Transcript
O investigador da História e as "pistas deixadas pelos criminosos".
"O historiador examina sempre uma determinada realidade,
que se passou concretamente em um tempo determinado em um lugar
preciso. Sua primeira tarefa é situar no tempo e no espaço o
objeto que ele quer estudar." – Vavy Pacheco Borges ([1])
Buscar indícios e analisá-los criticamente, encontrar provas,
vestígios, desenrolar tramas, localizar e identificar todos os personagens,
entender os acontecimentos, investigar: este o trabalho do historiador. "Na
história, tudo começa com o gesto de pôr à parte, de reunir, de transformar
em "documentos" certos objetos distribuídos de outro modo", afirma M.
Certeau, citado por Jacques Le Golf, no texto "Documento/Monumento." ([2])
Esses apontamentos podem lavar-nos a deduzir que a História é apenas
uma ciência que investiga o passado, mas como afirma Giovanni Levi: "Ela é
uma contínua reconstituição da realidade, mas nós sabemos que a realidade
sempre nos escapará, sempre será mais rica do que podemos imaginar... a
História é uma ciência da busca infinita. Este é o grande fascínio da
profissão de historiador." ([3]).
É com a pesquisa investigativa que encontraremos os registros ou para
alguns historiadores, os indícios – sendo estes, produtos da sociedade que
o elaborou de acordo com as relações de forças entre os sujeitos
históricos. Assim, a pesquisa histórica demonstra vitalidade no movimento
tanto de retrospecção, quanto de prospecção, assentando o historiador como
sujeito dessa dinâmica histórica.
"Enquanto conhecimento do passado, a história não teria
sido possível se este último não tivesse deixado traços,
monumentos, suportes da memória coletiva. Dantes, o historiador
operava uma escolha entre os vestígios, privilegiando, em
detrimento de outros, certos monumentos, em particular os
escritos, nos quais, submetendo-os à crítica histórica, se
baseava." - Jacques Lê Golf, ([4])
Em consonância com o pensamento da Profª Vavy Pacheco Borges,
compreendo que a tarefa de investigação tem expressões semelhantes à de um
detetive... "é uma pesquisa no sentido policial do termo, buscando
indícios, provas e testemunhos, para encontrar os condicionamentos, os
motivos e as razões." ([5])
A expressão prova tem origem no latim probatio denotando sentido de
exame, confronto, verificação etc., possuindo inúmeras acepções. Mas com
qualquer significado representa a forma, o instrumento utilizado pelo homem
para, por meio de percepção e sentidos, demonstrar uma verdade. No campo do
Processo Penal, o objetivo da prova é a demonstração em juízo de um fato
supostamente adequado ao tipo penal.
O jurista José Frederico Marques, citado por Nestor S. P. Filho,
afirma:
"O Estado quando pratica atos de investigação, após a
prática de um fato delituoso, está exercendo seu poder de
polícia. A investigação não passa do exercício do poder
cautelar que o Estado exerce, através da polícia, na luta
contra o crime, para preparar a ação penal e impedir que se
percam os elementos de convicção sobre o delito cometido".([6])
A investigação então, é uma etapa fundamental na preparação da ação
penal, porque é através desta que o Estado busca as provas de
reconstituição de um fato anterior, histórico, buscando a verdade que
indique o ator, ou os atores do fato delituoso.
Flávio Marcus da Silva - Doutor em História pela Universidade Federal
de Minas Gerais e autor do livro "Subsistência e Poder: A política do
abastecimento alimentar nas Minas Setecentistas", em seu trabalho "Teoria e
verdade histórica"([7]), apresenta uma interessante comparação entre o
detetive e o historiador, em sua crítica sobre a possibilidade do
historiador de "aderir a um método de análise que privilegia os documentos
históricos em detrimento de construções teóricas e ideológicas
apriorísticas", não significando esta postura que ele tenha que repudiar
sua apreensão com os problemas sociais da atualidade. Para tanto utiliza
das tramas detetivescas da obras de Agatha Cristie:
"Em 1946, Agatha Christie publicou um relato de suas
viagens pelo Iraque e pela Síria em companhia de seu marido, o
arqueólogo Max Mallowan, no qual descreveu o quotidiano das
principais escavações arqueológicas que presenciou e alguns dos
resultados obtidos pela equipe de seu marido na reconstituição
do passado da antiga civilização mesopotâmica. (CHRISTIE,1990).
A história do livro começa nos anos 30, e tal experiência
marcou tão profundamente a escritora, que algumas de suas
principais tramas policiais tiveram como pano de fundo os
monumentos, templos e ruínas do Antigo Oriente." ([8])
Constrói Flávio Marcos esta análise usando como exemplo o famoso
investigador belga criado pela escritora inglesa, Hercule Poirot. A
apreciação dos conceitos conduz a uma abordagem sobre a questão da verdade
na história e do papel do historiador na transformação da realidade
presente.
São consideradas pelo autor algumas passagens deste personagem em
tramas diversas, relacionadas em alguns livros da escritora inglesa, que
como citado anteriormente, durante as escavações arqueológicas, "percebeu
que os indícios encontrados pela equipe do professor Mallowan não eram
suficientes para formar uma imagem completa e nítida do passado".([9])
Vários espaços deveriam ser preenchidos para uma compreensão mais
segura da realidade, e por isso seria preciso um detalhado trabalho de
pesquisa e arranjo das "pistas" que só o arqueólogo/historiador teria
condições de desempenhar.
Entretanto, é importante considerar que o resultado desse trabalho
dependeria muito de quem fosse realizá-lo, pois o toque individual e
pessoal do pesquisador certamente teria um papel importante em todo o
processo.
Mas será que esse toque individual na construção do conhecimento não
compromete o caráter científico da história?
"Um historiador, ao se propor fazer uma pesquisa, já faz
uma opção bem sua, ao decidir qual o objeto que ele vai
estudar. Sua escolha é sempre encaminhada pela sua situação
concreta. O historiador é um homem em sociedade, ele também faz
parte da história que está vivendo. Escreve sua história
historicamente situado, ou seja, numa determinada época, dentro
de condições concretas de sua classe, sua instituição de ensino
ou pesquisa, e etc. Seu trabalho será condicionado tanto pelo
nível de conhecimento então existente, pelos métodos e técnicas
então à sua disposição, como pelos interesses que ele possa
estar defendendo, mesmo que inconscientemente." - Profª Vavy
Pacheco Borges ([10])
Nas obras de Agatha Christie e na maioria dos romances policiais, o
assassino é sempre revelado, o que não acontece com a verdade na história.
O historiador lida com o fato investigado, onde na maioria das pesquisas se
defronta com a ausência dos atores históricos envolvidos na trama, restando-
lhe "apenas" os registros, as provas, a serem analisadas e contextualizadas
a luz das questões apresentadas no presente.
"Poirot divide o seu espaço temporal com o criminoso, que
está lá para ser agarrado. Ele analisa as pistas, entrevista os
suspeitos, estabelece um diálogo constante entre as evidências
e as hipóteses — que muitas vezes, no decorrer da investigação,
ganham novas formas, transformam-se em outras hipóteses — para
no final, após preencher as lacunas e criar uma
inteligibilidade, um ordenamento para os seus dados, preparar a
armadilha que vai revelar o assassino. Os livros de Agatha
Christie são construídos de forma a não deixarem dúvidas sobre
a identidade do criminoso, o que os diferencia dos textos
historiográficos, sempre sujeitos ao confronto com novas
perguntas e novos modelos de resposta." - Flávio Marcus da
Silva ([11])
No ofício investigativo do historiador este deve se conscientizar da
pessoalidade das questões que envolvem o fato em análise, pois o processo
de desvendar o seu objeto de estudo, imputa o estabelecimento de um diálogo
entre o presente e o passado; diálogo este que possibilitará ao historiador
a formulação do conhecimento histórico, relativo em se tratando de verdade,
por estar sujeito a formulação de novas perguntas e outras perspectivas.
O conhecimento histórico enquanto apontamento das ações e dos ideais
dos homens no tempo apresenta-se como evidência para a construção de
explicações históricas quando devidamente interrogadas pelo historiador a
partir de questões do presente, deixando de se apresentar como simples
reflexo da realidade. É uma edificação intelectual finalizada pela inter-
relação entre categorias conceituais - e evidências; entre estas e o
espectro de mundo ao qual o historiador se atenta.
"Em termos metafísicos, o trabalho do historiador não é
tão simples quanto o de Hercule Poirot. Ambos partem em busca
das evidências, dos indícios; elaboram, confirmam ou modificam
hipóteses explicativas; questionam as suas fontes e criam
inteligibilidade para elas; mas só o detetive é capaz de dizer
como as coisas realmente aconteceram." - Flávio Marcus da Silva
([12])
Cada investigador elege sua metodologia investigativa de acordo com
sua formação criminalista; e quanto ao historiador?
Sondando a definição etimológica, investigar vem do latim investigare
e significa seguir as marcas de, indagar, pesquisar. A metodologia
investigativa do historiador em busca das pistas ou dos vestígios dos
eventos e das construções históricas e culturais nas mais variadas formas e
expressões, em tempos e espaços plurais, terá como base o alastrar de um
olhar interrogativo, apoiando-se em referenciais teóricos e conceituais
característicos da ciência histórica que abraça ou em diálogo com os mesmos
das ciências afins ou complementares na produção do conhecimento.
Quanto a metodologia de pesquisa, durante o século passado a tradição
da historiografia brasileira, refletindo o contesto internacional da época,
permaneceu sob o signo do empirismo positivista ou metódico. Francisco J.
C. Falcon afirma que esta era a época a única maneira séria e científica de
produzir o conhecimento histórico:
"O historiador, basicamente um autodidata, precisava
unicamente do reconhecimento de seus pares - o universo dos
intelectuais - para ser aceito de fato e de direito como
historiador. Convém lembrar que esses historiadores, ou os mais
eruditos entre eles, dispunham também de manuais e tratados
famosos e alentados a cerca do que então se denominava
metodologia científica da História." ([13])
A mudança na metodologia surge com a influência dos conceitos da
Escola dos Annales e do ponto de vista teórico marxista, nos anos de 1950 e
1960, criando uma oposição entre os tradicionalistas e os inovadores, que
na década de 70 teve seu auge, tornando-se mais problemática a convivência
entre as partes: "...os que possuíam da História uma concepção narrativa e
factualista, descritiva por excelência, e os que preconizavam uma Nouvelle
Histoire, em moldes annalistas, uma História estrutural, totalizante,
crítica mas também inovadora em relação as fontes e sobretudo, baseada em
pressupostos teóricos metodológicos explícitos ou implícitos." ([14])
Para Francisco J. C. Falcon, atualmente o historiador vive uma crise
de identidade que (...)
"(...) passou a ser uma realidade. Se o praticante do
tipo tradicional de historiar ainda sobrevive e é provavelmente
imune às angústias de muitos de seus colegas, no capo da Nova
História os problemas são muitos e outras tantas são certamente
as dúvidas. Acredito que, para simplificar um pouco a questão,
posso partir da constatação de que existe hoje, no território
da História, uma diferença básica e um duelo de posições cujo
tema fundamental é, ainda, o da relação que cada historiador
supõe, ou não supõe, existir entre a história (conhecimento)
que ele escreve (produz) - o texto ou a obra de história - e a
História propriamente dita, enquanto realidade ou objeto de
conhecimento. Trata-se assim de duas atitudes historiadoras
completamente distintas, pois, conforme o caso, terão ou não
sentido os próprios pressupostos teórico-metodológicos em si
mesmos. Do meu ponto de vista, essas diferentes maneiras de
conceber a natureza do ofício - da escrita da História, enfim,
- já indicam uma identidade plural." ([15])
Como se constata a pluralidade de "autoridades" teóricas vem gerando
na produção de textos e livros historiográficos uma variedade de
profissionais desta e de outras disciplinas que não a História, que
apresentam trabalhos ou têm o intento de vir a escrever algum tipo de texto
de história; e, mais ainda, alguns certamente já escreveram trabalhos de
História e são reconhecidos como historiadores, mas possuem outras
formações na área das ciências sociais.
Como conseqüência deste estado muitas das "pistas deixadas pelos
criminosos", são aceitas, estudadas e utilizadas na busca da realidade
histórica, enquanto outras são legadas ao segundo plano ou mesmo
desconsideradas. Assim em dado momento ou pesquisa as fontes tidas como
oficiais são a que importa, quanto para aquelas eleitas por pessoas comuns,
como uma foto de família, um diário, uma escritura, uma pintura, ou um vaso
de porcelana, não se prestam ou apenas servem para comprovar a outra.
-----------------------
[1] Borges, Vavy Pacheco, O que é História; Coleção Primeiros Passos,
Editora Brasiliense, 2005
[2] Le Golf, Jacques - História e Memória, consultado no site:
http://www.ebah.com.br/historia-e-memoria-jacques-le-goff-pdf-a14749.html
[3] Levi, Giovanni, O microscópio infinito. Entrevista a Revista de
História da Biblioteca Nacional..
[4] Idem, 2.
[5] Idem, 1.
[6] Filho, Nestor Sampaio Penteado, "Provas ilícitas e investigação
criminal." – ver: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2843
[7] Silva, Flávio Marcos da, "Teoria e verdade histórica." – ver:
www.nwm.com.br/fms/teover.pdf
[8] Idem, 7.
[9] Idem, 7.
[10] Idem, 1.
[11] Idem, 7.
[12] Idem, 7.
[13] Falcon, Francisco J. C., "A identidade do historiador". Revista
Estudos Históricos, Vol. 1, No 17 (1996)
[14] Idem, 13.
[15] Idem, 13.