crendices. Se sua base está errada, seus resultados também estão (de um erro não se cria um acerto). 215 216 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo: Abril, 1978, p. 11. Os Pensadores. 207 experiências, que penetram na consciência do historiador.”217 A natureza, para Karl Marx, produz o homem num primeiro momento e origina um antagonismo: homem X natureza. Essa precisa daquele, para se humanizar218 e aquele necessita dessa, para satisfazer suas necessidades primárias. São as necessidades do homem que darão origem à sociedade e à História. Era uma relação imediata entre o homem e a natureza, ou seja, não havia necessidade de intercalar algo (o trabalho, o instrumento) entre eles, a fim de que aquele pudesse se apropriar das forças dessa. Não obstante. As primeiras necessidades do homem forçam-no a se relacionar com a natureza, por meio da coleta. Por existir mais necessidades a serem satisfeitas o homem passa a fabricar instrumentos. A fabricação de instrumentos tornava sua relação com a natureza mais complexa, pois o instrumento era algo que o homem extraíra da própria natureza e adicionara ao seu mundo. Ele não fora criado para ser consumido, ele tornara-se o meio que ligava o homem à natureza possibilitando sua apropriação, não mais a simples apropriação de objetos dados por ela, e sim de produtos criados pelo homem. Karl Marx depois de considerar a relação entre o homem e natureza, pôs-se a estudar a relação entre os próprios homens. O homem sozinho na natureza não a reconhece, mas ao reconhecer que tem necessidades, e CROCCE, Benedetto. Materialismo Histórico e Economia Marxista. São Paulo: IPÊ, 1948, p. 25. 218 É um absurdo, pois o autor admite que a natureza precisa do homem. 217 208 era o objeto dessa necessidade, a natureza aparece-lhe como humana. Isso ocorre porque Karl Marx tinha a crença (e nada mais do que crença) de que o homem ao surgir na natureza tinha como objetivo se universalizar, ou melhor, o homem surge com o objetivo de se unir a todos os homens e à natureza. A idéia principal que encontramos na Contribuição à Crítica da Economia Política diz que as relações sociais são determinadas, necessárias e não dependem da vontade do homem. Não é o homem que define o seu caminho em sociedade, mas a estrutura social (as relações de produção e forças de produção) que impõem as suas preferências aos homens. Compreender a história é compreender que as relações sociais não dependem dos homens: “Não é a consciência do homem que determina seu ser, senão, pelo contrário, o ser social é o que determina sua consciência.”219 As relações sociais ficavam mais complexas fazendo surgir sociedades menos naturais que com seu desenvolvimento tornaram o homem mais universal. A tendência à universalização do homem se fazia por meio do trabalho que criava a mediação entre o homem e a Natureza e entre os homens em sociedade. A relação entre o homem e a mulher é a primeira relação em que o homem reconhece ser objeto de sua necessidade. Nessa relação reconhece a humanização da natureza tendo como conseqüência a origem da cultura 219 MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. xxx 209 que transforma o homem, ao mesmo tempo que enriquece sua natureza. Antes as necessidades do homem eram satisfeitas pela natureza. Nas relações sociais mais complexas as necessidades do homem são satisfeitas pelo trabalho de outro homem. O homem ao produzir não ficava mais com o produto de seu trabalho, visto que ele era trocado com outro homem, porque o produto tornava-se um valor de troca que se relacionava com o trabalho. Ocorre que no mercado de trocas o valor do produto não depende mais do trabalho. No momento em que o trabalhador não é mais dono dos meios de produção ele não é dono do trabalho e muito menos do valor do trabalho. O movimento das relações sociais faz com que os homens criem necessidades uns para com os outros. Com o surgimento de uma nova necessidade, o homem tornase dependente até o ponto de se arruinar economicamente, pois nem todos têm condições de seguir seus desejos. Precisando satisfazer suas necessidades cabia ao trabalhador vender a única coisa que lhe restava: sua força de trabalho. Nessa nova relação de trabalho nada mais lhe pertencia (nem os instrumentos, nem os produtos) e o trabalhador não poderia se tornar um homem total. Esse é um conceito utilizado por Karl Marx em sua juventude e que é tanto, ou mais, equívoco que o conceito de homem universalizado. Para ele a totalidade do homem é fraturada pela divisão do trabalho: “Embora seja um truísmo ambíguo, Marx é essencialmente um pensador materialista de um tipo particular. O que é de primordial importância para os homens é a necessidade de subsistir. Para 210 isso, precisam trabalhar e produzir. [...] Quando os homens produzem, desenvolvem complexas relações sociais e de troca. Além disso, os homens produzem mais eficazmente em grupos; de início as tarefas são separadas para habilitar as pessoas de modo mais produtivo. Aqui, percebemos as formas mais primitivas da divisão do trabalho.”220 É a divisão do trabalho a essência da produção da riqueza: “A divisão do trabalho é a expressão econômica do caráter social do trabalho no interior da alienação.”221 O estudo da divisão social do trabalho e da troca é importante, porque elas expressam a atividade e a força humana alienadas. A sua base é a propriedade privada. Ao defender isso Karl Marx diz que é a mesma coisa que afirmar que a essência da propriedade privada é o trabalho. Na sociedade moderna o homem é especializado e não utiliza toda a sua potência na criação, mas apenas a parte que é importante para a indústria. Por isso é necessário substituir o homem fragmentado pelo homem total, isto é, não especializado por meio de uma educação politécnica. Esse posicionamento é um protesto romântico contra a sociedade industrial, mas não uma análise científica. O conceito de homem total passa a referir-se àquele homem que vive autenticamente a sua humanidade. E VINCENT, Andrew. Ideologias Políticas Modernas. Rio de Janeiro: Zahar, p. 16. 220 221 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo: Abril, 1978, p. 24. Os Pensadores. 211 assim o conceito trabalho ocupa um lugar de primazia, porquanto o homem passa a ser um homem que trabalha. Com o conceito de homem total chega-se ao conceito de alienação, isto é, estranhamento de si mesmo. Esse conceito vem da filosofia hegeliana e é concebida filosoficamente. Para G. W. F. Hegel o Espírito afasta-se das suas obras e constrói edifícios fora de si mesmo. A história da humanidade é a história das alienações que ao final o Espírito encontra as suas obras e o seu passado e toma consciência de possuir todo esse conjunto. A alienação do trabalho produz um efeito estranho no operário, pois quanto maior é a riqueza produzida, maior é o vazio existencial no operário: “A alienação aparece tanto no fato de que meu meio de vida é de outro, que meu objeto é a posse inacessível de outro, como no fato de que cada coisa é outra que ela mesma, que minha atividade é outra coisa, e que, finalmente (e isto é válido também para o capitalista), domina em geral o poder desumano.”222 Além disso, a mercadoria produzida tornase-lhe “hostil e estranha.” O sentido do ter sobrepõe-se a todos os sentidos físicos e espirituais humanos. No marxismo a alienação não é concebida filosoficamente, mas sociologicamente: na perspectiva marxista as sociedades constroem edifícios e se perdem neles. A conduta efetiva do homem passa a ser a desalienação, para tanto é preciso acabar com as condições desse se colocar fora de si. A sociedade industrial não deixa o homem reconhecer-se na sua atividade ou na sua obra, essas são estranhas para ele. 222 MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo: Abril, 1978, p. 22. Os Pensadores. 212 O conceito auto-alienação, usado por Karl Marx, aproxima-se do ponto central da definição dada por JeanJacques Rousseau: a produção de mercadorias. As mercadorias são criações do homem, mas elas operam um feito, no mínimo estranho, no homem: quanto mais ele produz coisa, mais ele fica dependente delas. O Ser do homem desloca-se de seu interior e coloca-se no exterior, nas coisas. O homem, então, para se recompor dessa fratura interior, passa a consumir mais e mais coisas, entretanto, quanto mais ele ganha no âmbito externo (coisas) mais ele se esvazia internamente (perde sua humanidade). Nessa situação, o homem via a sociedade como estranha a ele mesmo, pois era por meio do trabalho que se relacionava com os outros homens. Em sua situação de não proprietário das forças de produção o trabalho não mais o unia aos outros homens e à natureza, mas o separava deles. É a essa separação que Karl Marx chama de alienação. A origem da alienação entre os homens é para Karl Marx a propriedade privada223 e em conformidade com esse pensamento a sociedade seria formada por indivíduos isolados, na qual esses átomos sociais estão sobrecarregados pelos bens que eles mesmos produzem. O que distingue esses indivíduos são seus bens materiais e a maneira de sua consecução. Ela se originaria da seguinte maneira: o trabalhador, para sobreviver materialmente, vendia sua força de trabalho não como ele desejava, mas como o mercado 223 Assim como para Jean-Jacques Rousseau. 213 queria. Então, o trabalho que o tornaria humano (exteriorizando-o, objetivando-o) não mais lhe pertenceria, mas a outro. Em outras palavras, a essência humana (o trabalho) se colocaria fora do homem no capitalismo: é esse se localizar fora de si mesmo que é a alienação. A alienação seria inevitável na relação entre o homem e o resultado de seu trabalho sendo a História a história dessa alienação e de sua superação. A conduta efetiva do homem passa ser de alienação, para tanto, é preciso acabar com suas condições. A sociedade industrial não deixa o homem reconhecer-se em sua atividade ou em sua obra, essas são estranhas para ele, uma vez que ele é apenas uma peça no processo de produção. A conseqüência dessas necessidades artificiais é que o homem, para preencher seu interior vazio de humanidade, prende-se cada vez mais às coisas e não aos outros seres humanos. Mesmo quando se relaciona com os homens, tratam-lhes como coisas, e dão às coisas características humanas. Para o homem humanizar-se, ele deve objetivar-se na natureza por meio do trabalho em conjunto com os outros homens. É o trabalho que diferencia o homem dos animais. Com o trabalho, o homem transforma a natureza e ao fazer isso ele torna-se cada vez mais humano. O objetivo do trabalho, então, deveria ser a humanização do homem, porém isto não é visto na sociedade capitalista. Nessa sociedade, o trabalho não visa à apropriação da natureza e à realização da humanidade do homem. Ele trabalha não para se realizar como ser humano, e sim para conseguir a subsistência. O trabalho 214 deixa de ser um fator do auto-realização para tornar-se um peso, e isto se dá devido à propriedade privada dos meios de produção e à divisão do trabalho social. O trabalhador não tem a propriedade da matéria prima com a qual trabalha, nem os instrumentos utilizados para produzir e, muito menos o resultado da produção, da criação. Assim, o mercado de trabalho esvazia o homem em sua humanidade e criatividade. A alienação é um trabalho externo ao operário, porque nele o trabalhador não se identifica com o produto final. No trabalho alienado224, há uma negação do homem, tornando-o um ser infeliz que vê seu corpo e seu espírito ser dilacerado pelas engrenagens da indústria. A conseqüência é que o operário no trabalho sente-se como se não estivesse presente em si mesmo, visto que é um trabalho forçado e ele encontra sua liberdade, não no trabalho, em suas atividades animais. No mercado o trabalho humano torna-se uma coisa como outra qualquer. Como é por meio do trabalho que o homem toma consciência de sua condição humana e como esse trabalho torna-se distinto do homem, logo o homem não tem mais condições de se reconhecer no mundo e para sobreviver ele cria ilusões como, por exemplo a moral, a religião, o Estado, etc. Nessa situação, o próprio operário torna-se uma mercadoria. É essa transformação do homem em coisa que Karl Marx chama de alienação do trabalho. É dessa alienação que surgem as demais alienações no mundo. G. W. F. Hegel denominava esse trabalho de idealizado. 224 215 Daí surgir um novo problema: como evitar a alienação pelo trabalho? Por meio da extinção da propriedade privada, que é a criadora da alienação. Essa destruição da propriedade privada dar-se-á por meio da luta de classe, em que o proletariado expropriará violentamente a burguesia. No século XIX os escritores colocavam a política em segundo plano em relação à economia e à sociedade. Essa característica também se encontra em Karl Marx que vê a política como reflexo dos conflitos sociais, para ele é por meio do Estado que a burguesia mantém o seu domínio sobre as demais classes. A teoria marxista de classe225 parte do pressuposto econômico, pois a classe seria um grupo que se encontraria colocado em determinado ponto da produção econômica, tendo consciência da sua situação de exploração e agiria em comum acordo. Para ele as classes sociais partilham de experiências comuns, de um modo de vida mais ou menos distintivo e de certos interesses políticos e econômicos. Na sociedade capitalista, por sua própria dinâmica, elas foram reduzidas a duas classes principais: A burguesia e o proletariado. Por terem interesses antagônicos elas entram, inevitavelmente, em conflito. Essa luta entre patrões e empregados é o mais importante no capitalismo, pois mostra a sua essência e o seu futuro desenvolvimento. Karl Marx afirma no Manifesto do Partido Comunista em 1848 que a burguesia não só criou as armas de sua Karl Marx não chegou a dar uma definição convincente de classe social, pois sua preocupação era a luta e a revolução que já estaria a caminho e ele não tinha tempo a perder com essas definições. 225 216 própria destruição, como também aqueles que utilizarão essas armas: o proletariado. Esse se constituiu como a classe depois, no seio das modificações sociais introduzidas pela burguesia, e é ele que tem o papel de tirar o poder da burguesia e revolucionar o mundo. Num primeiro momento o proletariado não se reconhece como classe (não defende seus interesses) e se alia à burguesia defendendo os direitos dessa. Entretanto, essa situação começa a mudar, quando o proletariado principia por defender seus interesses econômicos e seu trabalho, por meio de organizações operárias que aumentam sua pressão sobre o poder da burguesia. Quando a exploração burguesa atingisse todos os momentos da vida do proletariado, esse tomaria consciência de seu papel revolucionário. Nessa revolução ao destruir a classe burguesa o proletariado estaria se destruindo como classe, pois ele atingiria quase todos os homens em sociedade. As classes sociais surgiam quando um grupo social se apropriava dos meios de produção e excluíam das decisões os não-proprietários. São elas os atores privilegiados da História e seria a luta de classe que moveria a história em direção ao fim da sociedade capitalista: Ora, Marx proclama: “a história de qualquer sociedade até aos nossos dias não foi mais do que a história da luta das classes”; a história não é constituída por fatos políticos. Toda a „vida política‟ é uma ilusão. Existiram e existem Estados, sem dúvida; mas nenhum foi nem é o que parece e pretende ser: trata-se de outra coisa: de uma cristalização puramente fenomenal do domínio de uma classe. A teoria política tem forçosamente de consistir na crítica dessa aparência e na revelação daquilo que real- 217 mente é: eis a razão por que a “teoria política” não se ocupa do Estado visível, mas sim da “outra coisa” que ele realmente é.226 Quando Karl Marx dizia que a História era a história das lutas de classes227 (cf. O Manifesto do Partido Comunista) ele queria que ela fosse estudada, a partir de um princípio histórico (luta de classes) e de um princípio econômico (alienação econômica). Nesse mote ele deixa claro seu objetivo: suprimir as lutas de classes, por meio da ação violenta (revolução do proletariado). Na sociedade capitalista existiriam várias classes, mas somente duas (burguesia e proletariado) teriam a consciência que as une em uma classe. Foi a burguesia a primeira a se constituir como classe e se tornou revolucionária em relação ao mundo feudal. Ela revolucionou o mundo de modo até então desconhecido tomando o poder político e exercendo-o de maneira diferente do mundo medieval. Sob o poder da burguesia todas as relações sociais ficaram reduzidas a dinheiro. Para ele as classes sociais partilham de experiências comuns, de um modo de vida mais ou menos distintivo e de certos interesses políticos e econômicos. Na sociedade capitalista, por sua própria dinâmica, elas foram TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 192. V. III. 227 “Em que sentido é verdadeiro o enunciado geral de que a história é uma luta de classes? Sinto-me quase tentado a dizer que a história é uma luta de classes: 1o) quando existem classes; 2o) quando têm interesses antagônicos; 3o) quando têm consciência deste antagonismo. Tal daria, no fundo, a humorística igualdade de que a história é luta de classes somente quando é luta de classes.” In CROCE, B.. Materialismo Histórico e Economia Marxista. São Paulo: IPÊ, 1948, p. 93. 226 218 reduzidas a duas classes principais: A burguesia228 e o proletariado229. Por terem interesses antagônicos elas entravam, inevitavelmente, em conflito. Nesse conflito cada classe desenvolve uma consciência que orienta as ações política e econômica coletivas. Em sua relação com o mundo o homem objetivava-se (exteriorizava-se) e ao acontecer isso ele adquiria um novo conteúdo. O ato de objetivar-se seria negativo (o homem nega sua existência isolada) e daria ao homem a consciência da existência dos outros e isso o tornava humano. Para Karl Marx foi por meio da consciência que o homem reconheceu suas relações tanto com os outros homens, como com a natureza. A consciência se relacionaria com o que existe de maneira ativa e dialética. Nesse sentido o homem era ativo e Karl Marx (com seu materialismo dialético) pensou ter evidenciado que o determinismo mecanicista não servia para explicar a vida social do homem. Esse era uma mistura de atividade (liberdade) e passividade. A liberdade do homem era condicionada pela infra-estrutura, apesar de a consciência ser ativa (livre) no desenvolvimento da História, ela não continha esse desenvolvimento. O desenvolvimento da sociedade acabaria por colocar em oposição às forças de produção230 e às relações 228 É aquele grupo, dono dos meios de produção, que se apropria da mais-valia. É o grupo de homens que somente têm a propriedade de sua força de trabalho, a qual tem seu valor dado pelo mercado. 230 Como forças de produção se entende a maneira como a sociedade produz as coisas por meio da ciência, da técnica, da organização coletiva do trabalho. 229 219 de produção231. As relações de produção se tornariam obstáculos ao desenvolvimento das forças de produção dando início a mudanças sociais. Esse desenvolvimento acabaria por colocar em oposição às forças de produção e às relações de produção. As relações de produção se tornariam obstáculos ao desenvolvimento das forças de produção, dando início a mudanças sociais. Na crise própria do capitalismo, a burguesia conservadora associa-se às forças de produção da sociedade moribunda e o proletário progressista associa-se a novas relações de produção, favorecendo o desenvolvimento de novas forças de produção. No capitalismo a burguesia liga-se à propriedade privada dos meios de produção, enquanto que o proletariado une-se a uma organização progressiva da sociedade, que terá como marca um avanço no desenvolvimento das forças de produção. Essa separação entre ricos e pobres aparece na sociedade como uma luta entre esses grupos. A origem da desigualdade entre os homens é para Karl Marx a propriedade privada232 e em conformidade com esse pensamento a sociedade seria formada por indivíduos isolados. Esses átomos sociais estão sobrecarregados pelos bens que eles mesmos produzem. O que distingue esses indivíduos são seus bens materiais e a consecução deles faz com que os indivíduos iniciem um conflito. Relações de propriedade. Assim como para Jean-Jacques Rousseau, entretanto a causa da infelicidade do homem, para Karl Marx, é uma situação do presente e não do passado como admitia aquele autor. 231 232 220 Essa situação do homem é ilusória, negativa. Como negativa, ela é um aspecto importante no movimento dialético da História, pois é a condição sem a qual o homem não poderá passar ao nível posterior. É a negação o motor que tirará o homem da alienação sem ajuda de um ser divino. Tanto os capitalistas, como os proletários se encontram em condição semelhante, quanto à autoalienação. A diferença está no fato de que os capitalistas estão satisfeitos com sua situação de auto-alienação, uma vez que ela é a origem de sua força, ao mesmo tempo, lhe dá uma aparência de vida humana. Os proletários, ao contrário, sentem-se enfraquecidos e sofrem com falta de uma unidade em sua vida. É o próprio movimento político-econômico da propriedade que a levará à decadência, uma vez que quanto maior seja a propriedade privada, maior será o proletariado para produzi-la. E quanto maior é o proletariado, maior será sua miséria. Por sua vez, a miséria acarreta nesses homens, ainda não corrompidos em sua natureza humana, a conscientização de sua miséria física e moral. É possível perceber que o proletário ainda não se corrompeu, visto que ele fica indignado com sua situação humana depravada e não se sente à vontade com a alienação como é o caso do capitalista. Ao negar a aceitar a miséria em que se encontra é o proletariado o motor que fará sua liberdade e como conseqüência imediata libertará sociedade na luta de classes. Nesse ponto, o proletariado estará em situação de quebrar seus grilhões, pois nada mais tem a perder. 221 Ao mudar a base da economia se criaria mudanças em toda a estrutura social fazendo com que a sociedade entrasse em decadência, mas Karl Marx frisa que o fim de uma sociedade somente é possível, quando toda a capacidade das forças de produção expira. Com o surgimento da nova sociedade surgem em seu interior as condições de sua superação futura. Esse antagonismo dentro do capitalismo seria o último da História, pois esse sistema econômico é a última forma de relações de produção que trazem intrínseco o antagonismo de classe. É o capitalismo o capítulo final da pré-história da sociedade humana. Nesse conflito cada classe desenvolve uma consciência que orienta as ações política e econômica coletivas. A consciência da classe proletária tende particularmente a emergir, porque todos os seus membros enfrentam sérias dificuldades e se vêem numa íntima associação diária através do trabalho. Ela emerge mais claramente no proletariado por ser ele um grupo que ainda não se corrompeu. É a pureza do proletariado que salvará o mundo dos capitalistas impuros. A consciência de classe233 não advém automaticamente do simples fato de partilharem os homens de uma posição objetiva semelhante na sociedade. Karl Marx tentou demonstrar que as idéias, a estratégia e a tática da ação política e econômica e o esforço humano representam necessariamente papel importante na determinação da maneira pela qual atua cada classe, embora também acreditasse que a História estava do lado do proletário. G. W. F. Hegel falava em autoconsciência do trabalhor (valor humano). 233 222 Na luta contra o proletariado a burguesia se apropria do Estado, para impor seus interesses como se eles fossem os únicos verdadeiros. Afirma ser o Estado sustentáculo e protetor da propriedade que normalmente divide a sociedade em classes antagônicas e, portanto, se colocaria necessariamente ao lado dos que possuem bens materiais. Por causa da posição de sua classe e em defesa dos interesses de classe, os proprietários modelariam, direta ou indiretamente, as formas de governo e ditariam a política pública. As revoluções seriam frutos do desenvolvimento das forças de produção, mas não quer dizer que o proletariado deva esperar passivamente esse momento chegar. Seria uma luta que necessariamente teria que acontecer tendo como motor o proletariado que nada tem a perder, a não ser seus grilhões. Nas revoluções sociais anteriores a classe dominante ao tentar universalizar seus valores constituíam o Estado: eram revoluções sociais que revelavam um caráter político234. Com a revolução proletária os interesses defendidos seriam universais e não particulares235. As revoluções seriam feitas pela consciência somente quando as condições fossem colocadas pelos modos de produção. Daí, Karl Marx concluir, em Contribuição para a Crítica da Economia Política, que a humanidade enfrenta as tarefas às quais tem condições de realizar: todas as tarefas que a humanidade propõe têm conKarl Marx tem uma visão pessimista quanto à política, visto que para ele o homem enquanto político é um ser separado de suas relações de produção. 235 Cf. Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. 234 223 dições de se realizarem, pois uma sociedade nunca coloca tarefas que não pode cumprir. Ao não aceitar a miséria em que se encontra é o proletariado o motor que fará sua liberdade e como conseqüência imediata libertará a sociedade através da luta de classes. É o próprio movimento político e o fim econômico da propriedade que levará a sociedade à decadência, uma vez que quanto maior for a propriedade privada maior será o proletariado para produzir. E quanto maior for o proletariado maior será sua miséria que por sua vez acarretará nesses homens, ainda não corrompidos em sua natureza humana, a conscientização de sua miséria física e moral. Nesse ponto o proletariado estará em situação de se libertar. O homem ao dominar a Natureza tornava-a humana, bem como a humanizava, quando se reconheceria como partícipe dela. O homem no comunismo, ainda teria necessidades só que não mais particulares e sim universais e se identificariam com a própria sociedade: “Todas as necessidades se dirigem, portanto, à própria sociedade e se resumem numa só necessidade: a necessidade do outro homem – e essa necessidade encontra imediatamente satisfação, visto que cada homem é daí em diante plenamente social e que existe perfeita identidade entre cada homem e a totalidade da espécie humana.”236 No vislumbre de uma sociedade perfeita, diz em A Ideologia Alemã, que na sociedade comunista (paraíso na terra), o homem não será especialista e fará o que bem TOUCHARD, Jean. História das idéias políticas. Portugal: EuropaAmérica, 1991, p. 219. V. III. 236 224 entender, visto que a produção dos bens materiais será supervisionada pela sociedade. Nessa sociedade, a essência do homem não mais se localizará na propriedade privada, sendo assim, ele não terá mais necessidade de se identificar com sua profissão, contudo sua identificação se fará por meio de sua humanidade. Em O Capital, pode-se ver esse desejo de Karl Marx em destruir a especialização do trabalho. De acordo com ele a liberdade somente será possível, quando o homem não tiver que trabalhar para a sua subsistência. A liberdade se apresentará aos homens, quando suas trocas forem feitas racionalmente e não mais pelo domínio das próprias trocas. Nesse momento, elas serão feitas sem esforços, e não mais serão pesos na vida humana. Uma condição fundamental para a liberdade do homem está na diminuição de sua jornada de trabalho, pois, assim, ele terá mais tempo, para desenvolver sua humanidade. Para Karl Marx, a condição de existência da liberdade humana é a sociedade comunista, pois, nessa sociedade, o homem não é tratado como mercadoria. E um meio para alcançá-la é a filosofia marxista que oferece as bases, para a revolução do proletariado. Isso será possível porque o proletariado, como classe, ainda não se corrompeu moralmente, por esse motivo será ele o condutor moral da superação da sociedade capitalista. Quando G. W. F. Hegel analisa o Estado, diz Karl Marx, consegue fazer apenas uma descrição clara da sociedade civil de sua época. Em primeiro lugar chama atenção para as lutas de interesses e para o desenvolvimento da burguesia. Depois afirma ter esses acontecimentos, do mundo econômico real, ingerência direta do 225 Estado que é controlado pelo monarca e seus funcionários sem sofrer pressões da sociedade civil. O Estado era o momento decisivo em que o particular reencontrava o universal e concluía Hegel ser ele a única realidade existente. Karl Marx não aceita esse posicionamento e afirma que seu mestre somente consegue dar harmonia ao seu sistema devido a sua filosofia idealista. Enquanto o discípulo vê nas relações sociais a realidade, o mestre vê como momentos do Espírito Absoluto. Além disso, chamou atenção para o fato de G. W. F. Hegel não estudar a realidade (por exemplo, sociedade civil) e sim estudar o conceito de sociedade civil. Em outras palavras ele não vai ao mundo para compreendê-lo, mas utiliza suas idéias a respeito do mundo, para discutir o mundo real. Daí, o pensamento hegeliano não encontrar contradições e ser perfeitamente lógico, pois ele estuda as idéias e não o mundo real que, apesar de sua filosofia conciliadora, continua cheio de contradições. A fim de resolver essas contradições inerentes à sociedade civil Karl Marx aponta como erro das teorias políticas separarem o mundo dos homens em homem particular e cidadão. Karl Marx não se preocupou em tipificar as formas de governo, como também em sua obra não se encontra teoria específica sobre o Estado. Sua posição, em relação ao Estado, é negativa e nesse aspecto ele vai contra seu mestre Georg. W. F. Hegel (o Estado é o deus terreno, é o lugar onde não há mais contradições inerentes à sociedade). Na visão marxista o Estado não é a dissolução das contradições, mas sua perpetuação. 226 Como o pressuposto de Karl Marx sobre o Estado é negativo ele não analisa os tipos de governos e muito menos os divide em bons e maus. Isto se dá porque para ele qualquer governo é um instrumento de opressão independente de sua forma, pois ele sempre será um meio de opressão cuja origem está ligada diretamente ao modo de produção social de riquezas. O Estado, independente de sua forma de governo, é um meio de oprimir uma classe. Por isso Karl Marx afirma que o despotismo não é uma forma de governar, mas a própria essência do Estado. Os pensadores clássicos viam o objetivo do Estado de maneira ética. Para eles, o Estado é o ponto em que o homem rompe com a barbárie, uma vez que ele é governado pela Razão e não pelas paixões237. Em A Sagrada Família Karl Marx afirma que o Estado tem sua existência na vida social e não o contrário. Com isso o Estado, assim como em Nicolau Maquiavel, torna-se um instrumento de poder. Na contramão dos clássicos apresenta o Estado de maneira técnica, ou seja, ele é apenas um meio utilizado, 237 Pensador Objetivo do Estado Platão Aristóteles Nicolau Maquiavel Thomas Hobbes John Locke Gotfried Leibniz Emanuel Kant G. W. F. Hegel Garantir a justiça Visar ao bem comum Manter o poder Proteger a vida Assegurar a propriedade Permitir a felicidade Garantir a felicidade Possibilitar a moralidade 227 por uma determinada classe, para dominar a outra classe. Ele vê o Estado como: 1. reflexo das relações sociais criadas pela economia; 2. instrumento de domínio sem nenhuma nobreza em seus objetivos. O Estado, como reflexo das relações sociais criadas pela economia, não visa ao bem comum, mas ao bem particular de uma classe que o utiliza, para dominar a outra. Em seu livro Ideologia Alemã apresenta o Estado como reflexo das relações sociais, criadas pela maneira como os homens reproduzem sua sobrevivência material. Essa reprodução não depende dos próprios homens e é ela a base real do Estado. Não é o Estado que cria as relações de produção (como admitiam os economistas clássicos) e sim o contrário: são as relações materiais dos homens que criam o Estado. Enquanto houver a divisão social do trabalho e a existência da propriedade privada assim o será. No prefácio de Pela Crítica da Economia Política ele admite que as relações de produção constituem a base econômica do Estado. Ele quer dizer que o Estado (organismo jurídico-político) se apóia sobre uma base econômica que dá origem à consciência social do homem. O Estado, conclui Karl Marx, não pode ser o que G. W. F. Hegel dizia ser, pois sua existência depende direta e imediatamente do mundo econômico real (sociedade civil). Além disso, no hegelianismo a soberania é essência do Estado e nisso vê Karl Marx outras dificuldades. Em primeiro lugar o príncipe, detentor da soberania, é exterior à sociedade civil e mesmo numa democra228 cia o Estado continuaria alheio à sociedade civil. Não é possível que cada homem assuma a soberania e nesse sentido o Estado não representa toda a sociedade civil, mas apenas o interesse de uma parte dela. Para haver uma democracia seria necessário, portanto, em primeira instância, que a soberania fosse a própria sociedade e não uma representação dela. Em segundo lugar, a soberania não poderia se fixar em um homem concreto (o príncipe ou assembléia), pois enquanto houver contradições na sociedade civil esse Estado seria representante de um dos lados da luta (assim, não cumpriria o objetivo do Estado que é ser a própria sociedade). Conclui, então, Karl Marx que o Estado representa uma classe e, por conseguinte, não consegue a conciliação do mundo econômico real. O mundo político da burguesia fez avanços ao transportar a soberania das mãos do príncipe, para uma assembléia. Nessa devido à presença dos partidos fica reconhecido que na sociedade civil há contradições. Entretanto, o erro da burguesia é querer que os antagonismos sociais sejam resolvidos, não na sociedade, mas dentro do próprio Estado238. G. W. F. Hegel afirmava ser no Estado o ponto em que as contradições do mundo econômico real seriam resolvidas. Karl Marx não concorda com essa posição, visto que não é o Estado que mantém a sociedade civil e sim o contrário é a sociedade civil que condiciona o Estado239. 238 239 Cf. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Cf. A Sagrada família. 229 A pobreza não acabará por meio de decretos do Estado, porquanto ele carrega em si as contradições que deseja eliminar. Em primeiro lugar não se pode esquecer que o Estado é a representação da sociedade civil e não algo fora dela (como queria G. W. F. Hegel). Donde se conclui que toda tentativa de acabar com a fome, por parte do Estado, é sempre parcial. A solução seria a revolução feita por uma classe social, a qual resolveria os problemas sociais existentes (não em seu interesse próprio, mas no interesse da sociedade global) ao tomar o Estado240. Com a obra Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, Karl Marx rompe com o mundo contemplativoabsolutista-cristão hegeliano e com a theoría aristotélica. Após esse afastamento, sua crença em Deus foi substituída pela crença na História. Após sua crítica à religião, ele percebe que o ponto a ser atacado não era o céu, mas a terra. Karl Marx diz que a religião é uma ilusão criada pelo próprio homem. Nesse aspecto, ele ainda segue os passos de Ludwig Feuerbach, que por sua vez recebe essa idéia de Xenófanes de Cólofon, século VI a.C. e dos sofistas gregos do século V a.C.. O que é novo no pensamento de Karl Marx é a tentativa de estudar as relações sociais e a ação política calcadas no naturalismo. Num mundo onde não há mais Deus, compete à História revelar a verdade do mundo. Para ele, era preciso mudar o foco da crítica: 1. do céu para a terra (relações 240 Cf. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. 230 de produção); 2. da religião para o Direito; 3. da teologia para a política. Ele parte do pressuposto feuerbachiano que admitia ser a teologia uma antropologia, a essência da religião está na essência humana e não fora dela. Contudo ele critica Ludwig Feuerbach, por não ter avançado em sua crítica, e não ter resolvido o problema principal: Como explicar o surgimento da religião? A origem da religião deve ser buscada nas condições materiais de vida dos homens em sociedade. A questão é resolvida caso se compreenda que a transposição do mundo humano para o religioso se dá porque os homens encontram-se fraturados interiormente, ou melhor, quando os homens não podem mais viver a sua humanidade, no mundo real, criam um mundo imaginário e projetam nele todos os seus desejos. No momento em que o homem produz sua vida em sociedade, ele estabelece um conjunto de relações políticas que lhe ultrapassam. Esse conjunto representa o estágio em que se encontram as forças que produzem os bens materiais da sociedade humana. A conseqüência imediata, retirada por ele, é a superação do vazio da religião pela mudança das condições materiais da vida, pois o próprio sentimento religioso é fruto da sociedade. A religião, diz ele, é a teoria invertida do mundo, porque ela prega o mundo perfeito, mas o mundo real é imperfeito. A religião não foi inventada por padres enganadores, mas por uma humanidade sofredora que, não suportando o peso da sua vida, projetou um mundo melhor nas nuvens. Para acabar com a religião, é preciso acabar com as causas materiais que tornam a vida vazia. 231 Essa vida vazia tem sua origem na alienação provocada pelo trabalho no modo de produção capitalista. Um Estado laico não elimina a religião, porém mantém o homem dividido em dois, pois em sua relação com o Estado (esse seria o momento da integração do particular no universal) ele entrega apenas uma parte de sua vida: a do cidadão, enquanto que a parte religiosa continua particular. Então, o Estado irreligioso não concilia o homem dividido (cidadão e crente), todavia mantém a divisão existencial do homem. A democracia política burguesa não é laica, pois ela concebe a vida do indivíduo fora de sua individualidade e nesse ponto ela continua ser religiosa, visto que a essência da religião é tentar harmonizar o indivíduo não dentro de seu mundo, mas fora dele. A fim de acabar com a alienação humana (divisão do homem em duas partes distintas: cidadão X crente) é necessário destruir a religião. Entretanto, antes dessa destruição há uma outra que é principal: por fim à alienação humana existente dentro do Estado (cidadão X indivíduo). Por esse motivo ele conclui que não basta destruir a religião, para o homem se tornar livre é preciso destruir o Estado e instituir o comunismo, pois com ele o desenvolvimento livre de cada homem condiciona a liberdade de todos241. Karl Marx não acredita que o socialismo possa ser perpetrado pelo Estado, a não ser que o próprio proletariado tenha assumido todo o Estado. Nesse caso deveria 241 Cf. Manifesto do Partido Comunista. 232 ser uma ditadura e mesmo assim seria apenas mais uma etapa, para se chegar ao comunismo. É por esse motivo que Émile Durkheim o compara aos jacobinos: Karl Marx “prescreve o modelo jacobino, segundo o qual primeiro vem a ditadura revolucionária e apenas depois, num segundo tempo, o reino da virtude.”242 BOBBIO, N.. O Futuro da Democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 31. 242 233 O Manifesto do Partido Comunista Prefácio à edição alemã de 1872 O Manifesto do Partido Comunista deixa claro que sua aplicação prática “dependerá, sempre e em todos os lugares”, das circunstâncias históricas de cada sociedade. Partindo desse pressuposto, os autores afirmam que “não se deve atribuir nenhuma importância particular às medidas revolucionárias propostas no capítulo II”.243 Isso porque, de acordo com eles, o programa proposto em 1847 se encontra envelhecido. Para os autores o Manifesto do Partido Comunista, é um documento histórico que não pode mais ser alterado. Entretanto, é necessário fazer uma nova edição, com um prefácio que preencha o espaço entre 1847 até a presente data (1872). Prefácio à edição alemã de 1883 Esse prefácio fora assinado somente por Friedrich Engels, visto que Karl Marx faleceu no dia 14 de março de 1883. Se no prefácio de 1872, à edição alemã, pensava-se em preencher as lacunas existentes no Manifesto do Partido Comunista, agora, com a morte de um de seus autores, não é mais possível. Marx, Karl e Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 3º ed. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 42. 243 234 O que Friedrich Engels fez nesse prefácio é ressaltar os pontos mais importantes do texto: 1.a idéia fundamental, que perpassa todo o texto, é que a produção econômica e a estrutura social (que depende da economia) formam “a base da história política e intelectual dessa época”; 2.“toda a história tem sido uma história de lutas de classes” exploradas e exploradoras; 3.o proletário somente se libertará da burguesia se, e somente se, houver a destruição da sociedade da exploração que a matem. O autor chama atenção por ser essa uma “idéia fundamental [que pertence] única e exclusivamente a Marx”. Prefácio à edição inglesa de 1888 Friedrich Engels afirma que após, o Processo comunista de Colônia de 1852, o Manifesto do Partido Comunista “parecia ficar, a partir de então, condenado ao esquecimento”. Com o advento da Associação Internacional dos Trabalhadores, Karl Marx elaborou um documento que substituísse o Manifesto e atendesse aos interesses de todos os participantes. Ele acreditava que para as proposições do Manifesto vencessem era preciso confiar “inteiramente no desenvolvimento intelectual da classe operária, que resultaria certamente da ação unitária e da discussão mútua”. Para Friedrich Engels, a história do Manifesto é o reflexo da história do movimento operário. Como havia feito no Prefácio à edição alemã de 1883, Friedrich Engels chama atenção, para a idéia nucle235 ar do Manifesto que pertence exclusivamente a Karl Marx: a história é a história das lutas de classes, e a libertação dos oprimidos acarretará a libertação de toda “a sociedade de exploração”. Prefácio à edição alemã de 1890 Quando, no final do Manifesto do Partido Comunista, os autores foram imperativos, ao dizerem para o proletariado se unir, apenas poucas vozes responderam, mas ao escrever esse prefácio, Friedrich Engels se regozija, pois: No momento em que escrevo estas linhas, o proletariado europeu e americano passa em revista as suas forças, mobilizadas pela primeira vez num único exército, sobe uma única bandeira e por um único objetivo imediato: a fixação legal da jornada normal de oito horas de trabalho, proclamada já em 1866 pelo Congresso Internacional reunido em Genebra, e de novo pelo Congresso Operário de Paris em 1889. O espetáculo do dia de hoje mostrará aos capitalistas e aos proprietários fundiários de todos os países que os proletários de todos os países estão efetivamente unidos. Ah! Estivesse Marx a meu lado para ver isso com seus próprios olhos! 236 Manifesto do Partido Comunista O texto inicia explicando a situação do comunismo na época: perseguido por todas as forças conservadoras da Europa, como se fosse um espectro. Isso porque o termo comunismo é algo negativo que no calor das discussões é empregado, para acusar de infames os oponentes. O Manifesto do Partido Comunista tem como função expor abertamente sobre o comunismo: 1.seu modo de ver; 2.seus objetivos; 3.suas tendências; 4.opor-se à visão de espectro. Partes do Manifesto do Partido Comunista O Manifesto do Partido Comunista está dividido em quatro partes: 1. burgueses e operário; 2. proletários e comunistas; 3. literatura socialista e comunista: a. o socialismo reacionário (a.1. o socialismo feudal; a.2. o socialismo pequeno-burguês; a.3. o socialismo alemão ou “verdadeiro” socialismo; b. o socialismo conservador ou burguês; c. o socialismo e o comunismo crítico-utópicos); 4. posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição. I. Burgueses e operários O primeiro parágrafo trás a idéia central que norteará todo o texto: “A história de toda sociedade até hoje é a história de lutas de classes”. Na História, registra-se 237 uma luta antagônica entre as classes que: ou mudou a sociedade, ou destruiu as classes em luta. Os momentos históricos anteriores mostram a sociedade dividida em classes. A sociedade burguesa tem uma característica diferente em relação às sociedades anteriores: tornou o antagonismo de classe mais simples, pois cada vez mais existiriam somente duas classes em luta: burguesia e proletariado. Os movimentos econômicos dos séculos XV e XVI favoreceram o fortalecimento do capitalismo e por extensão o enfraquecimento do feudalismo. Com o aumento das necessidades, foi preciso criar novas estruturas, para atender a elas e, com isso, foi-se suplantando o modelo feudal de produção. Embora, com o correr da história, cada vez mais inovações foram surgindo e o modelo econômico burguês foi mais uma vez alterado. Com a grande indústria, surgiu o mercado mundial, que, por sua vez, desenvolveu o comércio, a navegação e as comunicações. A conclusão é que a burguesia é fruto de um processo histórico longo. Mas, ao mudar a economia, mudou-se também a política. A burguesia conseguiu, por fim, dominar o Estado representativo moderno: “O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa”.244 Para os autores, a burguesia desempenhou um papel revolucionário. Ela destruiu todas as estruturas anti- 244 Ibidem, p.68. 238 gas, nos lugares onde ela assumiu o poder. Nesses locais, a única relação válida é o “pagamento em dinheiro”. Com a burguesia, a dignidade tornou-se valor de troca, a única liberdade reconhecida é a do comércio. A exploração burguesa não é mascarada, mas direta. Os profissionais tornam-se, sob o domínio da burguesia, meros assalariados. O mesmo ocorreu com a família que foi reduzida a relações econômicas. Com a sociedade capitalista, a atividade humana atingiu um ponto até então não-imaginada. Suas criações superaram às dos grandes impérios. A condição de existência do capitalismo é a constante inovação dos “instrumentos de produção”, sem isso ele desaparece. Como conseqüência imediata transforma as relações de produção e as relações sociais. É essa contínua modificação que faz com que o mundo burguês seja diferente dos outros mundos. As relações tradicionais são derrubadas e as novas desaparecem antes mesmo de se consolidarem: “Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profano, e os homens são finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas”. Como a burguesia necessita sempre de novos mercados, ela deve estar em todas as partes. Com isso a produção e o consumo tornaram-se mundiais. As indústrias nacionais são substituídas por outras que utilizam matérias-primas de diversas partes do globo. As necessidades e a auto-suficiência locais são trocadas por relações que dependem de diferentes partes do mundo. 239 O universo da burguesia invade todas as regiões levando seu modo de vida. Os preços baixos de suas mercadorias subjugam todos, seus inimigos inclusive. Com isso, todas as nações tornam-se burguesas, a fim de não desaparecerem: Em seu domínio de classe apenas cem anos, a burguesia criou forças produtivas mais poderosas e colossais do que todas as gerações passadas em conjunto. Subjugação das forças da natureza, maquinaria, aplicação da química na indústria e na agricultura, navegação a vapor, ferrovias, telégrafo elétrico, arroteamento de continentes inteiros, navegabilidade dos rios, populações inteiras brotadas do solo como por encanto – qual século anterior poderia suspeitar que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?245 O capitalismo substituiu o feudalismo, pois as forças produtivas feudais eram um empecilho para a mudança. Nessa primeira metade do século XIX, a História da Indústria é a história da revolta das forças produtivas contar o domínio burguês. Isso pode ser percebido através das crises comerciais cíclicas que se tornaram cada vez mais constantes. Com essas crises, há uma superprodução e, com elas uma volta à barbárie, pois as forças produtivas tornaram-se escolhos ao desenvolvimento da burguesia. O modo de superar essas crises é destruindo “uma massa de forças produtivas” e conquistando novos mercados: “As armas de que se serviu a burguesia para abater o feudalismo voltam-se agora contra a própria burguesia”. 245 Ibidem, p. 71. 240 Além de criar as armas que a destruirão, a burguesia criou a classe que utilizará essas armas: o proletariado. A burguesia (ou o capital tanto faz), ao se desenvolver, faz com que o proletariado se desenvolva. Essa classe consegue sua sobrevivência, por meio do trabalho, mas, ao consegui-lo, aumenta o capital. O trabalhador torna-se um produto como outro qualquer. A atividade do operário não é mais atrativa com a utilização e com a divisão do trabalho. O trabalhador torna-se uma parte da máquina, mas uma parte simples. O valor de sua mão-de-obra torna-se o mínimo, enquanto o valor da mercadoria e do trabalho “é igual ao seu custo de produção”. Quanto mais monótono é o trabalho, menor é a remuneração gerada por ele. Com a indústria moderna, desapareceram as antigas formas de produzir. Os operários são hierarquizados militarmente no local de trabalho. Eles tornam-se servos da burguesia, do Estado, da máquina, do capataz e, principalmente, “pelo singular burguês fabricante em pessoa”. A luta do proletariado inicia-se com sua própria existência. A luta no princípio é individual contra um burguês específico, mas, com o tempo, torna-se uma luta de classe explorada contra a classe exploradora. Essa é uma classe revolucionária “que traz o futuro nas mãos”. Essa classe recebe membros de todas as outras, inclusive da própria burguesia: como por exemplo, “uma parte dos ideólogos burgueses que conseguiram alcançar uma compreensão teórica do movimento histórico em conjunto”. 241 O lupemproletariado246 , às vezes, são lançados à luta ao lado do proletariado, são mais inclinados “a se deixar comprar por tramas reacionárias”. A vitória final do proletário não será como as vitórias das outras classes: forçando todos a se submeterem a seus interesses. O proletário não se apossará das forças produtivas existentes, mas as destruirão, pois ele não tem propriedades para proteger. Seu interesse é o da maioria e para alcançá-lo deverá destruir toda superestrutura existente: “o proletariado funda sua dominação com a derrubada violenta da burguesia”. A condição essencial, para a existência da burguesia, é a acumulação de riqueza, “a formação e o aumento do capital; a condição do capital é ao trabalho assalariado”. Esse tem como base a competição entre os trabalhadores, mas com a indústria burguesa os operários abandonam o isolamento e unem-se, por conseqüência, eles formam uma classe revolucionária: “A burguesia produz, acima de tudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”. Como dizem os autores: “essa putrefação passiva dos estratos mais baixos da velha sociedade.” Trabalhadores ocasionais, vagabundos, etc. 246 242 II. Proletários e comunistas A relação entre os operários e os comunistas se encontra no fato de que os comunistas não formam um partido particular, seus interesses são o interesse do proletariado e não são sectários. O que distingue os comunistas dos outros partidos são dois aspectos: 1.não defendem os interesses nacionais, mas do proletariado; 2.seus interesses “representam sempre os interesses do movimento em seu conjunto”. Quanto à sua atuação prática, os comunistas impulsionam a revolução para frente. Com relação à teoria, eles compreendem mais profundamente o movimento operário. Seus objetivos são os mesmos dos outros partidos dos proletários: 1.transformar o proletário em classe; 2.destruir a burguesa; 3.conseguir o poder político para o proletariado. As teorias dos comunistas não provêm do pensamento de um “reformador do mundo”. Elas têm origem na luta de classe existente. Sua principal característica é a destruição da propriedade burguesa. Esse tipo de propriedade é a mais perfeita expressão da exploração. O trabalho assalariado não cria propriedade, mas capital. O trabalho assalariado e o capital são antagônicos. O capitalista é uma posição pessoal e social. O capital por ser um produto coletivo só é posto em movimen243 to pela atividade coletiva, por isso o capital não é individual, mas social: “Assim, se o capital é transformado em propriedade comum pertence a todos os membros da sociedade, não é uma propriedade pessoal que se transforma em propriedade social. Transforma-se apenas o caráter social da propriedade. Ela perde seu caráter de classe”. 247 Quanto ao salário, ele é o mínimo que o operário recebe, para sua sobrevivência material. Enquanto que, no capitalismo, o trabalho vivo aumenta o trabalho acumulado, no comunismo ele promove a vida do operário. Suprimir o capital é suprimir a identidade da burguesia. Sob o domínio do capital, a única liberdade existente é a do “livre comércio, a livre compra e venda”. Os burgueses acusam os comunistas de querem abolir a propriedade privada e de fato os comunistas querem acabar com ela. Acusam os comunistas de querem acabar com o indivíduo, mas é isso mesmo o que eles querem: destruir o proprietário burguês: “O comunismo não priva ninguém de poder se apropriar dos produtos socais; o que faz é eliminar o poder de subjugar o trabalho alheio por meio dessa apropriação”.248 Outra acusação, feita pela burguesia aos comunistas, refere-se ao fato de que se for abolida a propriedade privada a preguiça tomará conta da sociedade. Os autores do Manifesto do Partido Comunista rebatem essa crítica com o seguinte argumento: isso não pode ser verdade, pois, se o fosse, a burguesia teria desaparecido, porquanto ela não trabalha. 247 248 Marx, Karl e Engels, Friedrich, op. cit., p. 81. Ibidem, p. 81. 244 Essas acusações ao modo de produção comunista, impingidas pelos burgueses, também são dirigidas à cultura. Para eles, se sua cultura burguesa (o adestramento do proletariado) desaparecer será o desaparecimento da cultura em geral. Mas eles não percebem que suas leis, liberdade e cultura são somente relações históricas e como tais serão superadas. A burguesia acusa os comunistas de querem abolir a família. A base da família burguesa é o lucro privado, por esse motivo todo o resto da sociedade está fora desse modelo de família. Os comunistas são acusados de querem “abolir a exploração das crianças por seus próprios pais”. A essa acusação os autores respondem: “Confessamos esse crime”. É dirigida aos comunistas a acusação de querem “introduzir a comunidade das mulheres”. Esse equívoco se dá porque eles ouvem dizer “que os instrumentos de produção devem ser explorados em comum”. Como eles tratam suas mulheres como instrumentos de produção acreditam que a afirmativa, também é válida para as mulheres. O que os comunistas querem é que não se tratem as mulheres como instrumentos de produção, é que se elimine a prostituição oficial ou não introduza pelo casamento burguês. Por fim, os comunistas são acusados de “querem suprimir a pátria, a nacionalidade”. Ora, os operários não têm pátria, logo não se pode tomar o que eles não têm. Com o desenvolvimento do capitalismo, os antagonismos nacionais tendem a desaparecer. Com o comunismo, desaparecerão ainda mais, pois essa é uma condi245 ção para a emancipação do proletariado. Ao se abolir a exploração do indivíduo pelo indivíduo, acabar-se-á com a exploração de uma nação pela outra. Não se faz necessário uma inteligência profunda, para perceber que com a mudança das condições de vida dos indivíduos, “também se modificam suas representações, suas concepções e seus conceitos, numa palavra, sua consciência”. A história das idéias mostra que a produção das idéias transforma-se com a produção material. É por isso, concluem os autores, que as idéias que dominam uma época “são as idéias da classe dominante”. A consciência social de todas as sociedades se moveu “dentro de certas formas comuns”. Essas serão abolidas, quando se suprir a propriedade privada. Após analisarem as acusações da burguesia ao comunismo, e rebaterem a cada uma delas, os autores dirigem sua atenção para a revolução operária. O primeiro passo para ela é transformar o “proletariado e classe dominante, a conquista da democracia”. No inicio, essa conquista terá medidas despóticas, quanto ao direito de propriedade privada. Essas medidas variarão de país para país, mas nos países desenvolvidos terão as seguintes características: “Expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra nas despesas do Estado; Imposto fortemente progressivo; Abolição do direito de herança; Confisco da propriedade de todos os imigrantes e rebeldes; Centralização do crédito nas mãos do Estado, por meio de um banco nacional com capital do Estado e monopólio exclusivo; Centralização dos meios de transporte nas mãos do Estado; Multiplicação das fábricas nacionais e dos instrumentos de produção, cultivo e melhora das terras segundo um pla246 no comum; Trabalho obrigatório e igual para todos; constituição de exércitos industriais, especialmente para a agricultura; Unificação dos serviços agrícola e industrial; medidas tendentes a eliminar gradualmente as diferenças entre campo e cidade. Educação pública e gratuita de todas as crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas fábricas em sua forma atual. Combinação da educação com a produção material, etc". 249 Quando não houver mais diferenças de classe, e a produção estiver nas mãos de indivíduos associados, o Estado “perderá seu caráter político”. O poder político nada mais é do que o poder organizado por uma classe par explorar outra. Com o proletariado, não haverá mais antagonismos de classe, o que se terá é: “uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”. III. Literatura socialista e comunista O socialismo reacionário 1. O socialismo feudal Esse socialismo teve sua origem nas críticas da aristocracia à burguesia em ascensão. Seus posicionamentos, às vezes, eram amargos, às vezes, mordazes e espirituosos, mas, no fundo, demonstrava “sua absoluta incapacidade de compreender a marcha da história moderna”. 249 Ibidem, p. 87. 247 O proletariado não seguiu a aristocracia, em sua luta contar a burguesia, porque reconhecia nela os antigos exploradores. A crítica feita à burguesia é que ela colocará fim a “antiga organização social”. Esse é um aspecto que torna esse socialismo reacionário. Esse socialismo não aceita a burguesia ter criado o proletariado revolucionário. Na prática, política ele se coloca contra a classe operária: “Assim como o padre sempre caminhou de mãos dadas com o senhor feudal, o socialismo clerical caminha de mãos dadas com o socialismo feudal”.250 2.O socialismo pequeno-burguês Sua origem está relacionada diretamente com a crítica pequeno burguês e do pequeno camponês à burguesia. Esse socialismo conseguiu analisar, com profundidade, as “modernas relações de produção”. Ele conseguiu perceber os efeitos negativos do capitalismo. Quanto ao seu aspecto positivo, ele quer a volta das antigas relações de produção (“Corporações na manufatura e economia parcial no campo”), por esse motivo ele “é ao mesmo tempo reacionário e utópico”. 250 Ibidem, p. 90. 248 3. O socialismo alemão ou o “verdadeiro” soci- alismo Esse socialismo nasceu na França, sob pressão da burguesia dominante. Os alemães abraçaram as idéias francesas, mas esqueceram que as condições sociais em que eles se encontravam não eram francesas, por isso esse socialismo deixou de ser prático e tornou-se apenas literatura. Os alemães apropriaram-se das idéias francesas, por meio da perspectiva alemã. Os literatos alemães: “Escreveram seus absurdos filosóficos por detrás do original francês”. O resultado é que esse socialismo tornou-se vazio, mas seus autores o denominaram de: “„filosofia da ação‟, „verdadeiro socialismo‟, „ciência alemã do socialismo‟, „fundamentação filosófica do socialismo‟, etc.”. Com os alemães, o socialismo francês deixou de ser um instrumento de luta de classe e tornou-se a defesa da verdade, não do proletariado, mas do homem em geral. Todas as elucubrações desse socialismo eram apenas “exercícios escolares”. O governo alemão considerou bem vinda a presença desses socialistas, uma vez que serviram de “espantalho contra a burguesia que se erguia ameaçadora”. Esse socialismo representava os interesses da pequena burguesia. Sendo assim, proclamou ser o pequeno burguês o homem normal. Atacou o comunismo e proclamou “sua imparcial superioridade diante de todas as lutas de classes”. 249 4. O socialismo conservador ou burguês A fim de garantir a existência da burguesia, um grupo pertencente a essa classe propôs “remediar os males sociais”. Exemplo dessa linha de ação é Proudhon e sua Filosofia da Miséria. Esses socialistas burgueses querem os benefícios da sociedade burguesa sem seus perigos. A burguesia representa seu mundo como o melhor dos mundos. Uma outra linha desse socialismo queria dissuadir os operários da revolução, afirmando que, para beneficiar o proletariado, seria apenas necessário mudar as condições materiais de existência: “Seu socialismo consiste precisamente na afirmação de que os burgueses são burgueses – no interesse da classe operária”. 5. O socialismo e o comunismo crítico-utópicos “Os sistemas socialistas e comunistas propriamente ditos, os sistemas de Saint-Simon, Fourier, Owen etc., surgem no primeiro e pouco desenvolvido período da luta entre o proletariado e burguesia, acima descrito (ver Burgueses e Proletários)”.251 Esses autores reconhecem a luta de classes e os elementos existentes na burguesia que irá levá-la à der- 251 Ibidem, p. 96. 250 rocada. O que eles não reconhecem é o papel do proletariado nessa luta e dissolução da burguesia. Como eles não conseguiam emancipar o proletariado, procuraram leis sociais a fim de encontrar tais condições. Como não fazem uso da atividade social, utilizam “sua própria atividade pessoal inventiva”. O futuro da sociedade encontra-se em suas propagandas e em seus planos para a sociedade. Eles defendem os interesses do proletariado “como classe que mais sofre” é esse o ponto em que o proletariado existe para eles: “como classe que mais sofre”. Eles não têm uma visão clara da luta de classes, por isso propõe uma melhoria de condições, para todos os membros da sociedade. O caminho para isso é as classes aceitarem seu “plano possível da melhor sociedade possível”. A conseqüência imediata dessa posição é a não aceitação da revolução. Eles querem mudar a sociedade por meios pacíficos e pequenos experimentos. A importância de seus escritos está no fato de conterem elementos críticos que, por extensão, fornecem material de luta aos operários, mas suas proposições sobre a sociedade futura caem no mundo da utopia. 251 IV. Posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição Os comunistas lutam para conseguir realizar “os interesses e objetivos imediatos da classe operária”. Eles serão o futuro do movimento revolucionário contra a burguesia. O partido comunista se alia a diversos e antagônicos partidos por toda a Europa, mas, em nenhum momento, deixa de criticá-los e de demonstrar aos operários o abismo que os separam da burguesia. Ele põe em destaque a questão da propriedade, como também se esmera em unir os partidos democráticos dos vários países. Os comunistas declaram em alto e bom som: “que seus objetivos só podem ser alcançados com a derrubada violenta de toda ordem social até aqui existente. Que as classes dominantes tremam diante de uma revolução comunista. Os proletários nada têm a perder nela a não ser suas cadeias. Têm um mundo a ganhar. “Proletários de todos os países, uni-vos!” 252 252 Ibidem, p. 99. 252 Capítulo XIII O pensamento sociológico de Max Weber No século XX Max Weber teve grande influência no pensamento norte-americano, pois se procurava criar uma ciência social que tivesse valor universal. Biobibliografia 1864: nasce em Erfurt, Turíngia; 1882: estuda Direito, Economia, Filosofia, Teologia e História em Heidelberg; 1889: torna docente na Universidade de Berlim; 1891: publica A História Agrária Romana e sua Significação para o Direito Público e privado; 1894: consegue o título de catedrático em Economia na Universidade de Friburgo; 1896: vai para a Universidade de Heidelberg assumir a cátedra de Economia; 1897: entra em depressão; 1903: cria o Arquivo de Pesquisas Sociais junto com Werner Sombart; 1904: lança A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo; 253 1905: funda a Sociedade Alemã de Sociologia; 1916-17: publica trabalhos sobre religião; 1918: retorna à atividade docente na Universidade de Viena; 1919: assume a cátedra de Economia na Universidade de Munique; 1920: morre em Munique; 1921: publica-se Economia e Sociedade; 1923: lança-se História Geral da Economia. Para iniciar devemos não olvidar um equívoco que ainda permanece no meio acadêmico: apresentar Max Weber como uma oposição a Karl Marx. É errônea a afirmação de que Max Weber inverteu por completo o materialismo histórico de Karl Marx (a economia explica da origem da religião) ao defender que uma das causas do capitalismo deve ser a religião protestante. Ele tinha como objetivo mostrar que as duas interpretações são possíveis, ao usar a religião para explicar o capitalismo. Todavia, essas interpretações ao serem usadas como conclusões, e não como meios, prejudicam a verdade histórica. De acordo com pensamento weberiano, as crenças não seriam conseqüências da "realidade sócioeconômica", ou ainda, essa não seria o ponto de partida para o entendimento daquela. Max Weber é um pensador que tem uma vasta obra. Em termos didáticos é possível dividi-la em quatro grupos: 1. escritos metodológicos, críticos e filosóficos que abordam o objetivo e os métodos da Sociologia, História 254 e Ciências Humanas; 2. trabalhos históricos; 3. obras de sociologia da religião; 4. tratado de sociologia geral. Max Weber vê a Sociologia como uma ciência que estuda a conduta humana, a partir do momento em que ela é social. Ele admite ser a Sociologia a ciência que tem como objeto a compreensão da ação social, por esse motivo, sua sociologia chama-se compreensiva. Para ele é preciso compreender o sentido que o autor dá a sua própria ação, a partir dessa compreensibilidade, classificam-se as condutas procurando criar uma estrutura que explique as ações dos indivíduos em sociedade: Segundo Max Weber, a sociologia é a ciência da ação social, que ela quer compreender interpretando, e cujo desenvolvimento quer explicar, socialmente. Os três termos fundamentais são, aqui, compreender (verstehen), interpretar (deuten) e explicar (erklären), respectivamente, apreender a significação, organizar o sentido subjetivo em conceitos e evidenciar as regularidades das condutas.253 Seu pensamento tem como motivo a ordem existencial, para ele a Sociologia, a Religião e a Política referemse à Sociedade, à metafísica e ao indivíduo. Max Weber admite existir dois tipos de sociedade: 1. comunidade; 2. sociedade. A comunidade (gemeinschaft) se caracteriza pela integração dos indivíduos ao todo. Eles seguem à tradição e têm a mesma religião. É caracterizada pelo status, por ser pequena, unida e pré-industrial. Suas virtudes são as da simples aldeia: pode ser representada pelo feudalismo orgânico. 253 ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico, p. 505. 255 Na sociedade (gesellschaft) a ação dos indivíduos é feita de acordo com seus interesses previamente racionalizados. O objetivo é obter o maior número possível de vantagens. A gesellschaft é uma associação baseada em contratos, é grande, impessoal, industrial e burocratizada. Traz consigo os benefícios da cidade grande: se identifica com o capitalismo atomista. Ele não admite (como queria Émile Durkheim) ser possível dizer ao indivíduo como se comportar ou como se organizar a sociedade (como defendia o Karl Marx). A Sociologia e História apresentam com parcialidade o mundo. Elas não podem prever o futuro, pois ele não é predeterminado: Uma filosofia do tipo marxista é falsa porque é incompatível com a natureza da ciência e da existência humana. Toda ciência histórica e social representa um ponto de vista parcial; e é incapaz de prever o futuro, pois este não é predeterminado. Na medida em que alguns acontecimentos futuros são predeterminados, o homem terá sempre a liberdade, de recusar a este determinismo parcial, seja de se adaptar a ele de diferentes maneiras.254 De acordo com ele toda e qualquer filosofia que tenha as características básicas do marxismo é falsa, porque, por um lado, não é possível fazer um estudo completo sobre o indivíduo, por outro lado não é da natureza da ciência dizer qual será o futuro da humanidade. Para Max Weber a sociedade não é harmoniosa, ela é fruto tanto de lutas, como de acordos. A luta recebe 254 ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico, p. 473. 256 dois nomes que dependem da situação em que está circunscrita: 1. concorrência: quando não há emprego de violência física; 2. seleção: quando o objetivo é a sobrevivência. O desenvolvimento do pensamento de Max Weber está ligado diretamente ao mundo espiritual alemão: 1. de Emanuel Kant (1724. 1804) retoma a idéia de indivíduo livre na ação; 2. de Franz Brentano (1838-1917), e outros, utiliza o conceito de História; 3. de Wilhelm Windelband (1848-1915) e Heirinch Rickert (1863. 1936) recebeu a noção de divisão das ciências; 4. de Wilhelm Dilthey (1833. 1911) e Karl Jaspers (1883. 1969) teve como herança a subjetividade na compreensão do mundo; 5. de Friedrich Nietzsche (1844. 1900), que muito o influenciou, aceita o individualismo aristocrático; 6. de Georg Simmel (1858-1918) toma o conceito de formas sociais que depois ele transformou no conceito de tipo ideal; 7. de Werner Sombart (1863. 1941) apossa-se da preocupação com as origens do capitalismo. É necessário destacar que os movimentos políticos alemães (liberalismo, socialismo e o conservadorismo), também figuram como influências marcantes em seu pensamento. 257 Nessa época, o pensamento alemão ainda sofria as influências do humanismo e do historicismo, apesar de o socialismo surgir no interior de suas discussões. A preocupação de Max Weber era enciclopédica, pois lhe interessava tanto o direito, quanto a arte, a política, a religião, a economia. É característico, no seu pensamento, uma hierarquização desses assuntos. Em ordem de importância pode-se expor sua preocupação na seguinte gradação: 1. poder; 2. religião; 3. capitalismo; 4. metodologia. É a política, ou as formas de dominação (herrschaft), um dos temas de grande importância no pensamento weberiano. Ele tenta pensar a política como mais um aspecto dentro "de um sistema social global.” Para ele: “Todas as estruturas políticas usam a força, mas diferem no modo e na extensão com que empregam ou ameaçam empregar contra outras organizações políticas. Essas diferenças têm um papel específico na determinação da forma e do destino das comunidades políticas.”255 Max Weber se preocupou com a política devido à influência de seu pai, que era deputado do Partido Nacional Liberal. É também influenciado pela situação política da Alemanha e da Europa ocidental. O poder político causou nele um verdadeiro encanto: “Em geral, entendemos por „poder‟ a possibilidade de que um homem, ou um grupo de homens, realize sua von- WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 187. 255 258 tade própria numa ação comunitária até mesmo contra a resistência de outros que participam.”256 O poder enquanto dominação foi o motor das suas pesquisas sociológicas. Para ele o poder é força e se materializa na lei257, no Estado258 ou num líder259. A ação política relaciona-se com a dominação do indivíduo sobre os outros. A dominação diz respeito à probabilidade de uma ordem ser obedecida, portanto não é um conceito pejorativo. Ela pode ser de três tipos, de acordo com o motivo da obediência: 1. racional (baseada na lei e nos títulos daquele que domina); 2. tradicional (fundamentada na crença sagrada da tradição e na legitimidade do executor da ação); 3. carismática (firmada na extraordinariedade do ator). No mundo quotidiano, essas dominações não se fazem presentes de maneira pura, mas elas se misturam umas com as outras. A sua noção de poder não se relaciona nem com a ideologia260, nem com o aspecto jurídico261. Para ele, o WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 211. 257 “A lei existe quando há uma probabilidade de que a ordem mantida por um quadro específico de homens que usarão a força física ou psíquica com a intenção de obter conformidade com a ordem, ou de impor sanções pela sua violação”. In WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 211. 258 A hipótese de Max Weber advoga ser o Estado uma instituição política que monopoliza a força, a fim de fazer cumprir a lei. 259 Geralmente se dividem as teorias sobre o poder em três tipos: 1. teoria econômica (o poder é possuído ou alienado) que tem como defensores o liberalismo e o marxismo; 2. teoria não-econômica do poder cujos representantes são Georg. W. F. Hegel; Sigmund Freud e Wilhelm Reich que admitem ser o poder relações de forças e 3. teoria que defende ser o poder uma guerra e tem como defensor Friedrich Nietzsche; Michel Foucault. 256 259 poder é a força utilizada para que o homem imponha sua vontade sobre os outros. Somente o Estado tem o monopólio da força legítima. Segundo Max Weber o poder está cada vez mais concentrado nas mãos da minoria, bem como há uma crescente separação entre os funcionários do Estado (burocratas) e o poder. O mesmo ocorre entre os cientistas e os meios científicos. A política resume-se à chefia ou às classes dirigentes. Esse seu pensamento mostra uma característica elitista. Elitista, também, a importância dada à aristocracia dentro da sociedade. Em termos políticos, Max Weber pode ser considerado como um conservador anti-utópico. Para ser mais preciso, ele é um democrata autoritário, pois admite a democracia por se opor ao autoritarismo do Kaiser: A aspiração política máxima de Max Weber pode resumir-se na sua frase: "uma liberdade tão grande quanto possível por uma dominação tão grande quanto possível.” Este personalismo leva-o, na análise política, a insistir nas qualidades carismáticas pessoais do dirigente político e a desentender-se de qualquer forma de democracia direta ou coletiva.262 Para ele o aspecto sociológico de um questionamento aponta para os aspectos benéficos de uma ação política. Ao passo que o questionamento ideológico se preocupa com o antagonismo existente entre as filosofias políticas. Como quer Karl Marx. Como advoga Émile Durkheim. 262 Marsal, Juan F. Conhecer Max Weber; p. 68. 260 261 260 Max Weber ao discutir o conceito classe atinge sua meta, o que não pode ser visto em Karl Marx. Enquanto esse vê apenas uma estratificação social, aquele aponta a existência de três. Tanto ele quanto Karl Marx entendem a “classe econômica, não é a única dimensão da estratificação social.”263 Na sociologia weberiana a concepção econômica de classe é importante (tal como em Karl Marx), contudo ele insiste em que o poder e o status não podem ser reduzidos à economia. Dessa forma ao se utilizar o conceito de classe o sociólogo tem como preocupação a produção e a aquisição, enquanto que o termo status nos leva ao aspecto do modo como os indivíduos participam do consumo de bens. Continua Max Weber seu raciocínio de distinção entre classe e status afirmando que o primeiro é objetivo e subjetivo. O segundo tema abordado por Max Weber é a religião. Ele investigou as religiões hindu, chinesa e judaica. Esse tema tem uma influência direta da religiosidade de sua mãe, Helene Fallenstein. Sua análise sobre a moral da convicção desemboca em seus estudos de sociologia da religião. O cristão convicto não reage com violência à violência, por isso sua ação é sublime, mas aquele que não reage a essa violência por medo é covarde. O problema que anima a sociologia da religião weberiana é: como a religião influencia a economia nas diRUNCIMAN, W. G.. Ciência Social e Teoria Política. RJ: Zahar, 1966, p. 136. 263 261 versas sociedades? O modo como indivíduo interpreta a religião faz parte da maneira como ele vê sua existência. Para se entender o comportamento econômico do indivíduo é preciso compreender como ele se relaciona com os dogmas religiosos. É a religião o motor que impulsiona o indivíduo num mundo da economia, por conseguinte, a religião é vista como uma das causas das mudanças econômicas das sociedades. Em o Espírito do Capitalismo e a Ética Protestante, ele afirma que existem vários tipos de capitalismo e não um só, ou melhor, não há um capitalismo universal, mas capitalismos com características próprias. O capitalismo é o sistema econômico em que existem empresas cujo objetivo é obter lucro. Sua organização, na busca do lucro, se baseia na racionalização do trabalho e da produção. A união da racionalidade com lucratividade é que caracteriza o capitalismo ocidental. Nas sociedades anteriores, encontravam-se indivíduos que desejavam dinheiro, mas o que caracteriza o Ocidente, na busca pelas riquezas, não é a pilhagem, mas a disciplina e a ciência. O puritanismo é um ponto importante em sua análise religiosa, pois a ética protestante concilia o êxito econômico com o êxito no mundo. É por esse motivo que o protestantismo é uma das causas do desenvolvimento do capitalismo. Pode-se citar como exemplo a noção lockiana de propriedade: Locke está impregnado da idéia puritana de que o homem ganha o céu tendo êxito na terra. Por isso o rico que se enriqueceu por meios legais e corretos suspeita de que vai se salvar. No fundo, mais do que premiar o trabalho, premia-se o mérito. É um prêmio quase 262 religioso. Você foi honesto, trabalhador, ativo, diligente; tem um prêmio nesta terra que antecipa e não anula o prêmio celestial: a propriedade. Os ricos de Locke passam pelo crivo evangélico.264 Max Weber não admitiu ser a ética protestante a causa por excelência do capitalismo, para ele, sempre em consonância com seu pluricausalismo, ao se estudar o capitalismo deve-se levar em conta a ética protestante, porque ela é um dos componentes importantes para se entendê-lo. Ele não admite ser a religião uma superestrutura econômica ou social265. A religião é uma força poderosa que move a História, mas não é a causa única da História. Por sua ótica, a teoria da predestinação divina da religião protestante conseguiu fazer a união entre o aspecto místico e o êxito econômico. Isso foi possível, visto que a riqueza era aceita por ela com uma marca da predestinação. O capitalismo, tanto em Karl Marx como em Max Weber, apresenta os seguintes os traços: 1. busca do lucro; 2. liberdade dos trabalhadores; 3. aumento contínuo do progresso técnico. Para Max Weber, diferentemente de Karl Marx, a marca fundamental do capitalismo é a racionalização burocrática. GRONDONA, Mariano. Os Pensadores da Liberdade. São Paulo: Mandarim, 2000, p. 22. 265 Para ele não existe uma causa única que explique a sociedade, mas existem diversas causas que se interagem e servem como explicação. Assim, ele se opõe ao ponto de vista defendido por Karl Marx que via a religião como uma superestrutura dependente da infra-estrutura econômica. 264 263 Ele diz que a união do protestantismo com o capitalismo se deve à atitude dessa religião para com êxito econômico. Existe entre eles uma afinidade em relação à visão de mundo. A ética protestante calvinista pode ser expressa em cinco pontos: 1. existência de Deus; 2. predestinação; 3. criação do mundo; 4. glorificação de Deus por meio do trabalho; 5. salvação pela graça divina. Essas características existem isoladamente em outras religiões, mas juntas são típicas do protestantismo. Como conseqüência dessa união tem-se: 1. o abandono do misticismo; 2. a falta de comunicação entre o indivíduo e Deus; 3. a inexistência de ritos; 4. o favorecimento da ciência; 5. a oposição à idolatria. É por meio do trabalho que o homem glorifica a Deus: Convergem assim duas correntes: a atitude do homem angustiado por sua salvação que produz, não gasta e investe, lançando as bases da acumulação necessária para o capitalismo, e, por outro lado, sua inserção numa seita na qual todos controlam uns aos outros para garantir uma dura e leal competição. Dessa forma, produz-se um fato único na História: o desenvolvimento econômico começa com a força de uma religião. As incomparáveis energias antes enviadas para o transcendente empurram, pela primeira vez, a locomotiva do progresso.266 Como o calvinista não sabe se será salvo ou não sua vida torna-se angustiada, a fim de sanar essa lacuna existencial, ele procura os sinais de sua salvação. Isso é feito por necessidade psicológica e não lógica. Portanto, o êxito econômico passa a ser aceito como sinal da salGRONDONA, Mariano. Pensadores da Liberdade. São Paulo: Mandarim, 2000, pp. 120-1. 266 264 vação. Essa passa a ser individual, o que favorece obviamente o individualismo. O dever para com outro deixa de ser uma preocupação e o trabalho racional vira "um mandamento divino.” Em alguns aspectos, o calvinismo irmana-se com o capitalismo. Por exemplo: o mundo da matéria deve ser deixado em segundo plano, por isso o ascetismo deve ser colocado em prática. O calvinista trabalha muito para ver nisso um sinal de sua escolha, mas ele não gasta o que lucra, pois defende o ascetismo: Salvo-me sendo útil aos demais numa vida plenamente terrena. A vocação terrena, por mudar o mundo, resultou, assim, bendita pelo impulso religioso. A energia que antes produzia uma catedral ou um místico dirigiu-se aos negócios. O protestantismo converteu a ação na sociedade em algo tão necessário que a prosperidade tornou-se uma garantia de salvação. Era preciso triunfar na vida, porque essa era a única segurança da salvação. Assim se gera no mundano uma energia religiosa, uma atitude ascética do cotidiano. O homem trabalhador e sério que surge daí é o fundador do capitalismo. A tabela das regras metodistas, por exemplo, incluía: "Não regatear; não sonegar impostos; não subir os juros acima dos costumes e das leis do país; não entesourar; investir; não pedir emprestado sem segurança de devolver; não viver luxuosamente.” Vemos aqui uma ascese do desenvolvimento econômico em ascensão.267 Ora, no capitalismo o lucro não deve ser consumido, mas reinvestido na produção. Daí, ser a lógica do calvinista um forte apoio à lógica capitalista. GRONDONA, Mariano. Pensadores da Liberdade. São Paulo: Mandarim, 2000, pp. 119-120. 267 265 Na história da religião, o ponto de origem é colocado no sagrado e o ponto de chegada no "desencantamento do mundo.” Isso porque o sagrado não faz mais parte da vida dos indivíduos no capitalismo. Num mundo em que o desencanto (ausência do sagrado) é a regra, a religião não pode mais existir exteriormente, mas na consciência de cada indivíduo, ou ainda na crença na existência de um deus todo poderoso que está além desse mundo. O terceiro tema de relevância na sociologia weberiana é o capitalismo. Esse tema advém do momento histórico em que vivia, pois a Alemanha está em franco desenvolvimento industrial. Ele estava preocupado com o capitalismo alemão, que se encontrava em atraso, se comparado com outras nações européias. A fim de estudá-lo ele pesquisou sua origem no seio das grandes religiões. Ao analisar o capitalismo, como foi entendido por Max Weber, é preciso relacioná-lo com a visão de Karl Marx. A primeira diferença, que é necessário destacar, é que o pensamento, de ambos, parte dos mesmos meios, mas chega a fins diferentes. Na sociologia marxista o capitalismo é algo indesejável e irracional, ao passo que, na perspectiva weberiana, é o capitalismo o ponto mais alto da racionalização do mundo. Para Max Weber é o empresário um revolucionário, pois ele destrói as características patrimonialistas das sociedades. Ele espera que a racionalidade do capitalismo destrua o tradicionalismo alemão. 266 Sua preocupação metodológica é fruto da luta contra o positivismo em que se encontrava a cultura alemã no século XIX. A metodologia deve partir do indivíduo e de suas motivações. Ele não aceita uma causa última na explicação dos fenômenos sociais, visto que existem inúmeras causas e nenhuma mantém primazia sobre as outras, na explicação do mundo. É preciso, diz Max Weber, ter em conta o método do "ponto de vista autor.” Com essa característica ele quer que o indivíduo seja analisado e compreendido, a partir da motivação de sua ação. Essa foi uma maneira de romper com o pensamento idealista alemão que despersonalizava o indivíduo. O segundo aspecto da metodologia weberiana diz respeito à neutralidade valorativa do cientista: é possível que a ciência julgue criticamente seus fins e seus ideais. O cientista, quando toma um determinado ponto de vista, pode explicitá-lo ou não em suas pesquisas, mas isso não diz sobre o conhecimento empírico do objeto, e sim sobre sua vontade de consciência. Outra característica de sua metodologia influenciou o funcionalismo: os tipos ideais. O tipo ideal é uma construção feita a partir da acentuação de um determinado aspecto da experiência de sua união a fenômenos isolados. Esses devem ser ordenados a partir de pontos de vista previamente selecionados. O objetivo da tipologia ideal é a criação de um sistema de pensamento único, organizado, homogêneo. O quarto ponto a ser destacado é a noção de pluricausalismo. De acordo com ele, os sistemas de valores, 267 são visões cósmicas e não podem ser as únicas formas possíveis de explicar o mundo. Ele quer evitar as interpretações dos fenômenos que os reduzem a uma única causa. O mundo moderno tem como marca a racionalização, ou seja, as ações são racionalmente dirigidas a um fim. Daí surge o seguinte problema: como são possíveis outros tipos de ação nessa sociedade racionalizada? Sua preocupação é delimitar os campos de ação da ciência e da política: como ser um professor e político sem que haja superposição de ações? A resposta a essa questão era-lhe muito importante, apesar de não ser político profissional, sua ação política estava ligada ao mundo científico. A ação social é uma atitude humana voltada, para a efetivação de uma vontade. Uma ação é social quando ela está em relação com o comportamento de outras pessoas. Nem toda ação em sociedade é social, pois é necessário que ela esteja orientada a determinados indivíduos. Para Max Weber, existem quatro tipos de ação social: “A ação social, como toda ação, pode ser determinada: 1) de modo racional referente a fins: por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas, utilizando essas expectativas como „condições‟ ou „meios‟ para alcançar fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente, como sucesso; 2) de modo racional referente a valores: pela crença consciente no valor - ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua interpretação - absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente do resultado; 3) de modo afetivo, especialmente emo268 cional: por afetos ou estados emocionais atuais; 4) de modo tradicional: por costume arraigado.”268 Na ação racional visando a um fim o indivíduo utiliza a Razão, para conseguir um objetivo. Na ação racional, o objetivo é traçado pelo indivíduo, a partir disso ele procura os instrumentos e os meios necessários para alcançá-lo. É uma ação que ocorre por meio dos conhecimentos de quem a pratica: “Age de maneira racional referente a fins quem orienta sua ação pelos fins, meios e conseqüências secundárias, ponderando racionalmente tanto os meios em relação às conseqüências secundárias, assim como os diferentes fins possíveis entre si: isto é, quem não age nem de modo afetivo (e particularmente não-emocional) nem de modo tradicional.”269 Quanto à ação racional visando a um valor o indivíduo preocupa-se não como objetivo externo, mas com algo que caso não seja cumprido deixará o indivíduo cheio de vergonha. O importante para o indivíduo não é nada fora dele e sim sua própria honra: “Age de maneira puramente racional referente a valores quem, sem considerar as conseqüências previsíveis, age a serviço de sua convicção sobre o que parecem ordenar-lhe o dever, a dignidade, a beleza, as diretivas religiosas, a piedade ou a importância de uma „causa‟ de qualquer natureza. Em todos os casos, a ação racional referente a valores é uma WEBER, Max. Conceito de Ação Social. In Economia e Sociedade, Brasília, ed. UNB, 1991, vol.: 01, p. 15. 269 WEBER, Max. Conceito de Ação Social. In Economia e Sociedade, Brasília, ed. UNB, 1991, vol.: 01, p. 16. 268 269 ação segundo „mandamentos‟ ou de acordo com „exigências‟ que o agente crê dirigidos a ele.”270 No que tange à ação afetiva (emocional) o indivíduo age levado por seu humor. É uma ação que ocorre somente em determinadas circunstâncias: “O comportamento estritamente afetivo está, do mesmo modo, no limite ou além daquilo que é ação conscientemente orientada „pelo sentido‟; pode ser uma reação desenfreada a um estímulo não-cotidiano.”271 Por fim a ação tradicional é moldada pela segunda natureza do indivíduo, ou seja, é baseada nos costumes, crenças e hábitos. A obediência à ação tradicional é uma pura reprodução das práticas aceita em sociedade: “O comportamento estritamente tradicional - do mesmo modo que a imitação puramente reativa (veja § anterior) encontra-se por completo no limite e muitas vezes além daquilo que se pode chamar, em geral, ação orientada „pelo sentido‟. Pois freqüentemente não passa de uma reação surda a estímulos habituais que decorre na direção da atitude arraigada. A grande maioria das ações cotidianas habituais aproxima-se desse tipo [...] porque a vinculação ao habitual [...] pode ser mantida conscientemente [...].”272 No texto A Ciência como Profissão Max Weber nos diz que o cientista, ao agir, usa a Razão com um objetivo definido, melhor dizendo, procura compreender nos fatos WEBER, Max. Conceito de Ação Social. In Economia e Sociedade, Brasília, ed. UNB, 1991, vol.: 01, p. 15. 271 WEBER, Max. Conceito de Ação Social. in Economia e Sociedade, Brasília, ed. UNB, 1991, vol.: 01, p. 15. 272 WEBER, Max. Conceito de Ação Social. In Economia e Sociedade, Brasília, ed. UNB, 1991, vol.: 01, p. 15. 270 270 suas causas, a fim de que possa propor enunciações cuja a validade seja universal. O objetivo último do cientista é a verdade. E sua racionalidade encontra-se na obediência à lógica e à experimentação empírica. A ciência, para Max Weber, é característica da racionalização do mundo moderno ocidental. São duas as características fundamentais da ciência: 1. continuidade processual; 2. objetividade. Ao admitir a ciência como um processo contínuo ele afasta-se de Émile Durkheim (que acreditava ser a Sociologia no futuro, uma ciência completa com leis sociais sistematizadas) e de Auguste Comte (que esperava que a Sociologia fosse capaz de ter leis fundamentais). A ciência moderna não se preocupa com o Ser (ciência antiga) e não procura a essência última das coisas, e sim aquilo que pode ser experimentado e comprovado. Nesse aspecto, a ciência moderna é crítica em relação à natureza. No mundo da ciência, o indivíduo deve saber que todo conhecimento é parcial e não é definitivo. Tanto na Sociologia, como na história, não é possível um conhecimento total da natureza humana, pois para isso acontecer seria necessário que o homem parasse de inovar. Ao cético, pode parecer que Max Weber está negando que a ciência seja objetiva, entretanto isso é falso. De acordo com ele, a objetividade é possível caso cientista evite apresentar suas opiniões ao se fazer a investigação: 271 O fato de que a tais preferências se manifestam na orientação da curiosidade do cientista não exclui a validade universal das ciências históricas e sociológicas, que devem ser respostas universalmente válidas a questões orientadas legitimamente pelos nossos interesses e valores, pelo menos em teoria.273 As ciências humanas se diferenciam das ciências naturais em três aspectos: 1. compreensibilidade; 2. historicidade; 3. culturalidade. O conceito compreensão significa entendimento. Entender um fenômeno é aprendê-lo em suas regularidades através de teorias comprovadas pela experimentação. Toda e qualquer compreensão é mediada por conceitos, e ela não se dá de modo direto. O mesmo não ocorre com a ação humana, uma vez que sua compreensibilidade se dá de maneira imediata. Isso se deve, ao fato de os homens serem dotados de consciência. Quase toda conduta social é marcada por relações inteligíveis, por isso as ciências humanas podem estudá-la. A compreensão do sociólogo e do historiador não é intuitiva, mas reconstruída por meio de documentos. Do ponto de vista sociológico o sentido subjetivo da ação é perceptível e equívoco. A compreensibilidade não é algo exterior ao homem. Sua possibilidade se encontra na investigação prévia das ações humanas. É a investigação, com suas provas, que diz qual interpretação das condutas humanas é ou não é verdadeira. 273 Aron, Raymond. As etapas do pensamento sociológico; p. 467. 272 O conceito compreensibilidade traz consigo a marca da ambigüidade. Nem sempre o ator e o espectador compreendem seus atos, por isso é necessário investigálos, para se saber quais são verdadeiros ou não. A compreensão tem como instrumento central a teoria do tipo ideal, por esse meio procura-se racionalizar as condutas ou fenômenos históricos. A fim de conseguir encontrar essas causas, Max Weber, cria o conceito de tipo ideal, o qual é um modelo teórico que utiliza os elementos essenciais do objeto a ser estudado, para, a partir daí, ser aplicado a esse objeto. O tipo ideal é uma construção lógico, cuja finalidade é facilitar a compreensão do objeto estudado. O método compreensivo trabalha com tipos ideais, os quais são construídos a partir dos elementos essenciais do conjunto analisado. Depois, de isolar esses elementos, procede-se combinando uns com os outros, todavia, não, necessariamente, precisa ter ligações direta com eles: “Não é uma imagem da realidade, mas ajuda a entender esta; não é, tampouco, a média, nem o valor representativo mais freqüente.”274 O ponto central da epistemologia weberiana é o conceito de tipo ideal. Nesse encontra-se uma profunda ligação entre a Sociologia e a História. É o conceito de tipo ideal o local onde deságuam vários aspectos da sociologia de Max Weber: 1. compreensibilidade; 2. racionalidade da ciência e da sociedade; 3. inteligibilidade da matéria; 4. causalidade parcial e analítica. RUMNEY, Jay. Manual de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 46. 274 273 Por meio do tipo ideal consegue Max Weber fazer uma ligação entre a subjetividade de seu método275 e o empirismo, herança recebida de Emanuel Kant (1724. 1804). Assim, ele irá estudar os indivíduos, ou conjuntos, históricos: Os tipos ideais se exprimem por definições que não se ajustam ao modelo da lógica aristotélica. Um conceito histórico não retém as características que todos os indivíduos incluídos na extensão do conceito apresenta e, menos ainda as características médias dos indivíduos considerados; visa o típico, o essencial. [...] o conceito não será definido nem pelas características comuns a todos indivíduos nem pelas características médias. Será uma reconstrução estilizada, no isolamento dos traços típicos.276 Ao construir um tipo ideal Max Weber abandona a lógica clássica, pois os indivíduos que o compõem não se referem à totalidade do conceito e nem à média desses indivíduos. O que se encontra nele é tudo aquilo que torna algo essencial, por esse motivo o pesquisador deve ter claro que ao utilizar o tipo ideal ele está fazendo uso de um elemento que foi construído utilizando os diversos traços típicos existentes. O tipo ideal de Max Weber refere-se a três tipos de conceitos: 1. indivíduos e históricos: é uma construção parcial na qual somente alguns elementos são possíveis; 2. elementos abstratos da realidade histórica: são encontrados em diversas circunstâncias e servem para dar O método compreensivo traz algo de subjetivo, porque ao delimitar seu objeto de estudo o pesquisador utiliza elemento valorativo em sua escolha. 276 Aron, Raymond. As etapas do pensamento sociológico, p. 483. 275 274 compreensão aos "conjuntos históricos reais"; 3. reconstrução racional de condutas particulares. Os tipos ideais são fórmulas criadas pelo cientista, a fim de que possa compreender o objeto estudado. O conceito compreensão significa entendimento. Entender um fenômeno é aprendê-lo em suas regularidades através de teorias comprovadas pela experimentação. Toda e qualquer compreensão é mediada por conceitos e ela não se dá de modo direto. O mesmo não ocorre com a ação humana, uma vez que sua compreensibilidade se dá de maneira imediata. Isso se deve ao fato de os homens serem "dotados de consciência". Quase toda conduta social é marcada por relações inteligíveis, por isso as ciências humanas podem estudá-la. A compreensão do sociólogo e do historiador não é intuitiva, mas reconstruída por meio de documentos. Do ponto de vista do sociológico o sentido subjetivo da ação é perceptível e equívoco. A compreensibilidade não é algo exterior ao homem. Sua possibilidade se encontra na investigação prévia das ações humanas. É a investigação com suas provas que diz qual interpretação das condutas humanas é, ou não é, verdadeira. É um conceito que traz consigo a marca da ambigüidade, pois nem sempre o ator e o espectador compreendem seus atos, por isso é necessário investigá-los para se saber quais são verdadeiros, ou não. A compreensão, em Max Weber, é entendida tanto como método, quanto como resultado de uma investigação. Para ele a Sociologia deveria encontrar as leis ge275 rais da sociedade, a fim de conseguir vislumbrar as causas e os efeitos de suas ações: “A compreensão abre acesso ao sentido da ação e, como tal, funciona como um método heurístico. Ao contrário, compreender a ação dos homens em todas as suas relações significativas é o objetivo e, como tal, o resultado da investigação.”277 Seu interesse, ao usar o método compreensivo, era explicar o desenvolvimento das relações sociais e o conteúdo subjetivo imanente a essas relações. A compreensão é um método que ajuda ao pesquisador a entender a ligação causal das ações dos indivíduos. O método compreensivo diz que a pesquisa não deve somente encontrar as leis gerais, mas compreender as ações dos homens, a fim de explicar as causas dessas ações. Max Weber tinha os pés no chão, uma vez que aceitava que um fenômeno pudesse ser conhecido por aqueles que tivessem experimentado aquela realidade. O método compreensivo parte do pressuposto que o pesquisador ao abordar a sociedade humana deve compreender como se dão as experiências humanas. Para uma norma social se concretizar só é possível, quando se manifestar motivando o indivíduo. É por isso que Max Weber afirmava que compreender a sociedade é conhecer como os fatos sociais tornam-se significativos dando à ação um caráter particular. Por conseguinte compete ao cientista descobrir a causa que dá sentido à ação social. A filosofia dos valores weberiana tem sua origem na filosofia neo-kantiana. Como é sabido, Emanuel Kant (1724. 1804) separava os fatos dos valores. 277 5. SAINT-PIERRE, H. L.. Max Weber. São Paulo: Unicamp, 1991, pp. 54. 276 Todo valor, é uma criação humana. No mundo do valor não se pode, racionalmente, obrigar a aceitar um valor que não queira. Como é possível criar uma ciência de validade universal se as obras dos homens criam valores? A resposta weberiana parte da distinção entre julgamento de valor e relação de valor. O julgamento de valor é a manifestação da personalidade do indivíduo ao aceitar, ou não, um comportamento. Ele é sempre subjetivo e moral. Na relação de valores, o objeto de estudo é relacionado com um determinado valor. Ela é um método de escolha e organização da ciência. Conforme o pensamento de Max Weber as ciências humanas são de dois tipos: 1. compreensivas; 2. causais. A causalidade pode ser dividida em: 1. sociológica; 2. histórica. O papel do historiador é encontrar a causa numa única conjectura. O do sociólogo é estabelecer as possíveis, ou não, relações de sucessão. Na sociologia weberiana, a antinomia da ação é a moral da responsabilidade e da convicção. Em A Política como vocação Max Weber chama atenção para a ética da convicção e a da responsabilidade, para a política e a moral que se desenrolam em campos éticos diferentes. A sua perspectiva é que a "moral da responsabilidade" é superior à moral dos utópicos e revolucionários, que defendem a moral dos fins. A moral da responsabilidade não é uma preocupação sobre o certo ou o errado, mas um meio de minimizar os danos aos participantes. 277 A moral da responsabilidade é um modo pragmático de ver o mundo, contrário à moral dos fins últimos (dos revolucionários e dos utópicos) que está convencida da vitória final. A moral da responsabilidade refere-se àquela ação que pode deixar de ser executada. Ela diz ao indivíduo como: 1. se comportar em determinadas circunstâncias; 2. prever as conseqüências de suas decisões; 3. introduzir na sociedade seus desejos. A ação, nesse tipo de moral, é vista sob ângulo meio-fim. Qualquer meio é aceitável, desde que o fim seja o bem do Estado. Ao político, não compete agir de acordo com a moral do homem comum, mas deve agir de tal maneira que possa atingir o bem comum: Weber não elogia o maquiavelismo, e uma ética da responsabilidade não é necessariamente maquiavélica, no sentido comum do termo. A ética da responsabilidade é simplesmente a que se preocupa com a eficácia, e se define pela escolha dos meios ajustados ao fim que se pretende. [...] A moral da ação comporta dois termos extremos, o pecado para salvar a cidade e, nas circunstâncias extremas, a afirmação incondicional de uma vontade, quaisquer que sejam as conseqüências.278 A moral da responsabilidade se define como a utilização de um meio visando a um fim, mas esse fim nunca é determinado. Na visão de Max Weber, não é possível um acordo entre o indivíduo e a sociedade na consecução dos seus fins. 278 Aron, Raymond. As etapas do pensamento sociológico, p. 488. 278 Essa moral admite que os homens, por meio de suas vontades, criam os valores, por esse motivo não há bem mais importante que outro. A moral da convicção não tem uma preocupação com os objetivos a serem atendidos. O indivíduo, que age por convicção, tem como juiz de sua ação sua própria consciência, assim sendo ele não pode ser refutado. Max Weber, ao estudar a religião, parte do pressuposto que, para se chegar à compreensão sobre a atitude do moralista convicto, é preciso perceber sua "concepção global da existência.” Essa moral não é a moral do Estado, nem dos políticos, uma vez que a ação política visa a um fim e não a uma obediência à consciência. A ação por convicção não se baseia na Razão. A Sociologia e a História são conhecimentos específicos dessas sociedades, uma vez que não há em nenhuma cultura uma forma de descrever, de modo racional, o funcionamento e o desenvolvimento social. A Sociologia e a História não só procuram compreender as escolhas subjetivas que norteiam a conduta social, mas também desejam conhecer suas causas. A atividade do sociólogo procura dar compreensibilidade à sociedade por meio da: 1. inteligibilidade das crenças e condutas; 2. determinação das causas das condutas; 3. relação das crenças com as condutas. A Sociologia e a História buscam compreender e dar as causas das ações sociais. A causalidade para ele se divide em: 1. histórica; 2. sociológica. A causalidade histórica quer encontrar as circunstâncias que provocaram uma determinada ação. Enquan279 to que a causalidade sociológica deseja relacionar dois fenômenos. A causalidade histórica procura levantar quais são os antecedentes de um acontecimento. Ela tem quatro etapas: 1. é preciso individualizar historicamente o que se vai pesquisar; 2. é necessário analisar o complexo fenômeno histórico; 3. "Aplicada a uma seqüência histórica singular, a análise causal deve passar pela modificação irreal de um dos seus elementos e procurar responder à pergunta: que teria ocorrido se este elemento não tivesse existido ou tivesse sido diferente?.”279 4. É premente comparar a hipótese anterior com o fato real, a fim de que se possa concluir que a modificação feita representa uma das causas do fato. O historiador, ao fazer uma análise causal, tem que pôr a seguinte questão: como seria hoje se o que ocorreu não tivesse ocorrido? Caso ele não aja dessa forma não haverá narrativa histórica, mas uma simples lista de datas. A narrativa histórica necessita dizer que se determinado fato não ocorresse o mundo seria outro. De acordo com Max Weber, a História não se desenrola de modo linear. O seu desenvolvimento é regido pela ação dos "grandes homens", quando se aliam às massa. A conclusão, que se pode tirar desse método histórico, é que, com ele os indivíduos e os fatos ocorridos têm uma grande relevância, pois mostra que não há um determinismo da História e que os homens de ação podem mudar a direção dos acontecimentos. 279 Aron, Raymond. As etapas do pensamento sociológico, p. 476. 280 Tanto a causalidade histórica, como a sociológica é definida por Max Weber em termos de probabilidades. As causas sociológicas são parciais, por que um fenômeno social torna outro provável ou não. Com essa teoria da causalidade parcial, quis rebater o materialismo histórico de Karl Marx. Max Weber não admite que uma causa única possa determinar toda a sociedade, bem como não aceita que o futuro seja determinado pelas condições do presente. Na sociologia weberiana, fica eliminada qualquer possibilidade de se prever a sociedade futura. Nessa sociologia, o que interessa é o indeterminado. O ponto central da epistemologia weberiana é o conceito de tipo ideal. Nesse, encontra-se uma profunda ligação entre a Sociologia e a História. É o conceito de tipo ideal, o local onde deságuam vários aspectos da sociologia de Max Weber: 1. compreensibilidade; 2. racionalidade da ciência e da sociedade; 3. inteligibilidade da matéria; 4. causalidade parcial e analítica. É por meio do tipo ideal que ele irá estudar os indivíduos (os conjuntos) históricos. Ele sempre dá uma visão parcial da sociedade, uma vez que suas definições não partem da Lógica: “Um conceito histórico não retém as características que todos os indivíduos incluídos na extensão do conceito apresenta e, menos ainda as características médias dos indivíduos considerados; visa o típico, o essencial. [...] o conceito não será definido nem pelas características comuns a todos indivíduos nem 281 pelas características médias. Será uma reconstrução de estilizada, no isolamento dos traços típicos.”280 O tipo ideal é um esforço, para aclarar no espírito o que aparece confuso na realidade. Ele não é o objetivo da pesquisa científica, mas um instrumento da pesquisa. Ele se refere a três tipos de conceitos: 1. indivíduos históricos: é uma construção parcial na qual somente alguns elementos são possíveis; 2. elementos abstratos da realidade histórica: são encontrados em diversas circunstâncias e servem para dar compreensão aos "conjuntos históricos reais"; 3. reconstrução racional de condutas particulares. Burocracia A burocracia pode ser definida como sendo uma organização na qual os indivíduos, cujas funções são especializadas, visam à cooperação: “A burocracia é o meio de transformar uma „ação comunitária‟ em „ação societária‟ racionalmente ordenada. Portanto, como instrumento de „socialização‟ das relações de poder, a burocracia foi e é um instrumento de poder de primeira ordem – para quem controla o aparato burocrático.”281 O burocrata é um trabalhador anônimo que exerce uma tarefa, que nada tem a ver com a sua vida particular. Dessa maneira, a burocracia tem como característica que a impessoalidade. Além disso, a remuneração dos funcionários é definida por regras próprias. Aron, Raymond. As etapas do pensamento sociológico, p. 483. WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 264. 280 281 282 Ela não é especificamente uma característica do mundo ocidental, ela pode ser encontrada em vários lugares: não é um efeito só do capitalismo, mas também do socialismo. “I. A burocracia moderna funciona da seguinte forma específica: “1. Rege o princípio de áreas de jurisdição fixas e oficiais, ordenadas de acordo com regulamentos, ou seja, por leis ou normas administrativas. “2. As atividades [...] são distribuídas de forma fixa como deveres oficiais. “3. Tomam-se medidas metódicas para a realização regular e contínua desses deveres e para a execução dos direitos correspondentes; [...].”282 Neste sentido, é possível falarmos em burocracia no Estado nacional moderno e sob um avançado estágio do capitalismo. Nos antigos impérios não encontrávamos uma burocracia administrativa tal como definimos. Nestes impérios as normas administrativas não eram fixas, as atividades não tinham muita precisão, as medidas eram criadas ad hoc. II. Exige uma hierarquia rígida, entretanto possibilita aos subordinados recorrerem contra seus superiores. Esta hierarquia é encontrada em todas as organizações burocráticas não importando se a autoridade seja “pública” ou “privada”. III. A burocracia moderna tem como base os documentos escritos. No serviço público há uma separação entre o público e o privado. Este movimento se inicia na WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 229. 282 283 Idade Média e, cada vez mais, aprofunda esta separação. Mesmo nas empresas privadas existe a separação entre o que pertence à empresa e o que pertence ao indivíduo. IV. A administração pública exige uma especialização do funcionário. “V. Quando o cargo está plenamente desenvolvido, a atividade oficial exige a plena capacidade de trabalho do funcionário, a despeito do fato de ser rigorosamente delimitado o tempo de permanência na repartição, que lhe é exigido.”283 VI. É exigido do funcionário o conhecimento das regras da administração. O cargo moderno é delimitado por regras fixas. É um modo de administração que se opõe ao patrimonialismo. Como corolário, podemos afirmar: I. O cargo deve ser ocupado por um profissional que exerce sua função como um dever. II. A posição do funcionário é definida do seguinte modo: 1. A posição social do funcionário é definida pelas normas hierárquicas da função exercida: quanto maior a procura de especialistas pelo cargo maior é o prestígio que o seu ocupante tem; 2. Uma autoridade superior “nomeia” o funcionário burocrático. No caso do funcionário ser eleito não deve sua posição a uma autoridade superior, contudo àqueles que o elegeram; 3. O cargo do funcionário é vitalício; WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 231. 283 284 4. O pagamento do funcionário é o salário, além da pensão na velhice. O valor do salário é definido pela posição hierárquica do funcionário e, em alguns casos, pelo tempo de serviço; 5. A ordem hierárquica do serviço público exige do funcionário a preparação “para uma „carreira‟.” A existência da moderna burocracia tem como pressupostos: o desenvolvimento da economia monetária; os salários fixos. O local privilegiado, para o surgimento da burocratização, em termos políticos, é o grande Estado e o partido de massa. O crescimento burocrático se relaciona com sua especialização interna e não com a sua extensão e quantidade: “Entre os fatores exclusivamente políticos, a crescente exigência a uma sociedade habituada à pacificação absoluta, por meio da aplicação da ordem e da proteção („polícia‟) em todos os campos, exerce uma influência especialmente perseverante no sentido da burocratização.”284 Um aspecto técnico que possibilita o aumento da burocracia é a comunicação, a qual possibilita a formação do Estado moderno. É a superioridade técnica o momento decisivo para o desenvolvimento da burocracia. Esta tem primazia sobre as outras formas de organização, porque oferece: “Precisão, velocidade, clareza, conhecimento dos arquivos, continuidade, discrição, unidade, subordinação rigorosa, redução do atrito e dos custos de material e pessoWEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 247. 284 285 al – são levados ao ponto ótimo na administração rigorosamente burocrática, especialmente em sua forma monocrática.”285 Estas características, na atualidade, são exigidas pela economia monetária. Seu pensamento se torna, na velhice, pessimista, quanto à crescente burocratização e racionalização da vida. A burocratização não é um efeito só do capitalismo, mas também do socialismo. Na sua velhice ele se vê decepcionado com a burocracia e chega a afirmar que ela é uma "nova servidão". Para Max Weber, a ditadura do futuro não seria a do proletariado, mas a do funcionário público: é um aspecto racional do mundo ocidental que cai na "ditadura do funcionário". O desenvolvimento da burocracia aumenta na mesma proporção que os meios materiais se concentram sob a administração do senhor. O processo burocrático no exército cresceu na medida em que o controle dos seus serviços foram transferidos dos proprietários para os não-proprietários: “O ônus do serviço foi também transferido para os estrangeiros, como nos exércitos mercenários de todas as épocas. Esse processo vai, tipicamente, de mãos dadas com o aumento geral na cultura material e intelectual.”286 A administração burocrática da guerra tornou-se um problema a ser resolvido como qualquer outro, tal como ocorre na empresa capitalista privada. WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 249. 286 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 258. 285 286 O mesmo processo de burocratização da guerra ocorreu em outros campos da administração, quando se concentrou os meios de organização. Este processo pode ser visto, também nos centros de pesquisas, nos quais “a burocratização dos sempre existentes institutos de pesquisa das universidades é uma função da crescente procura de meios materiais de controle.”287 Max Weber admite que a organização burocrática conseguiu chegar ao poder, por intermédio da diminuição das diferenças sócio-econômicas, por isso ele conclui que ela se liga diretamente à democracia de massa. Esta aliança possibilitou a origem da principal característica da burocracia: “a regularidade abstrata da execução da autoridade, que por sua vez resulta da procura de „igualdade perante a lei‟ no sentido pessoal e funcional – e, daí, do horror ao „privilégio‟, e a rejeição ao tratamento dos casos „individualmente‟.”288 Com a democratização da sociedade os privilégios são abolidos na administração pública. O crescimento da burocracia acompanha o desenvolvimento da democracia. É evidente que, na maioria das vezes, a economia influencia a democratização: “A democratização da sociedade em sua totalidade, e no sentido moderno da palavra, seja prática ou talvez meramente formal, é uma base especi- WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 259. 288 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 260. 287 287 almente favorável para a burocratização, mas de forma alguma a única possível.”289 A evolução burocrática se deu por ser uma administração de superioridade “técnica” indiscutível. A burocracia quando se instaura torna-se uma estrutura social de difícil destruição: “A idéia de eliminar essas organizações torna-se cada vez mais utópica.”290 Uma das características da burocracia é o treinamento especializado recebido pelo funcionário. Um dos efeitos da burocratização é criar: ou uma estrutura política voltada, para os interesses da pequenaburguesia; ou um Estado socialista que impeça o lucro privado. Max Weber diz que isso ocorreu em toda a antiguidade e espera que surja uma nova burocracia, diferentes das anteriores: o local privilegiado seria a Alemanha. Uma das características da burocracia é servir a vários tipos de interesses desde os econômicos, passando pelos econômicos e servindo a vários outros interesses. A burocracia é um grande poder nas mãos daquele que domina, entretanto isso não diz respeito a sua importância na estrutura social: “A „indispensabilidade‟ sempre crescente do funcionalismo, que cresceu aos milhões, não é mais decisiva para esta questão do que a opinião de alguns representantes do movimento proletário de que a indispensabilidade econômica dos proletários é decisiva para a medida de sua posição social e política. Se a WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 268. 290 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 265. 289 288 „indispensabilidade‟ fosse decisiva, então onde predominasse o trabalho escravo e onde os homens livres habitualmente abominassem o trabalho como uma desonra, os escravos „indispensáveis‟ deveriam ter ocupado as posições de poder, pois eram pelo menos tão indispensáveis quanto os funcionários e proletários de hoje.”291 Na sua velhice ele se vê decepcionado com a burocracia e chega a afirmar que ela é uma "nova servidão.” É um aspecto racional do mundo ocidental que cai na "ditadura do funcionário”: a ditadura do futuro não seria a do proletariado, mas a do funcionário público. Seu pensamento, como conseqüência, se torna, na velhice, pessimista, quanto à crescente burocratização e racionalização da vida. Carisma No estudo da religião Max Weber se aprofunda na análise do carisma (poder supranatural, extraordinário, divino). Esse é um conceito importante utilizado por Max Weber, para estudar a religião primitiva. Ela é a característica daqueles que têm qualidades fora do comum. Em conformidade com as suas pesquisas o carisma recebe sua força da "fé na revelação e nos heróis.” O indivíduo carismático transforma o mundo por meio de sua vontade revolucionária. A primeira forma de se atender às necessidades teve sua origem na ação carismática. Em épocas de dificuldades foram os líderes naturais que atendiam aos anseiWEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, pp. 268-9. 291 289 os sociais: “Os líderes naturais nas dificuldades foram os portadores de dons específicos do corpo e do espírito, dons esses considerados como sobrenaturais, não acessíveis a todos.”292 A liderança carismática coloca-se em posição contrária à burocracia, pois enquanto nesta exige-se “um processo ordenado de nomeação ou demissão.” Naquela não existe nada parecido: “O domínio carismático autêntico não conhece, portanto, os códigos jurídicos abstratos e os estatutos e nenhum modo „formal‟ de adjudicação. Sua lei „objetiva‟ emana concretamente da experiência altamente pessoal da graça celestial e da força divina do herói. A dominação carismática significa uma rejeição de todos os laços com qualquer ordem externa, em favor da glorificação exclusiva da mentalidade genuína do profeta e herói.”293 A determinação e os limites ao carisma são tipicamente internos: “O seu portador toma a tarefa que lhe é adequada e exige obediência e um séquito em virtude de sua missão.”294 O êxito do carisma está em conseguir alcançar estas tarefas, caso contrário ele entra em decadência. A missão do líder carismático se delimita a um determinado grupo. Apesar do carisma existir neste mundo, sua força não é deste mundo. O seu objetivo não é o lucro pecuniáWEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 283. 293 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 288. 294 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 285. 292 290 rio, uma vez que ele é adverso a qualquer “comportamento econômico racional”. O carisma, entendido em sua forma pura, não é uma fonte de renda; não busca a compensação pecuniária; não visa a tributações “para as necessidades materiais de sua missão”. O carisma puro se opõe ao patriarcalismo; à economia ordenada; à institucionalização. A característica marcante do carisma é a sua instabilidade. Aos olhos dos seguidores de um líder carismático se lhes parecerem que ele perdeu o seu carisma eles o abandonarão e esperarão um novo líder. A autoridade do líder carismático deve ser provada constantemente nesta vida. Para que seus seguidores acreditem em seu poder ele tem que provar este poder. O destino do carisma quando atinge as instituições de determinada comunidade “dar lugar aos poderes da tradição ou da socialização racional.”295 Isto ocorre porque a ação individual perde importância. Para Max Weber a força que mais impede a ação individual é a disciplina racional, a qual elimina o carisma pessoal e as instituições que têm por base a honra estamental: “O carisma, como força criadora, passa a segundo plano ante o domínio, que se consolida em instituições duradouras, e só se torna eficiente nas emoções de massa de curta vida, de efeitos incalculáveis, como nas eleições e ocasiões semelhantes.”296 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 292. 296 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 302. 295 291 Os fatores econômicos fazem do carisma uma rotina, pois as camadas sociais privilegiadas desejam legitimar objetivamente seu status quo. O carisma se opõe por completo a toda e qualquer objetivação, porquanto ele se baseia “na legitimação do heroísmo pessoal ou da revelação pessoal.”297 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 2a ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, p. 302. 297 292 A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo Introdução Em A ética protestante, o autor estudará um aspecto da relação causal “entre o moderno ethos econômico e a ética racional do protestantismo aceite”. Max Weber afirma que a burocracia ocidental tem uma característica particular: a preocupação racional da ciência colocada em prática por especialistas treinados. Essa peculiaridade não existiu em nenhum outro povo, mas somente no Ocidente. Isso se torna evidente ao se estudar o estado e a economia ocidentais. No Ocidente, a política, a economia e as técnicas dependem diretamente de funcionários racionalmente treinados. Essa preocupação racional tão típica no Ocidente pode ser encontrada no capitalismo: O “impulso para o ganho”, a “ânsia de lucro”, de lucro monetário, de lucro monetário o mais alto possível, não tem nada a ver em si com o capitalismo. Esse impulso existiu e existe entre garçons, médicos, caixeiros, artistas, prostitutas, funcionários corruptos, soldados, ladrões, cruzados, jogadores e mendigos – ou seja em toda espécie e condições de pessoas, em todas as épocas de todos os países da terra, onde quer que, de alguma forma, se apresentou, como se apresenta, na possibilidade objetiva para isso.298 298 Weber, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. p. 04. 293 Acreditar que as características acima são típicas do capitalismo é demonstrar uma visão ingênua da história da cultura. A busca pelo lucro não se identifica nem com o capitalismo, nem com seu espírito. É obvio que a procura da rentabilidade caracteriza o capitalismo e não poderia ser de outro modo, porque, casa a empresa não busque lucro, ela faliria. Max Weber define o capitalismo como uma ação racional econômica, visando ao lucro, por meio de trocas específicas. No capitalismo, a ação racionalmente calculada visando ao capital é uma ação planejada, em termos de recursos, que, ao final de um ciclo determinado, o capital investido seja superado pelo capital adquirido. No capitalismo, o que é relevante é a visão racional do lucro estar ligada diretamente ao investimento. Nessa perspectiva, o capitalismo existiu em todas as sociedades conhecidas. Entretanto, a ação destes capitalistas era, na maioria das vezes, irracional e especulativa que em muitos aspectos baseava sua apropriação na força. Essa característica ainda se encontra em uma parte dos capitalistas modernos. No ocidente, é possível encontrar um capitalismo diverso dos outros capitalismos existentes: o trabalho é racional e livre (formalmente pelo menos). O capitalismo ocidental é uma organização industrial racional que está voltada para o mercado. Seu objetivo não é político, nem especulativo, mas atingir um mercado. O desenvolvimento desse capitalismo teve dois fatores básicos que o influenciaram: 1. “a separação da 294 empresa da economia doméstica”; 2. “a criação de uma contabilidade racional”. Em A ética protestante, o que interessa ao autor não é o desenvolvimento do capitalismo em sua forma específica. Seu interesse se volta para as origens do capitalismo com o trabalho organizado racionalmente. Ele quer procurar a origem da classe burguesa ocidental que, necessariamente, não está relacionada com a origem capitalista do trabalho. O capitalismo ocidental foi influenciado: 1.pelo desenvolvimento das técnicas; 2.por fatores técnicos racionais; 3.pela independência da ciência; 4.pela racionalidade do Direito e da Administração. O capitalismo ocidental desenvolveu-se da maneira como se encontra hoje, devido a uma característica tipicamente ocidental: a racionalização. Parte I – O problema Após essa introdução, o autor tornará claro o problema que está sendo pesquisado. Essa parte do livro divide-se em três capítulos. No primeiro se estudará a filiação religiosa e a estratificação social. 295 Capítulo I Esse capítulo começa com a afirmação de que “os líderes do mundo dos negócios e proprietários do capital, assim como dos níveis mais altos de mão-de-obra qualificada, principalmente o pessoal técnica e comercialmente especializado das modernas empresas, serem preponderantemente protestantes”.299 O autor diz que a maior participação dos protestantes na economia tem uma causa histórica, e não uma causa religiosa. No século XVI, as cidades mais ricas aderiram ao protestantismo. Surge, então, uma pergunta: porque essas cidades se insurgiram contra o catolicismo? Com o desenvolvimento econômico, essas cidades se viram prejudicadas pelo tradicionalismo econômico. Com a emancipação econômica iniciou-se um processo de dúvidas em relação à religião e às autoridades tradicionais. Max Weber chama a atenção para o fato de que o controle social saiu das mãos da Igreja300 Católica, sendo substituído por um controle moral mais intenso. O controle tênue da Igreja Católica foi sobrepujado, por um maior controle, em todos os neveis sociais, feito de maneira séria. O calvinismo dos séculos XVI e XVII foi um controle eclesiástico rigoroso da vida do indivíduo. Isso se explica devido às reclamações dos reformadores de a Igreja não controlar a vida social. Ibidem, p. 19. Para Max Weber uma Igreja é uma hierarquia, na qual há um autoridade que distribui bens espirituais. 299 300 296 Além desse aspecto, o autor chama atenção para o outro: a educação protestante preocupa-se com “estudos técnicos e ocupações comerciais e industriais”, enquanto que a educação católica tem uma perspectiva humanista. Um outro ponto que Max Weber arrola para explicar porque há mais protestantes nas indústrias, pode ser visto no trabalho, pois, enquanto os católicos tendem a trabalhar com artesanato, os protestantes preferem ir às fábricas onde ocupam os cargos de nível superior e de chefia, os quais necessitam de uma mão-de-obra com mais estudos. Essa diferença de conduta pode ser explicada pela educação adquirida no meio social onde eles vivem, que influenciam a escolha da profissão. Os protestantes têm uma preocupação com a economia racional, o que não é visto entre os católicos. É por esse motivo que é preciso procurar na religião a causa de suas ações sociais e não somente na história ou na política. Por esse motivo, surge uma nova questão: como a religião influencia nas condutas acima relatadas? Numa primeira resposta superficial, poder-se-ia dizer que a desvalorização do mundo e o ascetismo católico fazem com que seus sectários fiquem indiferentes à riqueza nesse mundo. Entretanto, essa resposta não explica o fato de os protestantes que são quase, ou mais ainda, alheios ao mundo material como os católicos: os huguenotes franceses podem ser citados como exemplo. O que Max Weber deseja ressaltar não é a exceção da conduta religiosa e capitalista, mas, “um extraordinário senso comercial e capitalístico se mistura, nas mesmas pessoas e grupos, com as formas mais intensas de 297 uma religiosidade que penetra em todos os setores e domina todas as suas vidas. Tais casos não são isolados, mas sim característicos de muitas das mais importantes igrejas e seitas da história do protestantismo. Essa combinação é especialmente manifesta no calvinismo, qualquer que seja o país em que surgiu.301 A ligação entre o mundo espiritual e material não se encontra em todo o protestantismo, mas é patente nos calvinistas, nos membros da religião reformada (um tipo de calvinismo moderado) e no pietismo. No primeiro protestantismo (de Lutero, de Calvino, de Knox e de Vöet), não se encontra nada do que se pode ser chamado de progresso. Eles se opunham a setores inteiros da vida contemporânea. Por isso, a relação entre o velho protestantismo e o capitalismo deve ser procurada em seus traços religiosos. Com essa afirmação, encerra-se o capítulo primeiro: é preciso buscar o maior número de relações possíveis entre o protestantismo e o capitalismo. é preciso apresentar a história do espírito do capitalismo. Mas, antes de se prosseguir nessa tentativa, Max Weber diz que: “[...] são necessárias algumas observações, primeiro sobre as peculiaridades do fenômeno do qual estamos procurando uma explicação histórica, e depois, com relação ao sentido em que tal explanação é possível, dentro dos limites dessas investigações”.302 301 302 Ibidem, p. 25. Ibidem, p. 27. 298 Capítulo II: O espírito do capitalismo O capítulo segundo (O espírito do capitalismo) é iniciado com o autor dizendo que o título é pretensioso, que a tentativa de explicar esse espírito “acarreta certas dificuldades”. Esse termo terá compreensibilidade se se referir a “uma individualidade histórica”. Como tal conceituação não será apresentada no inicio da exposição, mas será alcançada no final. Mas é necessário fazer a descrição provisória do que seja o espírito do capitalismo, especificamente nessa análise, visto que pode ser esse conceito, descrito em outros trabalhos, com outros interesses e de forma diferente. Na concepção dessa descrição provisória, Max Weber toma um texto de Benjamin Franklin, a fim de tentar definir o que é o espírito do capitalismo. Não será demais citar todo o texto: “Lembra-te de que tempo é dinheiro. Aquele que pode ganhar dez xelins por dia por seu trabalho e vai passear, ou fica vadeando metade do dia, embora não dependa mais do que seis pertences durante seu divertimento ou vadiação, não deve computar apenas essa despesa; gastou, na realidade, ou melhor, jogou fora, cinco xelins a mais”. “Lembra-te de que crédito é dinheiro. Se um homem permitir que seu dinheiro permaneça em minhas mãos por mais tempo do que é devido, ele me concede juros, ou o quanto eu possa fazer com ele durante este tempo. Isto atinge uma soma considerável, quando um homem tiver um bom e largo crédito, e fizer um bom uso dele”. 299 “Lembra-te de que o dinheiro é de natureza prolífica, procriativa. O dinheiro pode gerar dinheiro e seu produto pode gerar mais e assim por diante, até atingir cem libras. Quanto mais houver dele, mais ele produz em cada turno, de modo que o lucro aumenta cada vez mais rapidamente. Aquele que mata uma porca prenhe destrói toda uma prole até a ultima geração. Aquele que desperdiça uma coroa destrói tudo o que ela poderia ter produzido, um grande número de libras”. “Lembra-te deste refrão: „O bom pagador é dono da bolsa alheia‟. Aquele que é conhecido por pagar pontual é exatamente na data prometida em qualquer momento leva tanto dinheiro quantos seus amigos possam dispor. Isto é as vezes de grande utilidade. Depois da industriosidade e da frugalidade, nada contribui mais para um jovem subir na vida do que a pontualidade e a justiça em torno dos seus negócios; portanto, nunca conserves dinheiro emprestado uma hora além do tempo prometido, senão um desapontamento fechará a bolsa do teu amigo para sempre”. “As mais insignificantes ações que afetem o credito de um homem devem ser consideradas. O som de teu martelo às cinco da manhã, ou às oito da noite, ouvido por um credor o fará conceder-te seis meses a mais de crédito; ele procurará, porém, por seu dinheiro no dia seguinte, se te ver em uma mesa de bilhar ou escutar tua voz, em uma taverna, quando deveria estar no trabalho; exige-lo-á de ti antes de que possa dispor dele”. “Isto mostra, além do mais, que estás consciente do que possuis; fará com que pareça um homem tão cuida300 doso quanto honesto e isto ainda aumentará mais o que o teu crédito”. “Guarda-te de pensar que tens tudo o que possuis e de viver de acordo com isto. Este é um erro em que caem muitos que têm crédito. Para evitá-lo, mantém por muito tempo um balanço exato tanto de suas despesas quanto de sua receita. Se tiveres o cuidado de, inicialmente, mencionar as particularidades isso terá o seguinte efeito salutar: descobrirás como as mínimas e insignificantes despesas se amealham em grandes somas, e discernirás o que poderia ter sido e que poderá economizado para o futuro, sem grandes inconvenientes”. “Por seis libras anuais poderá ter o uso de cem libras, uma vez que sejas um homem de conhecida prudência e honestidade”. “Aquele que gasta inutilmente um „groat‟ por dia, desperdiça o privilegio de usar cem libras todos os dias”. “Aquele que inutilmente perde o valor de cinco xelins, não perde somente esta soma, mas todo o proveito que, investindo-a, dela poderia ser tirado, e que durante o tempo em que um jovem se torna um velho, integraria uma considerável soma de dinheiro.”303 Nesse texto, é possível encontrar o próprio espírito do capitalismo, porém espírito não se reduz a esse texto. O que preconiza Benjamin Franklin, nessa filosofia da avareza, parece ser: 1.o ideal de um homem honesto; 2.o homem com crédito reconhecido; 3.o aumento do capital é um fim em si mesmo. 303 Franklin, Benjamim apud Weber, Max. A ética protestante e o espíri- to do capitalismo. pp. 29-31. 301 A importância desse documento é que nele se encontra uma ação que deve ser cumprida por dever e não por qualquer outro motivo. Max Weber diz que “esta é a essência do problema”: Benjamin Franklin não está interessado no comércio, e sim na conduta ética do indivíduo. E é esta qualidade que interessa a Max Weber. Dessa maneira, ele encontra o caminho da definição do espírito do capitalismo ocidental como sendo uma conduta ética. O bem supremo, preconizado no texto, citado acima, é a obtenção cada vez maior de dinheiro. A finalidade da vida é a produção. Ganhar dinheiro é “o resultado e a expressão de virtude e de eficiência em uma vocação”. Para Max Weber, o importante na ética de Benjamin Franklin é a idéia do dever profissional. Essa idéia é o fundamento do capitalismo, uma vez que o indivíduo se sente obrigado “com relação ao conteúdo de sua atividade profissional”. Entretanto, essa idéia não pertence somente ao capitalismo. O capitalismo escolhe os mais aptos de que precisa em cada setor. Não se trata de uma seleção. O que pretendo o autor é descobrir a origem desse modo de vida, não de um homem, mas de um grupo inteiro que tão bem se adaptou ao capitalismo. O espírito do capitalismo (“no sentido de um estilo de vida normativa baseado e revestido de uma ética”) tal como o exposto por Benjamin Franklin repousa sobre uma ética que não é a do homem sem escrúpulos. 302 O trabalho no capitalismo deve ser feito como se fosse uma vocação. Essa vocação não é natural, mas construída pela educação. O capitalismo moderno se desenvolveu mais devido a uma mudança ética, do que um alto investimento de capital. A fortuna obtida não era emprestada a juros, mas reinvestida no negócio: o prazer de desfrutar a riqueza foi substituído por uma vida frugal. Uma grande desconfiança pairou sobre esse primeiro inovador, histórias sobre a sua vida pregressa foram inventadas. Mas, por ter um autocontrole fora do comum, esse empresário conseguiu superar as adversidades e devido a suas “qualidades „éticas‟” ganhou a confiança dos fregueses e dos trabalhadores. A princípio, pode-se pensar que essa conduta moral não se relaciona nem com a ética e nem com religião. A esses homens não interessa o uso da riqueza, e sim a sensação de dever cumprido. Max Weber, em busca da relação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo, faz alguns questionamentos sobre a passagem de uma conduta de simples aceitação do capitalismo para uma atitude de vocação: Como é que uma atividade, que era, na melhor das hipóteses, eticamente tolerada, transformou-se em uma vocação no sentido de Benjamin Franklin? Como se explica historicamente o fato de nos centros mais altamente capitalista daquela época, em Florença, nos séculos XIV e XV – o mercado de dinheiro e de capital de todos os grandes poderes políticos – fosse considerado eticamente perigoso, ou fosse quando muito tolerado, aquilo que, nas retrógradas circunstâncias pequeno-burguesas da Pensilvânia do século XVIII, onde a economia se via ameaçada, pela simples falta de dinheiro, ao regredir ao primi- 303 tivo estágio de trocas, onde dificilmente havia um sinal de grande empresa, onde podiam ser encontrados apenas os primórdios do sistema bancário, a mesma coisa fosse considerada moralmente digna de louvor e pudesse mesmo equivaler a uma norma de vida? Falar aqui de um reflexo das condições “materiais” sobre a “superestrutura ideal” seria patentemente insensato. De que rol de idéias originava-se a concepção de atividade dirigida para lucros, encarada como vocação para qual indivíduos se sentissem com obrigações? Por que foi esta idéia que determinou o modo de vida do novo empreendedor, sua fundamentação ética e sua jurisdição?304 Um modo fácil de se querer entender o capitalismo é aceitar seu desenvolvimento como um efeito do racionalismo. Nessa perspectiva o protestantismo seria apenas um estágio do capitalismo e não uma de suas causas. A tarefa a que o autor se propõe agora é encontrar com o “pai intelectual” da idéia de vocação “e a divisão do trabalho na vocação” que é a idéia, por excelência, do capitalismo. É a pesquisa sobre este elemento que constituirá o próximo capítulo. 304 Ibidem, p. 49. 304 Capítulo III: A concepção de vocação de Lutero O capítulo terceiro (A concepção de vocação de Lutero; tarefa da investigação) começa afirmando que a noção de vocação não era conhecida até o advento do protestantismo. A origem dessa palavra não se encontra na bíblia, porém no pensamento de Lutero. Com a valorização do trabalho secular, a palavra vocação (no sentido de ter que cumprir uma tarefa por dever) passou a ter um significado religioso. É esse conceito o ponto central do Protestantismo, pois abandonava a visão católica que defendia o afastamento do mundo material e aceitava a vida dentro dos mosteiros como o caminho para o céu. Para os protestantes, era necessário cumprir suas tarefas no quotidiano. Essa era sua vocação: viver nesse mundo trabalhando como se fosse um santo. Essa visão do trabalho, como vocação, aparece no pensamento de Lutero, após a primeira década de sua atividade reformadora, antes desse período, o trabalho era visto como eticamente neutro. Lutero passou a ver a vida isolada dos monges como uma atitude egoísta. Assim, o trabalho passa a ser visto como uma expressão de amor ao próximo. O trabalho é o único caminho até Deus. Essa foi uma das atitudes protestantes, que mais conseqüências 305 viria a ter no futuro. A Reforma valorizou a moral e o trabalho. Entretanto, a visão luterana da vocação é negativa e não é o que Max Weber procura, por isso ele estudará o Calvinismo, visto que essa religião contribuíra para o desenvolvimento do capitalismo. O êxito da Reforma foi possível graças ao Calvinismo, por esse motivo, ele é visto como o verdadeiro inimigo do catolicismo. Mas, não se pode esquecer que o trabalho, como vocação, foi uma conseqüência imprevista, que não fazia parte do ideário dos reformadores. O objetivo de Max Weber não é fazer um julgamento de valor da Reforma, e sim estudar os aspectos secundários dela, por outras palavras, ele quer saber como a Reforma religiosa influenciou os outros aspectos da “moderna cultura secular”. É preciso ressaltar que a reforma não foi uma “conseqüência histórica necessária”, como querem os materialistas dialéticos. Como também não se pode aceitar ser ela a causa do capitalismo, visto que muitas formas importantes do capitalismo existiram antes da Reforma. O que quer Max Weber é verificar como a Reforma influenciou qualitativa e quantitativamente a construção “desse „espírito‟ pelo mundo”. Além de verificar quais os aspectos do capitalismo se liga à Reforma. É necessário fazer uma correlação entre o Calvinismo e a ética da vocação. Se isso for possível, então, coloca-se luz sobre a influência religiosa na vida material. Após conseguir isso, o autor tentará relacionar a origem da cultura contemporânea com a religião. É isso que 306 se verá na segunda parte (A ética vocacional do protes- tantismo ascético). II Parte Capítulo IV: Fundamentos religiosos do ascetismo laico. No quarto capítulo (Fundamentos religiosos do ascetismo laico), da segunda parte, o autor fará um estudo sobre o protestantismo acético. É nesse grupo que ele encontrará a conduta moral voltada a uma vocação para o trabalho. Historicamente o protestantismo ascético é representado por: 1. Calvinismo do século XVII; 2. Pietismo; 3.Metodismo; 4.seitas Batistas. Esses grupos sempre se inter-relacionavam com os demais, bem como não era clara sua diferença para as igrejas não-ascéticas. O Metodismo surge a partir da Igreja Oficial da Inglaterra, e queria reforçar o ascetismo e não fundar uma nova igreja, mas, ao se dirigir a América, a ruptura ocorreu. O Pietismo surge a partir do Calvinismo inglês e holandês. Sua origem era ortodoxa, mas, no século XVII, separou-se da ortodoxia e foi englobado pelo Luteranismo, apesar de manter-se “como um movimento dentro da Igreja Luterana”. Os Calvinistas e os Batistas, no início, estavam separados, mas, no século XVII, se encontravam, em contato mais íntimo. 307 Ao analisar o protestantismo ascético, o interesse do autor se voltará para as sanções psicológicas religiosas que orientarão os indivíduos em suas condutas diárias. É necessário ressaltar que essas sanções tinham natureza religiosa. Por conseguinte, o autor fará um breve estudo sobre o dogma a que se refere o protestantismo ascético, para tanto, ele construirá os tipos ideais de cada uma das quatro religiões apresentadas acima. A. Calvinismo As lutas políticas e culturais do século XVII na Holanda, França e Inglaterra tiveram como centro o Calvinismo. O principal dogma dessa religião é a predestinação. Para se entender essa teoria, nada como citar o documento da “confissão Westminster”, de 1647. O homem é predestinado por Deus, porque: 1. como pecador, não conseguirá sozinho sua salvação; 2. Ele destinou alguns homens à vida eterna e outros à morte eterna; 3. alguns foram escolhidos para glorificá-los, por isso as boas ações de nada adianta nessa escolha; 4.condenou o restante da humanidade ao pecado eterno; 5. na época adequada, chamará os escolhidos; 6. a graça divina foi negada aos homens maus. A Max Weber não interessa julgar se a predestinação é certa ou não, mas ressaltar sua importância para a ética Calvinista. Existem dois caminhos que levam a esse dogma. O primeiro, que segue uma linha desde santo Agostinho, vê a graça como algo objetivo e não como um 308 valor pessoal. A graça tem de ser divina, visto que o homem é pecador. Enquanto que, em Martinho Lutero e Felipe Melâncton, a doutrina da predestinação foi perdendo seu valor, devido às lutas que empreendiam, com João Calvino ocorreu o oposto. E, após sua morte, ela se tornou central. Os homens não podem tentar julgar a predestinação, uma vez que seria um insulto a Deus, pois somente “Ele, e apenas Ele, é livre, não está submetido à lei alguma”. O que cabe aos homens saberem é que apenas alguns serão salvos e não porque Deus os escolheu. Como a vontade de Deus é imutável, as boas ações dos homens não são capazes de mudar o veredicto divino. A conseqüência da teoria da predestinação foi um enorme sentimento de solidão interna que pairou sobre o indivíduo. E assim, o homem da reforma foi obrigado a seguir sozinho seu destino. Com isso, não se poderia contar com a ajuda de ninguém, muito menos de: 1. sacerdotes, pois era o coração do escolhido que entenderia os desígnios do Senhor; 2. de nenhum sacramento, porque ele não é meio de se obter a graça divina; 3. de nenhuma igreja, porquanto nela havia também alguns condenados; 4. “nenhum Deus. Porque mesmo Cristo morrera apenas para os eleitos, em cujo benefício Deus decretara seu martírio pela eternidade. Isto – a completa eliminação da salvação através da Igreja e dos sacramentos (que no luteranismo não foi de modo algum desenvolvido até suas conclusões finais) – é o que constitui a diferença absolutamente decisiva entre o calvinismo e o catolicismo”.305 305 Ibidem, p. 72. 309 Com o Calvinismo, a magia é eliminada por completo do mundo. Esse processo, que se iniciou com os profetas hebreus e com o racionalismo grego, tem, no Calvinismo, sua conclusão lógica. Nessa religião, os meios mágicos de se conseguir a salvação são eliminados. A doutrina calvinista (baseada num Deus transcendente e na impureza da matéria), que vê o indivíduo sozinho internamente, nega tudo o que é sensual e emocional tanto na cultura, quanto no sentido religioso subjetivo, uma vez que de nada adiantam para a salvação eterna. Além disso, essa solidão interna do indivíduo é “uma das razões deste individualismo de inclinação pessimista e despido de ilusões”. O que vai interessar Max Weber é a total confiança que o calvinista devota a Deus. Nesse aspecto, não se deve confiar em ninguém, a não ser em Deus, como conseqüência, o processo da confissão desaparece. Isso foi um fato de grande importância: “Em primeiro lugar, ele é um sintoma do tipo de influência exercido por essa religião. Além disso, todavia, foi um estímulo psicológico para o desenvolvimento de sua ética. Os meios de uma „descarga‟ periódica do senso emocional de pecado foram com isso abolidos”.306 O calvinista precisava se relacionar com sua Igreja, para se salvar, e sua relação com Deus se dava na “solidão interna do indivíduo”. Daí, surgiu um aparente paradoxo: ele tem uma preocupação com o mundo social, mas ele se separa de todos os laços que o liga a esse mundo. 306 Ibidem, pp. 73-4. 310 Esse paradoxo é a conseqüência imediata da solidão do indivíduo e sua relação com a fraternidade cristã. O mundo somente existe para a glorificação de Deus e, ao escolhido, compete aumentar a glória divina. Entretanto, o cristão deve fazer obras sociais, pois o mundo deve ser organizado de tal forma que glorifique a Deus. Por isso, o calvinista trabalha como se fosse uma vocação, o trabalho tem como finalidade o amor ao próximo. Essa é a marca primordial de sua ética. Amor, ao próximo, é cumprir as tarefas cotidianas, conforme a lei natural. É preciso cumprir as tarefas, de modo objetivo e impessoal, a fim de organizar racionalmente a sociedade, sendo útil aos homens, pois foi destinado por Deus que assim seja: “Isso faz com que o labor a serviço dessa utilidade social impessoal surja como promotor da glória de Deus e, portanto, como desejada por Ele”. O que interessa a Max Weber, a essa altura, é saber como surgiu a teoria da predestinação numa época em que a preocupação com o outro reino era mais importante. À pergunta se era um escolhido tinha como resposta: tenha fé em Deus. Não se pode dizer pelas condutas dos outros se eles são ou não escolhidos. Não há diferenças externas, nesse mundo, entre os escolhidos e os condenados. Essa atitude tornou-se insuportável para os fiéis. Assim, surgiram dois tipos de recomendações pastorais, quanto à teoria da predestinação. A primeira dizia que cada um devia se considerar o escolhido por meio da fé na salvação: “A exortação ao apóstolo de fortalecimento da própria vocação é aqui interpretada como um dever de obter certeza da própria dedicação e justificação na luta diária pela vida”. 311 Essa primeira recomendação não se dirigia aos humildes pecadores, mas a “estes santos autoconfiantes” que podem ser identificados com os capitalistas puritanos. A segunda recomendação, para se saber se tinha graça ou não, aconselhava o trabalho intenso, pois ele afastaria a dúvida sobre a salvação. Essas recomendações remetem a outra pergunta: porque o calvinista julgava ser “capaz de identificar a verdadeira fé?” A resposta era: devido à sua conduta que servia “para aumentar a glória de Deus”. Somente tem fé quem fora eleito, por isso ele glorifica mais a Deus com suas obras.as boas obras não serviam para salvar o indivíduo (Deus já havia escolhido os seus), servem apenas como sinal da salvação. As boas obras não compravam a salvação, mas livrava do medo da condenação. Com essa conduta ética, o calvinista se convencia de que era escolhido por Deus. Assim, ele criava um sistemático autocontrole que era testado perante a pergunta: “escolhido ou condenado?” Para Max Weber, esse é o ponto central da discussão empreendida até agora. O “católico leigo medieval norma” agia com consciência de suas obrigações, mas elas não formavam um “sistema de vida integrado”, pelo contrário, eram noções isoladas. Elas eram usadas, com o intuito de aumentar a chance de salvação, ou como um seguro para a salvação. O importante, para esse católico, era a intenção do ato isolado. Cada ato determinava a salvação ou não. A Igreja Católica reconhecia não ser o homem uma unidade bem definida, para ser julgado como um todo. 312 Para ela, a vida moral do homem submetia-se a diversos conflitos e a ação do homem era contraditória. O que queria a Igreja Católica era “uma mudança de vida em princípio”. Entretanto, com o sacramento307 da absolvição ela abrandou esse requisito. Os católicos não racionalizaram o mundo, como os puritanos e os judeus, pois ainda recorriam à mágica para obter a salvação. A transubstanciação era uma mágica do sacerdote. Era ele o portador da salvação eterna, da absolvição dos pecados e, por conseqüência, diminuía a pressão sobre o indivíduo, perante a questão: escolhido ou condenado? O católico anda tranqüilo pelo mundo. O mesmo não acontece com o calvinista que constantemente se via pressionado por essa questão. Não havia conforto para ele, só porque, em outros momentos, agiu de boa vontade, tal como ocorria com o católico e o luterano. O Deus calvinista era exigente e queria dos escolhidos “uma santificação pelas obras, coordenada em um sistema unificado”. Bem diferente dos católicos que se apoiavam em ações isoladas: “Não havia lugar para o ciclo essencialmente humano dos católicos de: pecado, arrependimento, reparação, relaxamento, seguido de novo pecado; nem havia a balança de mérito algum para a vida como um todo, que pudesse ser ajustada por punições temporais ou pelos meios de graça da igreja”.308 “Cada um dos sinais sagrados (batismo, crisma, eucaristia, penitência, ordem, matrimônio e a extrema-unção) instituídos por Jesus Cristo para a salvação divina dos fiéis”. Ferreira, Aurélio. B. H. Mini dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, p. 93. 308 Weber, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. p. 82. 307 313 Com o Calvinismo, o indivíduo passa a ter uma vida sistemática, isso porque, somente com método, é que esse “poderia obter vitória sobre estado de natureza”. Esse ascetismo puritano tentava fazer com que os sentimentos fossem submetidos à Razão. Como objetivo, ele procurava fazer o homem ter uma “vida alerta e inteligente”. A ética calvinista apregoa que todo homem deve ser um “monge por toda a sua vida”. No desenvolvimento do calvinismo, surgem “a idéia da necessidade de se provar de cada um a fé, na atividade secular”. Esse fato aumentou o número de pessoas com interesses ascéticos: “Baseando sua ética na doutrina da predestinação, substitui aristocracia espiritual dos monges, alheia e superior ao mundo, pela aristocracia espiritual dos predestinados santos de Deus, integrados no mundo”. Os calvinistas não abandonaram o Velho Testamento, pelo menos aquelas leis que não se referiam ao momento histórico judaico e aquelas que não foram negadas por Cristo. Eles selecionaram os elementos que melhor se adaptavam a sua realidade. Os puritanos aceitavam: “a influencia da sabedoria, temente de Deus, mas perfeitamente desprovida de emoção, dos hebreus...”. Eles, ao abandonarem a emoção religiosa e ao substituírem pela racionalidade, o fizeram influenciados pelo Velho Testamento. A sistematização, à ética do Velho Testamento, achou terreno fértil no Calvinismo. A contabilidade que registra as virtudes e vícios seria sua marca característica. Na tentativa de santificar a vida, a racionalidade contábil se aproxima muito de uma “empresa comercial”. Com isso, o calvinismo cristianizava todos os momentos da 314 vida e foi essa racionalidade que influenciou por completo sua vida. B. O Pietismo Não só o Calvinismo aceita a teoria da predestinação, mas também o Pietismo a tem como ponto de partida. Ele está ligado intimamente ao puritanismo. O Pietismo, na Holanda, não procurava o conhecimento teológico para sim saber se o fiel foi eleito ou não. O caminho para seus seguidores, a fim de se saber sobre a eleição, era a fé. Eles não chegaram a formar uma seita309 separada, mas seus membros viviam longe das tentações mundanas e procuram sinais de que haviam sido escolhidos. Uma característica marcante do Pietismo era a emoção contida em sua religião, como conseqüência a prática religiosa, direcionada na busca da salvação e não a preocupação com um mundo futuro. Quanto aos Pietismo, na Alemanha, de base luterana, houve um afastamento da doutrina da predestinação, mas o que interessava a Max Weber é ver no Pietismo uma moral “metodicamente controlada e supervisionada”. Suas principais idéias são: 1.a conduta metódica é um sinal de graça divina; 2.o sinal divino da graça aparecerá àqueles que se conduzirem metódica e pacientemente. Na concepção de Max Weber seita é uma associação voluntária e democrática de fiéis. Elas aguçam a competição, enquanto que as corporações medievais a aboliam. 309 315 Para os Pietistas, existia uma aristocracia dos eleitos que estava “apoiada na especial graça de Deus”. Para eles, era importante a doutrina do Terminismo que admite ser a graça dada para todos os homens, “mas sempre pela última vez”. Além dessa doutrina, é possível encontrar entre eles a idéia de que a graça tornar-se-ia efetiva após o arrependimento. Pó isso, eles criaram um método racional, a fim de se conseguir a graça divina. Os grupos sociais que mais seguiam o Pietismo eram os: 1. “fervorosos” funcionários; 2. caixeiros; 3. operários; 4. empregados domésticos; 5. empreendedores patriarcais. Metodismo O metodismo é um movimento Pietista angloamericano ascético e emocional. O nome desse grupo religioso provém do caráter sistemático que eles tinham na obtenção da salvação. Era por meio do método que se alcançava a emoção importante na conservação: “A obtenção do arrependimento envolvia, em certas circunstâncias, uma luta emocional de tal intensidade que levava aos mais terríveis êxtases, que, na América, muitas vezes ocorriam em reuniões públicas. Isso formou a base de uma crença na imerecida posse da graça divina e, ao mesmo tempo, de uma imediata consciência de justificação e perdão.”310 Para os metodistas, a base para a salvação era a certeza do perdão, “derivado imediatamente do testemu310 Ibidem, pp. 98-9. 316 nho do espírito”. Outra doutrina, relevante para eles, era a santificação, por meio da graça divina, que dá a consciência da “libertação do pecado”. Essa consciência é conseguida por meio de uma profunda confiança e, por esse motivo, o metodismo se afasta do pessimismo calvinista. Para eles, as obras não são a causa da graça, mas os meios de se reconhecer alguém, em estado de graça, “e, mesmo isto, apenas quando elas são realizadas exclusivamente para a glória de Deus”. As seitas Batistas O Pietismo, da Europa continental, e o Metodismo anglo-saxão “são considerados movimentos secundários” no ascetismo protestante. Os Batistas, Menonistas e os Quakers colocam-se, quanto ao ascetismo, ao lado dos calvinistas, mas se diferem dos calvinistas em alguns pontos. Para as seitas Batistas, a igreja visível (a comunidade religiosa) era composta somente pelos crentes e os redimidos do pecado. Para eles, o batismo era a “posse espiritual de seu dom da salvação”. Essa era individual e conseguida por meio da “ação do espírito divino no indivíduo”. A salvação era para todos e, para consegui-la, bastava se afastar do mundo. A seita de Menno Simons, no século XVI, se auto conhecia como “a verdadeira igreja irrepreensível de Cristo”. Somente são irmãos de Cristo aqueles que se redimiram dos pecados. 317 Uma característica de relevância, para as seitas Batistas, é “o repúdio necessário de toda „deificação da carne‟, como uma detração da revivência, devida apenas a Deus”. Com as seitas Batistas, os sacramentos são desvalorizados e a religião é desmistificada. Para eles, era a “luz interior” que os facultava entender as coisas de Deus. Com a não aceitação da predestinação calvinista, os Batistas apoiaram-se “na idéia da „espera‟ pela ação do Espírito”. O indivíduo, para ouvir a palavra de Deus, deve-se calar. A conseqüência imediata foi uma educação ponderada dos negócios e “a orientação destes [para a] justificação da consciência individual”. Nas seitas batistas, a vocação era econômica, pois eles recusavam: 1. funções públicas; 2. pegar em armas; 3. prestar juramentos. Eles eram contra qualquer “estilo de vida aristocrático”, bem como eram apolíticos, assim como os calvinistas. A “ascese secular dos Batistas” exigia ser a honestidade a melhor política. Isso já foi dito mais acima, no documento de Benjamin Franklin, e é um princípio ético importante no capitalismo. Após expor a fundamentação religiosa da “idéia puritana de vocação”, Max Weber estudará essa idéia, “em sua atuação na vida profissional”. O importante, para o autor, é o ponto em que todas essas religiões se convergem: o estado de graça. Esses religiosos chegavam a esse estágio, por meio do método, que pudesse sistematizar esse estado de graça, por isso eles abraçavam o ascetismo religioso racio318 nal. Todo aquele que “estivesse certo da salvação” podia querer esse ascetismo: “A vida religiosa dos santos, desligando-se da vida „natural, não era muito vivida – este é o ponto mais importante – fora do mundo, em comunidades monásticas, mas dentro do mundo e de suas instituições. Esta racionalização da conduta dentro deste mundo, mas para o bem do mundo do além, foi a conseqüência do conceito de vocação do protestantismo ascético”.311 Esse ascetismo puritano abandona o mosteiro e coloca-se na vida, de modo metódico, tentando moldar a rotina diária à racionalidade, mas não visando a esse mundo. e o resultado dessa conduta ética será o tema do próximo capítulo. Capítulo V: Ascese e o espírito do capitalismo No capítulo cinco (Ascese e o espírito do capitalismo), Max Weber tomará o protestantismo ascético como um todo, mas como é, no puritanismo, cuja idéia de vocação está mais fundamentada, o autor analisará um de seus teóricos mais importantes: Richard Baxter. Ele se afastou dos dogmas do calvinismo ortodoxo e não admitia o governo de Cromwell. Ele aceitava a opinião alheia e era objetivo com seus adversários. Seu trabalho dirigiase para a promoção “da vida moral eclesiástica”. Richard Baxter discute a riqueza e sua aquisição. Para ele, a riqueza é um perigo, pois suas tentações são grandes, sua procura sem sentido e moralmente suspeita. Sua ascese parece voltar contra a busca de bens materi311 Ibidem, p. 109. 319 ais. A riqueza é condenada porque ele faz com que o indivíduo fique relaxado, frente à vida santificada: E apenas é condenável porque a riqueza traz consigo este perigo de relaxamento. Pois o “eterno descanso da santidade” encontra-se no outro mundo; na Terra, o Homem deve, para estar seguro de seu estado de graça, “trabalhar o dia todo em favor do que lhe foi destinado”. Não é, pois, o ócio e o prazer, mas apenas a atividade que serve para aumentar a glória de Deus, de acordo com a inequívoca a manifestação da Sua vontade.312 Para Richard Baxter, “a perda de tempo, portanto, é o primeiro e principal de todos pecados”. A perda de tempo é a perda do trabalho e perder trabalho é não glorificar a Deus. É por esse motivo que a contemplação é condenada. Ele defende um trabalho mais duro e constante. E isso devido a dois fatores: 1. o trabalho previne as tentações; 2. o trabalho é a própria finalidade da vida. O trabalho é tão importante parra ele que até os mais ricos devem trabalhar, pois os mandamentos de Deus servem para todos. A vocação, dada por Deus, exige que todos trabalhem para a sua glória. A divisão do trabalho existe, a fim de que as habilidades do trabalhador aumentem a produção, em termos de qualidade e quantidade. Como conseqüência desse aumento, há uma melhoria do “bem comum”, que é idêntico ao bem do maior número. É impossível não ver como essa teoria influenciou Adam Smith. Nesse aspecto, é uma motivação utilitária. E o puritanismo de Richard Baxter surge, quando ele afirma que 312 Ibidem, p. 112. 320 as realizações do homem são bem sucedidas a partir do momento que seguem sua vocação: “Mas o elemento caracteristicamente puritano logo aparece quando Baxter coloca à frente discussão a seguinte proposição: “Fora de uma vocação bem-sucedida, a realizações do homem são apenas casuais e irregulares, e ele gasta mais tempo na vadiagem do que no trabalho”, e também quando conclui dizendo que “ele (o trabalhador especializado) efetuará seu trabalho ordenadamente, enquanto um grupo permanecerá numa contínua confusão, não conhecendo sua atividade, nem lugar [...] razão pela qual ter um ofício certo é o melhor para tantos. O trabalho irregular, que muitas vezes o operário comum é obrigado a aceitar, é, muitas vezes, um mal inevitável, mas, sempre indesejável estado de transição. Assim, falta à vida do homem sem ofício aquele caráter sistemático e metódico requerido, como vimos, pelo ascetismo secular”. 313 A utilidade de uma vocação e sua aprovação por Deus é orientada: 1. por critérios morais; 2. pela “importância dos bens produzidos para a „coletividade‟”; 3. pelo lucro individual conseguido no empreendimento. A riqueza deve ser buscada para a glorificação de Deus, caso ela sirva para a ociosidade, ela torna-se moralmente condenável. A busca da riqueza, quando é feita como um dever vocacional, é eticamente aceitável. Querer ser pobre é querer ser doente. A mendicância, para aqueles que têm condições de trabalhar, é “uma violação do dever de amar ao próximo”. 313 Ibidem, p. 115. 321 A importância que foi dada à ascese “de uma vocação fixa” foi a base para se justificar “a moderna divisão do trabalho”. A partir desse momento, Max Weber mostrará como as teorias puritanas da vocação e do ascetismo contribuíram no desenvolvimento do capitalismo. A Ascese é contra o desfrute natural da vida. O homem apenas guarda os bens que pertencem a Deus. Cada centavo pertence a Deus e, por isso, seu gasto deve ser na glorificação divina. Quanto maior a riqueza maior a responsabilidade para com Deus. O “ascetismo secular do protestantismo”, por um lado era contrário ao consumo. Por outro lado, deixava indivíduo livre psicologicamente para adquirir bens, pois eram desejados por Deus. A luta desse ascetismo não era contra a riqueza, contudo contra o seu uso irracional: “A idéia de comfort limita de maneira sintomática a margem de despesas eticamente perecíveis, e, naturalmente, não constitui coincidência que o desenvolvimento do estilo de vida, que se prende a essa idéia, tem sido observada primeiro, e de maneira mais clara, justamente entre os representantes mais conseqüentes de toda essa concepção de vida: os quakers”.314 Esse ascetismo também condenava a desonestidade e a ganância. Seu mais alto instrumento era o trabalho sistemático vocacional. Esse trabalho é um meio de preservar a redenção da fé e do homem, foi uma alavanca poderosa do “espírito” do capitalismo. O ascetismo puritano tem como conseqüência, da restrição do consumo com a busca da riqueza, a acumu- 314 Ibidem, p. 123. 322 lação capitalista. Como o capital poupado não podia ser utilizado para aumentar o luxo e nem o consumo, ele devia, então, ser empregado na produção. Com o desenvolvimento da ética puritana, houve um favorecimento da “vida econômica racional e burguesa”: Uma ética profissional especificamente burguesa surgiu em seu lugar. Consciente de estar na plena graça de Deus, e sob a sua visível benção, o empreendedor burguês, enquanto permanecesse dentro dos limites da correção formal, enquanto sua conduta moral fosse sem manchas e não fosse objetável o uso de sua riqueza, podia agir segundo os seus interesses pecuniários, e assim devia proceder. O poder da ascese religiosa, além disso, punha à sua disposição trabalhadores sóbrios, conscientes e incomparavelmente industriosos, que se aferraram ao trabalho como uma finalidade de vida desejada por Deus. Dava-lhe, além disso, a tranqüilizadora garantia de que a desigual distribuição da riqueza deste mundo era obra especial da Divina Providência, que, com essas diferenças, e com a graça particular, perseguia seus fins secretos, desconhecido dos homens.315 No puritanismo ascético, o trabalho consciente é agradável a Deus, mesmo se o trabalho for de baixa remuneração. Nessas religiões, isso tornou-se uma norma, pois o trabalho deveria ser feito por vocação, a fim de se atingir a graça divina. O trabalho torna-se um „dever para com Deus”. Um dos elementos principais do capitalismo moderno, o trabalho racional como vocação, teve sua origem no “espírito da ascese cristã”: O puritano queria tornar-se um profissional, e todos tiveram de segui-lo. Pois quando o ascetis315 Ibidem, p. 127. 323 mo foi levado para fora dos mosteiros e transferidos para a vida profissional, passando a influenciar a moralidade secular, fê-lo contribuindo poderosamente para a formação da moderna ordem econômica e técnica ligada à produção m série através da máquina, que atualmente determina de maneira violenta o estilo de vida de todo indivíduo nascido sob esse sistema, e não apenas daqueles diretamente atingidos pela aquisição econômica, e, quem sabe, o determinará até que a última tonelada de combustível tiver sido gasta. De acordo com a opinião de Baxter, preocupações pelos bens materiais somente poderiam vestir os ombros do santo “como um tênue manto, do qual a toda hora se pudesse despir”. O destino iria fazer com que o manto se transformasse numa prisão de ferro. 316 316 Ibidem, pp. 130-1. 324