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1. INTRODUÇÃO
O homem sempre se utilizou de classificações para organizar a vida;
separar o que o cerca para depois agrupar em conjuntos formados por
elementos semelhantes, que tenham características em comum, possibilita uma
visão mais clara das coisas e o mesmo serve para elementos opostos quando
separados e comparados. Tomando aspectos cada vez mais detalhados e
servindo a propósitos cada vez mais específicos e complexos, as
classificações foram adotadas também para simplificar ou facilitar
explicações de teorias ou mesmo para se narrar fatos históricos e não
demorou para que fossem utilizadas pela elite detentora do poder – e,
normalmente, do conhecimento – em prol da dominação social. Neste sentido,
tudo o que estivesse relacionado à classe dominante serviria, portanto,
para identificá-la, estando vetado à classe dos dominados qualquer tipo de
comportamento que pudesse ser associado às classes superiores. Esta questão
pode ser elucidada com a cultura e suas variações, uma vez que sempre foi
majoritariamente abordada pelo ponto de vista da elite, havendo uma
classificação diferencial ao se tratar da cultura pertencente ao povo, a
não elite.
Sobre a dificuldade de se definir o que é cultura, Peter Burke
(1978:11) assinala:
"'Cultura' é uma palavra imprecisa, com muitas definições
concorrentes; a minha definição é a de 'um sistema de
significados, atitudes e valores partilhados e as formas
simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que
eles são expressos ou encarnados'. (...) Quanto à cultura
popular, talvez seja melhor de início defini-la
negativamente como uma cultura não oficial, a cultura da
não elite, das 'classes subalternas'."
Com o tempo, a "cultura popular" recebeu outras classificações,
como "cultura de massa" e "baixa cultura", em oposição à cultura da elite,
hegemônica, considerada a "alta cultura"; tais diferenciações se provaram
relativamente efetivas devido ao esforço das classes altas, responsáveis
pelo que se pode chamar de produção intelectual, apesar de interações entre
uma cultura e outra, principalmente com a invenção da imprensa, que tornou
a literatura mais acessível, bem como a arte, como observa ainda Burke
(1997:180) ao analisar a situação italiana durante o Renascimento:
"Os habitantes de cidades grandes como Veneza, Florença,
Roma e Milão tinham acesso relativamente fácil às escolas
e também às obras de arte expostas em lugares públicos
(...).
Os historiadores da cultura italiana desse período tem,
portanto, de lidar com um processo de mão dupla. De um
lado, a propagação das formas e ideias do Renascimento
das elites para o povo (...). Do outro, há um movimento
(...) em que os pintores e escritores italianos
recorreram à herança cultural popular."
No que diz respeito à pintura, forma artística extremamente importante para
o período, que compreende os séculos XVI e XVII, acrescenta:
"No caso das artes visuais, a relação entre erudito e
popular é consideravelmente mais complicada, porque a
arte 'superior' do Renascimento italiano era em geral
produzida por homens com formação e status de artífices.
Eles produziam pinturas religiosas sem a oportunidade de
estudar teologia e cenas da mitologia clássica sem ter
condições de ler em latim, para não falar de grego. (...)
Contudo, um público maior tinha a possibilidade de ver
versões gráficas de algumas delas (...). A obra de arte
já ingressara na era da reprodução mecânica. Como a
pintura, a gravura era um grande popularizador, pelo
menos no sentido de que permitia que muito mais pessoas
vissem as imagens, e talvez também mais tipos de
pessoas." (Burke, 1997:183)
Esta estratificação cultural e social é semelhante na maioria dos
países europeus e, posteriormente, também em suas colônias; de acordo com
Burke (1978:51), "havia uma minoria que sabia ler e escrever, e uma maioria
analfabeta", e a cada uma destas classes cabia uma tradição cultural
específica, chamada pelo historiador de "grande tradição":
"Ela inclui a tradição clássica, tal como era transmitida
nas escolas e universidades; a tradição da filosofia
escolástica e teologia medievais, de forma alguma
extintas nos séculos XVI e XVII; e alguns movimentos
intelectuais que provavelmente só afetaram a minoria
culta: a Renascença, a Revolução Científica do século
XVII, o Iluminismo." (Burke, 1978:51)
Foi durante o século XVIII que algumas mudanças começaram a ocorrer
em função das Revoluções Burguesas, que elevaram uma classe de estudos
limitados – os burgueses – ao poder. De um lado, a nobreza continuava como
a elite cultural, à qual pertenciam os principais pensadores do "século das
luzes". De outro, a literatura passou a ser uma forma de expressão dos
burgueses, estes "nobres recém-chegados", que criticavam a racionalidade
excessiva do Iluminismo e buscavam novos valores, adversos ao Classicismo
que cultuava a Antiguidade Greco-romana. Com a Revolução Industrial, em
1750, começou-se a identificar uma cultura burguesa e o que seria a cultura
proletária, das massas, ainda que a nobreza tradicional e conservadora se
negasse a reconhecer a produção cultural burguesa, então dominante, como
pertencente à elite, que se ocupava da produção filosófica e científica. No
entanto, seria impossível evitar que os detentores do capital não se
misturassem à nobreza, uma vez que, economicamente, haviam "conquistado" o
direito de fazer parte dela, até que a tomassem por completo – enquanto a
própria nobreza definhava, sem conseguir manter suas riquezas, agarrando-se
ao status apenas pelos sobrenomes herdados, ou através de casamentos
arranjados com os "novos ricos".
Já no século XIX era possível prever uma diversidade estilística
que tomaria uma forma ainda mais complexa e se tornaria a essência da arte
no caótico século XX, no qual houve a tentativa de se rejeitar as
tradições. Porém, as distinções entre cultura da elite e cultura das massas
foram mantidas e persistem, até certo ponto, mesmo com as propostas pós-
modernistas de desconstrução, estabelecidas principalmente a partir da
segunda metade do século XX.
Ainda que a contemporaneidade promova a transposição das teorias
clássicas, há uma dependência destas mesmas teorias ou, pelo menos, dos
conceitos previamente determinados, permanecendo, portanto, o uso destes
mesmos conceitos visados na desconstrução – ainda que de uma forma
adaptativa ou relativamente nova.
***
Muitos conceitos teóricos se tornaram obsoletos e inconsistentes
diante da produção cultural contemporânea, e mesmo as novas classificações
não conseguem fugir de uma generalização, por assim dizer, teoricamente
inadequada a um período no qual a pluralidade ocorre em detrimento da
unificação. Há um esforço pelo total desprendimento de conceitos
tradicionais, mas estes ainda são constantemente retomados em análises e
teorias em desenvolvimento, o que reflete uma dependência, como é o caso de
uma história em quadrinhos que, mesmo não sendo inteiramente classificada
como literatura, acaba sendo analisada como produto literário – uma vez que
são suas características literárias vistas como principal determinante de
sua qualidade, podendo, então, deixar de ser vista como produto da cultura
de massa. Portanto, o que este artigo procura demonstrar é que, apesar de
transitar entre a alta e a baixa cultura, que pretende tornar indistintas
as fronteiras na maioria dos produtos pós-modernos, ainda não é possível o
descarte dessas classificações, pois não foram desconstruídas por inteiro.
Este trabalho pretende discutir como se dá a relação entre alta e
baixa cultura na contemporaneidade, como estas se misturam e se ainda é
possível delimitar seus elementos mesmo em obras tipicamente pós-modernas,
que objetivam rejeitar a hierarquização, a partir do exemplo da história em
quadrinhos Sandman, escrita por Neil Gaiman e publicada entre 1989 e 1996,
que dialoga com duas peças do dramaturgo William Shakespeare, A Midsummer
Night's Dream e The Tempest. Para tanto, serão expostos alguns conceitos
relativos à arte, passando pelo pós-modernismo e pela origem dos termos
alta e baixa cultura (highbrow e lowbrow, respectivamente), além de um
conceito aparentemente implantado para lidar com a erosão das fronteiras
culturais, o "cult", que se relaciona também ao consumo da arte, sendo o
mercado um fator a determinar seu status no cenário pós-moderno.
Por fim, serão apresentadas as características de Sandman,
procurando determinar os motivos para que este tenha se tornado um cult,
comparando a história em quadrinhos às obras canônicas de William
Shakespeare às quais se refere. Através de uma breve consideração sobre a
vida do dramaturgo, será possível também elucidar o caso do teatro, que
começou como uma forma de arte para as massas e apenas posteriormente
passou a ser considerado um produto destinado à elite.
Como será possível perceber através da bibliografia, grande parte
desta pesquisa, no que diz respeito à obra em quadrinhos abordada, foi
realizada através da Internet, devido ao fato de muitos dos estudos
publicados sobre Sandman e sobre as histórias em quadrinhos contemporâneas
estarem disponíveis apenas em revistas eletrônicas. Também foram
consultados diversos web sites pessoais de professores, pesquisadores e
escritores que fazem da leitura das histórias em quadrinhos um hobbie,
disponibilizando seus estudos e leituras que não tiveram a oportunidade de
publicar. Não obstante, além das próprias edições (e reedições) de Sandman
que contem textos, introduções e comentários em anexo, foram publicados
apenas três livros que tratam exclusivamente da obra: The Sandman
Companion, por Hy Bender (2000); The Sandman Papers, editado por Joe
Sanders (2006); Neil Gaiman's The Sandman and Joseph Campbell: In Search of
the Modern Myth, por Stephen Rauch (2003). Ademais, para melhor percepção
dos apontamentos e possíveis esclarecimentos, diversas imagens da obra
foram reproduzidas e anexadas.
2. DO PÓS-MODERNO E DO INTERDISCIPLINAR
Muitas vezes confundidos e, de fato, ambíguos, os termos "pós-
modernidade" e "pós-modernismo" tem, contudo, significados diferentes. A
"pós-modernidade" engloba um período histórico específico, que tem início
no final dos anos 80, com a queda do leste europeu socialista, que deu
início a um novo estilo de pensamento cuja base era o questionamento das
noções clássicas de verdade, razão e objetividade (Fernandes, 2005:301), e
que corresponde à terceira fase do capitalismo, também conhecido como
"capitalismo tardio" (Jameson, 1996). O "pós-modernismo", por outro lado,
refere-se a uma forma de cultura que tem suas origens ainda no final da
primeira metade do século XX[1] e, de acordo com Fernandes (apud Eagleton,
2005:301), a respeito de sua produção, resultou em uma "arte pluralista,
superficial, descentralizada, infundada, auto-reflexiva, divertida,
derivativa, eclética, que torna indistintas as fronteiras entre cultura
'alta' e 'popular', bem como arte e experiência cotidiana".
Apesar das pequenas diferenças, são, ambos, o resultado teórico e
prático de uma história recente, caótica e cheia de protestos que
demonstraram a insatisfação da sociedade para com seus governantes e
valores vigentes, aos quais estiveram submetidos por decisão dos mais ricos
e poderosos, que haviam sido os protagonistas da maioria dos fatos
históricos até então. Ocorreram ainda profundas mudanças e importantes
descobertas no campo tecnológico e científico, na produção econômica, nas
formas de sociabilidade e na vida cotidiana, levando a uma realidade muito
mais fragmentada, na qual os elementos se misturam entre si.
Em termos teóricos, a metafísica divulgada pelo pensador
moderno[2], que se preocupa mais com a problemática do conhecimento que com
questões ontológicas (referentes ao conhecimento do ser), entra em crise
frente às transformações tecnológicas de uma "era pós-industrial" (Barbosa,
1985), cujas novas concepções científicas colocam em descrédito conceitos
como "razão", "totalidade", "verdade", "progresso". A teoria pós-moderna
surge como reflexo da incredulidade no "metadiscurso filosófico-metafísico"
(idem); o desconstrutivismo predominante e a rejeição do totalizante geram
debates teóricos que chegam até mesmo a contrastar entre si. Como
resultado, Batista e Salvi (apud Martin, 2006:149) lembram que "não se pode
afirmar que há um paradigma pós-moderno identificável ou teorias pós-
modernas que se dêem como uma unidade coerente à qual se possa recorrer",
pois o pós-moderno vai justamente de encontro à unidade.
O desenvolvimento de novas tecnologias e novas descobertas em
diversas áreas do conhecimento se tornou frequente durante o século XX. Por
volta dos anos 50 é possível falar em uma "era pós-industrial" (Lyotard,
1979) que trouxe, juntamente com as transformações tecnológicas, novas
concepções científicas que demandavam novas teorias com propostas mais
ousadas, que rompessem com a barreira do antiquado pensamento moderno. Uma
dessas propostas, admitindo que nada acontece independentemente e sem
desencadear efeitos diversos, seria a de comparar diferentes áreas de
estudo e pesquisa e suas produções, contrariando um conhecimento
compartimentado, tradicionalmente separado em disciplinas que, por não se
comunicarem, parecem nada ter a ver entre si. A visão sobre um determinado
assunto a partir da comparação e até mesmo da intervenção de uma área em
outra é ampliada, e o diálogo pode esclarecer determinados pontos e fazer
com que surjam novas questões relevantes inclusive ao período
contemporâneo, que é regido principalmente pela pluralidade – a sociedade
não é única, ela comporta diferentes culturas, que são representadas por
diversos indivíduos com costumes, idiomas, literaturas e heranças variadas.
Tomando uma perspectiva interdisciplinar, a comunicação entre as diferentes
linhas do saber pode promover uma integração do conhecimento, que permite
melhor interpretação da realidade. O debate pós-moderno, através da
aceitação do fragmentário, então, permitiu a visualização da diversidade
social, temporal, espacial, cultural e econômica, buscando melhor
compreensão de determinados problemas político-sociais.
Do ponto de vista da arte, o pós-modernismo veio se opor ao
modernismo, surgido em fins do século XIX. Inicialmente uma explosão
criativa que visava uma renovação estética que rompia com temas clássicos,
posteriormente, adquiriu o status de anti-arte, objetivando chocar a classe
média pela rejeição do tradicional. Ironicamente, o modernismo tornou-se um
movimento extremamente elitista que, mesmo usando o "homem comum" e a
massificação como tema, suspeitava de tudo o que carregava a alcunha de
popular (Storey, 1993), portanto, continuando a se prender à alta cultura.
A arte pós-modernista, neste caso, foi uma reação populista ao elitismo
moderno e, apesar da tentativa de fazer com que os termos "alta cultura" e
"baixa cultura" se tornassem inutilizáveis, estes ainda persistem – mesmo
que coexistindo com os questionamentos e as dúvidas a respeito de sua
validade – e outras denominações acabaram por ser admitidas, como foi o
caso de "conservadores" e "artistas de vanguarda" ("avant-garde") – termos
consolidados pela arte modernista a fim de diferenciar, respectivamente, o
que se mantinha fiel às tradições daquilo que era realmente inovador. Ora,
se a arte pós-moderna rejeita os valores e certezas categóricas do
modernismo, ainda assim não se desfaz das instituições tradicionais – na
verdade, busca apenas questioná-las e confundi-las –, mas é efetivo ao
colocar em xeque a legitimidade da alta cultura pela forma como mistura
elementos culturais da elite com elementos culturais populares sem um
objetivo específico, ao contrário da arte modernista que se mostrava
relativamente hostil em relação à cultura das massas.
Segundo argumentava o artista e teórico Andy Warhol (apud Storey,
1993), o que determinava se uma obra de arte era "real" ou comercial era,
simplesmente, o gosto da classe dominante daquele determinado período. O
modernismo passou a se utilizar de elementos da cultura popular a fim de
atingir seu objetivo crítico, mas continuou a produzir arte para a elite
intelectual criticada.
2.1. Introdução às histórias em quadrinhos
A mistura de textos e imagens dependentes entre si resulta em uma
cadeia, não necessariamente linear, que dá forma à narrativa. Esta
característica essencial dos quadrinhos foi a que deu origem ao nome "arte
sequencial" (Eisner,1989), a fim de diferenciá-los dos livros que continham
ilustrações aleatórias.
As histórias em quadrinhos, cuja trajetória será exposta no próximo
capítulo, são tanto um produto do pós-modernismo, uma vez que misturam o
desenho artístico e a literatura, sendo destinadas inicialmente ao consumo
popular, quanto uma forma de expressão adotada na pós-modernidade para
maior e melhor divulgação de ideias – tornou-se, por exemplo, um recurso
amplamente utilizado pelos jornais como um instrumento de crítica contendo
toques humorísticos. Não há uma temática específica a ser apresentada nos
quadrinhos, nem um estilo rígido ou limitações referentes à escrita ou à
imagem; um autor pode recorrer tanto a obras clássicas quanto a outros
quadrinhos – a intertextualidade é um elemento muito comum principalmente
em publicações de uma mesma editora.
Como todas as formas de arte, a história em quadrinhos passou por
expressivas transformações desde seu surgimento e diversos elementos –
alguns menos ortodoxos – foram adicionados a suas páginas. Além da
interação propriamente dita, outros recursos gráficos aparecem nas
revistas, como letras (fontes) diferentes ou destacadas, uma coloração mais
ou menos vibrante ou a ausência de cores nos desenhos etc., sendo que cada
alteração pode ter um significado. Portanto, ainda que a presença das
imagens possa facilitar ou agilizar a leitura, é necessário que a atenção
do leitor esteja também voltada para outros pequenos detalhes que possam
estar distribuídos por todo o espaço do quadrinho, em recursos capazes de
conferir maior complexidade à história.
Não houve, no entanto, meio em que as histórias em quadrinhos se
encaixassem melhor que no da crítica, fosse ela social, cultural, política
ou econômica, principalmente após os anos 1980, quando começaram a
questionar não só a significância do indivíduo (praticamente anulado pela
mídia), mas também os jogos de poder e a realidade como um todo. Apesar de
alguns artistas expressarem sua opinião e descontentamento de maneira
sutil, outros optaram pelo estilo mais escrachado, explicitando sua opinião
abertamente e se utilizando dos desenhos, geralmente toscos, para acentuar
o sarcasmo, mostrando, ao mesmo tempo, que as histórias em quadrinhos não
precisavam seguir uma cartilha que gerasse produtos parecidos e
previsíveis, que funcionassem apenas como fuga ou distração da dura
realidade.
Os super-heróis e as histórias infantis que foram, a princípio, os
temas centrais, cederam espaço para a violência, a ignorância, a
impotência, a decadência e outros dilemas que representaram o fim do século
XX, sobre os quais eram construídos personagens cada vez mais complexos,
densos e questionadores, responsáveis pela conquista de um público adulto
cada vez maior. Mais que uma forma de entretenimento, o quadrinho atingiu,
com determinados lançamentos, um cunho filosófico que tem levado, até os
dias de hoje, a discussões a respeito de sua qualidade literária, cuja
resposta pode estar em sua classificação como a "nona arte". Se a
literatura é considerada a "sexta arte", aquela que se utiliza das
palavras, os quadrinhos classificam-se como uma forma de arte diferente,
por se utilizarem das palavras e das imagens. Para alguns críticos, a parte
textual (o que seria o roteiro) dos quadrinhos é o suficiente para
considerá-los literatura, ao passo que a qualidade da ilustração de algumas
obras as "eleva" perante a crítica cultural, o que faz com que deixem de
ser considerados produtos para as massas. Como é característico da pós-
modernidade, há, nas histórias em quadrinhos, o resultado da indistinção
entre o que se chamaria de alta cultura e baixa cultura, termos que serão
esclarecidos no capítulo seguinte.
3. DO DESENVOLVIMENTO DA HIERARQUIZAÇÃO CULTURAL NA AMÉRICA E SEUS CAMINHOS
"Culture is a process, not a fixed
condition; it is the product of
unremitting interaction between the
past and the present."[3] (Levine,
1988)
3.1. A realidade e a hipótese
Uma das características acerca da vida real do escritor William
Shakespeare é a incerteza. Não se sabe quais dados biográficos são
realmente acurados, o que tem, até hoje, dado margem a diversas hipóteses
sobre quem ele realmente era e como teria se tornado esse aclamado
dramaturgo.
Tendo questionadas sua genialidade, sua habilidade como autor e, no
caso de teorias mais conspiratórias, inclusive sua existência, Shakespeare
sobrevive através das peças que levam sua assinatura; verdadeiras obras-
primas de estilo único, que serão eternamente admiradas, independentemente
de seu local e época de origem. Se por um lado o teatro elisabetano foi uma
forma de entretenimento extremamente popular, por outro, a Europa
presenciou, nos anos 1820, um resgate das peças shakespearianas, que tinham
nos representantes do Drama Romântico alemão[4] seus maiores defensores, ao
lado de outros estudiosos e escritores pertencentes à classe burguesa.
A universalidade inquestionável de suas obras justifica a
popularidade das peças do autor na cultura norte-americana do século XIX,
sendo uma das formas de entretenimento mais familiares do período, segundo
o historiador Lawrence Levine (1988), quando paródias e releituras de
Shakespeare eram proeminentes – e o solilóquio de Hamlet era o favorito dos
públicos, recitado no "dialeto negro" ou com sotaque irlandês ou até
musicado, sofrendo mutilações ou completas modificações (Levine, 1988:14).
Muitas dessas plateias – ou quase todas – eram formadas por camponeses e
trabalhadores analfabetos, que tinham, nas apresentações performáticas, o
único meio de conhecerem a obra de Shakespeare. Com artistas não muito mais
letrados que o próprio público, a possibilidade de múltiplas interpretações
também levava poetas de rua a se apropriarem de versos shakespearianos
marcantes, invocando sua "autoridade literária". Portanto, se aos nobres e
intelectuais da época era possível o acesso aos escritos integrais do
consagrado dramaturgo, às massas era oferecido também o contato com a
literatura, ainda que de uma forma adaptada. Segundo o historiador Esther
Dunn (1939:133), as obras de Shakespeare atingiam os não sofisticados pela
ação e pela oratória, enquanto, àqueles não tão refinados, contudo um pouco
mais instruídos, permanecia ainda o apelo dramático e da poesia artística.
Contudo, Levine (1988:33) delimita um período no qual se percebe,
de maneira mais evidente, a separação crescente entre Shakespeare e as
classes populares. Na segunda metade do século XIX alguns grandes teatros
começaram a eliminar as farsas[5] comumente inseridas no decorrer das peças
e as apresentações que entretinham o público entre um ato e outro.
"Gone were the entr'acte diversions: the singers,
juggles, dancers, acrobats, orators. Gone, too, was the
purple prose trumpeting the sensational events and
pageantry that were part of the Shakespearean plays
themselves. Those who wanted their Shakespeare had to
take him alone, lured to his plays by stark playbills
promising no frills or enhancements."[6] (Levine,
1988:33)
Com a eliminação dessas manifestações durante os espetáculos os
teatros visavam reprimir determinadas reações por parte dos espectadores,
que, excitados pela música agitada e pelos números de dança e acrobacia,
frequentemente explodiam em gritos – fossem de aprovação ou reprovação –,
chegando a subir no palco para aclamar ou interpelar os atores.
Estabelecendo certo nível de comportamento, os teatros afastam os
espectadores pertencentes às classes mais baixas, que ali compareciam em
busca de diversão e que não estavam interessados, conscientemente, em um
entretenimento cultural que demandaria reflexão – como é o caso de uma peça
de Shakespeare, principalmente quando encenada sem modificações nem
paródias ou novas alegorias, mas visando a fidelidade ao drama escrito. É
possível afirmar que, neste momento, o culto a Shakespeare como pertencente
e destinado apenas à elite cultural começa a tomar uma forma nítida na
América do Norte, como constata o historiador:
"Significantly, the frequent admonitions relating to
audience behavior were now missing as well. By the early
twentieth century, playbills of this type [without those
'vulgar entertaining presentations' between one act and
another] became the norm everywhere. William Shakespeare
had become Culture.
This change resulted in an inevitable decline in the
frequency with which Shakespearean drama was produced."
[7] (Levine, 1988:34)
O consenso era de que a popularidade de Shakespeare ocorria pelas
razões erradas; não pela qualidade de suas peças, mas pela forma como elas
eram remontadas, com a inclusão de humor exagerado, alusões sexuais,
vulgaridades e simplificações generalizadas. Assim, cada vez mais, por
parte de estudiosos, críticos e historiadores, criava-se o hábito de
separar a representação das peças dos textos em si, estes se tornando
exclusividade da elite, dos "esclarecidos".
À geração posterior, portanto, Shakespeare foi naturalmente
apresentado como "item" da elite cultural, cujas obras, eternos clássicos
da dramaturgia, não tinham relação alguma com a vida popular ou, se tinham,
era de maneira extremamente distante. Para essas pessoas, acostumadas a
reverenciar o dramaturgo britânico por sua genialidade e refinamento, que
lhe garantiram o status canônico. Dessa forma, o conceito de uma peça
shakespeariana como era difundido no século XIX e sua concepção para o
público faz-se incompreensível.
3.2. O que muda na visão contemporânea
Na Europa, de acordo com Peter Burke (1978), a diferenciação
cultural começa por um esforço das elites e, particularmente, da Igreja,
"para suprimir, ou ao menos purificar, vários elementos da cultura popular
tradicional"; as classes superiores abandonam uma cultura que, até aquele
momento, era comum a todos.
"Em 1500, a cultura popular era a cultura de todo mundo;
uma segunda cultura para os instruídos e a única cultura
para os demais. Por volta de 1800, contudo, em muitas
partes da Europa, o clero, a nobreza, os comerciantes, os
homens de ofício — e suas mulheres — haviam abandonado a
cultura popular, da qual estavam agora separados, como
nunca antes, por profundas diferenças de visão de mundo."
(Burke, 1978)
A classificação das formas de cultura que começa a ser imposta de
maneira mais radical, na América, no final do século XIX e atravessa o
século XX revela-se através de seus termos, criados para separar a elite do
popular e utilizados até os dias de hoje. Moldam-se as relações culturais
partindo de uma perspectiva hierárquica social, identificando-se fórmulas
que determinam se uma forma cultural é melhor ou pior que a outra, a fim de
se indicar para qual público deveria se direcionar. Logo, se algo é
popular, é de baixa qualidade e dispensa uma reflexão.
3.2.1. Highbrow e Lowbrow
A origem de highbrow está associada à Frenologia, doutrina que
propõe a divisão física do cérebro, sendo que cada parte está associada a
uma faculdade mental. No caso, acima do olho, na região da sobrancelha e
acima dela (em inglês, highbrow), estão os itens relacionados à lógica e à
estética, como localização, tamanho, peso, cor, ordem, tempo e tonalização,
basicamente, características necessárias e exigidas de um artista para que
construa uma verdadeira obra de arte. O primeiro registro dessa palavra
sendo utilizada para se classificar formas de arte é do ano de 1884 (Wyhe,
2000).
O oposto de highbrow, lowbrow, corresponde inicialmente a um nome
dado ao movimento cultural surgido no final dos anos 1970 em Los Angeles,
na Califórnia. O termo em si, como definição deste movimento artístico, foi
usado, pela primeira vez, pelo pintor e cartunista Robert Williams (1943,-
), que, em 1979, quis dar ao livro contendo sua primeira coleção de
trabalhos um título auto-depreciativo e sarcástico, cunhando o nome
"Lowbrow". De volta à Frenologia, a área "oposta" à highbrow corresponde à
altura da orelha, estando um pouco abaixo da região dos olhos. As
faculdades relacionadas a essa área são, dentre outras, a destrutividade, a
secretividade e a alternatividade, exatamente as características associadas
a essa arte mais subjetiva que estética.
Entre um nível e outro está, obviamente, a arte mediana ou midbrow,
aquela que não se destaca nem por sua qualidade nem pela falta desta, não
apresentando, portanto, muita relevância em termos críticos.
3.2.2. Cult
Em termos hierárquicos, o caso do cult é o mais curioso dentre os
produtos culturais e, de certa forma, reflete o efeito que a pós-
modernidade exerce sobre o público. Apesar das controvérsias acerca de sua
melhor definição, é possível citar algumas características em comum, dentre
elas a relação com a cultura popular: inicialmente, o produto (que pode vir
a se tornar um cult) é apenas uma forma de entretenimento do público
majoritário, como um filme, uma série de TV, uma história em quadrinhos ou
um livro de um autor pouco conhecido ou não pertencente a nenhum cânone.
Mas, por algum motivo, seja pela temática, pela estrutura ou, mais
comumente, pela influência que exerce sobre uma geração, torna-se um
clássico, uma referência universal, sempre retomada ou mencionada, como
acontece com a obra de arte que representa a alta cultura.
Em artigo publicado pelo jornal britânico Telegraph (vários
autores, abril de 2008) que lista os cinquenta melhores livros cult, o
senso comum foi o de que "você reconhece um cult quando vê um", já que não
existe uma fórmula específica nem uma premissa para se chegar ao referido
status.
"In compiling our list, we were looking for the sort of
book that people wear like a leather jacket or carry
around like a totem. The book that rewires your head:
that turns you on to psychedelics; makes you want to move
to Greece; makes you a pacifist; gives you a way of
thinking about yourself as a woman, or a voice in your
head that makes it feel okay to be a teenager; conjures
into being a character who becomes a permanent inhabitant
of your mental flophouse." (Leigh, 25 Apr 2008)[8]
Como se vê, outra característica associada ao cult é a de ser
atemporal; independente da data de seu lançamento. Portanto, é ainda
relativamente independente da crítica – que, a princípio, pode até receber
o produto de forma negativa. Pode não ser uma obra que se destaque pela
qualidade ou por motivos teóricos, mas, de alguma forma, contém uma
universalidade que garante a ela um sucesso duradouro devido à
identificação do público e à forma como este público divulga e,
consequentemente, passa o "culto" à obra adiante.
Pode-se concluir, então, que o determinante deste sucesso são os
fãs por ela conquistados, que permanecem fieis à obra em termos de consumo,
ou seja, consomem não só a obra em si, mas tudo o que é lançado em torno
desta – bonecos, figuras colecionáveis, álbuns, enfeites, dentre outras
coisas –, além da organização de eventos de caráter exclusivo, que vão de
festas a fantasia a congressos nos quais fãs podem se encontrar para
discutir, pesquisar e adquirir novos conhecimentos a respeito da obra.
Um bom exemplo de um cult é a história em quadrinhos Sandman,
criada pelo escritor e roteirista britânico Neil Gaiman. O seriado completo
consistia em 75 revistas, vendidas nas bancas entre os anos de 1989 e 1996,
por um preço acessível, como qualquer outro gibi. Esgotadas as revistas, já
em 1996 algumas histórias foram reeditadas em coletâneas da editora,
revistas extras com novas histórias foram lançadas e, em 1998, a saga foi
reeditada em cadernos de luxo, na forma de graphic novels[9].
A franquia (cujos direitos pertencem à DC Comics) possui ainda
diversos bonecos e produtos comemorativos, vendidos a preços altos e em
quantidades limitadas (como camisetas, bonecos e apoios para livros) e,
recentemente, assinou um contrato com a Warner Bros Entertainment para
levar ao cinema, em 2011, uma versão para Death: The High Cost Of Living,
uma das edições especiais de Sandman que terá a irmã mais velha de Sonho,
Morte, como protagonista.
O nome de Gaiman tornou-se sinônimo de boas vendas desde sua
primeira obra disponibilizada – no caso, a própria série Sandman, no
formato de gibis mensais – e abriu caminho para um mercado mais lucrativo,
o dos colecionadores. Até o presente ano de 2010, Sandman continua sendo
uma das produções mais vendidas da DC Comics.
Cria-se um verdadeiro culto (tradução literal da palavra "cult") em
torno daquela obra em questão, que aos poucos deixa de circular no mercado
"geral", popular, por assim dizer, e passa a ser vendida somente em locais
especializados, com uma produção em série bem menor que a de seu
lançamento, a preços relativamente mais altos, resultando na
descaracterização do produto enquanto forma de entretenimento das massas,
ou seja, passa a pertencer ao mercado artístico de fato.
Outro fator a determinar o status da obra tem a ver também com a
popularidade que ela adquire, formal ou informalmente, entre a elite
intelectual, entre personalidades influentes ou entre famosos que se
destacam em meios "alternativos" (em termos generalizados, pertencentes a
subculturas do underground[10]). Inúmeros são os fãs conhecidos da série,
incluindo escritores, estudiosos da arte e estrelas do rock, que reagiram à
obra com surpresa, como foi o caso do premiado escritor de ficção
científica e terror Harlan Jay Ellison (Bender, 1999:xiii), que chegou a
comparar o trabalho às grandes obras da literatura: "Neil's Sandman work is
on a par with great literature. I remember finishing issues of Sandman and
just sitting there trying to catch my breath, saying, 'What a ride this Guy
has taken me on'."[11]
Somam-se aos comentários positivos a grande quantidade de prêmios
recebidos pelo título e também pelos artistas responsáveis por sua
concepção; foram, ao todo, vinte e cinco Eisner Awards[12] (três prêmios
como melhor série contínua, de 1991 a 1993, quatro prêmios para Gaiman como
melhor escritor, de 1991 a 1994; prêmio de melhor artista/ilustrador para
P. Craig Russell em 1994; quatro prêmios para melhor rotulagem/colocação
das letras para Todd Klein em 1993, 1994 e em 2002 e 2004 por reedições de
Sandman; melhor edição para Karen Berger em 1992, 1994 e 1995; melhor
edição/história única para os números que vão de 22 a 28, correspondentes
ao arco Season of Mists ou "Estação das Brumas", em 1992; melhor
conto/história curta para "Death", publicada na edição extra The Sandman:
Endless Nights ou "Sandman: Noites Sem Fim", em 2004; melhor reimpressão em
álbum gráfico para The Doll's House ou "Casa de Bonecas" em 1991; melhor
livro baseado em quadrinhos para a edição extra The Dream Hunters ou "Os
Caçadores de Sonhos", em 2000; melhor projeto de coleção em arquivo para
Absolute Sandman Vol.1 em 2007, parte da edição definitiva da série em
quatro volumes, lançada no Brasil com o mesmo título; melhor produto
baseado em quadrinhos para a estátua de Sandman tirada da história "Arabian
Nights", desenhada por P. Craig Russel e esculpida por Randy Bowen, em 1995
e para o relógio de bolso de Sandman desenhado por Kris Ruotolo em 1999;
melhor design de publicação para Season of Mists ou "Estação das Brumas",
desenvolvido por Dave McKean, em 1993), além dos prêmios Bram Stoker
Award[13] para melhor narrativa ilustrada nos anos de 2000 e 2004,
respectivamente, pelas edições especiais Endless Nights ("Noites Sem Fim")
e The Dream Hunters ("Os Caçadores de Sonho"), do prêmio de melhor cenário
em 2004 para Season of Mists ("Estação das Brumas") durante o Festival
International de la Bande Dessinée d'Angoulême[14], e do literário World
Fantasy Award[15] de melhor conto de ficção (Best Short Fiction) para a
história A Midsummer Night's Dream no ano de 1991, única história em
quadrinhos a ganhar a premiação.
Para os fãs, – adultos normalmente de classe média a alta e
colecionadores, ou seja, indivíduos que seriam considerados como parte de
uma elite intelectual – o objetivo não é mais o simples entretenimento, mas
como o de qualquer obra de arte, é agora a fruição, a provocação da
catarse. O produto o qual admiram torna-se uma espécie de ídolo ou relíquia
que começa a ser idolatrada e, então, passa-se a considerá-lo uma obra de
arte em essência – conhecê-la torna-se fundamental aos intelectuais, por
ser um importante ponto de referência, no caso de Sandman, das histórias em
quadrinhos.
4. DO UNIVERSO PECULIAR DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Sendo as histórias em quadrinhos, por definição, veículos
narrativos de manifestação artístico-comunicacional (Andraus, 2005:04),
deve-se pontuar que elas surgiram, inicialmente, na forma de tirinhas
(histórias contadas em, no máximo, seis quadros) em jornais, publicações
voltadas basicamente para o público adulto; tinham a função de comentar ou
de criticar acontecimentos e, para isso, se utilizavam amplamente do humor.
Anteriormente, é possível encontrar formas semelhantes de
narrativas em todos os períodos históricos culturais da raça humana – desde
as pinturas rupestres da pré-história, passando pelas artes religiosas das
catedrais até as caricaturas que culminaram na formatação moderna. Essas
presenças devem-se à natureza visual do ser humano, cuja recepção pelos
olhos se dá antes das demais; a visão é mais rapidamente ativada que os
outros sentidos, o que pode explicar o sucesso de uma forma de expressão
como o quadrinho, principalmente ao estar localizado em meio aos textos de
um jornal (MacCloud, 1994).
4.1. Estruturação
Apesar de apresentarem imagens estáticas, há uma constante sugestão
de movimento nas histórias em quadrinhos e, por este motivo, muitos dos
conceitos para se estudar esta arte provem da narrativa cinematográfica, em
especial quando se trata dos planos e enquadramentos e do ritmo da
narrativa (Silva, 2001). Estas narrativas consistem em sequências de
quadros, chamadas vinhetas, sendo que cada vinheta varia suas
características de acordo com a intenção do autor.
Mesmo com recursos bidimensionais, ou seja, limitados pelo papel,
pode haver diferenciação de planos, dependendo do enquadramento (se feito a
partir da cintura de um personagem, apenas de uma parte do corpo, de todo o
ambiente ao redor da ação etc.), bem como podem ser apresentados diversos
ângulos de visão (a cena pode parecer ocorrer à altura dos olhos do leitor
ou pode ser observada de cima ou abaixo das personagens); as falas e
metáforas visuais aparecem em balões, elementos típicos dos quadrinhos, que
conferem sentido específico à leitura, dependendo da forma como são
delimitados (as linhas são desenhadas de forma a conferir expressividade à
fala, por exemplo, se o balão é desenhado com linhas pontilhadas, indica
uma fala de pouca intensidade, em tom baixo, ou se as linhas são tremidas,
onduladas, pode indicar uma vacilação da fala etc.) e dos tipos de letras
que contem (normalmente são usadas letras de imprensa simples, que quando
aparecem em tamanhos maiores indicam um tom de voz ou barulho mais alto, ao
passo que letras menores indicam o oposto; letras em forma ondulada podem
indicar uma música ou alguém cantarolando, ou se as letras ultrapassam os
limites do balão e invadem todo o quadro, indicam um som que tomou conta do
ambiente e, ainda, se as letras aparecem coloridas, costumam indicar
onomatopeias, provenientes dos clássicos quadrinhos de ação americanos,
entre outros recursos), além dos letreiros, não conectados a nenhum
personagem, que aparecem com o intuito de informar ao leitor a respeito do
andamento da narrativa ou de alguma opinião do autor (Silva, 2001).
Os códigos contidos nas histórias em quadrinhos dependem de um
contexto social relativo ao contrato entre autor e leitor. A cada tipo de
leitor (de acordo com a idade, hábito de leitura, nível escolar, realidade
cultural etc.) são destinadas publicações que são tradicionalmente
diferentes entre si e, portanto, envolvendo diferentes possibilidades de
convenções adotadas pelo autor para que o leitor as interprete de acordo
com suas experiências pessoais. Quadrinhos de um mesmo gênero costumam ser
semelhantes entre si, despertando um sentimento de familiaridade no leitor
que interpretará as histórias de um gênero específico de forma parecida,
relativamente esperada pelo autor, que se utiliza dos códigos de maneira a
atingir os efeitos que deseja.
4.2. Trajetória
Em 1923 o crítico futurista Ricciotto Canudo publicou Manifeste des
Sept Arts, um artigo no qual classificava cada arte pelo elemento
responsável por sua formatação (Gimello-Lesplomb, s/d): a primeira arte é a
música (caracterizada pelo som); a segunda, a dança (caracterizada pelo
movimento); a terceira, a pintura (caracterizada pela cor); a quarta, a
escultura (caracterizada pelo volume); a quinta, o teatro (que trazia a
representação); a sexta, a literatura (representada pelas palavras); a
sétima, o cinema (uma integração de todos os elementos anteriores).
Atualmente, foram adicionadas outras formas de arte à lista, considerando
sua expressividade no cenário moderno; admite-se a fotografia como oitava
arte e os quadrinhos (uma junção de imagem e texto em sequência, formando
uma história) como a nona arte (MacCloud, 1994).
A classificação das histórias em quadrinhos (HQs), também chamadas
de banda desenhada, como nona arte reconhece uma formatação original, que
as identifica dentre as outras formas; uma característica que,
provavelmente, surgiu com a própria banda desenhada, a qual Will Eisner
(1985) chamou "arte sequencial".
"O fenômeno da duração e da sua vivência – comumente
designado como tempo (time) – é uma dimensão essencial da
arte seqüencial. No universo da consciência humana, o
tempo se combina com o espaço e o som numa composição de
interdependência, na qual as concepções, ações,
movimentos e deslocamentos possuem um significado e são
medidos através da percepção que temos da relação entre
eles." (Eisner, 1989:25)
Especificamente, o quadrinho como é conhecido atualmente surgiu em
1895, nos Estados Unidos, a partir de uma criação de Richard Outcalt. Um
personagem chamado Yellow Kid trazia frases escritas em sua camiseta e
originou o principal elemento a ser incorporado nas HQs: os balões de fala.
Anteriormente, na Europa, já se publicavam histórias desenhadas[16], mas os
textos eram apresentados em forma de legendas que acompanhavam os quadros.
No período da crise de 1929 nasciam, na América, alguns de seus
personagens mais famosos, a maioria destinados a combater o crime. No
entanto, foi no final dos anos 30 que os quadrinhos ganharam seus
personagens mais significativos: os super-heróis, indivíduos com poderes
fantásticos que salvariam a humanidade de suas mazelas, quaisquer que
fossem, uma esperança para os americanos que pensavam em desacreditar no
"American Way of Life" e na efetividade do capitalismo não só econômico
como ditador sócio-político. Sobre a classificação dos quadrinhos, Klawa e
Cohen (1970:108) afirmam que "(...) é necessário que a história em
quadrinhos seja entendida como um produto típico da cultura de massa ou
especificamente da cultura jornalística". A compreensão dessas "imagens-
texto" como meio de comunicação fez com que os quadrinhos ultrapassassem,
aos poucos, o nível de objeto de entretenimento, transformando-se em um
meio alternativo de leitura com grande poder de influência psicológica e
social.
Seguindo as contestações surgidas no cenário Americano do pós-guerra,
os anos 60 representaram também uma revolução no marasmo que significou os
anos 50 na história da arte sequencial. Influenciados pelo movimento de
contracultura, os quadrinistas da cidade de São Francisco impulsionaram um
movimento marcado pela negação da linguagem formal das HQs, ao qual
chamaram comix (as histórias em quadrinhos tradicionais, em inglês, eram
conhecidas por "comics", nome herdado das primeiras publicações do estilo,
que normalmente traziam histórias de humor). Desse momento em diante, a
desconstrução dos estereótipos, a crítica à sociedade consumista e o
experimentalismo quase anárquico passaram a conviver com o universo
politicamente correto dos super-heróis representado pela editora Marvel
Comics, que, frente a avidez da crítica "paz e amor", aos poucos entrava em
declínio.
Foi na tentativa de reviver os heróis que a principal rival da Marvel,
a DC Comics, criou a Justice League, na qual os já conhecidos personagens
aparecem com uniformes reformulados e as revistas ganham um visual mais
colorido e moderno. Como resposta, em 1961, a Marvel lança o Fantastic
Quartet, e, alguns anos depois, o debut das aventuras de Spider-Man, ambos
frutos da mente de Stan Lee, reconhecidoo até hoje como o maior trunfo da
editora. Mas a concorrência de títulos alternativos como Fritz The Cat
(ícone de autoria de Robert Crumb, 1965) e The Fabulous Furry Freak
Brothers (Gilbert Shelton, 1968) fez com que as defensoras da moral
americana buscassem outras formas de atingir ao público. A DC assina uma
parceria com a Warner Bros. Entertainment e o ano de 1969 marca a chegada
dos quadrinhos à televisão (Guerra, 2005).
Somente no final dos anos 80 viria a tona uma tendência responsável
pelas mais aclamadas publicações da DC Comics: os quadrinhos adultos. Em
1988 são lançados The Dark Knight (publicada no Brasil com o mesmo título,
em inglês, marcou o retorno de Batman em histórias mais maduras, escritas
por Frank Miller), Watchmen (pelos ingleses Allan Moore e Dave Gibbons) e a
"graphic novel" The Arkham Asylum ("O asilo Arkham", por Grant Morrison e
Dave McKean, também ingleses); nesse mesmo ano, outro inglês, Neil Gaiman,
é contratado pela editora ao apresentar a minissérie The Black Orchid
("Orquídea Negra"), escrita em parceria com Dave McKean, completando o
período conhecido como "a invasão britânica" nos quadrinhos. Nenhuma das
histórias trazia protagonistas novos, mas reformulações de antigos
personagens que já não contribuíam tanto para as vendas da DC. E talvez por
não partilharem dos mesmos conceitos que os americanos em se tratando de
super-heróis, os britânicos tornaram-se responsáveis pelo sarcasmo e pela
subversão daqueles personagens que já não eram tão imaculados e,
consequentemente, bem mais humanos.
4.3. Mitificação pós-moderna
Na antiguidade, criavam-se histórias a fim de explicar o
inexplicável; os mitos surgiam como uma tentativa humana de entender
mistérios que sua razão não compreendia e, portanto, não podia explicar. O
universo dos deuses, ainda que, ironicamente criado pelo próprio ser humano
– e a sua imagem e semelhança –, é apresentado como independente da
existência humana, estando num nível superior, intocável.
As bases das histórias de super-heróis não se diferem muito dessas
que originaram as mitologias, perpetuadas pela necessidade humana de "fazer
parte de algo maior". A respeito do mito, Umberto Eco (1970:240) o
classifica como uma simbolização incônscia de finalidades nem sempre
racionalizáveis; projetam-se na imagem aquelas tendências, aspirações ou
temores emergentes de um período e de uma sociedade determinada, algo que
cabe, por exemplo, ao surgimento das histórias em quadrinhos de super-
heróis, durante o período da Crise de 1929 na América. Portanto, é possível
fazer uma analogia com as religiões, que perduram por tanto tempo através
da "mitização" de suas doutrinas, mas ocasionalmente questionadas e, por
vezes, desacreditadas, cedem lugar a outras ideias e simbologias que,
transmitidas com simplicidade, possam, como a religião, aliviar ou até
suprir inseguranças de sociedades inteiras.
O sucesso de uma história em quadrinho tem a ver com a evidência do
aspecto lúdico; a fantasia é claramente abordada como fantasia, e neste
caso a realidade é de certa forma mitificada objetivando uma fuga – ou uma
pausa – permitida do mundo real. É esta a provável razão de os quadrinhos
serem bem sucedidos também entre os adultos.
Todos sabem que não existem super-heróis nem pessoas com poderes
especiais, mas os procuram – e os criam – o tempo todo ao depositar
esperanças no desenvolvimento tecnológico capaz, por exemplo, de antes de
uma inseminação, artificialmente, selecionar uma combinação genética
preferida pelos futuros pais. Não se acredita no personagem de uma história
em quadrinhos, mas, ao mesmo tempo, busca-se atingir o Übermensch
nietzschiano (Nietzsche, 1883-85), que seria um super-herói ou,
literalmente, um super-humano bem mais plausível e realizável.
Pensando em personagens e mundos ainda mais fantásticos, admite-se
que muitas das idéias, ainda que impensáveis, soam extremamente engenhosas,
uma vez que chegam a substituir a explicação religiosa por concepções que
mesmo não confirmadas também não podem ser descartadas pela ciência, como é
o caso do "multiverso", palco de histórias da DC Comics, que contrapõe a
idéia de um universo unidimensional. Ora, muitos cientistas consideram a
possibilidade da existência de outras dimensões paralelas, fazendo com que
um indivíduo reflita ao se deparar com conceitos como o proposto pela DC.
A tática de se aproveitar da falta de explicações científicas
acerca disto ou daquilo para se criar exatamente dentro dessas lacunas
confere um caráter filosófico às HQs, que surgiram também em um período de
questionamento dos valores sócio-culturais que se tornou o século XX,
colocando-as, na opinião de muitos, além do simples entretenimento popular.
Muitas histórias se tornam fontes de estudos aprofundados que reconhecem,
em determinadas ficções, verdadeiros tratados sócio-antropológicos bem como
grandes obras de arte que "repousam em si mesmas" (Heidegger, 1950:7).
Outro caráter da arte sequencial que tem ainda a ver com a
"facilidade" de seu entendimento é a possibilidade de colocar em pauta
assuntos complexos ou polêmicos que, acompanhados de ilustrações,
logicamente, dependendo do critério tanto do autor quanto do ilustrador,
tornam-se mais acessíveis ao leitor menos instruído.
Em oposição ao super-herói, outro lado dos quadrinhos tinha como
principal característica o grotesco, que, outrora representado pelos
quadrinhos de terror que fizeram sucesso durantes os anos 50, teve sua
maior difusão, primeiro, nos anos 60, com o movimento contracultural[17]
que lançou Robert Crumb e seus desenhos tão explícitos e ácidos quanto os
roteiros de suas histórias, abrindo caminho para a subversão dos quadrinhos
americanos. Aparecem, então, personagens ignorantes, inescrupulosos e
problemáticos, que refletiam um futuro desesperançoso e o desejo de viver o
presente, fruto de um passado de guerras, repleto de erros e imperfeições
visíveis principalmente nas grandes cidades, onde a violência, o vandalismo
e as drogas se multiplicavam. O ser humano começa a se sentir impotente
nestas últimas décadas do século XX e a decadência é representada também na
arte, que cada vez mais se desprende de suas tradições. Como já foi
mencionada, a abordagem destes temas decadentes pelas histórias em
quadrinhos deu origem a uma tendência, no final dos anos 80, que se faz bem
sucedida até os dias de hoje: as histórias em quadrinhos para adultos,
repletas de sarcasmo, humor negro e violência.
Apesar da maturidade atingida pelo que se chamou de "invasão
britânica" nos quadrinhos americanos (já especificada anteriormente), de
acordo com a crítica especializada, responsável por "elevar o nível" das
histórias em quadrinhos para adultos, a representação do herói como o ser
mítico da arte sequencial nunca mais seria a mesma; na pós-modernidade, até
os combatentes do mal, detentores de super poderes e de moral incorruptível
perdem sua perfeição e aparecem em histórias nas quais nem sempre são os
"bons moços" e tem de enfrentar provações vindas de suas próprias mentes,
crises existenciais, perda de credibilidade e da esperança. Como será
exemplificado a seguir, alguns dos personagens violavam completamente as
"regras dos super-heróis" e as características que os tornaram populares
anteriormente.
5. DAS HISTÓRIAS, SEUS PERSONAGENS E SUAS RELAÇÕES
"I will show you fear in a handful
of dust."[18]
(Eliot, 1922)
Com este verso, de The Waste Land[19], que aparecerá,
oportunamente, na primeira história da saga, a DC Comics divulga, em
dezembro de 1988, o lançamento, no ano seguinte, de Sandman, pelo selo
Vertigo (especializado em HQs para adultos), uma série de histórias em
quadrinhos escrita pelo inglês Neil Gaiman; a citação de T.S. Eliot é ainda
retomada ao final da primeira história, como mostra a figura acima. No
Brasil a revista foi publicada, pela primeira vez, também em 1989 pela
editora Globo e aqui, bem como no resto do mundo, tornou-se um grande
sucesso de crítica e de público.
"Sandman", literalmente, significa "homem de areia" e vem de um
mito germânico, Der Sandmann, que, por volta de 1840, foi a base para um
conto do dinamarquês Hans Andersen intitulado Ole Lukoje. O personagem,
segundo o próprio Andersen, é uma espécie de deus; o deus do sono e dos
sonhos que, apesar de gentil e doce, tem seu lado negro revelado quando se
descobre que sua irmã é a própria Morte.
Indo além, Gaiman escreve sobre uma família constituída não apenas
pelo Sonho (também chamado Morpheus) e pela Morte, mas também por Destino,
Delírio, Desejo, Desespero e Destruição. Cada um aparece como um indivíduo
com suas próprias características e dono de seu próprio domínio,
antropomorfos apenas para os seres humanos (segundo a obra, estas entidades
se utilizam de seu poder de escolher uma forma para que sejam mais
facilmente identificados e compreendidos). Um exemplo desta escolha da
forma pode ser percebido na segunda história do terceiro arco, Dream
Country, intitulada A Dream of a Thousand Cats, na qual Sonho aparece para
a personagem principal, uma gata siamesa, justamente como um gato.
Constituída por mais de duas mil páginas, a história de Sandman é
extremamente longa se comparada a qualquer outra história em quadrinhos que
trate de um único tema central, a história do personagem que dá título à
obra. Mas, estando o Senhor dos Sonhos em primeiro plano, outros planos – e
histórias – são abordadas entremeios, uma vez que o sonho é elemento comum
a todo ser existente. Assim explica Neil Gaiman a respeito de sua escolha
do tema:
"I made the Sandman as old as the universe, because that
gave me all of time and all of space to play with. And I
made him the incarnation of dreams and stories because
that gave me a framework for telling virtually any kind
of tale."[20] (Gaiman apud Bender, 1999:08)
A história completa foi publicada primeiramente no formato de 75
revistas (gibis) que totalizam dez arcos mais três séries extras[21], num
total de 13 volumes independentes em termos de continuação e sentido, mas
que, juntos, formam uma longa e complexa mitologia que dialoga não só com
histórias da antiguidade, mas também com clássicos literários, fatos
passados e contemporâneos, letras de música e, inclusive, com diversos
quadrinhos publicados anteriormente.
O diálogo entre histórias em quadrinhos é um acontecimento
recorrente no mundo desta arte sequencial; os autores se utilizam de
personagens conhecidos, criados por outros quadrinhistas, para desenvolver
certos acontecimentos, promover encontros inusitados e, às vezes, podem até
dar continuidade à história do personagem em si. Este artifício, esperado a
cada lançamento de uma nova série, funciona muito bem para chamar a atenção
dos fãs de histórias em quadrinhos, que passam a comprar uma revista que
não acompanhavam anteriormente devido à aparição de seu personagem favorito
em algumas páginas. Em Sandman participam figuras da mesma editora que o
publica, a DC Comics: John Constantine e, numa história passada no século
XVIII, sua mãe Johanna Constantine, além de Mad Hettie (todos do quadrinho
Hellblazer), Etrigan (da revista The Demon), Mordred, Mildred e Cynthia
(uma versão das Moiras gregas criada para apresentar as histórias do
quadrinho The Witching Hour), Cain e Abel (os irmãos da Bíblia apresentam
histórias nas revistas House of Mystery e House of Secrets); e alguns
personagens da concorrente Marvel Comics: John Dee ou Dr. Destiny (de
Justice League), Clark Kent (o Superman), Bruce Wayne (o Batman).
Mas não foi apenas o enredo repleto de nomes familiares, que já
haviam conquistado muitos leitores, a encantar o público jovem. O aspecto
físico excêntrico dos personagens principais e seus rascunhos iniciais
foram desenvolvidos por Gaiman e pelo ilustrador Dave McKean, que se
basearam em personalidades alternativas do mundo pop, como a aparência
humana de Sonho, influenciada pela figura de Robert Smith, vocalista da
banda inglesa The Cure, ou as feições de Lucifer, muito parecidas com as do
cantor David Bowie, como mostra a ilustração ao lado, ou ainda o rosto
metamorfo de Delírio, que lembra o da cantora britânica Tori Amos.
Outro item que chama a atenção nas páginas são as canções,
normalmente sucessos dos anos 80, cantaroladas por algum personagem ou
tocando no rádio, cujas letras fazem referência a sonhos ou ao ato de
sonhar, por exemplo, na segunda história do arco Preludes and Nocturnes,
chamada "... Dream a Little Dream of Me", intitulada a partir da música de
autoria de Fabian Andre e Wilbur Schwandt regravada por artistas mais
populares como Dóris Day e Louis Armstrong; além de um trecho da música-
título, que desperta John Constantine, aparecem as letras de "Mister
Sandman", do grupo The Chordettes, de "Sweet Dreams (of you)", interpretada
por Elvis Costello, de "Sweet Dreams (are made of this)", sucesso dançante
da banda Eurythmics e de mais outras seis canções!
Portanto, pode-se afirmar que, se a intrincada narrativa mítica
criada por Neil Gaiman conquistou um público mais velho – até mesmo aquele
que, antes, não se interessava por quadrinhos –, a parte artístico-visual
se encarregou de conquistar os mais jovens e, inclusive, adolescentes
ávidos por uma sequência desenhada que fuja dos padrões americanos de super-
heroísmo.
5.1. Referências
De simples citações de nomes à reinvenção ou inserção de histórias
inteiras, a minissérie está recheada de referências a acontecimentos reais
e a obras literárias clássicas. O próprio autor admite ter se inspirado no
horror clássico inglês para escrever as primeiras histórias da saga,
adotando, inclusive, temas e metáforas do horror gótico[22] como o lamento
sobre a transitoriedade da vida, a decadência tanto física quanto
arquitetônica, o sobrenatural e o grotesco (Murphy, 2000). O uso da
linguagem, na maioria das vezes, é o principal "fornecedor" destes
elementos, ao passo que as imagens os reforçam sem encobrir lacunas
propositais deixadas pelo autor.
Os irmãos Caim e Abel, por exemplo, são uma paródia[23] dos
personagens bíblicos que foram criados inicialmente para apresentarem
histórias de terror em duas antologias lançadas pela DC Comics entre os
anos de 1950 e 1970: Caim era o apresentador de House of Mystery e Abel, de
House of Secrets. Ocasionalmente, nos anos 1980, foram usados em outras
publicações da própria DC desempenhando suas funções de contadores de
histórias. No entanto, foi em Sandman que seus papéis foram reinventados de
uma forma mais madura, a começar pela segunda história da saga, Imperfect
Hosts, do primeiro arco, Preludes & Nocturnes. Convidados por Morpheus, os
irmãos se tornam moradores do reino Sonhar, o reino das histórias, onde são
vizinhos. Na saga, Caim e sua gárgula Gregory são moradores da Casa dos
Mistérios; ele é um personagem extremamente agressivo e Abel, que habita a
Casa dos Segredos, mesmo que ansioso, é também gentil e sonha com uma
relação mais harmoniosa entre os dois, ainda que seu irmão insista em matá-
lo, numa espécie de transtorno obsessivo-compulsivo (na figura desta página
é possível perceber um pouco da personalidade de ambos os irmãos enquanto
hospedam Morpheus em sua casa). Por possuir a marca que impede seu
assassinato por quem quer que o encontre (Gênesis 4:15), Abel sempre se
recupera em algumas poucas horas, numa espécie de "morte impermanente".
Apesar de não conseguir controlar seus ímpetos em assassinar o irmão, o
laço entre os dois é genuíno, e Caim, mostrando remorso à sua maneira, dá a
Abel uma gárgula de presente, à qual Abel insiste em chamar de Irving, mas,
após uma rápida morte, acaba por nomeá-la Goldie, uma vez que as gárgulas
devem ter nomes que comecem com a letra "g".
A importância dos irmãos em Sandman se deve aos inúmeros contos que
ambos conhecem – sob a premissa de que um mistério deve ser dividido, ao
passo que um segredo deve ser esquecido caso alguém tente contá-lo –, além
de possuírem papéis cruciais em alguns episódios.
Bem como a reinvenção dos personagens bíblicos, em Sandman, há
outra abordagem, em especial, que chama a atenção dos leitores pelo seu
caráter audacioso e por sua importância no entendimento geral da obra e do
próprio papel de Morpheus como senhor dos sonhos: a "persona" do escritor
William Shakespeare. É este personagem, protagonista de dois títulos da
saga, o foco deste trabalho, que pretende relacionar a pessoa real de
Shakespeare com sua versão desenhada, bem como os processos de criação
retomados por Gaiman.
5.2. William Shakespeare e Sonho
Para entender o efeito da história escrita por Neil Gaiman, a ser
discutido mais a frente, é interessante que se esclareça um pouco sobre o
período em que se passa o conto em quadrinhos, no qual viveu William
Shakespeare.
5.2.1. Shakespeare e a Inglaterra elisabetana
O período elisabetano foi aquele em que reinou a rainha Elizabeth
I, entre 1558 e 1603. Considerado uma era dourada para a história inglesa,
na qual floresceram a literatura, a poesia e, principalmente, o teatro,
representado, dentre outros nomes, por William Shakespeare, o dramaturgo
que rompeu com as tradições e criou seu próprio estilo tanto na dramaturgia
quanto na poesia. Neste período, eram dois os principais entretenimentos
londrinos: as execuções das sentenças de morte e o teatro, que aos poucos
trocava as representações religiosas pelos dramas e pelas comédias
satíricas (Bruno e Paiva, 1990:132). Atraído pelo teatro, o jovem
Shakespeare acompanhava as apresentações e, desejoso de fazer do drama sua
profissão, necessitava aproximar-se das casas de espetáculo e ter contato
com o máximo de artistas e donos de companhias teatrais que conseguisse.
Segundo o biógrafo Anthony Holden (2001:76), a oportunidade de
William Shakespeare entrar para o teatro aconteceu em 1587, quando, com 23
anos, morando com os pais, a esposa e os três filhos, oferece-se como
voluntário para a grande trupe de atores que chegava a Stratford para se
apresentar, conhecida como "os Homens da Rainha", e que acabara de perder
um ator, assassinado em Thame.
No entanto, inicialmente, e por precisar de dinheiro, acabou
tomando conta de cavalos dos londrinos endinheirados que frequentavam o
Theatre, sede da trupe "os Homens da Rainha", propriedade de James Burbage,
indivíduo de grande prestígio no meio teatral de Londres e ator principal
de uma grande companhia londrina, tendo sido responsável pela construção da
primeira "casa de peças" (Holden, 2001:85) – o Theatre –, no ano de 1576.
Assistindo a todos os espetáculos e apreendendo o que podia, Shakespeare,
após insistentes pedidos a Burbage, conseguiu uma oportunidade como ator.
Apesar de ter sido considerado um ator mediano, acabou contratado pelo
diretor do teatro e, com o tempo, tornou-se seu amigo e colaborador (Bruno
e Paiva, 1990:133); esforçado, Shakespeare enfim tornou-se o dramaturgo
oficial da companhia, sendo que o filho de James Burbage, Richard Burbage
interpretou a maioria dos papéis shakespearianos e, na história em
quadrinhos A Midsummer Night's Dream apresenta-se a Sonho e discorre a
respeito de suas habilidades como ator de tragédias.
Antes da chegada de Shakespeare a Londres, o escritor de maior
destaque era Christopher (Kit) Marlowe, que também aparece rapidamente em
Sandman, como será exposto mais adiante, conversando com Shakespeare em uma
taberna.
5.2.2. O dramaturgo nos quadrinhos
A primeira aparição de William Shakespeare em Sandman é ocasional e
acontece na quarta história do arco intitulado The Doll's House. A
história, Men Of Good Fortune, é sobre Robert Gadling, homem que ao final
do conturbado século XIV, na Inglaterra, durante uma conversa com amigos,
dentro de uma taberna, decide dispensar a Morte, no sentido literal da
palavra.
Ouvindo suas palavras dentro da taberna, Sonho e Morte decidem que
caberá a Sonho informar a Gadling de sua conduta, desafiando-o a continuar
desejando a vida eterna dali a cem anos, quando se encontrariam, então,
para discutir os acontecimentos e as novas decisões daquele homem acerca de
sua existência. O novo encontro, já em fins do século XV, ocorre na mesma
taberna e, diante da empolgação de Gadling e de seu desejo de ainda viver,
marcam outro encontro, também após cem anos. É no terceiro encontro, no
século XVI, que Robert e Morpheus se sentam em uma mesa próxima à que estão
William Shakespeare e Cristopher Marlowe, a quem Shakespeare dirige um
comentário e, depois, pergunta ao amigo se este lera a peça que o então
aspirante a dramaturgo lhe havia entregado.
"Well, Kit, your theme as I saw it is this: that for
one's art and for one's dreams one may consort and
bargain with the darkest pow'rs."[24] (Gaiman, 1991:09)
Marlowe é sincero com o companheiro, que, ao lamentar que fosse
aquela sua primeira peça, diz que deveria ser sua última.
Morpheus e Robert Gadling ouvem a conversa (que aparece na última
imagem da página anterior), e uma fala de Shakespeare chama a atenção de
Sonho, que decide falar com ele. A participação do autor que, então, era
apenas um desconhecido pode ser vista nos quadrinhos anteriores. É
interessante notar que, nas conversas, entre Shakespeare e Marlowe e entre
Morpheus e o dramaturgo, o autor faz uma referência ao estilo rítmico do
drama inglês: os diálogos estão em pentâmetro iâmbico[25].
A história segue com foco em Gadling, que continua a rejeitar a
Morte, e aquele ator que gostaria de se tornar escritor só é mencionado
três páginas adiante, quando, duzentos anos depois, durante seu novo
encontro com Morpheus, Robert conta que assistiu a King Lear e pergunta
sobre o que teria acontecido entre seu autor e o Senhor dos Sonhos, se
teriam firmado algum acordo. A resposta que obtém é vaga, e as menções a
respeito de Shakespeare terminam nesse diálogo:
"_ That lad, Will Shakespeare. You did some kind of deal
with him, didn't you?
_ Perhaps.
_ What kind of deal? His soul?
_ Nothing so crude."[26]
(Gaiman, 1991:18)
5.3. Terra dos Sonhos
O título da peça de Shakespeare, A Midsummer Night's Dream, foi
dado também ao terceiro episódio de Dream Country, terceiro arco de Sandman
constituído ainda pelas histórias Calliope, A Dream of a Thousand Cats e
Façade. A primeira retoma o mito grego das musas a partir do sequestro de
Calliope por um escritor que, após escrever seu primeiro sucesso, não
consegue mais obter inspiração; libertada por Morpheus, há então a
revelação de que ambos tiveram um filho: Orpheus. A segunda é uma fábula
contada do ponto de vista dos gatos – Morpheus também assume a forma de um
gato negro – e, em determinado momento, cita a mitologia egípcia, que
considera o gato um animal nobre – em outras histórias, inclusive, a
própria deusa Bastet ("a deusa de cabeça de gato") aparece como personagem,
sendo a única a ter conhecimento do paradeiro do irmão mais velho de Sonho,
Destruição. No caso desta história do arco Dream Country, a narração é
feita por uma gata, que revela um período em que estes animais, muito
maiores, governavam a Terra e os humanos, pequenas criaturas, eram seus
escravos. A última história aborda um universo um pouco diferente das
demais, contando sobre Façade, uma ex-super heroína solitária que,
finalmente, encontra-se com Morte.
5.4. O sonho de Shakespeare
Dando continuidade ao encontro entre Morpheus e William Shakespeare
(já descrito no item 5.2, William Shakespeare e Sonho), Midsummer Night's
Dream revela, logo na segunda página (quadrinhos apresentados na página
anterior), o acordo entre os dois personagens: em troca do dom da escrita,
Sonho determinou a Shakespeare que compusesse esta peça inspirada em seus
amigos, os "verdadeiros" Oberon e Titânia, soberanos do Mundo das Fadas e
que sua estréia, um presente de Morpheus ao casal e às demais criaturas
fantásticas, teria exatamente aqueles seres como público. A apresentação,
então, acontece próxima ao Wilmington Giant (ou Long Man of
Wilmington)[27], a quem Morpheus chama de Wendel[28] – aqui, Gaiman se
aproveita de elementos literários e também geográficos para a determinação
do local. Primeiramente, a região de Sussex Downs é o local onde, de acordo
com Rudyard Kipling (1906)[29], viviam as fadas, após deixarem o convívio
com os humanos nas cidades; a alteração feita por Gaiman diz respeito
apenas à localização exata, transferida pelo autor para um local próximo de
onde ele mesmo vivia na época em que escreveu o conto, o qual ele conhecia
melhor e sabia não ter mudado muito nos últimos quinhentos anos. Foi tirado
proveito também do próprio desenho pré-histórico – e misterioso – do "Homem
de Wilmington", sugerindo que as duas linhas traçadas, uma em cada lado da
figura do homem, representam uma porta e que o gigante guarda, na verdade,
um portal entre dimensões, que é aberto ao comando do senhor dos Sonhos.
Logo no início do conto de Gaiman há uma referência à biografia do
grande dramaturgo inglês: a negligência de William Shakespeare em relação à
família, mais especificamente, para com seu filho, Hamnet, que acompanhava
o pai durante a viagem a pedido da mãe, devido ao pouco tempo que passavam
juntos; nos recortes abaixo, é possível acompanhar o ressentimento que o
garoto nutre pela pouca atenção do pai.
A personalidade de Shakespeare apresentada pela perspectiva do filho, como
será mostrado mais à frente, é o ponto crucial desta história, em termos
morais.
Parafraseando[30] a própria obra shakespeariana (na qual Titânia se
interessa por um garoto indiano, que se torna o motivo da desavença entre
ela e Oberon), nos quadrinhos a rainha demonstra o mesmo interesse por
Hamnet (justamente o ator que representa o papel do menino indiano) e o
convida para viver no Reino das Fadas, como se pode ver nas imagens
seguintes.
O diálogo entre Morpheus e Titania é construído, mais uma vez, em
pentâmetro iâmbico, como algumas das cenas da história Men of Good Fortune
(especificados no item 5.2, William Shakespeare e Sonho).
Como já foi mencionado, o público é formado apenas por habitantes
do Reino das Fadas, que, a convite de Sonho, atravessam o portal de seu
reino para a Terra com o intuito de assistir à peça, inspirada nas próprias
criaturas fantásticas. Aqui, o leitor se depara com a visão do ilustrador
do conto de Neil Gaiman, Charles Vess, de como seriam as criaturas que, na
obra original de Shakespeare, não são fisicamente descritas. Esta
característica das histórias em quadrinhos pode ser considerada negativa no
sentido de que a expressão de um ponto de vista específico é imposta ao
leitor, limitando sua imaginação a respeito de como seriam as criaturas, ao
passo que a proposta shakespeariana de manter a descrição dos personagens
apenas em âmbito psicológico possibilita que o leitor imagine o aspecto
físico daqueles seres fantásticos sem limitações.
As ilustrações, por exemplo, de Oberon e Titânia (que podem ser
vistas nos quadrinhos anteriores), ambos com orelhas pontudas e
sobrancelhas arqueadas e em trajes reais representam o típico aspecto
físico que é atribuído às fadas dos contos e histórias populares.
Contudo, no que diz respeito às demais criaturas, o desenhista
Vess, juntamente com Gaiman e com mais dois colaboradores, Kieth e
Dringenberg, se permitiram maior liberdade de criação. Esta libertação
criativa, mesmo tendo resultado na já comentada limitação para a visão do
leitor, pode ser considerada também uma forma de demonstrar que a
imaginação do público, diante da obra inteiramente escrita, ou seja, sem
ilustrações, não precisa manter-se restrita ao senso comum ou a uma imagem
em específico, simplesmente por esta ser mais difundida.
É interessante notar, por exemplo, que Peaseblossom (no quadrinho
ao lado), uma das ajudantes de Titânia na peça de Shakespeare, chama a
atenção, em Sandman, por sua representação peculiar, quase assustadora.
Os diálogos criados por Gaiman, que ocorrem paralelos à peça,
juntamente com os comentários, são uma espécie de espelho da obra
shakespeariana – relação que, paradoxalmente, aparece invertida na história
em quadrinho, uma vez que, nela, foi Morpheus o responsável pela existência
da peça – a fim de se atribuir um sentido maior àquela situação apresentada
como um todo.
Ao questionar-se se teria tomado a atitude correta, Sonho revela o
motivo de sua proposta a Shakespeare e, ainda, que considera os humanos
ingênuos por não entenderem o preço de se ter o que, outrora, desejaram, ou
seja, escolher a realização de um sonho que se teve no passado, mas que
será o determinante de toda sua vida, mesmo que todos os seus desejos mudem
com o passar do tempo e ele se arrependa. Afinal, ter concordado com a
barganha de Sonho, segundo a história em quadrinhos, foi o que
possivelmente determinou também o futuro do filho de Shakespeare, Hamnet,
que teve, na ocasião, a oportunidade de conhecer Titânia. A esse diálogo
entre Morpheus e Titânia, é adicionado um comentário que, apesar de ser uma
fala da peça, serve também ao que se passa na "realidade" em questão,
referindo-se à incapacidade do homem de enxergar certas coisas: "The eye of
man hath not heard, the ear of man hath not seen, man's hand is not able to
taste, his tongue to conceive, nor his heart to report what my dream
was."[31] (Gaiman, 1990:19).
A complexidade destes acontecimentos e no que poderão resultar
aparece também velada na página 16 do conto em quadrinhos (na imagem da
próxima página), em uma pausa – solicitada também por Morpheus – no meio da
apresentação, quando, ao receber a notícia da morte de Cristopher Marlowe,
Shakespeare se dá conta de ainda estar preso ao acordo com Morpheus e,
consequentemente, distante de sua própria humanidade, daquilo que o cerca
no cotidiano, mas que ele não percebe, por estar tão focado no cumprimento
do trato, não conseguindo viver normalmente, mas apenas em função de seu
trabalho.
Há uma grande ironia no quadrinho em que Shakespeare revela seu
arrependimento pela barganha, que pode ser notada pelo desenho: no primeiro
plano, Titânia aparece entregando uma fruta para Hamnet, provavelmente a
fruta que irá selar seu destino, considerando a sucessão de feitiços que
ocorre na história original de Shakespeare. Enquanto fala, o dramaturgo não
presta atenção a seu filho; a ideia passada ao leitor é, basicamente, a de
que, se Shakespeare estivesse tomando conta de seu filho, ou se ao menos
tivesse prestado atenção no que dizia em sua própria peça, as coisas
poderiam ter sido diferentes e ele futuramente ainda teria Hamnet a seu
lado.
Terminada a pausa, a peça é retomada com a cena dois, um diálogo em
Oberon e Puck, sobre por quem estaria Titânia apaixonada após acordar, sob
efeito de uma poção do amor enviada pelo próprio Oberon a fim de se vingar
da esposa. Surpreso com a atuação de Dick Cowley – o ator que supostamente
fazia o papel de Puck, sem saber que, atuando, estava o verdadeiro Puck
(imagens na página seguinte) –, Shakespeare perde a última oportunidade de
dar atenção a seu filho, que tenta lhe contar sobre Titânia, mas não é
ouvido pelo pai, que o pede para se calar; novamente, de forma irônica, o
episódio é acompanhado pela seguinte fala de Puck na peça: "Lord, what
fools these mortals bee!"[32] (Gaiman, 1990:15)
Na página 20 da história em quadrinhos (imagem a seguir) há um
exemplo de humor negro, usado sutilmente, resultante da interação entre
imagem e texto, num contraponto: enquanto Shakespeare, representando
Theseus, recita: "One sees more devils than vast Hell can hold"[33], o
desenho o mostra de frente para um público de criaturas de aparência
demoníacas, com olhos brilhantes a fitá-lo; no quadrinho seguinte, é
mostrada a expressão de Hamnet, encantado por Titânia, enquanto ao fundo
seu pai continua a recitar: "The lover, all as frantic, sees Helen's beauty
in a brow of Egypt."[34]
Ao final da apresentação da peça, Morpheus explica o porque de
convidar os habitantes do Reino das Fadas para assistir à apresentação, uma
homenagem aos seres fantásticos que, mesmo pretendendo não retornar ao
mundo dos humanos, deverão ser eternamente lembrados. Sonho faz, então, uma
afirmação que cabe não só à peça de Shakespeare, mas também à história em
quadrinhos e a Sandman como um todo, o que dá a sua fala um caráter
metalinguístico: "Things need not have happened to be true. Tales and
dreams are the shadow-truths that will endure when mere facts are dust and
ashes, and forgot"[35]. Ao final da página – e do diálogo entre Sonho,
Titânia e Oberon – há, mais uma vez, uma passagem da peça original que
serve também como um comentário referente à situação de se apresentarem
para seres fantásticos e do quão real lhes parece a ocasião, ou se é tudo
uma questão de imaginação; Theseus, em resposta a um comentário de
Hippolyta a uma apresentação dentro da peça original, diz, a respeito dos
artesãos que fazem as vezes de atores: "The best in this kind are but
shadows; and the worst are no worse, if imagination amend them."[36]
(Gaiman, 1990:21). A página 21 está anexada a seguir.
Enquanto a apresentação se encaminha para o encerramento, a fim de voltarem
para seu reino, Oberon chama Puck, que ainda está atuando e decide ficar
entre os humanos. Cabe a ele a última fala da peça, que leva também ao
desfecho do conto em quadrinhos. Retirando a máscara que usava até então e
tomando sua forma real, de duende, seguindo para a escuridão da noite e,
enfim, desaparecendo (imagem a seguir).
A página seguinte, a última do conto em quadrinhos, traz o dia e,
com ele, a trupe despertando; Shakespeare pergunta ao companheiro Richard
Burbage se o que lhes ocorreu fora um sonho e o amigo, negando, mostra o
saco de ouro que lhe foi entregue por Oberon, contudo, ao abri-lo, vê que
as moedas se transformaram em flores amarelas e, indignado, diz que foram
enganados. Shakespeare responde que foram, na verdade, muito bem pagos,
pois nenhum outro grupo teve a oportunidade de se apresentar para uma
audiência como aquela. Novamente, Hamnet tenta falar ao pai, que não presta
atenção ao que diz o menino. No quadrinho final, é revelada a morte de
Hamnet aos 11 anos (o que ocorreu de fato) e que o paradeiro de Puck
permanece desconhecido.
5.5. Sandman shakespeariano
A identificação entre Sandman e as obras de Shakespeare vai além
das referências explicitadas; algumas das principais características que,
de acordo com o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. (2006:84), foram
responsáveis pelo sucesso de William Shakespeare, referem-se à complexidade
dos personagens e à não-religiosidade, as quais podem ser apontadas também
na obra de Neil Gaiman.
A começar pelos personagens que expressam uma identidade complexa,
cujos dilemas pessoais internos são ainda alvo de estudos, Shakespeare
apresentava ao público a duplicidade do racional e do irracional convivendo
em uma só personalidade, um espelho do ser humano que por vezes "age sem
pensar e pensa sem agir" (Ghiraldelli Jr., 2006:84). Na peça A Midsummer
Night's Dream é este "agir sem pensar", esta impulsividade provocada por
sentimentos diversos, o responsável pelo desenvolver da trama e também pelo
humor sarcástico que permeia os acontecimentos. Como em todas as obras
shakespearianas, A Midsummer Night's Dream reflete a natureza humana de
maneira profunda, essencialmente múltipla e incoerente, comum a todo "ego",
que carrega em si as necessidades primitivas e as crenças éticas e morais
do indivíduo – termo este que só apareceria em sua real complexidade em
ensaios modernos como os de Nietzsche (1883-85; 1888)[37] ou de Freud
(1921)[38]. A segunda característica que contribui para a complexidade do
"eu" é a não-religiosidade das obras de Shakespeare, não havendo, nelas,
portanto, a teleologia que dá sentido à vida (Ghiraldelli Jr., 2006:84).
Ainda em A Midsummer Night's Dream, figuras da mitologia europeia
contracenam com pessoas comuns e apresentam personalidades também humanas,
ou seja, igualmente confusas e impulsivas, ora agindo pela razão, ora pelos
sentimentos; não são deuses, nem pregam a bondade, apesar de também não
serem maldosos, e usam de seus poderes mágicos para benefício próprio.
Estes elementos, que retificam a universalidade de Shakespeare e o
tornam um precursor da modernidade (idem), fazem parte também da história
em quadrinhos de Gaiman e podem ser percebidos no conto homônimo em
questão, A Midsummer Night's Dream.
O personagem de Shakespeare, por exemplo, aceita a oferta de um
desconhecido – no caso, Morpheus – para alcançar seu sonho de ser um
escritor aclamado, que pudesse ser lembrado por toda a eternidade. É de se
esperar que haja um preço maior a ser pago, mas Shakespeare não o percebe,
cego pela possibilidade de realizar seu maior desejo naquele momento em que
se encontra com Sonho. Ironicamente, na taberna, antes de conhecer
Morpheus, Shakespeare conversa com Cristopher Marlowe a respeito de sua
obra The Tragic History of Dr. Faustus, em que o protagonista, Fausto,
barganha com o próprio diabo para ter seus desejos atendidos; mal percebe
Shakespeare que, ao barganhar com o Senhor dos Sonhos, ficará ele no lugar
de Fausto, sendo sua mente desejosa o demônio, e não aquele que oferece o
trato. De acordo com Gaiman (apud Bender, 1999:85-88), Shakespeare se torna
tão obcecado com suas peças e em como elas retratam a humanidade que deixa
de se preocupar consigo mesmo e com o amor que está próximo de si, não
percebendo as necessidades de seu próprio filho, nem de sua família, nem de
amigos. O leitor pode se identificar com a humanidade do personagem
Shakespeare, que aceita a barganha por impulso, para ter seu sonho
realizado, sem pensar muito nas demais consequências, e não há uma "força
sobrenatural" que não a de sua própria mente a influenciá-lo na decisão –
Morpheus oferece o trato, mas Shakespeare detém o livre arbítrio.
Morpheus, o Senhor dos Sonhos, apresenta também uma personalidade
complexa, com dilemas frequentes e bem humanos, apesar de ser um Perpétuo;
durante a saga, inclusive, é possível perceber que este ego complexo se
estende a todos os Perpétuos, que enfrentam também problemas familiares
entre si, como quaisquer irmãos. Por mais que sejam únicos e supremos em
suas funções, há, nesta familiaridade, uma universalização dos mesmos.
A história em quadrinhos A Midsummer Night's Dream se passa no
século XVI, ao passo que a maior parte das histórias de Sandman ocorrem no
século XX, sendo possível notar as mudanças na personalidade do Senhor dos
Sonhos e até mesmo em seu comportamento para com os humanos, na medida em
que passa por experiências diversas na Terra – uma delas, que abre a saga,
foi o seu aprisionamento por um feiticeiro, na história Sleep of The Just
("Sono dos Justos"), um dos marcos de sua existência e que seria o fato
responsável por tornar Sonho mais sensível aos sentimentos humanos (Gaiman
apud Bender, 1999:84) ou, como aponta McConnell (1996), estar aprisionado
ensinou a Morpheus que ele não é apenas uma projeção transcendente da
consciência humana, mas que sua existência é, no fim das contas, dependente
da consciência humana.
Em um diálogo com Shakespeare no qual dá a notícia da morte de
Cristopher Marlowe, por exemplo, o dramaturgo sugere que o Perpétuo é
insensível e que não se importa com a raça humana por não conhecer a
mortalidade. A resposta de Sonho refere-se, então, à naturalidade da morte
entre os humanos, um tema universal e, até os dias de hoje, polêmico.
Ocorrendo entre as pessoas com tanta frequência, é estranho, para Morpheus,
que a notícia de uma morte seja tratada com surpresa e tristeza. Aqui, pode-
se falar também em irreligiosidade como característica de Sandman, apesar
da presença de seres imortais agindo sobre a humanidade, no sentido de a
vida em si, e não a teleologia cristã, ser o próprio sentido da vida. Ou
seja, a existência dos Perpétuos não confere, necessariamente, um sentido
ou uma razão para a vida das pessoas, uma vez que os próprios seres tem
problemas e questões existenciais que não conseguem solucionar e mesmo
agindo sobre a existência humana, não são idolatrados. Antes, são os
Perpétuos que dependem dos humanos – ou melhor, das organizações sociais e
interações entre indivíduos conscientes, nos mais diferentes mundos ou
planos existenciais. Determinadas escolhas podem ser feitas pelos humanos e
estas podem até mesmo influenciar a decisão de um Perpétuo, numa relação de
interdependência que, ironicamente, às vezes dão a ideia – bastante real –
de que estes "mais-que-deuses", na verdade, não são nada mais que partes
integrantes da própria consciência humana – ou da consciência do indivíduo,
independente de sua "espécie" –, apesar de sua imortalidade.
A superioridade dos Perpétuos está, obviamente, em suas funções e
no fato de serem eternos e de transitarem pelos diferentes universos; são
comuns a todos os seres, mesmo aos que viveram no passado ou aos que ainda
nascerão, o que explica a denominação "Perpétuos" (no inglês, Endless, cuja
tradução literal é "sem fim"). Neste caso, o quadrinho aborda também um
questionamento comum à humanidade, de que talvez ela não seja única e que,
de fato, existem outros seres que vivem em sociedade em outros "reinos" ou
planetas, sendo, portanto, conscientes – afinal, é a consciência que
determina a existência dos Perpétuos e, desde que exista esta consciência,
lá estarão Destino, Destruição, Morte, Sonho, Desejo, Desespero e Delírio.
5.5.1. Perpétuos
"There are seven beings that are not Gods,
that existed before humanity dreamed of Gods,
that will exist after the last God is dead.
There are seven beings that exist because,
deep in our hearts, we know that they exist.
There are seven beings that are called the Endless.
They are, in order of age, Destiny, Death, Dream,
Destruction, Desire and Despair, and Delirium,
who was once Delight."[39] (Gaiman, 1994:07)
No desenrolar da história, explicações sobre os Perpétuos são
oferecidas, as quais não esclarecem a respeito de sua natureza, mas fazem
com que o leitor reflita para certas condições – uma delas, possivelmente a
mais complicada e contraditória das reflexões, tem a ver com o fato de os
Perpétuos nem mesmo existirem em "corpo", mas serem apenas projeções de
ideias fundamentais e, contudo, é esta projeção que os torna reais durante
a vida.
A relação destes seres com a vida e a existência, em especial a
humana, merece destaque, pois é bastante complexa e dependente da própria
humanidade. São reconhecidos pela função que cada um exerce – basicamente,
elementos ou fenômenos comuns a todos os seres humanos, mas que permanecem
obscuros em termos científicos – e não pelos nomes, sendo descritos por
metáforas que, na obra, tornam-se características físicas e psicológicas
daqueles personagens (como poderá ser percebido nos anexos a seguir).
Universais, já que comuns a qualquer consciência, são representados na
forma de pessoas quando interagindo com elas, podendo assumir a forma que
lhes convier:
Delírio, a mais jovem, já foi Deleite e, por isso, seus olhos
não combinam, sendo um azul e o outro verde, e sua aparência
é a mais variável de todos os Perpétuos;
Desejo projeta duas sombras, uma nítida e a outra indistinta
e seu sexo é indefinível, sendo representado por uma figura
andrógina;
Desespero é a irmã gêmea de Desejo, olha para os humanos
através dos espelhos e fisga os corações com seu anzol
certeiro;
Sonho, ou Devaneio, é um enigma, acumulando vários nomes para
si. É o mais meticuloso com suas responsabilidades e mais
próximo de sua irmã mais velha, Morte;
Morte não é descrita diretamente, mas aparece sempre bem-
humorada. Diz-se que a cada século ela assume um corpo mortal
por um dia, a fim de compreender melhor as vidas que leva
consigo;
Destino é o mais velho dos Perpétuos e o mais alto aos olhos
mortais, caminha em seu jardim sem deixar pegadas e não
possui sombra;
Destruição só é descrito em Brief Lives ("Vidas Breves"),
pois decidiu deixar seu cargo. Era ele o irmão gêmeo de
Desejo, e após sua destituição, foi substituído por
Desespero. No sétimo arco da saga, Delírio pede a Sonho que a
ajude a procurar pelo irmão e, quando o encontram, pedem que
volte a seu cargo, mas Destruição se recusa. A partir desta
recusa é que a existência dos Perpétuos é mais profundamente
discutida, através dos argumentos daquele que decidiu
permanecer a parte de sua função, como personalidade, mesmo
que não tenha abandonado seus deveres por completo,
determinando o que ele mesmo chama de mecanismos automáticos
que poderão ser acionados se necessário. Porém, Destruição
revela que a destruição em si jamais deixará de existir, pois
ela representa a mudança e as coisas sempre mudam, mas que
seu curso pode ser determinado pelos seres humanos de acordo
com suas escolhas. Assim, Destruição também mudou e Desespero
tomou seu lugar e sua relação com Desejo.
É interessante notar, ainda, que, para diferenciar suas vozes e discursos
nos quadrinhos, para cada Perpétuo é usado um tipo de letra diferenciado,
além de um balão de fala com delimitações também distintas. Se comparadas à
descrição de cada Perpétuo, as letras e os balões de fala tem formatos
condizentes com as características dos personagens – por exemplo, os balões
de Morpheus tem o plano de fundo preto e letras brancas, enquanto o plano
de fundo de Delírio é colorido, ganhando um ar psicodélico; o tipo de letra
das falas de Destino está em itálico, voltado para a direita, como se
estivesse sempre em direção ao que está por vir; as letras de Desejo são
arredondadas e suaves, por outro lado, as letras usadas para indicar as
poucas falas de Desespero são tremidas, bem como as linhas dos balões; os
únicos irmãos cujas falas são escritas com as letras tradicionais são
aqueles que "se tornaram" humanos (pois Morte assume o corpo de um mortal a
cada cem anos, além de caminhar muito mais entre os humanos que em seu
próprio reino, e Destruição desistiu de seu cargo, aparecendo também como
um indivíduo "normal").
A universalidade, na forma dos Perpétuos, é tratada de maneira inusitada e
bastante inovadora, na forma de uma elaborada "personificação metafórica"
que se mistura a outros mitos e trata de si mesmo – o que Bender (1999)
classifica como "metamito".
Contudo, permite ainda a identificação do público com os próprios
mitos, alguns já conhecidos, com os elementos e com os Perpétuos vistos
como indivíduos, cada um com seu "eu complexo" (Ghiraldelli Jr., 2006:84).
Seria impossível tratar, nesta monografia, de cada personagem
mítico representado em Sandman; estão presentes personalidades das
mitologias grega, egípcia, celta etc., incluindo personagens bíblicos como
anjos, demônios que habitam o inferno, e até Lúcifer, todos possuidores de
defeitos e enfrentando dilemas. Por outro lado, não há a presença de Deus –
exceto pela crença de um ou outro personagem humano – em sua concepção
monoteísta, como ser único e perfeito que está acima de todas as coisas; a
difusão da ideia de que tudo tem um propósito para acontecer tem a ver com
as regras de funcionamento do universo, partindo do princípio básico de que
algo ocorre em função de uma decisão que foi tomada e esta gerou um
resultado. Há, portanto, uma força que rege o universo, mas não há uma
concepção de Deus na saga, estando ela mais dependente dos mitos que de um
conceito religioso cristão, daí a possibilidade desta obra de ser
considerada "irreligiosa" (Ghiraldelli Jr., 2006:84) ou, ainda, é possível
dizer que o conceito de "religião" ou de "fé" assume um caráter muito mais
intimista, ligado tanto ao ego quanto ao subconsciente do indivíduo,
frequentemente representado pelos sonhos (Rauch, 2003). A quebra de muitos
conceitos e a explicação de outros ocorre, principalmente, nos dois últimos
arcos (como, por exemplo, o diálogo entre Sonho e Delírio, ou a conversa de
Sonho com seus súditos, mostrados nas imagens seguintes), que serão
resumidos no capítulo seguinte para melhor entendimento do desfecho da
saga, que é seguido de The Tempest, outra história homônima a uma peça de
Shakespeare e a segunda parte do trato entre o dramaturgo inglês e
Morpheus.
Ademais, muito do que é contado em Sandman são mistérios, e assim o
devem permanecer, pois é da natureza de contos fantásticos não poderem ser
completamente desvendados, suscitando a reflexão acerca do que não foi
revelado e inclusive do porque de não o ter sido explicado. Alguns
"silêncios" são deixados também para que o leitor exerça sua imaginação,
reflita por si mesmo e preencha as lacunas, algo que pode ser comparado às
morais dos contos de fada, ou até aos textos religiosos que demandem
profunda consideração. Aqui, é importante ter em mente que nada é absoluto
em termos conceituais; para tudo há uma relação e os termos, em Sandman,
são trabalhados exatamente em cima da relatividade.
6. DO ENCERRAMENTO
The Wake ("Despertar") é o título do décimo arco, que encerra a
saga de Sandman. Como todo encerramento, neste são feitas revelações e
considerações finais a respeito de tudo o que se passou. É também uma
despedida do protagonista, do Sandman propriamente dito, além de um epílogo
à morte deste aspecto de Sonho que fora Morpheus, cujo relato é feito no
arco anterior, The Kindly Ones ("Entes Queridos"). Os dois últimos arcos
podem ser considerados os mais complexos da saga, sendo The Kindly Ones um
clímax desolador desta longa história e também o mais extenso dos arcos.
Pensando em Sandman como uma narrativa que gira em torno de
Morpheus, The Kindly Ones pode ser visto como o final da história, com a
morte de um "homem de areia" e sua substituição por outro aspecto, a
transfiguração de um ser humano chamado Daniel. Ainda outras mortes
acontecem, daqueles que, de alguma forma, estavam mais próximos a Morpheus,
como os "funcionários" de seu castelo em Sonhar e outros personagens que
tiveram contato significativo com ele.
6.1. Entes queridos
O título "The Kindly Ones" refere-se a uma das traduções do nome
grego Eumenides, uma das designações pela qual as Fúrias[40] preferem ser
chamadas. Estas deidades do submundo personificavam a vingança divina ou a
fúria dos mortos, sendo especialmente duras com aqueles indivíduos que
haviam assassinado parentes (Lucas, 2008). Impiedosas, aparecem no arco
como personagens cruciais ao desfecho da história, se utilizando de um ato
de Sonho para condená-lo. Contudo, a razão pela qual as Fúrias chegam a
Morpheus revela uma trama complexa que traz a tona personagens que já
haviam aparecido em arcos anteriores e, consequentemente, remonta a outros
acontecimentos: este arco em questão termina uma história começada no
segundo arco, The Doll's House ("A Casa de Bonecas"), cuja continuação está
no sétimo arco, Brief Lives ("Vidas Breves"); traz ainda elementos do
quarto arco, Season of Mists ("Estação das Brumas") e da história de
Orpheus (que é filho de Sonho com a musa Calliope), contada no sexto arco,
Fables and Reflections ("Fábulas e Reflexões"). Ao decorrer deste arco o
leitor percebe que sua história é inspirada nas tragédias gregas e que
Morpheus, aqui, representa o herói trágico, transtornado e assombrado por
falhas que o levam à busca da redenção – que, como será visto mais adiante,
ocorre com o suicídio deste herói, ao reconhecer suas limitações e, então,
perceber que é inútil viver com um coração que não irá se regenerar.
Hippolyta Hall foi casada com o espírito resgatado de Hector Hall,
um super-herói que, manipulado por dois pesadelos que habitavam o Sonhar,
intitulou-se o "novo Sandman", passando a viver em uma realidade onírica.
Ao descobrir a trama dos pesadelos, Morpheus, o verdadeiro Sonho, devolveu
Hector ao mundo dos mortos e fez com que Hippolyta acordasse. Antes de
mudar-se para o Mundo dos Sonhos, Hippolyta estava grávida de seis meses,
mas sua gravidez permaneceu estacionada enquanto esteve sonhando. Morpheus
prometeu buscar o garoto, pois este seria seu herdeiro; ao nascer, Sonho o
batizou de Daniel.
The Kindly Ones começa com o rapto de Daniel e sua suposta morte no
mundo físico – o corpo do garoto é encontrado carbonizado, mas um fio de
prata mantém uma espécie de projeção astral de Daniel ligada ao mundo real
(ilustração a seguir).
Hippolyta, que já havia sucumbido à loucura, culpa Morpheus e
procura, então, pelas Fúrias, em busca de vingança, sem saber que, na
verdade, os responsáveis – que ainda estão com Daniel – são o deus do fogo
e da trapaça Loki e Robin Goodfellow, o bobo da corte de Auberon, rei de
Faerie (Goodfellow, também chamado de Puck, retratado na imagem a seguir, é
um personagem da obra de Shakespeare, A Midsummer Night's Dream, que, como
foi mencionado no item 5.4, O sonho de Shakespeare, não retorna ao mundo
das fadas, preferindo ficar entre os humanos e que cujo paradeiro permanece
indeterminado desde então).
Morpheus envia dois súditos do Sonhar, o corvo Matthew e o pesadelo
Coríntio para procurar pelo menino raptado, porém, quando o encontram, é
tarde demais; as Fúrias já haviam entrado no castelo de Sonho, acusando-o
de derramar o sangue do próprio filho – no caso, o pretexto para a vingança
vem da morte de Orpheus (imagem da página seguinte), que, como já foi
mencionado, resultou da união de Sonho com a musa grega Calliope e que, ao
pedir à tia, Morte, a possibilidade de buscar a amada Eurídice, desce ao
Hades, e faz um trato para que sua noiva retorne à vida, trato que quebra
ao olhar para traz no caminho de volta às terras acima do mundo inferior;
Orpheus é decapitado e devorado pelas Bacantes; encontrada por Morpheus em
uma praia, sua cabeça é abandonada à própria sorte, uma punição conferida
pelo pai por ter pedido ajuda à Morte. É interessante perceber também como
as ilustrações vão, com o desenrolar da narrativa, ganhando um aspecto mais
obscuro e agressivo, em especial o semblante de Morpheus, que, nas edições
referentes a este nono arco, ganham traços angulares e coloridos sombrios,
em tons escuros.
Não podendo atingir Sonho diretamente, as Fúrias destroem, no
entanto, vários habitantes do Sonhar (imagem a seguir) – que é habitado por
amigos, convidados e criações de Morpheus – e, dessa forma, levam o Senhor
dos Sonhos ao "suicídio", ou seja, a um encontro com sua irmã, Morte, que o
tira do Sonhar e o manda, em definitivo, para seus domínios.
Nas imagens que se seguem pode ser visto o encontro de Sonho com
Morte e como ele se entrega à irmã:
O sucessor de Morpheus, a quem é passada uma única pedra restante,
que contem a matéria-prima indomável dos sonhos, herda também o domínio do
Sonhar. Este herdeiro é o aspecto de Daniel resgatado por Matthew e
Coríntio – seu corpo do Mundo Desperto, como é chamado o mundo real pelos
habitantes do Sonhar, foi carbonizado por seus raptores. A ele, agora com
outra aparência (sua transformação está ilustrada a seguir), mais adequada
à sua nova posição, caberá restaurar o Sonhar e ocupar o lugar de Sandman
também entre os Perpétuos.
Como o leitor verá no arco seguinte, a morte de Morpheus irá
repercutir pela estrutura de todos os acontecimentos anteriores e o novo
Sonho, mesmo representando uma evolução no Sonhar, jamais será Morpheus,
pois seu aspecto veio de uma identidade diferente, e a identidade de cada
Sonho permanece e se vai com cada um.
O encerramento de The Kindly Ones fica por conta das próprias Fúrias, que
aparecem já em sua forma humana, como três irmãs comuns, em sua casa. Ao
abrir um biscoito da sorte, uma das irmãs encontra um poema que parece
antever o dia seguinte de Sonhar, após a guerra e a sucessão do trono.
6.2. Despertar
O arco The Wake, lançado no Brasil com o título de "Despertar",
pode ser considerado um epílogo da saga e, como tal, trata principalmente
de processos de despedida. Os títulos dos três primeiros capítulos contem a
palavra "wake" ("despertar", "acordar"), reforçando o significado deste
arco e o efeito pretendido pelo autor, principalmente na terceira história
(seu título foi o único que manteve o jogo de palavras na tradução
brasileira): Chapter 1: Which occurs in the wake of what has gone before
(na edição brasileira: "O que ocorre no rastro do que se passou"); Chapter
2: In which a wake is held (na edição brasileira: "No qual se realiza um
velório"); Chapter 3: In which we wake (na edição brasileira: "No qual
despertamos"). Em todas as histórias (ao todo o arco é composto por seis
contos), o tema principal gira em torno do que está entre a morte, ou o
fim, e a renovação, entre o horror e a dor do luto e o medo que vem com a
esperança possível.
A primeira história traz a reunião dos Perpétuos, que são
informados da morte do irmão por um pássaro mensageiro e devem, então,
começar os preparativos para o velório. Mostra, também, a reação de cada um
à morte de Sonho e como se dirigem ao coração do Sonhar para a despedida,
enquanto Daniel, o novo Sonho, recria o Sonhar, trazendo de volta à vida
seus habitantes. A chegada dos personagens ao Sonhar é uma oportunidade de
conhecer Sonho pelo ponto de vista de alguns dos convidados e são feitas
revelações cruciais a respeito de conceitos que envolvem Sonho e de
relações com seres humanos, outros seres fantásticos, deidades (incluindo a
deusa egípcia Bastet) e com habitantes do Sonhar. Para as três primeiras
histórias, foram utilizados os desenhos originais feitos a lápis pelo
ilustrador Michael Zulli, cujo estilo realista confere o ar de sobriedade
comum a um velório, reforçando a seriedade da perda que simboliza este
arco. A chegada dos Perpétuos ao coração do Sonhar é a ilustração que
merece destaque pela dimensão e pelo impacto capaz de provocar no leitor
(imagem na próxima página).
O segundo capítulo, no qual se realiza a cerimônia, é ainda mais
simbólico; já na primeira página, enquanto os Perpétuos constroem um
memorial, o narrador passa a dialogar diretamente com o leitor, contando
que ele também esteve no Sonhar e também presenciou o funeral de Sonho.
Cada criatura, cada indivíduo, tem suas próprias experiências e,
consequentemente, seus sonhos específicos. Todos sonham e, quando um
aspecto de Sonho morre, todos se reúnem para prestar homenagens a ele,
contudo, como ocorre comumente com os sonhos, é possível que algumas
pessoas (ou alguns seres) não se lembrem de ter presenciado este velório.
Enquanto se dirigem ao local da cerimônia, habitantes do Sonhar
assassinados, no arco anterior, pelas Fúrias e recriados pelo novo Sonho
discutem sobre o que está acontecendo e, neste momento diante de uma
pergunta do ser moldado e criado pelos Perpétuos para carregar a mortalha
de Morpheus, mais claramente, o bibliotecário do castelo do Sonhar, Lucien,
e o anfitrião da Casa dos Segredos, Abel, explicam a condição de Sonho como
uma ideia, um ponto de vista ou, ainda, a personificação de uma ação (a
conversa aparece na imagem seguinte).
Este último termo, usado por Lucien, de que Morpheus foi a personificação
de uma ação, mostra o quão metafórico é todo aquele momento e,
possivelmente, toda a história contada em Sandman que tem, na verdade, o
abstracionismo como base principal. Esta constatação, que não deixa de ser
irônica, é um sinal do despertar do leitor que vem acompanhando a saga, o
que deverá ocorrer no capítulo seguinte, que consiste na terceira história
do arco. Em seguida, uma conversa entre Calliope e outras figuras presentes
mostra outro lado de Morpheus, como amante e pai de Orpheus, filho que teve
com a musa grega. Ainda outros falam de suas relações com o aspecto de
Sonho que se foi: amigos de outros mundos e outras amantes, inclusive a
rainha Titânia (personagem que aparece originalmente em A Midsummer Night's
Dream, descrita nesta monografia em 5.4, O sonho de Shakespeare), que
prefere não revelar suas lembranças do Lorde Moldador (mais um nome
atribuído a Morpheus). Motivos para a decisão de Sonho também são
cogitados, enquanto todos finalmente se dirigem ao último destino, o
mausoléu no qual a mortalha, que traz estampado o capacete usado por Sonho,
toma a forma do corpo de Morpheus e onde terá início o último ritual.
Sobre The Wake e a sensação que este confere ao leitor, a crítica
literária Cindy L. Speer (s/d) escreve, em sumário publicado na página
oficial na internet do autor Neil Gaiman:
"The Wake is the final chapter of this landmark series.
Whenever someone we care about, as we learn to care about
so many of these characters, dies, we must mourn, have a
funeral and a wake. This final book ties up some loose
ends, and leaves us with the message that dreams never
really die."[41] (Speer apud Gaiman. In: neilgaiman.com)
Na terceira história, ocorre o despertar de todos e, em especial, o
despertar do leitor. Antes, no entanto, alguns dos presentes são convidados
a discursar, dentre eles os Perpétuos, à exceção de Destruição, que não vai
ao funeral. Discursam cada um a sua maneira, mas duas falas em especial
chamam a atenção. A primeira é a de Destino, o primogênito, que discursa
brevemente da função do irmão e da sua própria: "(...) But I see things as
they are, and as they were, and as they will be. And he was the lord of the
things that are not, and were not, and never will be… He was my
brother."[42] (Gaiman, Oct. 1995:05); imagem na página seguinte.
A segunda fala que deve ser destacada é a de Desespero, pela forma
como é descrita pelo narrador, que alterna suas palavras com a dela e
surpreende pela intensidade de seu efeito, resultando, no leitor, em
profunda comoção, resultado que pode ser associado ao provável desespero
purgado durante a leitura desta passagem. Parte do discurso, bem como sua
ilustração, são apresentados a seguir:
"This is the second brother I have lost, whispered
Despair in her shadowy voice, and each of the listeners
found herself, or himself, or itself, giving na
involuntary shiver. And it hurts. (…) He was a creature
of hope. For dreams are hopes, and echoes of hopes. And I
am a creature of despair. And her words moved over her
listeners like a black wind blowing across their hearts;
and in that moment each of them knew Despair. (…) And you
will forget: death or life will take him from your minds.
I know, whispered despair, in her distant, empty voice.
But I shall remember him."[43] (Gaiman, Oct. 1995:10)
As homenagens se seguem e, novamente, o leitor é lembrado de que estava lá,
mas que talvez o tenha esquecido após acordar; contudo, algumas lembranças
permanecem, e alguns elementos continuam nos sonhos de cada um,
principalmente durante a sonolência entre o estado de vigília e o sono
verdadeiro. Neil Gaiman, aqui, reforça que o leitor não deve se esquecer de
que está sonhando, afinal, em sonhos, tudo é possível, e aquele é um
momento de transição. De repente, o mausoléu no qual acontecia o funeral se
transforma numa ponte e as águas do rio, por baixo dela, são retratadas
como um céu noturno estrelado pelo qual navega um barco em forma de cisne,
outrora o esquife em que estava deitado o aspecto do corpo de Morpheus, o
qual fora moldado por seu próprio manto. Morte se aproxima, vestida em
vermelho, e se despede do irmão. É o discurso – apenas descrito no
quadrinho, mas não revelado – de Morte que acalma a todos e dá sentido ao
momento.
Portanto, mesmo que as palavras dela permaneçam um mistério, ela traz
tranquilidade aos seres, pois é, por si só, universal. O leitor é levado a
acompanhar o barco, que segue assumindo outras formas, em sua viagem ao
reino desconhecido de Morte. Neste segmento, quase não há narração, numa
sequência de páginas verdadeiramente oníricas (anexadas a seguir), que
representam a despedida de um sonho que parece desaparecer no horizonte e,
à medida em que aquele se afasta, percebe-se o princípio de outro, no reino
que agora é comandado pelo novo aspecto de Daniel. Enquanto Sonho segue o
caminho para conhecer seus irmãos, aqueles que presenciaram o funeral vão,
aos poucos, acordando, dentre eles o leitor, que acorda exatamente no
momento em que o novo Sandman abre a porta e se depara com os demais
Perpétuos sentados à mesa (imagem abaixo).
Se Sandman terminou em The Kindly Ones ("Entes Queridos"), The Wake
("Despertar") exerce a função de epílogo sem, no entanto, conceder um final
definitivo a toda a saga, característica típica de uma obra da pós-
modernidade que pode também ser interpretada como um recurso utilizado pelo
autor a fim de continuar os contos de Sandman em outras obras. Não se
esgotam as possibilidades dos personagens e, comercialmente falando,
personagens e elementos podem ainda ser reexplorados. O exemplo está ainda
no arco The Wake, que ganhou três histórias adicionais, que poderiam ser
chamadas de "epílogos do epílogo", sendo a terceira história, em especial,
uma conclusão geral para a obra, construída a partir da visão de Neil
Gaiman de como um escritor concebe sua história e desenvolve a si mesmo.
6.3. A tempestade final
Em The Tempest ("A Tempestade"), William Shakespeare finalmente
cumpre a segunda parte de seu acordo com Morpheus e escreve a peça que
também dá nome ao último conto de Sandman. The Tempest é ainda considerada
a última grande peça de Shakespeare – ao passo que A Midsummer Night's
Dream, a "primeira parte" do contrato, é considerada sua primeira grande
obra – além de, segundo Neil Gaiman, estas serem as únicas peças originais,
que não foram inteiramente baseadas em fatos históricos ou em histórias já
existentes (Bender, 1999:224). É interessante notar que elas também se
encaixam, cronologicamente, em Sandman, mesmo que The Tempest – cuja
publicação estava planejada, originalmente, para o fim do terceiro arco,
Dream Country ("Terra dos Sonhos"), aproximadamente um ano depois, e que
reuniria as duas obras shakespearianas – tenha sido publicada ao final da
saga, cinco anos após A Midsummer Night's Dream.
As duas peças utilizadas por Gaiman são únicas na bibliografia de
Shakespeare também pela importância que os "espíritos" ou seres de outros
mundos apresentam para o desenrolar das histórias ao contracenarem com
seres humanos, o que torna a inserção, em Sandman, destes dois marcos da
carreira de Shakespeare ainda mais adequada.
The Tempest é, essencialmente, sobre histórias e fins (Gaiman apud
Bender, 1999:224), e a ela é acrescentada, nos quadrinhos, basicamente,
duas outras histórias e dois outros fins: a de Shakespeare e o fim de sua
carreira e a de seu trato com Morpheus e o cumprimento de sua parte final.
De forma sutil, o quadrinho mostra como o dramaturgo enfrenta as
consequências de seu sucesso como escritor e reflete sobre elas e sobre
como sua vida tem sido até então. Por esta razão, o clima deste epílogo é
introspectivo, fazendo desta a história mais intimista de Sandman,
completando a atmosfera que pretendia ser mantida em The Wake, arco ao qual
pertence. Sobre seu resultado, Neil Gaiman revela: "It's the nearest I've
ever come to try and answer, honestly and at length, the question 'Where do
artists get their ideas?'[44]" (Idem).
A história mostrada pelos quadrinhos se passa em novembro de 1610,
tendo o dramaturgo voltado de Londres e de suas aventuras para permanecer
em casa, na cidade de Stratford, com sua esposa, Anne Hathaway, e uma de
suas filhas, Judith, que ainda não havia se casado. Ele não parece ser um
homem feliz, apesar de ter se tornado um grande escritor – o que julgava
ser seu maior sonho quando, aos vinte e três anos, encontrou-se com
Morpheus – e, com mais de quarenta anos, ainda se pergunta sobre suas
realizações, enquanto tem sua vida questionada, primeiro, por sua esposa,
depois por seu "amigo" de Londres (na verdade, um de seus "rivais de
profissão", cujo grupo de teatro se apresentava para a aristocracia e
crítico de sua obra), Ben Jonson, que lhe faz uma visita.
Considerando os quadrinhos, há, em The Tempest, uma espécie de
balanço, por parte de Shakespeare e por parte daqueles que conviveram com
ele, no qual o leitor atenta, de maneira mais clara, para o que já fora
previsto em A Midsummer Night's Dream, tendo em vista a relação do escritor
com o filho, Hamnet, e sua posterior perda, além de uma breve conversa com
Morpheus, na qual Shakespeare demonstra arrependimento pela "barganha"
entre eles ao receber a notícia da morte de seu amigo, Christopher Marlowe.
Naquele momento, o inglês vislumbra como a vida pode ser curta e que nem
ele está livre da mortalidade, apesar de ter, em suas peças, a
possibilidade de seu nome e de suas palavras permanecerem entre os humanos.
A história em quadrinhos é permeada por excertos da peça,
ilustrados (segunda imagem na próxima página), além de o decorrer da
história apresentar vários elementos que Shakespeare acaba por incorporar
na obra, como, por exemplo, a música que escuta, de madrugada, ser cantada
por dois marujos bêbados que passam ao lado de sua casa (ilustração também
na página seguinte) e que, eventualmente, aparecerá em The Tempest, na
segunda cena do segundo ato:
"(…)
Would cry to a sailor, 'Go hang!'
She loved not the savour of tar nor of pitch,
Yet a tailor might scratch her where'er she did itch.
Then to sea, boys, and let her go hang."[45]
(Shakespeare, 1611, apud Gaiman, 1996:10)
O que mais chama a atenção em todo o conto de Gaiman é o lado humano de
Shakespeare, um lado esquecido quando se pensa no escritor celebrado por
tantos séculos; o dramaturgo pode ter sido um gênio da literatura, mas, em
nenhum momento, deixou de ser uma pessoa. Afinal, segundo Gaiman (apud
Bender, 1999:226), basta ser uma pessoa para se entender as pessoas, e foi
esta condição que levou Shakespeare a escrever.
Para ilustrar The Tempest, Charles Vess, o mesmo ilustrador de A
Midsummer Night's Dream, foi convidado, a fim de manter uma uniformidade
entre as histórias. Segundo o artista (apud Bender, 1999:226), este último
conto demandou pesquisa mais aprofundada em biografias de Shakespeare que
contivessem descrições físicas, além de referências visuais de Stratford na
época em que viveu o escritor – muito diferente da cidade inglesa atual. A
maior dificuldade, para Vess (idem), foi desenvolver as personagens de
Judith e Anne, uma vez que não se tem muitas referências das mesmas, além
de os retratos de Shakespeare serem, em sua maioria, do autor quando jovem,
enquanto as imagens em que ele aparece mais velho diferenciam muito entre
si.
Na relação com a filha Judith, Shakespeare se mostra um pai
paciente e relativamente amoroso – uma mudança de comportamento, se
comparado seu comportamento no conto anterior, A Midsummer Night's Dream –,
mas ainda voltado para a realização de seu sonho e para o cumprimento do
trato selado com Morpheus. Judith conta ao pai como se sentia quando ele
estava em viagem, longe da família, e como sua ausência afetava também sua
mãe, Anne, e sua irmã, Suzanne. Também revela que, ao ouvir a mãe ou a irmã
lendo as cartas de Hamnet, sentia inveja do irmão que viajava com o pai,
pois, desta forma, podia estar perto dele – porém, tendo acompanhado a
história anterior, A Midsummer Night's Dream, o autor tem consciência de
que, mesmo para o garoto que estava ao lado do pai, este permanecia
distante, como foi explicado no item 5.4, O sonho de Shakespeare. O diálogo
pode ser visto na imagem a seguir.
"(...)
- Why did you have to go to London? Why make up the
plays? Why act? I warrant you could have found good,
honest work in Stratfor.
- Perhaps.
- I would have given the world to have had you here –
when I truly was a little girl.
(…)
And mother also would weep. Mother wept mosto f all. Did
you not think? Did you not care?
- I… followed a dream. I did as I saw best, at the time.
Not much longer, Judith. Not too long, now."[46] (Gaiman,
1996:18)
Na relação com a esposa revela-se ainda mais o lado humano de Will, que se
casou com Anne, oito anos mais velha que ele, às pressas, por tê-la
engravidado – este fato é mencionado no início da história em quadrinhos. É
ela William Shakespeare quem o critica mais severamente e chega a ser
irônica a conversa entre o casal, pois o dramaturgo parece não aplicar a si
mesmo o que escreve sobre as pessoas em suas obras e a "análise" de sua
personalidade acaba sendo feita pela esposa, que não vê sentido em suas
peças. Shakespeare cita um trecho de The Rape of Lucrece[47] quando Anne
comenta que ele nunca está satisfeito, ao qual ela retruca com sarcasmo:
"- 'What win I, if I gain the thing I seek? A dream, a
breth, a froth of fleeting joy. Who buys a minute's mirth
to wail a week? Or sells eternity to get a toy?'
- More of your pretty-play-nonsense? Well I can give you
the answer to that one. 'Who buys a minute's mirth to
wail a week?' That's people do that. Like old Quiney[48]
spending his pennies on the whores of London town."[49]
(Gaiman, 1996:20)
Aparentemente, Anne nunca gostou da decisão do marido de se tornar
um escritor ou, pelo menos, gostaria que ele o fizesse mais por dinheiro,
pois acredita que eles seriam ricos se o marido escrevesse apenas comédias.
Ela reclama que o marido pensa demais e sonha demais, ficando preso a outro
mundo que não a realidade, fugindo, desta forma, de suas obrigações para
com a esposa; por fim, Anne faz ainda alusão à sexualidade de Shakespeare,
assunto bastante controverso mesmo em suas biografias atuais, pois o
escritor dedicava sonetos tanto a moças quanto a belos rapazes (Holden,
2003:116). Contudo, ao observar o penúltimo quadrinho da página 20 (imagem
na página seguinte), a ilustração do rosto de Anne demonstra certa piedade
para com o marido, e mesmo tratando-o com severidade, ainda há amor entre
ela e Shakespeare – algo que pode ser percebido em outras ilustrações,
pelas mudanças no semblante da mulher num ou noutro momento em que conversa
com o esposo. Dessa forma, a relação com Anne se mostra peculiar, bem como
a relação com a filha Judith, alternando entre ternura e estranhos
distanciamentos causados pela incompreensão.
Na página seguinte à discussão do casal, Shakespeare recebe a
primeira visita de Morpheus na história em questão. Will adormece em sua
escrivaninha e, de repente, se vê caminhando em uma praia com Sonho,
questionando o motivo de ter sido ele o "escolhido" para o trato, para
escrever as peças: a primeira foi destinada ao povo de Faerie, como um
presente, mas a segunda, como revela Shakespeare, é para Sonho. No entanto,
antes que Morpheus possa dar a resposta, Anne acorda o marido de seu sonho
e o leva para a cama. No dia seguinte, Will começa a questionar seu talento
e a razão para tê-lo obtido por um meio que não é considerado justo.
Terminada a peça, o escritor a lê para sua esposa que não lhe dá muita
atenção no momento, mas, novamente, a "cena" termina com uma troca de
olhares carinhosos.
Ao concluir a peça, Shakespeare recebe nova visita de Morpheus, que
agradece ao escritor. Porém, Shakespeare diz que esteve ao serviço do
Senhor dos Sonhos por boa parte de sua vida e que talvez mereça um pouco
mais em troca, pedindo que Sonho o ofereça uma taça de vinho em seu salão.
No caminho para o castelo do Sonhar, eles conversam sobre a peça:
"- (...) So tell me, Will: do you see yourself reflected
in your tale?
- I would be a fool if I denied it. I am Prosper,
certainly; and I trust I shall. But I am also Ariel – a
flaming firing spirit, crackling like lightning in the
sky. And I am dull Caliban. I am dark Antonio, brooding a
planning, and old Gonzalo, counseling silly wisdom. And I
am Trinculo, the jester, and Stephano the butler, for
they are clowns and fools, and I am also a clown and a
fool. And on occasion, drunkards."[50] (Gaiman, 1996:30)
Este pode ser considerado um momento em que o discurso de Shakespeare causa
empatia no leitor, ao tornar claro que não está tão alheio a seus erros e
defeitos e negando que a vida seja uma peça, pois encontra-se com muitas
pessoas apenas uma vez, os eventos não tem forma e não se volta para o
público em busca de aplausos, além de não ser possível ir aos bastidores;
contudo, Sandman revela ao dramaturgo que é exatamente onde ele está: nos
bastidores. Adentrando o castelo, Will escolhe um vinho doce do qual se
lembrava quando era jovem, que lhe foi dado por uma cigana seguido de um
beijo.
Finalmente Shakespeare pergunta a Sonho por que lhe foi concedida a
dádiva de escrever, não se lembrando do que falara a Christopher Marlowe
anos atrás na taverna em que se encontrara com Morpheus e selara o acordo
(a situação está descrita no item 5.2.2, O dramaturgo nos quadrinhos), ao
que Morpheus lhe transmite exatamente seu desejo:
"- 'I would give anything to have your gifts, or more
than anything to give men dreams that would live on long
after I was dead. I'd bargain, like your Faustus, for
that boon…'
- I said that?
- Yes.
- And what did you give me?
- What you requested: the power to give men dreams that
would live on, after you were gone. And you gave me two
plays."[51] (Gaiman, 1996:32)
De fato, era aquele o maior desejo de um jovem, que agora, bem mais velho,
se perguntava o que teria acontecido se não tivesse se encontrado com
Sonho, contudo, o que não ocorreu só pode ser cogitado, mesmo por Morpheus,
que sugere que, mesmo assim, o escritor não estaria satisfeito com sua
vida. O pensamento que mais assombra Shakespeare é o da possibilidade de
que seu filho, Hamnet, ainda estaria vivo, uma vez que ter aceitado a
barganha possa ter lhe custado a vida do filho e a sua própria,
significando a felicidade da família – se o leitor considerar que, na
verdade, o garoto foi coagido por Titânia a viver no Reino das Fadas (como
está sugerido no item 5.4, O sonho de Shakespeare). A morte do filho levou
à composição de outra peça – provavelmente, Hamlet – que dizia respeito à
verdadeira morte, à perda real, que se encontrava no coração do dramaturgo,
mas que era, ao mesmo tempo, assistida quase à distância por ele, para ser
colocada no papel. A atitude de Shakespeare fez com que Anne se afastasse
cada vez mais do marido, tratando-o como um jovem tolo, e o casal passou a
dormir em camas separadas. Mesmo sendo bem quisto pela comunidade de
Stratford e até por seus conhecidos em Londres, falta ao escritor um amor-
próprio que esteve perdido enquanto ele escrevia, pois seu dom fora, de
certa forma, comprado; aquele desejo de poder escrever a qualquer custo
fora o desejo de um garoto, mas o dramaturgo não é mais um garoto e não tem
mais certeza do que quer – nem do que queria na época.
Shakespeare se considera cristão e, sem compreender o que está
diante de si, acredita que Morpheus seja um ser pagão e que, por ter selado
um trato com ele, o escritor está condenado ao inferno; imagina que suas
peças sejam, então, fruto de bruxaria, principalmente ao considerar a
última peça, The Tempest, destinada a Sonho, que tem um mago como
personagem principal. Neste momento, tem início um dos diálogos mais
importantes da história, quando Morpheus revela seus motivos:
" - So why this play? It is a topical piece – I took the
inspiration for it from the wreck of the Sea-Venture in
the Bermudas last year[52]. The story is merely the sort
of fairy story all parents tel to amuse their children.
There is some of me in it. Some of Judith. Things I saw,
things I thought. I stole a speech from one of
Montaigne's essays[53], and closed with an unequivocally
cheap and happy ending. Why did you not want a tragedy?
Something lofty, something dark, a tale of a noble hero
with a tragic flaw?
- I wanted a tale of graceful ends. I wanted a play about
a King who drowns his books, and breaks his staff, and
leaves his kingdom. About a magician who becomes a man.
About a man who turns his back on magic.
(…)
- But – why?
- That is not your concern, Will.
(…)
- I have earned an answer to my question. Why?
- Because I will never leave my island.
- You live on an island?
- I am… in my fashion… an island.
- But that can change. All men can change.
- I am not a man. And I do not change.
- But…
- I asked you earlier if you saw yourself reflected in
your tale.
- Yes.
- I do not. I may not. I am Prince of Stories, Will; but
I have no story of my own. Nor shall I ever. But I thank
you."[54] (Gaiman, 1996:35-37)
Por ser a última edição publicada de Sandman, apesar de ter
ocorrido antes da maior parte da saga – incluindo o episódio do rapto de
Morpheus –, The Tempest remete o leitor a determinados acontecimentos que
vão de encontro ao discurso de Sonho e à sua intransigência, tornando
possível notar que até mesmo Morpheus pode se enganar a respeito de si e
até mentir – o que reforça a ideia de que não é um Deus, mas um conjunto de
crenças – e crenças podem mudar de acordo com as experiências pelas quais
passa o indivíduo – e uma das questões de Sandman é que Sonho também pode
ser visto como um indivíduo. Há, ainda, certo sarcasmo escondido na fala de
Morpheus quando ele diz que não tem uma história de si próprio e nunca
terá, pois é exatamente no que consiste Sandman: histórias de Sonho,
algumas do passado, outras mais recentes, além de uma importante
constatação de que, como as crenças, os sonhos mudam, e, por isso, Morpheus
também muda.
Resta, ao leitor, a dúvida se Morpheus tinha consciência da
fragilidade de suas palavras naquele momento, uma vez que, logo no
princípio de Sandman, quando Sonho é aprisionado, estas falas ditas a
Shakespeare se tornam mentira – o aprisionamento é tido como um divisor de
águas na existência de Sonho e um dos marcos de sua mudança, que fez com
que adquirisse maior compaixão para com outros seres, em especial, para com
os humanos. Morpheus deixou até mesmo de ser uma ilha – e talvez já não o
fosse quando conhecera Shakespeare, apesar de não o admitir, o que é
possível perceber em alguns de seus encontros com ex-amantes e até com o
amigo, Robert Gadling (protagonista de Men of Good Fortune, conto
apresentado no item 5.2.2, O dramaturgo nos quadrinhos), com quem passou a
se encontrar periodicamente e com quem realmente estabeleceu laços, apesar
do distanciamento aparente em suas conversas.
O agradecimento a Shakespeare demonstra também certa humanidade no
Senhor dos Sonhos, pois The Tempest, a segunda parte do contrato, talvez
seja a primeira das histórias sobre Sonho, ou melhor, sobre sonhos e
desejos, e características de Morpheus podem ser vistas em Próspero,
inclusive o desfeche e o "abandono da magia", pois não se sabe se, naquele
momento, Sonho já previa seu "suicídio" – e, consequentemente, o abandono
de sua "magia" – ou sabia que este, como a mudança, era inevitável.
Por outro lado, a fala de Morpheus a Shakespeare, "But I thank
you." (Gaiman, 1996:37), pode ser vista também como a gratidão de Neil
Gaiman pela influência e inspiração que tornaram possível a criação de
Sandman, como se as histórias do dramaturgo tivessem sido feitas sob medida
para os quadrinhos.
Ao retornar do castelo de Sonho, acordando, Shakespeare constata:
"It is over. (...) All of it. The burden of words. I can lay it down, now.
Let it rest."[55] (idem); é outra fala que Gaiman atribui a um personagem,
mas que pode ser uma analogia de seu pensamento em relação ao fim de seu
trabalho, a última edição de um quadrinho que vem sendo escrito há sete
anos e, obviamente, não se tornou um fardo, mas a responsabilidade de
desenvolver um trabalho complexo e, por vezes, exaustivo, que é finalmente
concluído – como a carreira de Shakespeare – com The Tempest, cada história
a sua maneira e, ao mesmo tempo, da mesma forma, uma vez que o final de
Sandman mostra o escritor concluindo sua peça final.
Esta conclusão é escrita "sem magia", ou seja, sem o dom que foi
dado a Shakespeare por Sonho, para que este pudesse terminar a história com
"suas próprias palavras", sem a ajuda daquelas forças sobrenaturais que o
guiaram até então. Na voz de Próspero, o dramaturgo pede também pela
redenção, tendo abandonado a "magia" que acredita ter lhe causado mal, e
pede clemência por seus atos:
"- Now my charms are all o'erthrown,
And what strength I have's mine own,
Which is most faint. Now 'tis true,
I must be here confin'd by you,
Or sent to Naples. Let me not,
Since I have my dukedom got,
And pardon'd the deceiver, dwell
In this bare island by your spell;
But release me from my bands
With the help of your good hands.
Gentle breath of yours my sails
Must fill, or else my project fails,
Which was to please. Now I want
Spirits to enforce, art to enchant;
And my ending is despair
Unless I be reliev'd by prayer,
Which pierces so that it assaults
Mercy itself, and frees all faults.
As you from crimes would pardon'd be,
Let your indulgence set me free."[56]
(Shakespeare apud Gaiman, 1996:37-38)
No quadrinho seguinte, é mencionado o que aconteceu aos três principais
personagens do conto que se passou: Judith, Shakespeare e Anne. Ao
contrário dos finais felizes em The Tempest, a família de Shakespeare não
parece ter sido tão afortunada. O casamento de Judith com o alcoólatra e
adúltero Tom Quiney foi infeliz e a insatisfação, já presente na vida de
Anne, perdurou, uma vez que o testamento de Shakespeare favoreceu a filha
mais velha do casal, Susanna, e à esposa foi destinado apenas um terço dos
bens do escritor; portanto, mesmo após a morte do marido, Anne não pode
desfrutar do sucesso de suas peças (Holden, 2003:257) e jamais imaginaria
que o sonhador com quem se casou seria considerado, mais tarde, um gênio da
literatura universal.
Como já foi dito, a história apresentada por Neil Gaiman mostra um
lado de William Shakespeare que é muitas vezes ignorado, o de sua
humanidade; o escritor realizou seu sonho de obter sucesso e imortalidade
através das palavras, porém, não acreditava ter sido bom marido nem bom
pai, algo que, nos quadrinhos, Judith e Anne fizeram questão de lembrá-lo.
A dúvida que permanece com o final desta história é se as coisas teriam
sido diferentes caso Shakespeare não tivesse aceitado a proposta de Sonho –
e, mesmo que fossem diferentes, isto não significaria que a família
Shakespeare teria sido feliz.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sandman, em seus dez arcos, forma uma grande história sobre
histórias. Nesta narrativa densa, não linear, chega a ser difícil
identificar todas as referências externas às quais o autor remonta, ora de
maneira mais sutil, ora mais explícita. Neil Gaiman se utiliza de elementos
que vão dos mitos egípcios, passando pelos panteões grego, romano, celta,
até conhecidas obras da literatura ocidental e letras de canções
contemporâneas; esta é uma das razões pelas quais a obra é tão aclamada e,
ironicamente, uma vez que se trata de uma história em quadrinhos, passou a
ser vista como produto literário de alto nível.
A ousadia de buscar tantas referências canônicas ocidentais – e,
por assim dizer, intocáveis –, além de tratar de mitos e lendas dos mais
variados locais do mundo e fazer com que interajam com o popular e o atual,
em histórias nas quais o verossímil e o metafórico não podem ser claramente
separados, chama a atenção para estas publicações, fazendo deste um caso
peculiar na história da arte sequencial, que foge do realismo violento que
pode ser considerado a mais forte tendência entre os quadrinhos da mesma
época. Mesmo assim, ainda contem doses de violência e sarcasmo, justapostas
a ironias sutis e a momentos de reflexões existenciais e pessimistas que
caracterizaram as publicações dos anos 1980 e 1990 destinadas ao público
adulto.
O "herói", Morpheus, não tem valores maniqueístas e nem mesmo o
objetivo de salvar a humanidade; simplesmente desempenha sua função e busca
não faltar com suas responsabilidades, sem questionar o certo ou o errado
além do seu dever. A obra reflete uma importante mudança no gênero, que
passou da representação dos super-heróis como modelos de cidadãos
americanos, corretos acima de tudo, para a admissão de que tudo é relativo,
até para os indivíduos mais nobres.
Através dos Perpétuos, há certo reconhecimento daquilo que é
positivo e negativo para o homem, uma vez que tudo possui esses dois lados,
mas não há o bem e o mal absolutos. O ser humano é construído a partir de
oposições e, da mesma forma, cada Perpétuo tem oposições em si, como, por
exemplo, Desespero, que é aterrorizante, mas doce, ou Delírio, que já foi
Deleite. Através destas inusitadas personificações, Gaiman demonstra a
essência humana transposta para o mundo externo, físico, ao mesmo tempo em
que trata de emoções e sentimentos internos que são comuns a todo
indivíduo.
De fato, Sandman não é uma simples história em quadrinhos destinada
ao público adulto, mas uma obra que exige a atenção e a capacidade, por
parte de seus leitores, de desenvolverem o pensamento crítico enquanto
viajam pelas páginas, além de precisarem, com frequência, recorrer ao
conhecimento literário e social que tenham adquirido previamente – ou mesmo
a pesquisas exteriores, feitas durante a leitura da obra –, a fim de que a
história e suas nuances sejam compreendidas em totalidade. A maior parte
dos acontecimentos narrados pode ser acompanhada pelo público leigo,
contudo, para que tantos detalhes contenham algum sentido, é preciso que o
leitor esteja ao menos familiarizado com elementos da história e da
literatura mundial, bem como com a cultura pop ocidental. Sendo assim, pode
inclusive ser um valioso instrumento para a educação, contendo ampla
bagagem cultural e podendo estimular a diversas pesquisas em variadas
áreas.
Ainda sobre a obra, é possível constatar que a ambivalência a torna
um produto pós-moderno bem sucedido: a erudição caminha lado a lado com o
subcultural, de forma a atingir tanto a elite intelectual quanto o
guetificado meio underground, no qual se valoriza a arte autodenominada
lowbrow; daí a possibilidade de se atribuir, a Sandman, o status de cult.
No que diz respeito à forma como a saga foi apresentada, também a
parte imagética chama a atenção: são apresentados os pontos de vista de
diversos ilustradores, resultando numa variação estilística que raramente é
observada em uma mesma série ou, ainda, em uma mesma edição. Chama a
atenção, ainda, a liberdade concedida a cada desenhista, como, por exemplo,
na edição extra, lançada em 2003, Endless Nights ("Noites Sem Fim"), em que
há uma história para cada Perpétuo, sendo a que se trata de Desespero
inteiramente ilustrada com pinturas abstratas e de cores fortes,
predominando o vermelho. Também as capas, criadas por Dave McKean, fogem da
tradicional ilustração de histórias em quadrinhos, apresentando as mais
diversas possibilidades de montagens, feitas a partir de desenhos e
fotografias experimentais. Deve-se lembrar que cada ilustração é produzida,
pelo artista, à mão, cabendo ao maquinário apenas sua finalização, quando
necessária, e sua reprodução.
Em suma, o quadrinho é fruto de uma hibridização verbal e visual,
na qual permanece uma essência artesanal no que se refere à composição das
histórias, mas sua reprodução em série o coloca num lugar indefinível entre
arte e produto.
Se, originalmente, os quadrinhos são considerados um produto
industrial que vai ao encontro dos demais meios de comunicação, sua recente
admissão como nona arte fez com que passassem a ser também consumidos
abertamente pela elite que procura, agora também na arte sequencial, a
fruição. Ainda assim, continuam exatamente na condição de um produto, cujo
valor determinado pelo mercado se mantém relativamente acessível a fim de
que sejam consumidos pela massa que busca, em maior parte, entretenimento.
Todavia, existe uma incoerência no que se refere à própria condição
de produto de massa atribuída a esta mistura de linguagem verbal e visual,
uma vez que normalmente não se destina à massa generalizada, mas a
determinados grupos pertencentes à massa e mesmo a existência destes grupos
faz com que o conceito de massa seja questionado do ponto de vista
cultural. São grupos que possuem características em comum com o indivíduo
médio, ordinário, mas que já não podem ser vistos como um todo, separando-
se em subgrupos, e, ao mesmo tempo, não se destacando como indivíduos
dentro destes grupos menores.
É importante que se perceba que a hierarquização cultural não
deixou de existir por completo com a chegada da pós-modernidade, mas a
facilidade de reprodução e, consequentemente, de circulação da arte de
elite entre as massas encurtou a distância entre alta e baixa cultura.
Por outro lado, o distanciamento entre grupos pertencentes a um
mesmo segmento cultural não deve ser ignorado, por mais que se fale em
diversidade. Deve-se considerar, também, uma hierarquização dentro da
cultura de massa em si, evidenciada pelo surgimento de termos paradoxais
como o "cult", que refletem a ação da elite intelectual (representada por
acadêmicos e críticos especializados) no meio da apreciação artística, cuja
intervenção, realizada através da mídia, tem influência, seja em maior ou
menor escala, nos gostos do público geral (que inclui tanto sua própria
classe intelectual quanto as classes média e baixa) e, como consequência,
acaba por determinar quais os objetos de consumo das classes inferiores –
determinando também os valores de mercado das obras disponíveis.
O embasamento teórico usado no estudo da arte sequencial provém
principalmente de duas outras modalidades, a literatura e o cinema, a
primeira para fins de análise da linguagem e a segunda voltada para a
imagem e o encadeamento da mesma. Bender (1999:250) chega a comparar o
trabalho do autor de quadrinhos àquele do diretor cinematográfico, pois
exige uma visão dupla, do texto e da retratação deste através da interação,
seja entre personagens, entre personagem e ambiente, entre personagem e
objeto etc., a fim de se atingir o efeito desejado no público. Como o
cinema, é uma forma de expressão atual, condizente com uma atualidade
informatizada e veloz, que pode misturar duas ou mais formas de arte e de
expressão, aparentemente incompatíveis, resultando numa só.
No entanto, dentro das histórias em quadrinhos existem elementos
específicos, que exigem também uma teoria específica que ainda se encontra
em construção – tendo, portanto, limitações que dificultam a análise, por
exemplo, de características que envolvem a subjetividade contida nos
traços, ou na disposição dos balões de fala, que são uma exclusividade dos
quadrinhos, ou mesmo na disposição da imagem estática e em como esta deve
ser trabalhada de acordo com as diferentes estratégias narrativas.
Ademais, estudar o pós-moderno requer a aceitação do contraditório,
o que, por si só, é uma afirmação polêmica, mas aplicável aos estudos
artístico-culturais contemporâneos, que refletem uma realidade que vem se
tornando cada vez mais complexa ao longo dos séculos e, portanto, difícil
de classificar e, como demonstra Sandman, uma realidade que sempre esteve
sujeita a mudanças. Mesmo com diferenças notáveis entre uma época e outra,
há um elemento em comum em toda a história da humanidade: a mudança. E,
como a mudança, as histórias e o que Neil Gaiman busca representar a partir
dos Perpétuos são universais e a universalidade pode ser considerada a
outra característica, muito provavelmente a principal, responsável pelo
sucesso dessa obra.
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http://cafehistoria.ning.com
www.comicbookdb.com (base de dados de histórias em quadrinhos)
www.comic-con.org
www.cubocosmico.hpg.ig.com.br/especiais.htm
www.gutenberg.org (livros digitalizados de domínio público)
www.historianet.com.br
www.hudsonshakespeare.org (The Hudson Shakespeare Company)
www.infopedia.pt
www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm
www.neilgaiman.com (página oficial do autor Neil Gaiman)
www.sonhar.net
www.suapesquisa.com
www.wdl.org (Biblioteca Digital Mundial)
-----------------------
[1] Segundo Barbosa (1985) e Lyotard (1979), considera-se que, já nos
últimos decênios do século XIX, havia uma crise da verdade e do pensamento
científico estabelecido, que ainda se apoiava no Iluminismo que predominou
no século XVIII.
[2] O período da Idade Moderna começa por volta do ano de 1500 e termina
com o início dos anos 1800 (Burke, 1978).
[3] Tradução livre: "Cultura é um processo, não uma condição fixa; é um
produto da incessante interação entre o passado e o presente."
[4] A publicação de Hamburgische Dramaturgie ("Dramaturgia de Hamburgo"),
de G. E. Lessing em 1769 coloca o texto como determinante e condutor da
ação e se utiliza das próprias obras de Shakespeare para propor as "novas"
regras da dramaturgia. A obra foi de extrema importância para o movimento
Stürm und Drang ("tempestade e ímpeto"), cujos textos principais remontam a
Friedrich von Schiller (1759-1805) e J. W. von Goethe (1749-1832).
[5] As farsas populares, de concepções simples nas quais predominavam
gracejos e situações que conduziam ao riso, surgiram no Império Romano,
dando origem ao gênero teatral da Comédia.
[6] Tradução livre: "Foram-se as diversões entre-atos: os cantores,
malabaristas, dançarinos, acrobatas, oradores. Foi-se, também, a prosa
floreada anunciando os eventos sensacionais e cerimoniais que eram parte
das próprias peças shakespearianas. Aqueles que queriam seu Shakespeare
deveriam tê-lo sozinho, atraídos para suas peças por cartazes fortes,
prometendo nenhuma extravagância nem melhorias."
[7] Tradução livre: "Significantemente, as frequentes admoestações
relacionadas ao comportamento da audiência haviam também desaparecido. No
início do século vinte, cartazes deste tipo [sem as 'apresentações
vulgares' entre os atos] tornaram-se a norma em todos os lugares. William
Shakespeare havia se tornado Cultura. Essa mudança resultou no declínio
inevitável da frequência com que se produziam dramas shakespearianos."
[8] Tradução livre: "Ao compilar nossa lista, estávamos procurando pelo
tipo de livro que as pessoas usassem como uma jaqueta de coura ou
carregassem por aí como um totem. O livro que reescreve sua cabeça: que o
estimula aos psicodélicos; faz com que você queira se mudar para a Grécia;
faz de você um pacifista; dá-lhe uma forma de pensar em você mesmo como
mulher, ou uma voz em sua cabeça que faz com que se sinta bem em ser um
adolescente; conjurar sobre ser um personagem que se transforma num
habitante permanente de seu cortiço mental."
[9] Visando especificamente o público adulto, trazendo histórias mais
longas e complexas, as graphic novels são mais parecidas com livros devido
a seu formato e tratamento (capa dura, páginas coloridas, textos comentados
etc.).
[10] Conceito oposto a mainstream, indica tudo aquilo que não é comercial
ou não faz parte da cultura dominante, em voga no momento.
[11] Tradução livre: "Sandman, de Neil, está em par com a grande
literatura. Eu me lembro de terminar edições de Sandman e simplesmente
ficar sentado, tentando recuperar meu fôlego, dizendo, 'Em que viagem esse
cara me levou'."
[12] O Will Eisner Awards foi criado em 1987 com o objetivo de premiar os
maiores representantes do gênero história em quadrinhos pelo mundo. A
premiação é considerada o Oscar dos quadrinhos e acontece anualmente em San
Diego, Califórnia, durante a Comic-Con International, maior convenção de
histórias em quadrinhos e produtos relacionados ao gênero do mundo. (Ver:
www.wordiq.com/definition/Will_Eisner_Awards)
[13] Premiação criada pela HWA – Horror Writers Association ("Associação
dos Escritores de Horror") em reconhecimento à literatura do gênero terror.
(Ver: www.horror.org/stokers.htm)
[14] O maior festival de quadrinhos da Europa ocorre desde 1974, no mês de
janeiro, na cidade de Angoulême, na França. (Ver: www.bdangouleme.com)
[15] Premiação destinada à literatura fantástica, que ocorre anualmente
durante a World Fantasy Convention ("Convenção Mundial de Fantasia") desde
1975. (Ver: www.worldfantasy.org)
[16] Em 1827 o suíço Rudolf T. Pffer publicou Sr. Vieux-Bois e,
posteriormente, outros ilustradores lançaram trabalhos que aliavam imagem a
texto, como Henrique Fleiuss e seu Dr. Week (1861) e Wilhelm Busch, com os
garotos Max und Moritz (1865). A 17 de maio de 1890, em Londres, o público
conhecia a primeira revista semanal de histórias desenhadas, Comic Cuts,
publicada pela editora Alfred Harmsworth em uma tiragem de 300 mil
exemplares. Ver: Guerra, 2005.
[17] Movimento de contestação política, social e cultural que teve como
principais expoentes os hippies.
[18] Tradução livre: "Eu vou lhes mostrar o medo em um punhado de poeira."
[19] A referência ao trigésimo verso do poema de Eliot aparece ainda na
página 48 do primeiro volume, Sleep Of The Just, do primeiro arco, Preludes
& Nocturnes, com uma fala do próprio Sonho: "And I have showed him
fear...", ao comentar sobre sua vingança contra o filho do feiticeiro que o
aprisionou por uma década e foi, então, condenado por Sandman ao "despertar
eterno" ("eternal waking").
[20] Tradução livre: "Eu fiz o Sandman tão velho quanto o universo, porque
isto me deu todo o tempo e todo o espaço para 'jogar'. E eu o fiz a
encarnação dos sonhos e das histórias porque isto meu deu uma abertura para
contar, virtualmente, qualquer tipo de conto."
[21] Aproveitando o sucesso, enquanto a série Sandman estava sendo lançada,
a Vertigo publicou também várias outras histórias tendo alguns dos
personagens da saga como protagonistas, sob o título de The Sandman
Presents, que, no entanto, não obtiveram tanto sucesso quanto o seriado
principal.
[22] Estilo literário difundido nos séculos XVIII e XIX por nomes como o de
Mary Shelley (1797-1851), autora de Frankenstein (1818) na Inglaterra e o
de Edgar Allan Poe (1809-1849), na América.
[23] Segundo o escritor e teórico literário Affonso Romano de Sant'Anna
(1985:11-15), a paródia é o uso de um elemento literário em outro texto, no
qual este elemento é subvertido, não mantendo seu significado original.
[24] Tradução livre: "Bem, Kit, seu tema, como vejo, é que, por sua arte e
por seus sonhos, alguém pode unir-se e barganhar com os poderes mais
negros."
O que Shakespeare descreve é, basicamente, o tema que envolve The Tragical
History of Doctor Faustus, peça que só foi publicada em 1604, onze anos
após a morte de Marlowe.
[25] Estilo rítmico tradicional da poesia e do drama ingleses; consiste de
versos decassílabos, com a tônica nas sílabas pares.
[26] Tradução livre: "- Aquele rapaz, Will Shakespeare. Você fez algum tipo
de acordo com ele, não foi?
- Talvez.
- Que tipo de acordo? Sua alma?
- Nada tão bruto."
[27] Uma misteriosa figura gigante de um homem, localizada em Windover
Hill, de origem incerta; acredita-se que ele seja o guardião da região das
colinas ao sul da Inglaterra (South Downs).
[28] Wilmington é uma contração de Wendel's Mound Town.
[29] Nos contos de seu livro Puck of Pook's Hill (1906), Rudyard Kipling
coloca a moradia das fadas próxima a Burwash, na região de Sussex, onde o
próprio autor vivia.
[30] Quando comparada ao significado de "paródia" (ver nota de rodapé 3), a
paráfrase pode ser definida como o uso de um elemento do texto (ou de um
trecho) sem que seu significado seja alterado (Sant'Anna, 1985:16-22). No
caso de Titânia, por exemplo, seu interesse por outro garoto pode ser visto
como um acréscimo que está de acordo com sua conduta original.
[31] Tradução livre: "O olho do homem não pode ouvir, o ouvido do homem não
pode ver, a mão do homem não é capaz de provar, sua língua de conceber, nem
seu coração de reportar o que foi meu sonho."
[32] Tradução livre: "Senhor, que tolos são estes mortais!"
[33] Tradução livre: "Um enxerga mais demônios que este vasto Inferno possa
abrigar"
[34] Tradução livre: "O amante, tão frenético quanto, vê a beleza de Helena
de Tróia em uma testa egípcia."
[35] Tradução livre: "Algo não precisa ter acontecido para ser verdadeiro.
Histórias e sonhos são sombras de verdades que resistirão quando meros
fatos se tornarem pó e cinzas, e forem esquecidos."
[36] Tradução livre: "Os melhores nesse tipo são tão somente sombras, e os
piores não são piores, se a imaginação lhes der algum crédito."
[37] NIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra (Assim falou Zaratustra).
Chemnitz: 1883-85.
--------------------. Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos). Chemnitz:
1888.
[38] FREUD, S. Massenpsychologie und Ich-Analyse (Psicologia de massa e
análise do Ego). Leipzig, Wien, Zürich: 1921.
[39] Tradução livre: "Existem sete seres que não são Deuses,/que existiam
antes de a humanidade sonhar com Deuses,/que existirão depois que o último
Deus estiver morto./Existem sete seres que existem porque,/no fundo de
nossos corações, sabemos que eles existem./Existem sete seres que são
chamados Perpétuos./Eles são, em ordem de idade, Destino, Morte, Sonho,
Destruição, Desejo e Desespero, e Delírio,/que outrora fora Deleite."
[40] As Fúrias ou Dirae (na mitologia romana) são chamadas, pelos gregos,
de Erinyes (literalmente, "as furiosas") ou Eumenides (literalmente, "as
graciosas", também traduzido como "as gentis", "as benevolentes", ou seja,
"the kindly ones"). Ver: Lucas, 2008.
[41] Tradução livre: "The Wake é o capitulo final deste divisor de águas
que foi a série. Sempre que alguém com quem nos importamos, como aprendemos
a nos importar com muitos destes personagens, morre, nós devemos lamentar,
fazer um funeral e velar. Este livro final enlaça alguns finais soltos e
nos deixa com a mensagem de que sonhos nunca morrem realmente."
[42] Tradução livre: "(...) Mas eu vejo as coisas como elas são, como foram
e como serão. E ele foi o senhor das coisas que não são, não foram e nunca
serão... Ele era meu irmão."
[43] Tradução livre: "Este é o segundo irmão que perco, suspirou Desespero
com sua voz sombria, e cada um dos presentes sentiu um calafrio
involuntário. E isso dói. (...) Ele era uma criatura de esperança, pois
sonhos são esperanças e ecos de esperanças. E eu sou uma criatura de
desespero. E suas palavras avançavam sobre os presentes como um vento negro
soprando em seus corações; naquele momento, cada um deles conheceu
Desespero. (...) E vocês se esquecerão: a morte ou a vida o apagará de suas
mentes. Eu sei, suspirou Desespero com sua voz distante e vazia. Mas eu me
lembrarei dele."
[44] Tradução livre: "É o mais perto que cheguei de tentar e responder,
honestamente e elaboradamente, à pergunta 'De onde os artistas tiram suas
ideias?' "
[45] Tradução livre: "(...) Gritava ao marujo, 'Vá esperar!'/Ela não
apreciava o gosto do alcatrão nem o piche,/Mas um alfaiate poderia coçá-la
onde sentia seu comichão./Então, ao mar, rapazes, e deixem que ela vá
esperar."
[46] Tradução livre: "(...) - Por que o senhor precisou ir para Londres?
Por que inventar as peças? Por que atuar? Garanto que teria encontrado um
trabalho bom e honesto em Stratford.
- Talvez.
- Eu teria dado o mundo para ter o senhor aqui... Quando eu realmente era
uma garotinha. (...) E mamãe também chorava. Era quem mais chorava. Nunca
pensou nisso? Não se importava?
- Eu... perseguia um sonho. Fiz o que julguei melhor na época. Não falta
muito, Judith. Agora não falta muito."
[47] SHAKESPEARE, William. The Rape of Lucrece (1594). Project Gutenberg,
1998, estrofe 31. Disponível em: www.gutenberg.org/ebooks/1505.
[48] Richard Quiney, pai de Thomas Quiney, que viria a se casar com a filha
de Shakespeare, Judith; contraiu várias dívidas no tempo em que morou em
Londres, atuando na capital inglesa como vereador para assuntos relativos a
Stratford (Holden, 2003:154).
[49] Tradução livre: "- 'O que ganho eu, se obtenho o que busco? Um sonho,
um alento, uma espuma de alegria fugaz. Quem compra um minuto de deleite
para chorar uma semana? Ou vende a eternidade para obter um brinquedo?'
- Mais de suas belas bobagens teatrais? Bem, posso lhe dar a resposta para
essa. 'Quem compra um minuto de deleite para chorar uma semana?' Pessoas
fazem isto. Como o velho Quiney, gastando suas moedas com as prostitutas de
Londres."
[50] Tradução livre: "- Então me diga, Will: você se vê refletido em sua
história?
- Eu seria um tolo se negasse. Sou Próspero, certamente; e confio que devo
ser. Mas sou também Ariel... um espírito ígneo, incandescente, crepitando
com um relâmpago no céu. E sou o bruto Calibã. Sou o taciturno Antonio,
cismando e planejando, e o velho Gonzalo, aconselhando sabedoria ingênua. E
sou Trínculo, o bufão, e Estéfano, o criado, pois eles são palhaços e
tolos, e eu também sou um palhaço e um tolo. E, às vezes, beberrões."
[51] Tradução livre: " - 'Eu daria qualquer coisa por seus dons, ou mais
que qualquer coisa para dar aos homens sonhos que permaneceriam por muito
tempo depois que eu morresse. Eu barganharia, como seu Fausto, por esta
bênção...'
- Eu disse isso?
- Sim.
- E o que você me deu?
- O que você pediu: o poder de dar aos homens sonhos que permaneçam após
sua partida. E você me deu duas peças."
[52] Em 24 de julho de 1609 uma tempestade no mar dispersou uma pequena
frota de navios que havia zarpado de Plymouth, Inglaterra, em 2 de junho.
Um mês depois, a frota conseguiu chegar a Jamestown, na Virgínia, Nova
Inglaterra, com exceção da nau capitânia, Sea Adventure (Holden, 2003:237).
[53] MONTAIGNE, Michel de. Of Cannibals. France, 1580. Disponível em:
courses.csusm.edu/hist318ae/
Montaigne%20essay.htm
[54] Tradução livre: "- Então por que esta peça? É um tema atual...
Inspirei-me no naufrágio do Sea Venture nas Bermudas, no ano passado. A
história é um mero conto de fadas, como os que todos os pais contam para os
filhos. Ela tem um pouco de mim. Um pouco de Judith. Coisas que vi, coisas
que pensei. Roubei um trecho de um ensaio de Montaigne. E encerrei com um
final feliz e claramente barato. Por que não quis uma tragédia? Algo mais
grandioso, sombrio, a história de um nobre herói com um defeito trágico?
- Eu queria uma história de finais graciosos. Uma peça sobre um Rei que
submerge seus livros, quebra seu cajado e abandona seu reino. Sobre um mago
que se torna um homem. Sobre um homem que dá as costas à magia.
(...)
- Mas... por que?
- Isso não lhe diz respeito, Will.
(...)
- Fiz por merecer uma resposta à minha pergunta. Por que?
- Porque nunca deixarei minha ilha.
- O senhor vive numa ilha?
- Eu sou... a meu modo... uma ilha.
- Mas isso pode mudar. Todo homem pode mudar.
- Não sou um homem. E não mudo.
- Mas...
- Perguntei se você se enxergava em sua história.
- Sim.
- Eu não. Eu não posso. Sou o Príncipe das Histórias, Will, mas não tenho
minha própria história. E nunca terei. Mas agradeço a você."
[55] Tradução livre: "Está acabado. (...) Tudo isto. O peso das palavras.
Posso deitar isto agora. Deixar que descanse."
[56] "- Agora meus feitiços estão todos terminados;
Agora é por meu mérito se tenho algum poder
Que não é grande coisa, pois eu devo lhes dizer:
Preciso ficar aqui, pelos senhores confinado,
Ou parto para Nápoles. Mas, peço, não me deixem
Ficar nesta ilha nua, por vocês enfeitiçado,
Se já recuperei, de meu irmão, o meu Ducado,
Se já lhe perdoei, o usurpador; então libertem-me,
Libertem-me de minha atroz prisão agora,
Com palmas, com aplauso, com as mãos tão generosas
E as cálidas palavras que das bocas vão soprar e
Meus planos vão frustrar ou minhas velas enfunar;
Tentei, sim, agradar. Os meus espíritos escravos
Agora já me faltam, e os encantos de minha Arte;
Sem eles, o meu fim é o desespero, é precisar
Das preces dos senhores: elas sabem atacar
Com sensibilidade penetrante a Compaixão
Divina, perdoando toda falha e omissão.
Assim como vocês obtem perdão por seus pecados,
Eu posso, com as suas indulgências, ser libertado."
(SHAKESPEARE, William. The Tempest (1611). Tradução: VIÉGAS-FARIA, Beatriz.
Porto Alegre: L&PM, 2002, p.119-120)
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The Sandman, Prelude, v.1, n.1 – Sleep Of The Just, p.40
The Sandman, vol.4, s.1, n.3 – A Hope in Hell, p.09
The Sandman, vol.2, s.1, n.1 – Imperfect Hosts, p.04
The Sandman, vol.13, s.2, n.4 – Men of Good Fortune, p.09
The Sandman, vol.13, s.2, n.4 – Men of Good Fortune, p.10-11
The Sandman, vol.13, s.2, n.4 – Men of Good Fortune, p.12
The Sandman, vol.13, s.2, n.4 – Men of Good Fortune, p.18
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.14
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.02
The Sandman, s.3, v.19, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.13
The Sandman, s.3, v.19, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.11
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.11
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.16
The Sandman, s.3, v.19, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.14
The Sandman, s.3, v.19, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.14
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.05
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.17
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.13
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.19
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.02
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.16
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.15
The Sandman, s.3, v.19, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.20
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.17
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.19
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.21
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.23
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.24
The Sandman, vol.19, s.3, n.3 – Midsummer Night's Dream, p.20
The Sandman, vol.21, s.4, n.0 – Season of Mists: a prelude, p.22.
The Sandman, vol.21, s.4, n.0 – Season of Mists: a prelude, p.21.
The Sandman, vol.21, s.4, n.0 – Season of Mists: a prelude, p.23.
The Sandman, vol.21, s.4, n.0 – Season of Mists: a prelude, p.22-23.
The Sandman, vol. 48, s.7, n.8 – Brief Lives, p.11.
The Sandman, vol. 48, s.7, n.8 – Brief Lives, p.16.
The Sandman, vol. 66, s.9, n.10 – The Kindly Ones, p.02.
The Sandman, vol. 66, s.9, n.10 – The Kindly Ones, p.02.
The Sandman, vol. 65, s.9, n.9 – The Kindly Ones, p.24.
The Sandman, vol. 63, s.9, n.7 – The Kindly Ones, p.24.
The Sandman, vol. 64, s.9, n.8 – The Kindly Ones, p.19.
The Sandman, vol. 69, s.9, n.13 – The Kindly Ones, p.10-11.
The Sandman, vol. 69, s.9, n.13 – The Kindly Ones, p.22.
The Sandman, vol. 69, s.9, n.13 – The Kindly Ones, p.24.
The Sandman, vol. 60, s.9, n.4 – The Kindly Ones, p.23.
The Sandman, vol. 64, s.9, n.8 – The Kindly Ones, p.08.
The Sandman, vol. 70, s.10, n.1 – The Wake, p.24.
The Sandman, vol. 71, s.10, n.2 – The Wake, p.01.
The Sandman, vol. 71, s.10, n.2 – The Wake, p.04.
The Sandman, vol. 72, s.10, n.3 – The Wake, p.05.
The Sandman, vol. 72, s.10, n.3 – The Wake, p.10.
The Sandman, vol. 72, s.10, n.3 – The Wake, p.24.
The Sandman, vol. 72, s.10, n.3 – The Wake, p.16.
The Sandman, vol. 72, s.10, n.3 – The Wake, p.19-22.
The Sandman, vol. 75, s.10, n.6 – The Wake, p.10.
The Sandman, vol. 75, s.10, n.6 – The Wake, p.11.
The Sandman, vol. 75, s.10, n.6 – The Wake, p.18.
The Sandman, vol. 75, s.10, n.6 – The Wake, p.20.
The Sandman, vol. 75, s.10, n.6 – The Wake, p.20.
The Sandman, vol. 75, s.10, n.6 – The Wake, p.37.
The Sandman, vol. 75, s.10, n.6 – The Wake, p.37.
The Sandman, vol. 75, s.10, n.6 – The Wake, p.37.
The Sandman, vol. 75, s.10, n.6 – The Wake, p.38.