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A biblioteca não acabou
Nos meus tempos de ginásio a excursão pela biblioteca era geralmente
feita quando se havia necessidade de pesquisa para um trabalho ou se
aprofundar na matéria de alguma prova. Buscar informação por prazer era
algo que os professores não incentivavam e assim, os alunos se sentiam
seguros com essa limitação, pois não tinham que estudar além da conta
ficando acomodados.
A minha impressão de biblioteca era de uma sala estática, sem movimento e
com livros para você pesquisar e sair, sem circular por ela evitando
conhece-la e explorá-la. Entretanto, esse ambiente sempre me cativou e me
dava prazer, pois parecia revestido de uma aura singular, ambiente onde as
pessoas vinham para aprender e seu acervo contribuía para o conhecimento
dos alunos. Essa concepção dicotômizada da biblioteca para mim, pendurou
por longos anos e claro, percebi que houve mudanças significativas nela,
mas eis que me deparo com o livro Biblioteca de Luís Milanesi que trata do
tema e expõe as mudanças ocorridas deste antigo ambiente que até os dias
atuais percorreu caminhos ímpares.
O autor de início sentencia que "a biblioteca não acabou", afirmação
que remete e questiona a sua funcionalidade, e ele conclui que ela existe
porque é um importante meio de obter e guardar registros para pesquisas e
busca de conhecimento. Nessa perspectiva ele vai traçando um panorama que
vem desde a Antigüidade, nos primórdios do registro, dando ênfase a
descoberta da necessidade de se ordenar os documentos para facilitar a sua
busca quando houvesse necessidade. Com o passar do tempo, isso se tornou
uma obsessão, organizar, classificar e ordenar deveriam ser feitos por uma
pessoa preparada e que tivesse o conhecimento dos arquivos, sua
funcionalidade e do espaço, criou-se então a figura do bibliotecário. Da
Antigüidade ao Renascimento ele teve papel fundamental na organização do
acervo, já na Idade Média era ele que zelava pelos livros da biblioteca e
era revestido de uma autoridade sacerdócia envolta em mistérios e magia,
pois o saber não era para todos, mas para os iniciados e pessoas ligadas à
igreja. Porém, com o decorrer dos tempos, a Europa conheceu um material
mais móvel e barato: o papel e a partir daí, houve um boom da publicação de
livros que saiam das casas editoras. Houve transformações advindas da
propagação das idéias iluministas no século XVIII, pregava-se mais
autonomia no agir e no pensar e o livro já não estava mais em poder do
clero, mas nas mãos de um outro segmento social, a burguesia. Num
determinado período houve muitas produções e se instaurou o "caos
bibliográfico", era um momento em que se questionava: o que se produzia era
o conhecimento humano ou era muita inutilidade? Fato similar podemos
constatar hoje com o advento da internet, citando o exemplo da utilização
de uma ferramenta de busca por um internauta, esta trará um volume muito
maior de informação, mas a qualidade ou o que se aproveita geralmente é
muito pouco, constata-se o "lixo informacional". Essas ferramentas de busca
não são pensadas por especialistas em educação ou professores, portanto a
situação se complica quando se necessita de uma pesquisa mais depurada e
perde-se muito tempo separando o joio do trigo, o que serve e o que não
serve.
Voltando no tempo, com o advento da Revolução Industrial, só depois
da metade do século XIX é que surge as linhas ferroviárias e com elas o
trem que passou a levar não somente livros, mas jornais e revistas também.
Inicialmente deu-se na Inglaterra e depois nos EUA e posteriormente no
Brasil. No entanto, mesmo com os trens levando informação, em nosso país
houve pouco empenho em criar bibliotecas públicas e os resultados se vêem
atualmente: apenas 1% de adultos em nosso país freqüenta as bibliotecas,
contingente irrisório num país em que a leitura perde drasticamente frente
ao majoritário domínio da televisão comercial que segue ditando modismos e
comportamento. Esse é o novo desafio do "profissional da informação" tornar
atrativo um espaço que por muito tempo foi passivo e por vezes sizudo com a
parcela mais pobre da população, torná-la popular oferecendo conhecimento e
arte, afinal como naquela música "a gente não quer só comida" o povo também
precisa de cultura para sobreviver e dar continuidade a sua história.
Algumas saídas e algumas soluções concretas o autor aponta, como
mudança do perfil das bibliotecas para "centros de cultura" torná-la mais
real na linha de pensamento dos novos tempos, com eventos culturais, acesso
a internet e suporte multimídia, utilizar os recursos audiovisuais como
filmes e documentários, tratar de informação pública e principalmente
conhecer as necessidades da população para tornar mais próximo e mais
ativo, esse espaço que por muito tempo foi distante, tanto das camadas mais
populares como na acolhida destes e somente pensada tecnicamente na sua
organização e funcionalidade.
A internet também transformou o cotidiano de uma parcela do povo, há
muito mais informação na rede mundial do que em uma biblioteca dita comum,
bastando apenas acessá-la com uma linha telefônica e apenas um movimento do
mouse. Com o advento da internet remodelou-se sua função também e o autor
aponta que a informação só tem sentido se trocada, debatida e analisada,
passada do virtual para o real e que sozinha não tem razão de ser.
As possibilidades no contexto homem-máquina já demonstram traçar um novo
horizonte que se direciona em busca da "informação utilitária", esta que
faz sentido para a coletividade e colabora para transformações dos
indivíduos e do seu meio.
O livro de Milanesi é uma boa introdução para àqueles que têm curiosidade
em saber mais sobre esse espaço tão pouco analisado e conhecido, que
iniciou para poucos e caminha para o desafio de atingir a muitos. A obra
não foi pensada e nem planejada para especialistas e estudantes da área de
Biblioteconomia, pois todas as informações contidas nele já são por certo
de conhecimento destes, mas para estudantes de Ensino Fundamental e Médio
que buscam mais informação sobre o assunto, já que há poucas bibliografias
a respeito dele e as informações sobre o assunto são escassas. Deve-se
também salientar a dica de que a busca não deve se restringir somente ao
livro, mas por outras vias também como a internet, revistas e filmes.
As dificuldades da leitura do livro ficam por conta da ênfase na repetição
de assuntos já tratados anteriormente, mas leva-se em consideração que é
uma maneira de fazer relação com o que já foi exposto, visto que o livro é
para pessoas que estão iniciando a empreitada de compreender o tema, então
nada mais sensato do que ter uma certa paciência quando a leitura começar a
se tornar repetitiva, pois é para um público ainda iniciante na pesquisa.
Em alguns momentos da leitura podemos barrar com obviedades, principalmente
quando o autor trata do público que utiliza a biblioteca: as crianças,
adolescentes, universitários e creio que ele poderia ao invés de "falar o
que se sabe" explorar mais as contribuições e vantagens da freqüência desse
público na biblioteca, pois eles tem uma identidade própria e um forte
apelo pela mudança, típico dos mais jovens.
O livro tem como pontos positivos a busca incessante de traçar uma linha
sobre os movimentos que ocorreram com a biblioteca, suas mudanças e
contratempos, isso o torna interessante, pois percebe-se claramente que o
curso da história é que determina como a biblioteca deve ser e funcionar.
Um aspecto que faltou ser ressaltado no livro é a conecção
literatura/leitor, pois durante a história percebemos diversos temas que
tratam do perigo dos livros. Como no livro de Cervantes em que o personagem
Dom Quixote se deixa influenciar pelos livros de cavalaria e foram
considerados "coisa do demônio" pelo cura sendo estes queimados ou a
exemplo de Madame Bovary de Flaubert que apresenta a protagonista Ema como
uma leitora de romances que através deles foge da realidade que por vezes
parece ser tão difícil. Nesses dois casos vemos a leitura de livros como
uma atividade perigosa e que os escritores em suas respectivas épocas
questionaram a seu modo o tal "prazer" da leitura.
O livro Biblioteca estaria mais completo se tivesse utilizado essas
perspectivas literárias, mas talvez não estivesse na proposta do autor
tratar deste contexto, o que é uma pena, pois seria interessantee um bom
incentivo para o iniciante se interessar por livros de literatura. Porém, o
autor trata também de incertezas quando trata do período em que ocorreu a
revolução tecnológica e a expansão e utilização da internet por usuários
caseiros. Nesta fase foram questionados o fim do livro e da biblioteca,
pois o acervo eletrônico da rede de computadores era muito maior do que
havia em uma biblioteca e isso causou um certo abalo na última década do
século XX, mas passado o choque inicial o livro e a biblioteca estão aí e
devem durar por muito tempo e o que conforta é que eles se transformaram e
mudaram tornando-se mais reais e tentando se adequar ao seu tempo e a sua
realidade, principalmente a biblioteca. A biblioteca avança para uma
transformação contínua, essa contribuição foi dada pela tão temida internet
e isso denota que a afirmação inicial de Milanesi de que a biblioteca não
acabou é mesmo uma verdade, ainda que em constante mudança.
Bibliografia
Milanesi, Luís. Biblioteca. Cotia: Ateliê Editorial, 2002.