Transcript
Método cientifico
por Widson Porto Reis
em 30/03/03
http://www.projetoockham.org/ferramentas_metodo_8.html / Acesso 28/07/2005
Introdução
Se eu lhe dissesse que o tempo passa mais devagar no primeiro andar de um
prédio do que no último, você:
a) acreditaria na minha palavra, afinal eu devo saber o que digo para estar
escrevendo um artigo;
b) não acreditaria; é muito absurdo pra ser verdade;
c) acreditaria; um amigo seu já teve essa sensação antes;
d) não acreditaria; não há nada na Bíblia sobre isso;
e) acreditaria, pois você conhece a Teoria da Relatividade de Einstein que
diz que o tempo passa mais devagar próximo a campos gravitacionais, mas
sabe que a diferença em questão é tão pequena que só pode ser sentida por
relógios de altíssima precisão.
Mais importante do que a sua resposta à pergunta é a questão que se origina
dela: quais os critérios que você usa para decidir no que acredita ou não?
Você sempre aceita a palavra das autoridades no assunto? (mesmo daqueles
que se auto-intitularam autoridades?) Baseia suas crenças no "bom senso
comum"? (e acredita que o seu senso é bom e comum?) Acredita no que a
maioria das pessoas acredita (afinal alguns milhões de pessoas não podem
estar erradas)? Confia suas crenças a respeito da natureza a livros
sagrados de alguma religião? Não acredita em nada mas também não é muito
rápido em duvidar, pois segundo Shakeaspeare "há mais no céu e na Terra do
que sonha nossa vã filosofia"? (ou seja, permanece num estado de stand by
crédulo?).
A Ciência é a esfera da atividade humana responsável por investigar o mundo
ao nosso redor. Neste papel, assim como você, ela se depara o tempo todo
com alegações sobre as quais deve decidir se "acredita" ou não. Mas é claro
que a responsabilidade da ciência é muito maior do que a sua, pois o
conhecimento obtido por ela será usado para medicar pessoas, construir
reatores nucleares, manipular geneticamente alimentos e seres humanos,
tentar contactar vida extraterrestre e muitas outras atividades que têm
profundo impacto na raça humana.
Na tarefa de descobrir a verdade, dentro de sua esfera de atuação, a
ciência precisa de critérios claros, métodos de investigação precisos que
descartem as ilusões dos sentidos, os preconceitos, as crenças pessoais
(religiosas ou não), as superstições de todo o tipo. A ciência precisa de
um método científico.
Entendendo o mundo como uma partida de futebol
Vamos nos permitir alguma liberdade criativa e imaginar que um alienígena
recém chegado à Terra, interessado em conhecer nossos costumes, decide ir
ao Maracanã assistir a uma partida de futebol. Certamente no início da
partida o ET ficaria bastante confuso, vendo todas aquelas pessoas correndo
atrás de uma bola, e muito intrigado ao ver como alguns jogadores ficam tão
sensíveis quando ela se aproxima demais daquelas redes localizadas nas
extremidades do campo. Mas ao longo da partida, percebendo que alguns
lances se repetem e têm sempre o mesmo desfecho (por exemplo, a partida é
sempre interrompida quando a bola sai dos limites traçados no campo), ele
provavelmente formularia algumas hipóteses sobre o jogo: "será que o
objetivo é enviar a bola o mais distante possível?", ele talvez pensasse
após assistir um infeliz chute de fora da área; "ou talvez o objetivo seja
matar o humanóide que carrega a bola", pensaria ao ver um zagueiro
aplicando uma tesoura na altura do pescoço de um outro jogador. É quase
certo que após algum tempo observando a partida e depois de vários palpites
errados, o visitante extraterrestre fosse capaz de compreender a maior
parte das regras do nosso futebol.
Pois nós somos como este alienígena. Estamos imersos no grande "jogo" da
natureza tentando entender suas "regras": será que tudo o que sobe desce?
Porque as coisas têm cor? Será que a posição que os corpos celestes
ocupavam no instante de nosso nascimento podem afetar nossa personalidade?
Em outras palavras, ou melhor, nas palavras do físico Richard Feynmann,
"Entender a natureza é como aprender a jogar xadrez somente assistindo a
partida".
Porém ainda que nossa metáfora seja didática, ela não é completa. Pois nela
o ET assiste passivamente ao desenrolar dos lances na partida e propõe
hipóteses que somente tem como verificar esperando que se repitam. Nós, por
outro lado, não somos meros expectadores da natureza mas participamos dela;
podemos interagir com ela realizando experimentos.
Claro que isto pode parecer um tanto óbvio. Afinal quando seu carro não
pega pela manhã e você desconfia que a bateria está descarregada,
provavelmente testa sua hipótese tentando acender os faróis ou medindo o
potencial da bateria com um multímetro. Porque seria diferente com a
ciência?
Pois por incrível que pareça, a idéia de realizar um experimento para
testar uma hipótese é bastante nova; não tem mais do que 500 anos. Os
filósofos gregos, que há mais de 2500 anos foram os primeiros a investigar
o mundo de maneira racional e sistemática, achavam que a natureza só
poderia ser compreendida pelo uso da razão e do intelecto e por isso
desdenhavam a experiência. O filósofo Parmênides (510 a.C.) é um exemplo de
como os gregos estavam dispostos a levar a lógica e a razão até as últimas
consequências: ao negar a existência do tempo e do vazio e portanto do
movimento, Parmênides concluiu que se tinhamos a impressão de que as coisas
se moviam e o tempo passava era somente porque vivíamos num mundo ilusório
(uma versão antediluviana do filme Matrix).
O peru indutivista
Antes de mais nada, para tentar compreender o jogo da natureza é preciso
acreditar que há regras para serem compreendidas. Assim como nosso
alienígena visitante não podia ter certeza de que os jogadores no Maracanã
não estavam simplemente correndo ao acaso atrás da bola, ou que as regras
não mudariam do primeiro para o segundo tempo, nós também não podemos ter
certeza de que a natureza possua uma ordem e que esta ordem seja imutável.
Temos apenas fortes evidências disto: por exemplo, toda vez que encostamos
algo quente em algo frio, o frio esquenta e o quente esfria; tem sido assim
desde que o homem é capaz de se lembrar e tem sido assim em todos os
lugares do universo aonde o homem já foi capaz de estender sua visão. Mas
nada garante à ciência que vá continuar sendo assim amanhã ou que seja
assim em algum confim desconhecido do universo.
Assim, para existir, o método científico parte do princípio da
imutabilidade dos processos da natureza ou "o princípio da uniformidade da
natureza", como denominava o filósofo Karl Popper. Ou nas palavras de
Einstein (usadas num contexto ligeiramente diferente): "Deus é sutil mas
não maldoso". Admitindo a existência de uma ordem universal e imutável
torna-se possível prever o comportamento da natureza e este é o mais
importante passo do método científico no que concerne à experiência física.
Ao observar que todo homem e toda mulher cedo ou tarde morrem, pode-se
estabelecer uma regra geral: "todo ser humano é mortal". Esta forma de
raciocínio lógico que extrai uma verdade geral a partir da observação de um
grupo particular é chamada de indução. A partir desta regra geral, ou desta
lei natural, estabelecida pela observação do mesmo resultado repetidas
vezes, pode-se então deduzir (dedução é a forma de raciocínio que extrai
uma verdade particular de uma verdade geral) que se Fulano é um ser humano
- e já que todos os seres humanos são mortais - então Fulano é mortal.
Note entretanto que a indução é totalmente apoiada na repetição da
experiência e na crença na imutabilidade dos processos naturais. Sobre isso
Bertrand Russel nos traz o seguinte exemplo: imagine um peru que recebe sua
ração todos os dias do ano, exatamente às 9:00h da manhã. No início o peru
é cauteloso, mas depois de perceber que esta experiência se repete por um
considerável período de tempo, todos os dias da semana inclusive sábados
domingos e feriados, faça chuva ou faça sol, este peru finalmente conclui
por indução a regra geral: "sou sempre alimentado às 9:00 da manhã!".
Infelizmente, para o peru indutivista, no dia de Natal a regra não se
revela verdadeira...
O método indutivo apresenta, portanto, uma limitação. Se estabelecemos uma
regra geral a partir de um determinado número de observações, surge a
pergunta: quantas observações são suficientes para justificar a regra? Cem,
mil, milhões? Como saberemos se temos um número suficiente de observações e
- muito importante - em condições suficientemente variadas para alegar que
aquela regra é realmente universal?
Este problema foi contornado por Karl Popper, que apresentou o conceito de
falsificabilidade, segundo o qual uma hipótese só é considerada científica
se for falsicável ou seja, se por meio de algum experimento real ou
imaginário for possível provar sua falsidade. A hipótese "Deus existe" não
é uma hipótese que possa ser julgada pela ciência pois não existe nenhuma
experiência imaginável que possa provar que "Deus NÃO existe". Por outro
lado as hipóteses "O tempo passa mais rapidamente nos lugares altos" e "O
futuro pode ser previsto pela posição dos astros nos céu" são falsicáveis e
portanto estão dentro do escopo da ciência.
Qual a vantagem disto? Isto leva uma mudança de atitude. Em vez da ciência
se basear nas observações que reforçam uma teoria, ela passa a buscar
observações que a falsifiquem. Quanto mais uma teoria sobrevive a esta
busca, maior a nossa confiança em sua veracidade, mas não existem teorias
comprovadas, apenas teorias que ainda não foram derrubadas. E quando é
provado que uma determinada teoria está errada, isto é a melhor coisa que
pode acontecer, porque é nessas situações que a ciência progride.
Assim, ao contrário do que muitos pensam, o objetivo dos cientistas não é
defender o status quo ou proteger as leis científicas contra contestações.
Seu objetivo é justamente tentar contestar estas leis! Um cientista que
tenha realizado cinqüenta milhões de experiências comprovando a teoria de
Newton não foi muito útil. Mas alguém que prove que Newton estava
errado.... você já ouviu falar de Einstein, não?
Hipóteses, teorias e leis
Vimos que o método científico começa com a observação da natureza. Com base
na observação e apoiado pelo pensamento indutivo formula-se uma hipótese
que, conforme você já deve ter percebido, nada mais é do que uma crença que
se desconfia que seja verdadeira.
A partir daí deve-se testar a hipótese, ou seja, utilizar a hipótese para
verificar o fenômeno que ela explica e, mais importante, utilizar a
hipótese para prever novos fenômenos. Para testar a hipótese será quase
sempre necessário um experimento, que num ambiente controlado possa
quantificar o fenômeno. Independentemente do resultado, este experimento só
será considerado válido se puder ser reproduzido por outras pessoas
mantendo-se as mesmas condições. Se a hipótese se confirma uma vez ela pode
estar correta. Se a hipótese se confirma um grande número de vezes ela deve
estar correta. Se a hipótese não se confirma ela deve ser reformulada e
novamente testada.
Quando uma hipótese já reúne um número considerável de evidências, obtidas
por um grande número de pesquisadores independentes ela é promovida a
teoria. Depois de exaustivamente testada e verificada experimentalmente uma
teoria pode finalmente ser promovida a lei, o último posto da hierarquia
científica. A física tem diversas leis como a Lei da Conservação da
Quantidade de Movimento ou as três Leis de Newton, por exemplo.
Mas e quando diversas hipóteses servem para explicar o mesmo fenômeno? Ou
seja, e se for possível explicar o mesmo fenômeno e prever os mesmos
resultados utilizando hipóteses diferentes? Neste caso a ciência prefere
adotar a hipótese mais simples, onde por mais simples se entende aquela que
usa o menor número de suposições ou que introduzam o menor número de
entidades novas na ciência. Afinal quando se faz o menor número de
suposições possíveis é menos provável que se descubra mais tarde que uma
delas estava errada. Este método é chamado de Navalha de Ockham.
Uma Lei da Natureza é o mais longe que podemos chegar com o método
científico mas ela não constitui uma verdade definitiva, como veremos a
seguir.
O método científico e a Ladeira do Amendoim
O que chamamos de leis da natureza não são leis no sentido usual da
palavra. Veja a Lei da Gravidade por exemplo. Alguém se equilibra sobre uma
corda estendida entre dois arranha-céus e logo se diz que ele está
"desafiando a lei da gravidade" (quando na verdade não poderia fazer o que
faz se não fosse por ela). As leis da física não podem ser "desafiadas",
como as leis legisladas em nosso mundo. Uma lei física é um estatuto do
qual temos uma forte sensação que seja verdadeiro e que até o momento não
foi contradita por nenhuma experiência humana.
Se por um lado este estado das coisas assegura aos cientistas que nenhuma
verdade estará livre de contestação, por outro nos impede de assumir
qualquer conhecimento como final e definitivo. Uma lei física, ou uma
verdade científica, nada mais é portanto que um estado de repouso do
conhecimento (o que não deixa de ser um pensamento um tanto pessimista). De
qualquer maneira esta postura do método científico, enraizada em sua
própria definição, é que garante a investigação constante e vigilante do
conhecimento humano.
Vejamos um exemplo: você está na cidade de Belo Horizonte e ao passar pela
ladeira conhecida por Ladeira do Amendoim percebe um fenômeno interessante:
quando seu carro é deixado em repouso nesta ladeira, ao invés de descer sob
a ação de seu peso ele anda para cima! Estarão os carros na Ladeira do
Amendoim desafiando a lei da gravidade?
Se você se propõe a investigar o fenômeno provavelmente pensará em pelo
menos quatro hipóteses para explicar o fenômeno: (1) existe algum tipo de
força sobrenatural, ou seja, não conhecida pela ciência: mágica, espectral,
astral, telepática, telúrica, etc - puxando o carro para cima; (2) existe
alguma força conhecida pela ciência, mas não evidente no momento, atuando
sobre o carro (uma força magnética vinda de algum depósito de minerais, por
exemplo); (3) a lei da gravidade está errada ou não se aplica a este local
do planeta e deve portanto ser revista; (4) a observação de que o carro
sobe não é verdadeira, ou seja, houve um erro na interpretação dos dados,
por parte de quem realizou a experiência.
Qualquer uma das quatro hipóteses (ou outra que se possa imaginar) poderá
ser considerada e deverá ser testada; o que um investigador munido do
método científico não poderá fazer é desconsiderar o fato observado com o
argumento de que "a lei da gravidade é uma lei da natureza bem estabelecida
e acima de qualquer dúvida".
Bem, se você examinar o fenômeno até o fim chegará a conclusão que a
hipótese (4) é a verdadeira; a disposição das ladeiras próximas a Ladeira
do Amendoim e a dela própria criam a ilusão de que o carro está subindo
quando na verdade ele desce normalmente, como em qualquer outra ladeira do
mundo. A Lei da gravidade está a salvo (por enquanto).
O método científico e as pseudociências ou "O dragão na minha garagem"
Um amigo lhe diz que descobriu um dragão na garagem da casa dele.
"Uau, isso é incrível! Vamos lá vê-lo!" você diz entusiasmado, já pensando
nas manchetes dos jornais.
"Bem... isso não vai ser possível porque ele é invisível."
"Você fala sério?!", mas seu momentâneo desapontamento é logo substítuido
por uma excitação ainda maior, afinal você sabe que um dragão invisível é
ainda mais incrível que um dragão qualquer."A gente joga tinta nele então.
E depois tiramos umas fotos."
"Ahhh? Tinta? Bom... isso também não vai dar, pois este dragão é
incorpóreo."
"Incorpóreo?!!"
"Sim, incorpóreo, tipo um fantasma ou um ectoplasma."
"Mas este dragão solta fogo? Pelo menos isso?"
"Sim, soltar fogo ele solta! Se bem que o fogo é invisível também."
"Tá, não tem problema, a gente usa um visor de infravermelho pra ver este
fogo invisível."
"Mas o fogo deste dragão é um fogo frio, que está à temperatura ambiente,
não vai dar pra sentir..."
"!!"
Você propõe mais uma dúzia de maneiras de detectar o dragão e seu amigo
refuta todas elas dizendo que com este dragão não vai funcionar. Você
começa a perder a paciência e, além de um pouco preocupado com a sanidade
do seu amigo, fica imaginando qual a diferença entre um dragão que não pode
ser detectado de nenhuma maneira e dragão nenhum:"Então como você sabe que
há realmente um dragão lá?!"
Seu amigo responde a esta pergunta com explicações confusas que misturam
capacidade de se comunicar telepaticamente com o dragão, técnicas
ancestrais milenares de detecção de dragões (provavelmente orientais),
instrumentos exóticos capazes de medir a "energia" de dragões, uso da
intuição, revelação em sonhos, etc, e encara o seu ceticismo como má-
vontade em crer neste maravilhoso dragão-invisível-incorpóreo-que-cospe-
fogo-frio.
Esta história é uma adaptação livre de um trecho do livro "O Mundo
Assombrado pelos Demônios" de Carl Sagan e ilustra o típico pensamento
pseudocientífico. De fato você não precisa ir muito mais longe para, usando
a mesma analogia, imaginar pessoas que preveêm o futuro inspirados por
dragões indetectáveis, ou que dizem curar usando a energia destes seres.
Estas pessoas provavelmente acusarão os cientistas que não querem crer na
existência de seus dragões de estreiteza de pensamento ou dirão que eles se
negam a encarar as evidências porque temem que elas abalem sua forma
ortodoxa de pensar. Muitos torcerão um pouquinho a história e se compararão
a Galileo e a Colombo que foram perseguidos por desafiarem o pensamento
científico estabelecido: "Riram de Galileo e de Colombo e riem de nós",
dirão (ao que Carl Sagan acrescentaria: "riram do Bozo também, e daí?").
Claro, alguns cientistas tentam assim mesmo detectar este dragão, afinal
descobrir que dragões podem estar escondidos em garagens pelo mundo e que
podem ser usados para curar e prever o futuro é uma descoberta
extraordinária demais para ser ignorada. Mas mais importante do que isso:
não é só porque a ciência não é capaz de detectar o dragão que ele não
existe. Germes, partículas atômicas e subatômicas, quasares, variações no
espaço-tempo - pode-se citar inúmeros exemplos de fenômenos que num
determinado momento da história não foram ou não poderiam ser detectados
pelas técnicas e instrumentos disponíveis mas que não deixaram de existir
por isso. Investigar portanto é preciso.
Mas este dragão tem um problema de timidez. Ele só aparece para algumas
pessoas "escolhidas" e nunca diante de câmeras. Todas as evidências de sua
existência ou são contestáveis ou não vêm de fontes confiáveis ou podem ser
explicadas por fatos já bem conhecidos pela ciência; mágicos conseguem
reproduzir tudo o que as pessoas dizem fazer usando a energia dos dragões.
Por fim as previsões feitas por pessoas "guiadas" pelos dragões são menos
acertadas na média do que as previsões feitas por profissionais e o número
de curas feitas pela tal energia do dragão é equivalente ao das curas
espontâneas ou por placebo.
A conclusão é que por mais que a ciência investigue o fenômeno não há
evidências, ordinárias nem extraordinárias, obtidas através de um rigoroso
método científico que suportem a existência do Dragão Invisível. Por isso,
para a ciência pelo menos, ele é finalmente esquecido.
Não pense que dragões indetectáveis são exclusividade dos pseudocientistas.
A ciência já teve que lidar com seus "dragões". Até o final do século XIX
os físicos acreditavam na existência de uma substância chamada éter que
preencheria o vácuo e que seria o meio no qual se propagariam a luz e as
ondas gravitacionais, muito embora ninguém ainda o tivesse detectado. Este
éter deveria ser de tal natureza que não interferisse no movimento da Terra
através dele e que permanecesse inalterado e imóvel ao ser atravessado pela
luz. Isso o tornava por definição extremamente dificil de ser detectado. Em
1881 Michelson e Morley idealizaram uma cuidadosa, e hoje famosa,
experiência para tentar "capturar" o éter, porém nada foi observado. Alguns
imaginaram falhas na experiência, mas outros começaram a desconfiar que não
haveria éter nenhum para ser detectado. O éter continuou a ser perseguido
utilizando-se técnicas mais avançadas e instrumentos mais precisos, sempre
com os mesmos resultados, até o ano de 1960, quando foi definitivamente
descartado.
Falhas no método científico?
Assim como já houve diversos cientistas que pensaram ter feito uma nova e
revolucionária descoberta e mais tarde verificaram que seus dados não eram
corretos, também houve vários casos de pesquisadores que fizeram de fato
descobertas revolucionárias mas não souberam reconhecê-las, preferindo
interpretar suas conclusões de uma maneira "convencional".
Tycho Brahe ficou famoso por coletar os mais precisos dados astronômicos
que já haviam sido colhidos até a sua época. Porém Tycho não acreditava no
modelo heliocêntrico proposto por Copérnico e utilizou suas observações
para formular um novo modelo geocêntrico do universo (que se tornou muito
popular). Foi preciso que seu discípulo e assistente, Johannes Kepler,
alguns anos mais tarde utilizasse os mesmos dados mas orientado por uma
crença diferente, para não só comprovar o modelo heliocêntrico como ainda
estabelecer as Três Leis de Kepler do movimento planetário.
Mas se Tycho Brahe viu pouco em seus próprios dados o cientista francês
Rene Blondlot enxergou demais (literalmente). Nos primeiros anos do século
XX, Blondlot, estudando os recentemente descobertos raios X, pensou ter
descoberto uma nova forma de radiação que chamou de raios N. Até 1903
Blondlot já havia publicado mais de 10 trabalhos sobre sua descoberta, mas
nenhum outro cientista ainda tinha conseguido reproduzir suas experiências
nem vislumbrar o menor sinal dos raios N. Por isso em 1904 o cientista
americano Robert Wood foi enviado ao laboratório de Blondlot para tentar
desvendar o mistério. Os raios N produzidos por um filamento aquecido de
platina deveriam atingir um prisma e difratarem-se de encontro a uma tela
produzindo bandas luminosas, porém quando Wood observou a tela não foi
capaz de ver nenhuma das bandas luminosas que Blondlot alegava ver.
Blondlot repetiu a experiência, mas desta vez Wood secretamente retirou o
prisma da montagem. Para seu espanto, Blondlot continuou enxergando as
bandas luminosas originadas pelos raios N! Não é preciso dizer que logo
depois disso toda a história dos raios N foi desacreditada e esquecida.
A moral da história aqui é que os fatos não falam por si mesmos. Um
cientista não espalha os fatos sobre a mesa e espera que a verdade emane
deles espontaneamente. Como disse o cientista Henri Poincaré "Um punhado de
fatos não é mais ciência do um punhado de tijolos é uma casa". Fatos e
medidas precisam ser interpretados pelas pessoas que conduzem os
experimentos, e pessoas como se sabe, são naturalmente susceptíveis a
julgamentos pessoais, pré-conceitos, análises tendenciosas e - por que não?
- ânsia em comprovar o que consideram ser a verdade. Será que o fato do
cientista ser falível torna a ciência falível?
Sim e não. Ciente tanto de sua responsabilidade quanto da falibilidade dos
cientistas, a ciência não se fia na autoridade de nenhum pesquisador e nem
em pesquisas isoladas. Um fato só é aceito pela ciência depois de
exaustivamente reproduzido por cientistas em todo o mundo (a história dos
raios N também serve para ilustrar este ponto). É esta pois a beleza da
ciência. O próprio método científico se encarrega de eliminar os
julgamentos pessoais e impede que a longo prazo dogmas sejam formados. Ou
nas palavras de Einstein: "Minhas idéias levaram as pessoas a reexaminar a
física de Newton. Naturalmente alguém um dia irá reexaminar minhas próprias
idéias. Se isto não acontecer haverá uma falha grosseira em algum lugar."
Conclusão
Em um momento em que há um projeto de lei propondo a regulamentação de uma
arte divinatória de 5000 anos atrás, a discussão sobre o alcance e validade
da ciência é mais atual e necessária do que nunca. Compreender o método que
a ciência usa para construir o conhecimento humano, e entender o rigor com
que examina alegações extraordinárias é apenas uma parte desta discussão,
mas uma base que todo ser humano precisa ter para exercer sua cidadania.