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Livro Deus é Inocente

Este livro tem distribuição gratuita. Nele, você encontrará uma série de crônicas minhas sobre a comunicação humana.

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DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS DEUS É INOCENTE © 2007 by Zeca Martins São Paulo, Brasil 1 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 2 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS DEUS É INOCENTE CRÔNICAS DE UM PUBLICITÁRIO SOBRE COMO VOCÊ SE COMUNICA E O MUNDO SE COMUNICA COM VOCÊ Zeca Martins 3 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 4 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Advertência: sob hipótese alguma este livro deverá ser lido por praticantes de leitura dinâmica. 5 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 6 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS ‘Mas era um sonho tão brilhante e demente que só posso afirmar, e não com Segurança, ter ouvido três frases, na Luz daquele instante de balanço e Inventário, de escolha e de Mudança (se é que tudo não foi somente um novo sonho incrustado no sonho do Mundo flamejante e no sonho da vida, Escarlate e punido): - Passe a língua no ferro! – disse a voz da mulher tem gosto de Ferrugem ou sangue Envelhecido! A voz do Macho então soou, escusa e Só: - A Mulher está grávida e, andando pela Estrada, cruzou o curvo Rastro de uma Cobra Coral: o Filho que nascer vai rastejar no Pó! Então soou a Voz sagrada, em tom pungente, E disse sem qualquer Entonação pessoal: - Deus é inocente!’ Excerto do poema O Reino, de Ariano Suassuna. 7 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 8 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS ÍNDICE PREFÁCIO I. SOBRE COMUNICAÇÃO EM GERAL 1. COMUNICAÇÃO: A CONQUISTA FUNDAMENTAL 2. PEOPLE SHOULD THINK 3. ETIMOLOGIA: A DINÂMICA DA COMUNICAÇÃO 4. ADEUS, E-MAIL, ADEUS! 5. O JARGÃO 6. ESTE LIVRO E AS REDES NEURAIS 7. DEUS É INOCENTE: O FATO E A VERSÃO 8. VOCÊ É O QUE VOCÊ ENTENDE 9. O PODER DA PALAVRA IMPRESSA 10. A IMPORTÂNCIA DAS IDeiaS E A MANIPULAÇÃO DA INFORMAÇÃO 11. CENSURA 12. COMO VEJO O ENSINO DE COMUNICAÇÃO II. SOBRE PROPAGANDA 13. CIGARROS: NA COMUNICAÇÃO, O MINISTÉRIO DA SAÚDE PERDE 14. MCDONALD’S E O JOGO DOS SETE ERROS 15. PROPAGANDA ENGANADA 16. AUDIÊNCIA (DES)QUALIFICADA 17. O QUE É PRECISO PARA LEVAR UM CLIENTE PARA SUA AGÊNCIA? 18. É O MELHOR DE QUE VOCÊ É CAPAZ? 19. UMA EXPERIÊNCIA EDIFICANTE 20. UM SAPO IMITA A ARTE 21. A CANTADA VIA DISCURSO / OUTRA CANTADA VIA ANÚNCIO 22. O CLIENTE II. THE END 23. MORAL DA HISTÓRIA 24. BIBLIOGRAFIA 9 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 10 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS PREFÁCIO Publicitários em geral, e nós redatores, em particular, temos, por força do ofício, o hábito de observar o universo da comunicação humana: onde ela se dá, quais os interlocutores e seus propósitos e, acima de tudo, em quais circunstâncias ela efetivamente se realiza, afastando-se do que eu poderia chamar de síndrome de Torre de Babel, com vários ‘idiomas’ falados ao mesmo tempo, e mensagens emitidas sabe-se lá por quem para seja lá quem for. Acredito que, a despeito de toda sua engenhosidade, é a imensa capacidade de se comunicar que fez do ser humano um animal muito diferente dos demais. Pois todos os animais têm, de acordo com suas características biológicas, algum meio de se comunicar, mas nenhum desenvolveu tamanho conjunto de códigos e signos como nós. O mais importante código com que pode contar um grupo social é seu idioma. Mas não é o único, porque as nuanças culturais afetam profundamente o entendimento deste código em sua totalidade: mesmas palavras, mesmas expressões, e significados tão diferentes. No caso brasileiro, isto é patente diante da grande variedade, diferentemente de dialetos, de ‘sub-idiomas’ praticados por aqui (permitam-me a licença linguistas e filólogos). É aí que mora o perigo. Curiosamente, empresas do ramo da comunicação, como as de imprensa em geral e, no que me diz mais respeito, anunciantes e agências de propaganda, ansiosos por resultados imediatos de caráter mais quantitativo que qualitativo, transgridem incessantemente os códigos idiomático e cultural (a moral, em última análise), seja por descuido, despreparo ou intenção. Estas entidades muitas vezes fazem, guardadas as diferenças e proporções, algo parecido com o que os bárbaros fizeram com a arte grega. Imagino que a deficiência crônica da Educação no país seja um 11 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS importante coadjuvante a ser considerado no processo. Mas, ficassem os prejuízos apenas refletidos em fluxos de caixa menos positivos para estas instituições, nada importaria fazer. Acontece que o prejuízo acaba sendo meu e seu; aí, sim, devemos fazer alguma coisa. Não me refiro, aqui, à preservação gramatical, pois, para isto, existe quem de direito. Refiro-me à preservação da qualidade da comunicação que se pratica. Por isso, resolvi selecionar alguns artigos que fiz sobre comunicação, há maior ou menor tempo. Este livro não trata especificamente de comunicação empresarial ou comunicação interpessoal. Penso na comunicação que você faz e à qual você se expõe diariamente. Trato, apenas (e de leve), de comunicação e do que temos feito com ela. Há um milhão de coisas que podem ser ditas; falo de apenas umas poucas. Resolvi apresentar, como primeiro capítulo, um texto que fiz para o portfolio de uma agência de propaganda de São Paulo. Porque, com ele, faço uma declaração de amor a esta nossa magnífica capacidade de nos comunicarmos e de sonharmos com o dia em que a comunicação será usada exclusivamente em benefício do engrandecimento de cada um de nós. Convém informar também que não gosto, definitivamente, de frescuras dialéticas e formais (alguns dos artigos finais não estão lá por acaso). Daí, eu não ver inconveniente nenhum em incluir uns textos que são pura diversão minha, e torço para que também sejam sua. Outra coisa: para meu primeiro livro, Propaganda É Isso Aí!, tive a sorte de contar com o apoio de Washington Olivetto e Roberto Duailibi, e, como convém a um iniciante, com a orientação do bom mestre Roberto Menna Barreto. Neste livro que você, leitor, agora tem em mãos, faço meu primeiro voo solo, guiado apenas pelos instrumentos da minha 12 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS consciência e dos meus limitados conhecimentos. Espero pousar em segurança. Zeca Martins São Paulo, julho de 2001. Nota a esta edição: li e reli algumas vezes este livrinho, procurando onde fazer eventuais atualizações, uma vez que a edição original, impressa, data de 2001 e esta, revisada, de 2007. Embora em seis anos muitos novos casos e exemplos tenham surgido no dia-a-dia da comunicação, a essência das coisas permaneceu, obviamente, a mesma; o máximo que eu conseguiria, ao atualizar os exemplos, seria trocar seis por meia dúzia. Mantive, portanto, o texto original e integral. 13 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 14 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS I SOBRE COMUNICAÇÃO 15 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 16 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS COMUNICAÇÃO: A CONQUISTA FUNDAMENTAL O Homo Sapiens existe há, pelo menos, uns cem mil anos. Sua viagem pelo tempo envolveu toda sorte de conquistas. Ao atingir mil séculos de jornada, o mundo até então dominado começou a parecer pequeno demais. Repentinamente, o Homo Sapiens traz à tona toda sua engenhosidade acumulada e, numa explosão de criatividade, faz deste milésimo século — ou vigésimo, na contagem cristã — o símbolo de sua determinação conquistadora. Eternamente insatisfeito, desenvolve meios impensados para investigar do micro ao macrocosmo, porque sua sede de ir além é interminável. O Homo Sapiens parece predestinado a alcançar — quem sabe? — os limites do universo. E o século 20 marca o início da segunda etapa da longa viagem. Uma viagem de mais mil séculos. Conquistas Do Século XX. Quase ao final do primeiro ano do novo século, no dia 12 de dezembro de 1901, pontualmente 12 horas no meridiano de Greenwich, o físico italiano Guglielmo Marconi recebe, no Canadá, a primeira transmissão telegráfica emitida por ondas de rádio a partir da Inglaterra. A longa viagem da humanidade acabava de receber impulso fundamental, porque a eterna conquista do Homo Sapiens sempre foi baseada na sua capacidade de comunicação. Num ensaio daquilo que hoje chamamos virtual, o rádio eliminou as distâncias, unindo virtualmente todos os confins da Terra. Ao mesmo tempo em que a inquieta natureza do homem o faz olhar com atenção para o céu, ela também o leva a buscar seu interior mais profundo. Num mesmo ano, 1903, o cientista russo Konstantin Tsiolkovsky publica um trabalho surpreendentemente avançado que lançaria as bases para a construção de foguetes espaciais, e o casal de cientistas franceses Pierre e Marie Curie recebe o prêmio Nobel por suas pesquisas relativas ao raio-X. A então incipiente ciência do século 20, com estas e tantas outras descobertas, começou a perceber a necessidade de reduzir ou eliminar as distâncias que separavam as diversas fontes do conhecimento. A comunicação rápida 17 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS e eficaz passava a ser imprescindível para a aceleração das conquistas do saber. Não sem razão, no ano seguinte surge a válvula eletrônica que traz avanços significativos ao rádio, por permitir o envio de sons, além dos sinais telegráficos em código Morse. Enquanto os foguetes ainda se resumiam ao plano teórico, o espírito conquistador dava asas literais aos irmãos Wright, norteamericanos, e ao brasileiro Alberto Santos Dumont que, com suas engenhocas voadoras, assombravam o mundo nos primeiros anos do século. Em 1908, quando aviões ainda eram conhecidos por poucos e mais pareciam assunto de ficção, Henry Ford apresentava seu automóvel modelo T ao grande público. Se o cidadão comum ainda não podia voar, ao menos já poderia locomover-se com maior conforto e, o que é mais importante, com maior velocidade. Reduzindo-se os tempos de percurso, reduziam-se as distâncias. No mesmo ritmo com que a engenhosidade humana produzia maravilhas mecânicas e elétricas, a capacidade dedutiva, de observação científica e a eterna curiosidade do homem o levam a prospectar ainda mais profundamente seu interior e o de todos os seres vivos. 1909 é o ano do anúncio da existência do gene, a unidade elementar da hereditariedade. Mais dois anos e o princípio dos supercondutores e a teoria geral do átomo são apresentados. Como quem prepara as malas para uma longa viagem, a humanidade começa a recolher subsídios técnicos e científicos numa escala sem precedentes. O salto que Johannes Guttenberg, inventor da imprensa, dera à difusão da informação 450 anos antes, multiplicava-se infinitamente em potencialidade com o rádio, os novos meios de impressão dos jornais e as pesquisas científicas primordiais para tudo aquilo que, mais tarde, viria a se configurar na moderna comunicação. O advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) não iria mudar apenas a configuração geopolítica da Europa; alteraria o comportamento de toda humanidade pois, ao par dos horrores causados, a guerra exigia velocidade no desenvolvimento tecnológico, particularmente nos meios de transporte e nas comunicações, itens tão estratégicos. O grande tropeço bélico não impediu, contudo, que o homem continuasse a sonhar com a conquista que realmente importava. No 18 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS ano em que eclode a guerra, Robert Goddard, um obscuro físico norte-americano patenteava os conceitos básicos da moderna tecnologia de foguetes, sonhando, segundo ele, em ‘fazer um dispositivo que chegasse até Marte’. Em 25 de janeiro de 1915 a primeira ligação telefônica transcontinental percorre mais de 4 mil quilômetros de fios suspensos por 130 mil postes, para que Alexander Graham Bell pudesse, de Nova York, conversar com seu assistente em São Francisco, na costa oeste dos Estados Unidos. Desnecessário relatar o que o telefone representou a partir daí. A grande conquista humana dá um de seus maiores passos com a publicação, em 1916, da Teoria Geral da Relatividade, de Albert Einstein. Desde então, o olhar humano enxergaria o cosmo de modo completamente diferente e com muito maior interesse. Os anos 20 marcam o apogeu da comunicação. Com o surgimento da cultura de massa, o homem passou a conviver com a troca de informações num volume e numa velocidade jamais sonhados. A comunicação leva o lazer e o entretenimento. A música escapa das salas de concerto e invade os lares dos cidadãos comuns. A notícia é instantânea. O cinema amadurece ao ponto de até começar a falar, em O Cantor De Jazz, com Al Jolson, em 1927. E ganha cores, com Toll Of The Sea, primeiro longa-metragem rodado em Technicolor. Multidões se comprimem nas portas das salas de exibição para sonhar com seus astros e se informar com os documentários apresentados. Pela primeira vez se podia acompanhar os fatos do mundo com som e imagens em movimento. Nunca ideias e conhecimento transitaram com tamanha intensidade. A comunicação mostrava que o mundo estava realmente ficando menor. E o ardor da grande conquista humana, muito maior. Como se não bastasse, foi nos anos 20 que se viu nascer a televisão. Em 1925, o escocês John Logie Baird já havia transmitido a imagem da silhueta de um jovem amigo de um recinto para outro em sua casa. Faltavam poucos anos para que seu invento rudimentar tomasse as proporções de mais importante meio de comunicação jamais criado. Com a televisão, o mundo ficaria incrivelmente menor do que se poderia imaginar à época. 19 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Até o final da primeira metade do século já estariam lançadas as bases do desenvolvimento que experimentamos hoje. A segunda guerra mundial, a despeito de todos seus estragos e carnificina, trouxe novidades como radares bastante aperfeiçoados e muitas melhorias nos sistemas de comunicações que viriam a ser incorporadas ao dia-adia das pessoas comuns. 1946 é o ano em que cientistas da Universidade da Pensilvânia constróem o primeiro ‘cérebro eletrônico’, o ENIAC, um amontoado de 18 mil válvulas e 30 toneladas, que consegue a façanha de realizar espantosas 5 mil operações matemáticas por segundo. A partir dele, muita coisa iria se transformar radicalmente. Mas a ansiedade pela conquista era tanta que bastou só mais um ano para as válvulas ficarem obsoletas, com a invenção do transistor pelos laboratórios Bell. Em poucos anos, meios de comunicação como o rádio e a televisão passariam a ser portáteis e, mais uma vez, a comunicação entre os homens se expande. A televisão conquista definitivamente os lares do mundo todo e, simultaneamente, o homem começa a materializar a conquista do espaço. As teorias de Konstantin Tsiolkovsky e Robert Goddard são resgatadas e aplicadas na corrida espacial. Os soviéticos dão o primeiro passo, com o lançamento, em 1957, do satélite Sputnik e, logo a seguir, com Yuri Gagarin, primeiro homem no espaço; alguns anos mais tarde os norte-americanos revidam, com Neil Armstrong fincando sua bandeira em solo lunar. Este último feito, aliás, apresentado ao vivo para os televisores de todo o planeta. Hoje, a televisão nos leva confortável e instantaneamente aos principais eventos do planeta, do esporte às guerras. Quem não se lembra das últimas finais de copas do mundo, ou de Peter Arnett, da CNN, cobrindo ‘ao vivo’ a Guerra do Golfo? E quando, há poucos anos, acreditávamos haver alcançado o máximo em comunicação, surge a Internet. Não apenas assistimos aos espetáculos; participamos deles. Reportagens sobre o Museu do Louvre são substituídas pelas visitas virtuais. Em breve, uma carta com envelope e selo será reduzida a uma boa lembrança: o e-mail transformou o selo num clique, e a correspondência chega imediatamente a qualquer ponto da Terra. Com a Internet, cientistas do mundo todo cooperam entre si 20 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS em torno de um mesmo projeto científico reduzindo espantosamente o prazo para a obtenção de resultados. Graças também à ajuda deste novo meio de comunicação o genoma humano foi decodificado, e estamos em vias de conhecer detalhadamente o DNA. Conquistamos o microcosmo com a mesma velocidade com que as sondas espaciais rumam ao exterior do sistema solar. Iniciamos este provável milésimo primeiro século — ou vigésimo primeiro, considerando novamente a contagem da cristandade — com uma bagagem que o passado nunca conseguiu conceber, mas com que sempre sonhou: Leonardo da Vinci, com o helicóptero e outras máquinas; Júlio Verne, com o submarino Nautilus; tantos foram os sonhos e os sonhadores. A ciência de agora já desenvolve modelos teóricos buscando realmente alcançar a velocidade de dobra, algo só imaginado nas aventuras do capitão Kirk e do sr. Spock em sua nave Enterprise de Jornada nas Estrelas. De um certo modo, a história se repete: cientistas criam e trocam informações avançadas, comunicam-se, olhando para o cosmo com as mesmas dúvidas e ansiedades com que nossos antepassados sonharam, certo dia, com o além-mar. Produzimos e distribuímos volumes incalculáveis de informação através dos nossos admiráveis meios de comunicação. Atualmente, uma pessoa comum aprende em um único dia o que seu ascendente de há mil séculos não conseguia aprender em toda uma vida. Simplesmente porque tem informação em abundância ao seu alcance, e, claro, os meios de fazê-la transitar com rapidez. A capacidade humana de se comunicar nos deu a oportunidade de sonharmos com a conquista do universo. Talvez nós o conquistemos. Por ora, temos em mãos todas as ferramentas para alcançarmos um mundo muito melhor, mais justo, criativo e produtivo. Só depende de extrairmos o máximo deste dom com que o Criador nos brindou: a comunicação. Talento é o que não nos falta. Com a bagagem da comunicação nós, os Homo Sapiens High Tech, já estamos prontos para a segunda etapa da grande jornada. 21 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 22 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS PEOPLE SHOULD THINK Amo os homens que pensam, mesmo aqueles que pensam diferente de mim. Pensar já é ser útil; é sempre e em todo caso fazer um esforço para chegar a Deus. Victor Hugo Cena um. ‘Machines should work, people should think’. Este foi um dos slogans publicitários da IBM, tempos atrás. Sem dúvida, uma frase brilhante para exprimir o conceito que a empresa procurava dar à função última dos seus produtos e serviços: deixar o ser humano livre para as tarefas mais importantes e edificantes do seu dia-a-dia como, por exemplo, pensar. As empresas, hoje, estão cada vez mais atulhadas de computadores e sistemas automatizados servindo aos mais variados propósitos, de coadjuvantes na realização de projetos complexos até os prosaicos controles de recepção e portaria. O que nos leva a deduzir — aceitando como correto o slogan da IBM — que deve estar sobrando cada vez mais tempo para as pessoas pensarem nas suas vidas, no seu trabalho, nas suas aspirações. Corta o filme. Cena dois. Flashback. Em 1976, ainda garoto, fui estudar por uns meses em uma universidade norte-americana. Saindo da então pré-história tecnológica brasileira, chego lá e fico maravilhado com as máquinas de venda de chocolates, refrigerantes, cigarros e jornais. Comento minha fascinação com um professor razoavelmente idoso. Para meu desencanto, ele me diz que tudo era muito melhor quando as pessoas tinham todos os seus contatos com outras pessoas, que nada poderia ser mais agradável e proveitoso que o simples contato humano. Nunca me esqueci daquele comentário. Corta o filme. Cena três. Hoje. Telefono para importante empresa de software interessado na aquisição de um de seus produtos. Uma placa eletrônica atende minha chamada, desfia um longo rosário de instruções pré-gravadas e, só 23 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS depois de alguns minutos de firme resistência de minha parte, a placa eletrônica me transfere para uma telefonista de carne e osso. Digo a ela que gostaria de falar com alguém da área de vendas. E ela me transfere para outro conglomerado de chips que me instrui a deixar uma mensagem gravada que será respondida mais tarde. Desligo o telefone. Ligo novamente, enfrento outra vez a primeira placa, chego à telefonista e procuro ser bem claro: ‘Senhorita, eu gostaria de falar com uma pessoa de verdade. Não me leve a mal, mas me recuso a falar com computadores’. ‘Só um momento, senhor!’. E eis que sou novamente transferido àquelas irritantes partículas de silício. Desisti, vou tentar adquirir um software concorrente. Corta o filme. Volta cena um. People should think. Meu contato com a empresa de software me fez lembrar do velho professor americano, e também pensar que, a despeito de qualquer tecnologia1, ainda somos seres incrivelmente humanos. Que não podemos prescindir do trabalho, da auto-estima e da cordialidade das relações humanas. E que somos nós, apenas nós, quem efetivamente produz alguma coisa de valor. Máquinas, sejam elas quais forem, apenas executam o que nossa engenhosidade e criatividade foram capazes de conceber. Nada além disso. Máquinas custam, não necessariamente valem. No plano social, penso na necessidade premente que as sociedades modernas têm de resolver problemas como o desemprego e a exclusão. No plano econômico privado, penso nos esforços cada vez mais intensos que as empresas fazem pela conquista do cliente, esta preciosíssima e única fonte de receita. Estes esforços podem ser severamente prejudicados pelo simples fato de que uma máquina – engenho burro por definição – possa ser a primeira responsável pelo atendimento ao cliente que, ao que me consta, ainda é humano. 1 Tecn ol o g i a é u m a palavra qu e ve m s e n d o usa d a d e m o d o ca d a vez m ai s ab str at o . Tudo, h oj e , é tec n o l o g i a . E nã o deixa de s er inter e s s a n t e not ar qu e te m o s te c n o l o g i a para de s d e a inva s ã o do át o m o at é a c o n q u i st a do e s p a ç o ; no ent a nt o , to d a no s s a ‘tec n o l o g i a’ aind a nã o c o n s e g u i u dar u m jeito para a m á distribui ç ã o d e ren d a e d e ali m e n t o s a o s fa mint o s , ou de e s p e r a n ç a àq u e l e s qu e já ne m po d e m m ai s s o n h a r . É a s e m â n t i c a c o ntrib uin d o ‘para u m futuro m e l h o r’. 24 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Ironicamente, e na contra-mão das nossas necessidades maiores, nos iludimos transferindo às máquinas não o ‘should work’, mas o ‘should think’. Maravilhados com a parcela lúdica da tecnologia, e deslumbrados pela redução de custos que daí deriva, muitos administradores de empresas vêm atribuindo a computadores a fase mais importante do atendimento ao cliente, que é o primeiríssimo contato. Míopes, estes administradores simplesmente não percebem onde começa a economia burra. Se isto se resumisse a um mero problema administrativo de companhias limitadas e sociedades anônimas, nada a comentar. Porém, o acúmulo de pequenas decisões, a meu ver equivocadas, em favor da automação pela automação, alimenta uma cultura que exclui a priori o ser humano. Por consequência, também alimenta o descompasso social e tudo mais que daí emana. Com sarcasmo, me ocorre que o mais recente sonho de consumo destes administradores não seria outra coisa que não um automóvel blindado. Informatização, informatização, A máquina evolui, o homem fica paradão. Refrão do xote Informatização, do grupo Língua de Trapo. Insisto que nada pode valer mais para nós mesmos do que nós mesmos, humanos. Alguns de nós têm filhos e procuramos criá-los com carinho e certo conforto; aos nossos amigos dedicamos atenção a compreensão, o que não nos exime, entretanto, de estender nossa parcela de responsabilidade a toda humanidade, não importando que não tenhamos tido a satisfação de ser apresentados individualmente a cada um dos simpáticos bilhões de seres que compõem nossa espécie. Imagino, como exercício constante, uma boa pergunta para termos fixada na mente: em que momentos estamos empregando os avanços que obtivemos em benefício de nós mesmos, seres humanos? Pode parecer bobagem tamanha preocupação devido a um simples telefonema atendido por um amontoado de transistores. Contudo, isto é um fato sintomático do que vem acontecendo em grande escala. Máquinas são muito úteis, sem sombra de dúvida. Mas 25 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS merecem apenas e tão-somente executar o ‘trabalho escravo’. Toda e qualquer tarefa que exija ao menos um mínimo de raciocínio nãocartesiano primário deve, a bem da nossa continuidade, ser deixada a cargo de uma pessoa, mesmo tendo-se de tolerar suas imperfeições. Até porque o ser humano só evolui pelo convívio com suas imperfeições. É o velho processo de tentativa e erro. Que precede, é claro, o acerto. Delegar tarefas dignas de um ser humano a estes primarismos mecânicos banais e estúpidos a que chamamos máquinas, computadores, etc. é suicídio e genocídio. Administradores públicos e privados que assim procedem estão, por ato, comprometendo a existência humana, não necessariamente na sua integridade física, mas em tudo aquilo que custou milênios de esforços para nos diferenciar dos demais primatas. E, ao aceitarmos passivamente que um único ser humano seja injustamente substituído por uma máquina, contribuímos por omissão. É perverso substituir um homem por um mecanismo quando o custo secundário desta substituição é condenar este homem ao ostracismo e às suas piores consequências. Por concordar incondicionalmente com a tese de que gente é para brilhar, não para morrer de fome, proponho que façamos diariamente pequenos exercícios de resistência à tecnocracia nãopensante, algo do gênero ‘se queres mudar o mundo, muda-te a ti mesmo2’: 1. Temos a Internet. De vez em quando, não custa nada enviar um email educadamente queixoso às empresas que não nos querem ouvir diretamente, transferindo-nos àquelas abstrações digitais estapafúrdias a que já me referi. Se sua queixa for por telefone, aproveite para fazer uma pequena maldade: pergunte o nome da pessoa cuja voz aparece nas gravações (provavelmente, ninguém saberá). 2. No comércio, por exemplo, onde houver máquinas para a compra de latas de refrigerantes, resista bravamente à sedução da tecnologia e peça ao atendente que lhe dê a lata em mãos, junto com o troco; 2 Ou ‘conhece-te a ti mesmo’ (gnothi seauton), na versão socrática. 26 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 3. Assinaturas de jornais e revistas são um conforto. Uma vez por semana, ao menos, compre-os na banca e aproveite para bater um papinho com o jornaleiro; 4. Dê bom dia com entusiasmo ao porteiro de sua empresa; 5. Dê bom dia ao presidente de sua empresa (neste caso, evite excesso de entusiasmo para não ser taxado de puxa-saco). Aproveite e dê um jeito de desafiá-lo a criar mais empregos; 6. Vá pessoalmente a uma livraria, compre um livro de fábulas (Esopo, La Fontaine, Malba Tahan, etc.) e as leia para seus filhos. É incrível como isto surte efeito maior e mais duradouro que um video game, além de ser infinitamente mais barato; 7. Vá à feira livre e regateie o preço de algumas frutas e verduras com o feirante, só pelo prazer de comprar depois de uma negociação sem stress; 8. Durante um congestionamento, desligue o rádio, desarme o espírito (é apenas trânsito, não uma batalha campal) e pergunte-se: o que eu posso conceber de criativo para amanhã?; 9. Aproveite o tempo disponível no congestionamento e tente inventar uma piada (é interessante como nós sempre ouvimos as piadas prontas; nunca contribuímos para o enriquecimento do anedotário); 10. Pense no que o outro poderá estar pensando. 11. Elogie alguém com sinceridade por alguma realização, pequena ou grande; 12. Desligue o computador. Faça uma carta manuscrita para um velho amigo. Vá à agência dos correios, compre o selo e entregue a carta nas mãos do funcionário; 13. Se alguma ideia já vier prontinha e todo mundo aplaudir imediatamente, desconfie. 14. Invente um montão de pequenas dicas como estas. Acredito sinceramente que o homem pode e deve ir muito além do que o próprio homem imagina. People should think. 27 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 28 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS ETIMOLOGIA: A DINÂMICA DA COMUNICAÇÃO Que tempo enorme uma palavra encerra. Shakespeare O trânsito absurdo de São Paulo tem ao menos uma vantagem, a de nos dar tempo para pensar e, muitas vezes, fantasiar sobre isso ou aquilo. Em meu caminho de volta do trabalho para casa há um momento em que posso optar por duas alternativas de ruas. Uma, em linha reta, porém mais congestionada; a outra opção são duas ruas mais tranquilas. As três formam um triângulo mais ou menos retângulo. Diariamente, tomo a decisão de ir pela hipotenusa ou pelos catetos, dependendo da situação, e é inevitável lembrar do teorema de Pitágoras. Grande sujeito, esse Pitágoras. Há mais de dois mil anos desenvolveu uma ferramenta que, até hoje, é indispensável no dia-adia de todos nós, mesmo que nem sempre nos demos conta disso. Assim como o trânsito de São Paulo é um dos meus tormentos, a etimologia é uma das minhas predileções e, à luz do exemplo acima, posso dizer, muito grosseiramente, que a etimologia está para o idioma assim como o teorema de Pitágoras está para a geometria. Porque, se o glorioso matemático grego nos deu um instrumento indispensável para a solução dos problemas mais cotidianos que envolvam cálculos de áreas, a etimologia facilita incrivelmente a vida de quem lida com comunicação. De início, convém informar que etimologia vem de étimo + logos, isto é, o estudo da origem das palavras. Conhecer a etimologia nos ajuda a ler melhor, escrever melhor; enfim, nos comunicarmos melhor. No mínimo, facilita nosso entendimento quando somos apenas receptores da mensagem. Mesmo porque, do ponto de vista etimológico, comunicar significa tornar comum, acessível a todos. Daí, nada mais evidente que entendermos o espírito da comunicação como a faculdade de transmitirmos ideias de forma clara, de forma simples. Além de ajudar na compreensão de termos estrangeiros 29 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS contidos principalmente nos idiomas latinos (o romeno, inclusive), etimologia também facilita a leitura, por exemplo, da carta de Caminha, dos sermões do Padre Vieira, dos poemas magníficos do Gregório de Matos ou de tantas outras coisas antigas. E de coisas modernas. Pego o jornal de hoje e vejo que houve uma variação na cotação do dólar, esta muito apreciada moeda norteamericana cujo nome vem de daler. Vou contar a história: alguns séculos atrás, em uma cidade austríaca de nome Joachimstahl, havia minas de prata de onde se extraía matéria-prima para a confecção de moedas, e a prata destas minas era popularmente conhecida por stahler. O termo stahler acabou virando sinônimo das moedas cunhadas com esta determinada prata. E, na Holanda, stahler passou a ser conhecido como daler. O que a Holanda tem a ver com isso? Ora, nos idos do século dezessete, Holanda e Inglaterra celebraram o tratado de Breda, onde se acertou que uma ilhota em que se situava a cidade de New Amsterdam (possessão holandesa) seria trocada por uma vastidão de terras sulamericanas pertencentes à Inglaterra. Traduzindo para os dias de hoje, os ingleses passaram solenemente a perna nos holandeses, dando parte da Guiana Inglesa (parte que virou holandesa, território que hoje conhecemos por Suriname) em troca de nada menos que a ilha de Manhattan. O que era New Amsterdam recebeu, em homenagem à cidade inglesa de York, o nome desta nossa conhecidíssima New York. Da mesma forma que o daler holandês virou dólar graças à pronúncia dos novos ‘proprietários’ de New Amsterdam/New York! Nada mais justo, portanto, do que ser New York a capital financeira do mundo atual; este mesmo mundo, aliás, que tem no dólar sua moeda de referência3. É incrível a utilidade da etimologia. Meu filho caçula, Miguel, foi diagnosticado, faz alguns anos, como portador de doença celíaca4. Quando a médica, minha 3 O Tratado de Breda só teve a ver com territórios. O acordo que transformou de fato o dólar em moeda internacional de referência foi o de Bretton Woods, nos anos 40. 4 Doença celíaca é uma grave intolerância alimentar ao glúten, proteína presente no trigo, aveia, cevada, centeio e triticale. Para saber mais a respeito, veja www.celiac.com, o mais completo sítio do mundo sobre o assunto. 30 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS queridíssima amiga Dra. Ana Maria de Chiara, disse isso, quase caí de costas. Pela proximidade fonética, perguntei com bom humor se celíaca não seria uma doença dos cílios. Não era. Também quis saber se celíaca se escrevia com C ou S. À parte do problema do Miguel, interessei-me particularmente, num primeiro momento, em saber qual a origem da palavra. Pois bem: celíaca vem do grego koliakós que, ao passar pelo latim, transformou-se em cœlica (lê-se tchélica), e que chegou ao português sob duas formas; uma, mais conhecida, é a cólica, ou simples dor de barriga; outra, é a doença celíaca, propriamente dita, que também causa dor de barriga, entre vários outros sintomas. E, na falta de um nome mais apropriado, alguém resolveu criar uma corruptela para denominar o problema, evitando confusão com a cólica pura e simples. Doença celíaca é potencialmente grave, podendo facilmente matar, mas não deixa de ser tragicômico vê-la traduzida exatamente por... doença da dor de barriga! Há mil utilidades e curiosidades envolvendo a etimologia. Com ela, podemos ter certeza de que Deus é realmente inocente, porque a palavra inocente vem do latim noscere, que significa causar mal. O in, é prefixo de negação. Portanto, inocente é aquele que não causa (ou não causou) mal algum. Serve até para manter aceso nosso espírito cidadão, lembrando-nos, por exemplo, que república vem do latim res publica, ou coisa pública. Aquilo que é meu e seu, em outras palavras, mas que nossos políticos e administradores públicos parecem esforçar-se heroicamente para que esqueçamos. E por aí vai. Deixo uma pequena tarefa para você: descobrir o que um dromedário tem a ver com pistas de Fórmula 1. Seja por simples curiosidade, pela necessidade de ler algum texto com maior tranquilidade de seu entendimento, ou para redigir qualquer coisa com alguma segurança acerca da escolha das palavras mais adequadas – para aprimorar sua comunicação, enfim – nunca é demais conhecer a etimologia um pouco mais de perto. Caso o espírito investigativo acerca da comunicação e do idioma seja um dos talentos do leitor, garanto que estudá-la será um dos mais agradáveis e úteis passatempos. Io ricomendo! 31 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 32 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS ADEUS, E-MAIL, ADEUS! O pior pecado contra os nossos semelhantes não é odiá-los mas sermos indiferentes a eles. Eis a essência da desumanidade. George Bernard Shaw ‘Adeus, cegonha, adeus!’ é o título de um belo filme (espanhol, creio) que assisti no passado e que tratava da perda da inocência por um grupo de adolescentes diante da inesperada gravidez de uma de seus membros. Perder a inocência... Quando, há alguns anos, me conectei à Internet, nutri magníficas fantasias pueris sobre as possibilidades de comunicação instantânea, de baixo custo e sem fronteiras que se me abriam. O advento do e-mail foi, para mim, até mais importante que a oportunidade de navegar pelos inúmeros sítios que vêm surgindo à farta. Na tola expectativa de poder ‘melhorar’ minha comunicação com amigos, colegas de profissão e outros, estabeleci um endereço eletrônico e passei a fazer contato com muita gente. Procurava — de acordo com o julgamento de interesses que eu fazia de cada pessoa, isto é, do que imaginava que pudesse interessar particularmente a fulano ou a beltrano — selecionar o assunto e só enviar alguma coisa sem consentimento prévio se considerasse que, àquele destinatário, o conteúdo da mensagem fosse pertinente. Mas o e-mail não melhorou minha comunicação, apenas a ampliou, na proporção inversa da qualificação do que passei a receber. Quanto mais e-mails, mais bobagens e inutilidades. Assim como o populacho tem o hábito de dizer que ‘meu ouvido não é lata de lixo, nem penico, para ouvir bobagens’, minha caixa de entrada passou a ser confundida com lata de lixo. Na verdade, a caixa de entrada de e-mails estava mais para penico do que para lixeira. Preocupado, troquei de endereço e passei a ser bem mais criterioso na sua distribuição. Em vão. Cheguei, até, a trocar de 33 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS provedor e, mais uma vez, de endereço. Em vão outra vez. Alguns amigos, entusiastas da informática, argumentaram que, por haver uma série de dispositivos de proteção aos e-mails indesejados, não seria necessário que eu radicalizasse. Mas descobri que seria preciso perder um tempo enorme tentando aprender como fazer as devidas configurações (tenho coisas mais importantes para cuidar). Outros, simplesmente não aceitaram que eu, vivendo a aurora do século 21, pudesse cometer uma infração sócio-tecnológica deste gênero, como se estivesse praticando algum tipo de pecado mortal high-tech. Mas, mesmo assim, comecei 2001 sem o maldito e-mail. E o que aconteceu? Nada de ruim. Pelo contrário, ao restabelecer os velhos hábitos do telefone, do fax e dos correios, minha comunicação pessoal recuperou instantaneamente a qualidade. Acho que tomei a decisão acertada. Ninguém precisa de lixo para viver, exceto as LIMPURB da vida. Fiquei muito feliz quando o Roberto Menna Barreto me telefonou, do Rio para São Paulo, e concordou comigo. Aliás, um papo rápido por telefone mais uma vez provou ser bem mais eficaz em conteúdo e emoção que a letra fria da tela. Ele lembrou, inclusive, do bê-á-bá da comunicação, a existência do emissor e do consequente receptor da mensagem. O argumento é mais do que lógico: havendo, na comunicação pessoal, incontáveis receptores para cada emissor (e vice-versa), esta comunicação não se realiza; ao menos, não com o mínimo de propriedade que uma mensagem necessita para ser suficientemente digerida, pensada e transformada em resposta de igual qualidade. Posso acrescentar sem medo que o e-mail se transformou, de certo modo, em uma Torre de Babel de apenas um idioma. Todo mundo fala sobre tudo, mas ninguém entende nada. Só esta semana, já me vali duas vezes do correio e falei (por telefone, claro) com uns amigos de Curitiba que não vejo há tempos. Foi infinitamente mais produtivo. Além de mais ‘humano’. Está certo que o custo é um pouco maior. Mas desde quando qualidade é sinônimo de baixo custo? Por isso, da vida pessoal erradiquei de vez o e-mail, embora 34 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS paradoxalmente continue um entusiasta da Internet. Profissionalmente, só faço uso dele em condições estritas e absolutamente necessárias. Sugiro a você, leitor, igual experiência. Não exatamente a de excluir o e-mail do seu dia-a-dia, porque isso é assunto de foro íntimo com o qual não me meto. A experiência que sugiro é a de tomar cuidado com a inércia de movimento: empurrou, vai! Tomar cuidado, sempre, em manter elevado seu espírito crítico, em filtrar cuidadosamente a comunicação à qual você se expõe; manter, enfim, a qualificação do seu relacionamento humano e sua liberdade interior a todo custo. Eu, de minha parte, e atendendo ao inevitável apelo multilinguístico da globalização, digo adeus, au revoir, arrivederci, adiós, farewell, e-mail! 35 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 36 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS O JARGÃO Aprender várias línguas é questão de um ou dois anos; ser eloquente na sua própria língua exige a metade de uma vida. Voltaire Você se comunica bem? Tem certeza disso? Já lhe ocorreu que comunicação não é o que você diz, mas o que o outro entende? Ótimo. Então você é um dos raros privilegiados que tem lucidez suficiente para evitar a todo custo o uso do jargão na sua comunicação interpessoal, escrita e falada. Para facilitar as coisas e eu me comunicar melhor com você, vamos ao Aurélio. Lá, jargão é ‘linguagem corrompida, língua estrangeira que não se compreende, gíria profissional e, no desenvolvimento da linguagem infantil, enunciados ininteligíveis, embora com padrão entonacional de sentença, que marcam o final da fase de balbucio’. Ciente de que o jargão é, entre outras coisas, um enunciado ininteligível, devo concluir que nada presta um desserviço maior à boa comunicação. A meu ver, não passa de um meio de se esconder algum problema interior. Psicologia de botequim à parte, ele é, em última análise, um simples recurso de conforto e segurança pessoais, e que prescinde do interesse por uma comunicação de boa qualidade. Algo que pela via subliminar emite outras mensagens: ‘veja como eu sou superior a você’, ou ‘vamos encerrar logo a conversa porque não estou entendendo nada do assunto’. Estudiosos da análise transacional normalmente são craques em decifrar estes comportamentos (o que é análise transacional? Leia Análise transacional em psicoterapia, de Eric Berne). O uso constante e indiscriminado do jargão em ambiente não apropriado é vício grave que em nada contribui para suas relações sociais. Evidentemente, no seu meio profissional, onde todos falam a mesma língua, ele até facilita a comunicação, reduzindo o discurso 37 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS como a estenografia reduz o texto a um conjunto de símbolos. Mas, fora esta situação específica, deve ser completamente banido, extraditado, expulso do dia-a-dia de todos nós. E o jargão já irrita há séculos. Curiosamente, encontro em Regras Para A Direção Do Espírito (regra No. 3), de René Descartes, o seguinte comentário: Pois os autores (...) sempre que tiveram a sorte de descobrir alguma coisa certa e evidente, nunca a apresentam senão envolta em rodeios, talvez temerosos que diminua a dignidade da invenção pela simplicidade das razões, ou, quem sabe, se porque sentem receio em descobrirmos a verdade. Até tu és contra, Descartes? Uma boa maneira de mostrar o flagelo que é o jargão, será a apresentação de exemplos. Vejamos alguns. 1. Na medicina. ‘... e o intestininho de vocês sofre com a perda das vilosidades digitiformes.’ Imagine esta frase dita a um grupo de crianças, todas com idade entre cinco e dez anos (Miguel, meu filho caçula, entre eles), portadoras de doença celíaca. Pois este absurdo aconteceu de fato em uma palestra que uma médica5, professora-doutora em sua especialidade, a gatropediatria, fez, certa ocasião, àquelas crianças. Bem, a debandada foi imediata, em benefício do engrandecimento do futebol infantil. Jogar bola, até para um adulto, é sempre melhor que uma vilosidade digitiforme, não é mesmo? Comunicação triplamente errada: um garoto maiorzinho saiu dizendo que ‘quem tem intestininho é a sua avó! Eu tenho intestino!’ (fui rir lá fora). Depois, palestra científica para crianças pequenas é o fim da picada. Ainda mais, com o auxílio da projeção de tenebrosas imagens ampliadas de recortes do intestino. Em terceiro lugar, pelo uso escancarado do maldito jargão; no caso, uma expressão que nem um adulto letrado iria entender. Seja sincero: alguma vez em sua vida você já tinha ouvido falar em vilosidades digitiformes? 5 Não se tratava da médica que acompanha meu filho. 38 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Certa vez, um grande amigo meu, médico, falou alguma coisa sobre um ‘paciente PMD’. Perguntei se PMD não poderia ser ‘puta merda, doutor!?!’, imaginando a reação do tal paciente apavorado com diagnóstico de doença grave. Não era: PMD, no jargão médico, significa psicótico maníaco-depressivo. Na contramão, o Dr. Marcos Batista de Oliveira que esporadicamente atende a mim e à minha mulher, é um exemplo de boa comunicação. Não apenas traduz o medicinês para o português dos mortais como, de quebra, tem a elegância de imprimir suas receitas através do computador, o que nos permite ver que foi receitada uma simples aspirina, não algumas doses assustadoras de zxlfknb! Na medicina, a boa comunicação tem, no mínimo, o mérito de reduzir a tensão que todos nós enfrentamos diante de um problema de saúde, independentemente de sua gravidade. Está até provado que a redução da angústia contribui para a recuperação do doente. Por isso, receito aos médicos e profissionais de saúde em geral doses cavalares e diárias de comunicação isenta de jargão. 2. Na educação. Com todo carinho e respeito que tenho pelos profissionais da tão nobre arte de educar, é chato ter de denunciá-los, muitos deles, pela prática acintosa do empolamento e da empáfia na comunicação oral e escrita. Qualquer texto acadêmico, particularmente os destinados ao pessoal de graduação e pós-graduação traz, inexoravelmente, expressões como multidisciplinar, paradigmas, novos olhares (no sentido de nova interpretação), vivência de novos cenários, dimensionalidade (que foi feito de dimensão?). Coisas assim. E que são muito ruins para o aproveitamento do estudante. Educadores ‘a nível de’ pós-graduação têm paixão quase que doentia pelos neologismos, ou por construções rigorosamente empertigadas de frases. Uma simples verificação em alguns textos acadêmicos me fez encontrar: perfil profissiográfico; procedimentos discursivos englobantes de procedimentos gramaticais; mesmidade; auto-identificação intersubjetivamente reconhecida, e dimensão 39 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS humano-interacional. Esta, em particular, é primorosa: condicionantes sócio-históricas que conformam a estruturação dialética dos movimentos da identidade docente. Fui mais uma vez ao Aurélio buscar as provas da minha teoria sobre neologismos desnecessários, e, como era de se esperar, não encontrei profissiográfico, nem mesmidade, nem englobante e, muito menos, interacional. O que estes professores querem comunicar? E a quem? Neste caso, o jargão cumpre exclusivamente a função da cauda do pavão. Educação reside basicamente em boa comunicação de bons conteúdos. Como posso querer ensinar alguém usando termos que não serão facilmente entendidos? Volto aos bancos pré-escolares e não digo às crianças que vovô viu a uva, mas que o pai do progenitor lançou, intersubjetivamente, novos olhares interacionais sobre o fruto da vitis vinifera, numa perspectiva profissiográfica? Professores assim estão reprovados. 3. Em propaganda e marketing. Fiz um comercial de rádio satirizando uma atendente de hipotética agência de propaganda multinacional. Num diálogo com o candidato a cliente da agência, ela dispara: ‘Olha, pra trabalhar com a gente, o senhor tem de compreender que o share of mind vai depender do seu budget, dividido pelo logaritmo dos rating points, aplicado à média ponderada do recall acumulado no seu target, na razão inversa do cash flow.’ Convivo com o jargão publicitário e marketeiro há muitos anos e, confesso, não são raras as vezes em que surge uma expressão da qual eu nunca tenha ouvido falar. Sem a menor cerimônia, simplesmente peço ao interlocutor para que me traduza aquela brilhante gema da oratória. A importação de estrangeirismos também me faz acreditar que, de todos os países de língua portuguesa, o Brasil é o único cujo idioma é o inglês. Lojas já não fazem mais descontos, dão um off; liquidação, aliás, passou a se chamar sale. Que mau gosto o destes colonizados. Este é um segmento que peca duas vezes: a primeira, pela 40 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS transformação desnecessária de palavras simples em pretensiosos termos técnicos, onde o rascunho de um anúncio é rough, copiar ideia alheia se chama benchmark, no marketing, ou Denorex, na publicidade (em alusão a um antigo comercial de shampoo anticaspa, ‘aquele que parece, mas não é’; pelo menos é um jargãozinho divertido). Depois, porque, ora bolas!, publicitários têm obrigação de se comunicar razoavelmente bem, com quem quer que seja e onde quer que estejam. Experimente dizer à sua titia favorita, velhinha simpática, que você está aborrecido porque seu story board não foi aprovado pelo cliente. Talvez ela fique admirada: ‘Este menino vai longe! Já tem até um istoribórde só dele!’ (a propósito, story board não passa do roteiro ilustrado de um filme publicitário ou de longa-metragem). Em tempo: chega-me às mãos folheto-convite para o Maxi Mark 2001, evento de marketeiros, mas que bem poderia substituir alguma mala direta de cursinho de inglês. Uma obra-prima. Lá, propaganda boca a boca foi promovida à espetacular word-of-mouth; resumo, como sempre, é short list, e comércio, logicamente, há tempos virou trade. Ainda a respeito da comunicação boca a boca, criou-se, em português, a indescritível preciosidade ‘marketing viral’ (acredite: é porque contagia!). Será que os autores testaram as variantes ‘marketing bacteriológico’ ou ‘amebíase mercadológica’ antes de optarem pelo ‘viral’? Ué! Não é tudo contagioso do mesmo jeito? Estes sujeitos precisam, com urgência, de muita ‘higienização idiomática’ 4. Na política. O magnífico humorista José Vasconcelos há muito tempo fez uma sátira do jargão dos políticos, encarnando a figura excêntrica do ex-presidente Jânio Quadros. Só consultando minha memória, lembrome de que ‘tão acarejético e crisocelácio é, que vem conspurcar a melatinosa das efervescências’. É bem verdade que políticos em geral querem qualquer coisa, menos comunicação muito clara com seus eleitores. Mas Deus é realmente brasileiro (além de inocente), e o povo deste país já vem demonstrando um bom interesse em informação clara e objetiva por parte do meio político. Os exageros acarejéticos e 41 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS crisoceláceos já foram enterrados há tempos, mas ainda persistem graves deficiências na comunicação. Basta ver o jornal diário para comprovar que todos os políticos estão ‘empenhados e não medem esforços para o bem do Brasil’ (é curioso como, neste país, todo mundo tem sempre a solução para todos os problemas; que invariavelmente nunca são resolvidos). 5. No futebol. ‘E, bem... o professor nos aconselhou a jogar com tranquilidade, e... bem, o grupo está unido e... se Deus quiser vamos dar mais esta alegria à torcida, e estamos confiantes na vitória e, bem... o futebol é uma caixinha de surpresas e, bem... o professor nos aconselhou a jogar com tranquilidade, e... bem, o grupo está unido e... se Deus quiser vamos dar mais esta alegria à torcida, e estamos confiantes na vitória e, bem... o futebol é uma caixinha de surpresas e, bem... o professor nos aconselhou a jogar com tranquilidade, e... bem, o grupo está unido e... se Deus quiser vamos dar mais esta alegria à torcida, e estamos confiantes na vitória e, bem... o futebol é uma caixinha de surpresas e, bem... o professor nos aconselhou a jogar com tranquilidade, e... bem, o grupo está unido e... se Deus quiser vamos dar mais esta alegria à torcida, e estamos confiantes na vitória e, bem... o futebol é uma caixinha de surpresas. Como é que alguém consegue viver com tamanha riqueza de vocabulário? Jogadores de futebol representam em boa parte, e infelizmente, a grande parcela da população com dificuldade de acesso a uma razoável vida escolar. De qualquer modo, deveriam ser orientados a se comunicar melhor com a imprensa e com suas torcidas (e mesmo os de boa formação educacional, como, por exemplo, o Sócrates e o Tostão, acabam sendo contagiados pelo jargão do meio futebolístico e, vez ou outra, dão lá suas escorregadas). Será impossível a estes clubes brasileiros que, vira e mexe, orgulham-se de suas negociatas multimilionárias, que esbanjam fortunas na compra e na venda de atletas, patrocinar alguma escolaridade à rapaziada? Escolaridade, note-se, que normalmente custa muito pouco financeiramente. De qualquer modo, cartão vermelho para o pessoal do futebol 42 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS ou, como diria o Juca Kfoury, ‘já para o chuveiro!’ Economês, engenheirês, policialês (‘o meliante evadiu-se do recinto em que se encontrava e empreendeu fuga em meio ao matagal, qsl?’ Não será mais fácil dizer que o bandido fugiu pro mato?) e muitos outros destes idiomas particulares são frutos do uso descuidado, além-fronteiras profissionais, do jargão. Se o leitor me permite uma sugestão para se comunicar melhor e, o que é mais importante, ser bem compreendido, faça da análise da sua própria comunicação interpessoal um exercício constante. O uso abusivo e indevido do jargão, pelo prejuízo que causa à objetividade, sempre me faz pensar no minueto, aquela dança cheia de frescuras, mas onde ninguém sai do lugar. 43 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 44 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS ESTE LIVRO E AS REDES NEURAIS O esforço de um homem deve exceder seu alcance, ou então para que serve o céu? Robert Browning Redes neurais artificiais são uma tentativa muito sofisticada para que possamos obter com máquinas, através do conhecimento desenvolvido pelo pessoal de computação, os mesmos comportamentos que um organismo vivo – nosso cérebro, no caso – utiliza para o processamento de informações. Uma profissional do ramo me informa que uma rede neural artificial é baseada em modelos biológicos que procuram imitar a maneira como o cérebro processa informações. Em outras palavras, procura-se reproduzir artificialmente o emaranhado processamento de informações que ocorre em nossas mentes e que nos permite tomar decisões e ter emoções (não sei se o pessoal que lida com redes neurais artificiais quer chegar a reproduzir emoções humanas, mas não me espantaria com tal propósito). Este negócio de redes neurais artificiais me fez pensar no animal gregário que somos, nas sociedades que construímos. Também já houve quem afirmasse que o ser humano é, essencialmente, mais um ser dotado de engenhosidade que propriamente de inteligência, seja lá o que isto possa significar. Fruto da engenhosidade ou da inteligência, vejo na capacidade humana de se comunicar de maneira ordenada a principal de suas faculdades. Porque a engenhosidade e a inteligência do homem podem estar contidas em um único indivíduo, um eremita isolado em uma ilha, mas a comunicação é o meio que encontramos para estar mutuamente ligados. Ela nos transforma em um grande e poderoso organismo unificado, ao mesmo tempo em que mantém intacta nossa individualidade. Nós já somos, por natureza, uma gigantesca ‘rede neural’ social. Quando expus este ponto de vista a um amigo, ele imediatamente retrucou que não concordava, pois parecia que eu 45 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS queria reduzir a espécie humana a uma colmeia. Não é o caso. Talvez eu tenha me expressado mal, me comunicado mal. Somos, e isto é evidente, muito mais que um grupo de laboriosas abelhas. De início, nosso modelo de organização permite que rainhas caiam, e operárias elevem-se socialmente. Mesmo em sistemas aparentemente impermeáveis a mudanças de classes sociais, como é o ilustrativo e clássico modelo indiano, com seus segmentos mais tradicionalistas onde brâmanes serão sempre brâmanes e párias eternamente párias, há sempre alguma possibilidade de alteração de status do indivíduo no grupo. Uma rápida passada de olhos no terreno da antropologia cultural nos deixa ver que todas as sociedades, das mais primitivas às mais desenvolvidas (e, aqui, entenda-se desenvolvimento do modo que se queira) mostra que nosso modelo humano também dá margem a que troquemos de grupo social com imensa facilidade; o exemplo mais contundente é o das ondas de migrações humanas ao longo da história. Abelhas, ao que me consta, vivem e morrem integrantes de uma mesma e única colmeia. Não somos, portanto, nem colmeia nem formigueiro. Mas, se não os somos, que espécie de organismo unificado nós representamos? Representamos o organismo que se comunica. Mais que simples animais gregários ou homo sapiens, somos o homem que se comunica. E isto, apenas isto, já nos coloca com folga na primeiríssima posição de largada para qualquer corrida evolucionista. Somos, repito, uma imensa rede. Explico melhor: há uma teoria que diz que apenas seis pessoas, no máximo, nos separam de todos os demais indivíduos, de qualquer outro ser humano. Você conhece alguém que conhece alguém, e esta corrente, com os tais seis elos, o liga quem quer que seja. A teoria faz sentido, pois há também uma projeção bastante razoável de que cada um de nós tem contato mais ou menos próximo com algo em torno de duzentas pessoas. É, de fato, um tamanho adequado e perfeitamente crível para um círculo de relacionamento. Sendo assim, uma corrente de seis elos significa uma conta matemática como: 200 X 200 X 200 X 200 X 200 X 200, ou 2006. Feitos os cálculos, chega-se a 64 trilhões, ou seja, se cada pessoa da cadeia 46 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS conhece outras duzentas pessoas, há, nesta rede hipotética, espaço de relacionamento6 para um número milhares de vezes superior ao da população atual do planeta. Procurei, empiricamente, checar a tal teoria, partindo do presidente dos Estados Unidos. Bem, tenho uma parente que conhece o presidente da República. Este, por sua vez, tem contato com o presidente dos EUA, diretamente ou através dos respectivos embaixadores. De mim até o George Bush será uma cadeia de quatro elos; ou cinco, se considerarmos um embaixador envolvido. Pensei no Papa: cinco elos. Rainha da Inglaterra: quatro elos. Em uma medida extrema, pensei no primeiro-ministro japonês. Este deu um pouco mais de trabalho, mas, por meio de um amigo da colônia japonesa de São Paulo, cheguei a um cálculo de seis elos. Durante alguns dias, por puro hobby, andei pensando em gente famosa dos esportes, das artes e da ciência. Em nenhum caso a ligação passou dos tais seis elos. Evidentemente, pensar em gente famosa foi o meio mais fácil de checar (empiricamente, repito) a veracidade da teoria. Poder-se-á argumentar que em relação a gente absolutamente desconhecida, um camponês do Turcomenistão, por exemplo, será necessária uma rede com muito mais nós. Mas eu pergunto: será que o porteiro do meu prédio imagina fazer parte de uma corrente de apenas cinco elos que tem, na outra ponta, a rainha da Inglaterra? Vendo a humanidade por este prisma, você já consegue imaginar a complexidade da teia em que estamos envolvidos? E, a partir daí, pelo nosso diferencial comunicativo, se eu e você tivermos uma mensagem para passar adiante, uma mensagem efetivamente relevante, e conseguirmos ser convincentes o suficiente sobre a importância desta nossa mensagem seguir em frente (Jesus Cristo, Maomé e Buda já sabiam disso), em poucos dias nós poderemos falar com toda a humanidade sem necessitar da ilusão, digamos assim, que uma Internet representa em termos de eficiência e velocidade. E o bom e velho telefone continua sendo o mais avançado meio de comunicação individual. Ainda. 6 É óbvio que o espaço de relacionamento ‘real’ nunca poderá ultrapassar o número de habitantes do planeta. A conta matemática só foi apresentada com o intuito de dramatizar um determinado potencial. 47 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Talvez o raciocínio exposto explique, por exemplo, a incrível velocidade de trânsito da boataria geral da nação. E, talvez, também convença você, caro amigo, da importância de fazer da sua comunicação pessoal, familiar, profissional ou pública, uma pedra preciosa em constante lapidação. Com sua comunicação cada vez mais aperfeiçoada, isto é, com o aumento da sua capacidade de ser objetivo e claro com todos, você inevitavelmente passará a emitir mensagens mais convincentes (porque serão de facílima compreensão, independentemente do grau de complexidade que a mensagem encerre) e, creia, aumentarão bastante suas chances de mudar o mundo. Para melhor, espero. 48 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS DEUS É INOCENTE: O FATO E A VERSÃO Toda história tem três versões: a minha, a sua e a verdadeira. Provérbio chinês Sempre se discute por aí se determinada versão corresponde fielmente àquilo que ela se refere. Será que tudo o que nos foi narrado respeita integral e verdadeiramente o evento, ou sucessão de eventos acontecidos? Além disso, a fonte da informação merecerá credibilidade e, em merecendo, terá sido justa e cuidadosa na transposição e na interpretação da informação? Para analisarmos estas questões com um pouco mais de profundidade, vamos escolher um fato que seja da maior relevância e que, ao mesmo tempo, suponha-se ser do convívio da maioria das pessoas. Mas qual será o maior, o mais proeminente dos fatos? Será Deus, sem dúvida, esta figura que vem, há milênios, provocando as mais acaloradas discussões sobre sua natureza, a quem milhões de pessoas, através de uma miríade de seitas e religiões, devotam sua fé muitas vezes inabalável. E que mesmo entre ateus e agnósticos suscita, no mais das vezes, fortes paixões intelectuais. Agora vamos buscar duas versões igualmente relevantes para a explicação do fato Deus: escrituras sagradas, de um lado, e a filosofia, de outro. Dentre as escrituras sagradas, vamos optar pela Bíblia cristã, devido ao fato de termos um pouco mais de intimidade com ela. No plano da filosofia, onde é vastíssima a produção intelectual sobre o assunto, escolheremos dois expoentes da maior envergadura: Aristóteles e Baruch de Spinoza. Mais uma coisa: já que o conhecimento científico deriva diretamente da filosofia7, vamos também, mais adiante, fazer uma brevíssima análise de determinada ocorrência científica que, por via 7 A Filosofia, no passado, também englobava as ciências ditas naturais, como astronomia, química, etc. 49 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS indireta, tem muito a ver com a questão da existência e da natureza divinas: o big-bang, fenômeno ao qual muitos creditam o início do universo. E, claro, como tudo isso nos é comunicado. Vamos lá. O maior sucesso editorial de todos os tempos, de comunicação, enfim, no mundo ocidental é, sem dúvida, a Bíblia. E não digo isso apenas em função do volume de exemplares vendidos até hoje (número cuja exatidão desconheço, só sei que foram muitos milhões). A Bíblia é o fenômeno que é porque, através de suas profecias, evangelhos, pentateuco, apocalipse e quetais, tem sido utilizada, no mais das vezes, como instrumento de propaganda para um produto, a religião, e que, de acordo com as melhores técnicas publicitárias, não lhe mostra quem você é ou onde está, mas quem você quer ser e onde gostaria de vir a estar: uma alma perdoada e imaculada, para sempre no Paraíso. À Bíblia também são dadas interpretações sempre de caráter definitivo, dogmático: por mais incoerentes que possam ser entre si algumas de suas abordagens da divindade (lá, Deus ora perdoa, ora castiga; ora é terno, ora é rancoroso), seus ‘intérpretes juramentados’ – religiosos profissionais em geral – ao se apoderarem do direito exclusivo da tradução bíblica, parecem fazer heróicos esforços no sentido de nos desestimular ao exercício de nosso direito de livrespensadores. Cuidado com o homem de um livro só. Santo Tomás de Aquino E os preceitos bíblicos contaminaram de tal forma o mundo que, hoje, tudo contém Bíblia8. Seu sucesso editorial vai muito além das habituais encadernações com milhares de páginas impressas com letras miúdas em papel finíssimo, para uso doméstico e eclesiástico. É um sucesso que se expande, por exemplo, às universidades (há instituições de ensino que orientam suas políticas pedagógicas pelo 8 Leia-se, aqui, por gentileza, interpretação bíblica, em vez de Bíblia em si mesma. Pois, a mim, não me compete nem interessa julgar a Bíblia sob o ponto de vista filosófico-teológico. O objetivo do presente texto é considerar como a comunicação, por variadas versões de um mesmo fato, pode estar a serviço de interesses tão díspares. 50 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS modelo bíblico, mesmo em áreas estranhas à espiritualidade) e, sinal dos tempos, aos meios de comunicação de massa, o jornal, o rádio e a TV. Particularmente, os meios eletrônicos. Programas de rádio e TV abordando as mais variadas interpretações das escrituras não nos faltam. Em uma grande cidade como São Paulo, há pelo menos uma dezena de emissoras de rádio exclusivamente bíblicas. O mesmo acontece com as televisões de sinal aberto ou por assinatura de todo o país. As razões imediatas da proliferação deste tipo de meio de comunicação – audiência garantida, oportunidade de lucro ou privilégios políticos para obtenção das devidas concessões de exploração comercial – são, aqui, o que menos importa. De fato, e isto sim tem relevância, as ondas eletromagnéticas transportam maciçamente uma determinada versão do fato Deus. Aplicando as técnicas cenográficas tão brilhantemente desenvolvidas para os shows do dia-a-dia mundano, aproveitou-se, é óbvio e decorrente, para criar os respectivos garotos-propaganda, como, por exemplo, uma bispa evangélica bonitona ou um padre caricato que leva milhões de pessoas (e reais) aos seus cultos e, de quebra, garante a audiência de outros tantos milhões em favorecimento do apetite de faturamento de grandes redes de televisão. Aí, tudo se mistura: a heterodoxia religiosa a serviço dos interesses vãos e vice-versa. Tudo é show. Na versão bíblica contemporânea do fato Deus, o próprio Deus é um show. Fez-se da Bíblia uma versão da ideia de Deus que prevalece exclusivamente pela mística e, hoje em dia, como sabemos, pelo apelo ao espetáculo (parece um paradoxo, mas pelo espetáculo conseguem dar brilho ao obscurantismo). Uma versão que, evidentemente, para se manter viva, tem o dever de se contrapor à razão filosófica; não fosse assim, como vender a ideia de Deus como uma entidade mágica que, a pedido dos aflitos, realiza qualquer milagre, atende a qualquer demanda e perdoa a todos os pecados? E que, por consequência, dá margem à existência de atravessadores da fé, travestidos de religiosos de toda espécie. Ora, a filosofia pura e simples não promete nada disso. Mas o que a filosofia nos oferece como contrapartida à atual 51 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS versão religiosa da divindade? Aristóteles, Spinoza e tantos outros filósofos 9, nos deixaram um imenso legado filosófico (e teológico) que os religiosos fazem questão de ignorar solenemente. O curioso é que, em sua maioria, estes religiosos conhecem perfeitamente bem a contribuição que a filosofia representa para a busca do entendimento do Criador; mesmo assim, apegam-se às fábulas bíblicas com a convicção da verdade revelada (revelada à moda deles, não à de Santo Tomás, por exemplo). Disse-se, com acerto, que se os triângulos fizessem Deus, dar-lhe-iam três lados. Montesquieu, comentando Descartes Aristóteles e Spinoza, em particular, jamais declararam que Deus efetivamente existe; foram, porém, categóricos em afirmar a necessidade da existência divina para que se dê razão à existência de tudo mais; é um conceito parecido, mas não exatamente o mesmo. Chegam, através de um magnífico caminho de construção de pensamento, à conclusão de que a Deus não resta alternativa que não a de pensar. Sendo assim, nós, individualmente, não somos – nem nossas aflições – objeto de qualquer atenção divina10. Spinoza vai até um pouquinho mais longe; para ele, ao creditarmos os fatos em geral à vontade de Deus, fazemos desta vontade ‘o asilo da ignorância. 9 Hegel, com a ‘Ideia Absoluta’; Schopenhauer com a ‘Vontade’, etc. 10 Ouso conjecturar que nós, espécie humana, não passamos de ‘subproduto’ da ideia divina. Surgimos como consequência de condições ambientais adequadas. Nada indica que nossa existência seja necessária – ou contingente, nas palavras de Aristóteles – aos propósitos da existência em si mesma. No entanto, existimos (também é lógico e verdadeiro que se não existíssemos, o universo seria diferente). Assim sendo, não vejo forma melhor de dar sentido à nossa existência que não a da fraternidade universal. Somos os únicos responsáveis por nós mesmos; temos o dever de cuidar bem uns dos outros e, para isso, parece-me indispensável caminharmos para a abolição definitiva de preconceitos de toda ordem, representados por credos em diferenças raciais, sociais, intelectuais e econômicas, seitas e religiões. 52 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS ...os homens, referindo-se a seu próprio propósito, inventaram diversos meios de render culto a Deus, a fim de que fossem amados por ele acima dos outros, e para que obtivessem que ele dirigisse a Natureza inteira em proveito do seu desejo cego e de sua avidez insaciável. Assim, este preconceito transformou-se em superstição e enraizou-se profundamente nas mentes; o que foi para todos motivo de se aplicarem, com todo seu esforço, ao conhecimento e às explicações das causas finais. Mas, do mesmo passo que procuram mostrar que a Natureza não fez nada em vão (isto é, nada que não seja para uso dos homens), parecem ter mostrado somente que a Natureza e os deuses deliram da mesma maneira que os homens. Considerai, peço-vos, a que ponto chegaram as coisas! Spinoza. Ética; De Deus, apêndice. Com o devido perdão dos estudantes e aficionados da filosofia, e para melhor entendimento da versão filosófica do fato Deus, vou tentar explicar, em síntese, a teologia de Aristóteles (a de Spinoza não é lá muito diferente). Para começar, vamos concordar que uma coisa existe. Qualquer coisa. Ora, esta coisa, seja ela qual for, terá sido criada, imaginada ou intuída por outra coisa, outro ser qualquer. Este outro ser, por sua vez, terá sido criado, imaginado ou intuído por outro, e assim sucessivamente. Haverá um momento, lá atrás, no infinito11, em que surgiu a intenção fundamental, a vontade primeira de que algo ocorresse. Esta intenção, esta vontade, é Deus. E este raciocínio é absolutamente lógico e simples. Vejamos: se não fosse a causa, porém o efeito, teria obtido sua origem em outra coisa. Se não é original, portanto não pode ser Deus. Este terá sido o que veio antes. Aristóteles afirma, ainda, que Deus não tem forma nem tamanho. Se as tivesse, estas deveriam ter sido determinadas por um evento anterior. E já vimos que não pode haver um evento anterior a Deus. A propósito, Deus também não pode mover-se, pois isto só seria possível caso Ele tivesse limite de tamanho. Mais: Deus também é infinito no tempo (‘Não teve começo e nem terá fim’; nisto, as escrituras concordam). Porque, não fosse Deus infinito, algo haveria determinado Seu começo e viria a determinar Seu 11 O conceito de infinito, por si só, merece um tratado à parte. 53 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS fim. Pois bem, se Deus estivesse sujeito à existência por tempo limitado por alguma vontade terceira, seria efeito, não causa. Mas já sabemos que Deus só pode ser causa. Se Deus é infinito no tempo (eterno), no espaço e nem ao menos poderá mover-se, o que restaria a Deus fazer? Pensar, segundo Aristóteles; apenas pensar12. Mas pensar sobre o quê? Sobre Si mesmo, porque sendo Ele infinito, não haveria lugar no tempo e no espaço para outra coisa qualquer. Este raciocínio afasta a hipótese de Deus como queriam, por exemplo, os próprios gregos em sua magnífica mitologia13: alguém todo-poderoso (Zeus) que fica vigiando nossos atos para nos enviar, de acordo com nossa conduta, benesses ou punições. É nesta mesma hipótese que as religiões em geral nos querem fazer crer: a de um Deus vigilante de nossas individualidades, espécie terna e abrandada do Big Brother de George Orwell, no livro 1984. Para trazer este mesmo raciocínio aristotélico a um fato de nossos dias, vamos à astronomia. O big-bang, por exemplo, é uma ideia curiosíssima e que, por tratar do início dos tempos, também remete inevitavelmente a Deus. Quando se credita a este fenômeno teórico (e digo teórico porque se resume a apenas isso, uma teoria) a ideia de começo do universo, mesmo alguns cientistas brilhantes erram em sua comunicação com os leigos, e com um simplismo de espantar. O bigbang, caso tenha ocorrido algum dia, terá sido apenas e tão-somente um efeito, nada mais que isso. Pois o big-bang não pode ser encarado como a origem do universo, por mais correta que possa parecer esta 12 Já que muitos de nós acreditam ter sido feitos à imagem e semelhança de Deus, pensar, portanto, será a ação que mais deverá nos aproximar desta semelhança com o Criador. 13 Sabemos que os deuses e semideuses gregos representam exuberantes alegorias sobre os fenômenos naturais (deus dos oceanos, deusa da agricultura etc.) ou características humanas (deus do amor, deusa da beleza etc.). Estes deuses, portanto, só existiam como concepção humana. Disséssemos, porém, algo assim no período do apogeu grego, certamente seríamos convidados a tomar um pequeno drink de cicuta. A dificuldade de interpretar o mundo, estabelecendo causas prováveis e inteligíveis para a origem e a existência das coisas, fez com que os gregos elaborassem sua requintada mitologia: só criando-se divindades para poder explicar o inexplicável. E o mesmo se deu com todos os outros povos, alguns dos quais conseguiram fazer com que suas mitologias sobrevivessem vigorosas até os dias atuais. 54 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS teoria. Foi, sem dúvida, um evento interessante, mas não a causa original de universo algum. A causa, propriamente dita, foi aquilo que fez o big-bang acontecer; ou aquilo outro que vem anteriormente a esta causa primeira imaginada; ou o que vem ainda antes... e assim por diante. Até, como na explicação simplificada da teologia de Aristóteles apresentada em parágrafo anterior, chegar-se ao Criador. Ou apenas Deus. Para poder desconfiar com mais segurança dessa história de o big-bang ser a origem do universo, valho-me, ainda, da teoria da refutação de Karl Popper, filósofo neozelandês contemporâneo. Em resumo, ele nos mostra que toda e qualquer teoria só poderá ser refutada, destruída, jamais comprovada (vale a pena conhecer Karl Popper mais de perto). Ao que me consta, até hoje ninguém deu a teoria do big-bang como definitiva; o máximo que poderemos fazer com ela será, sobre bases sólidas, desmontá-la14. Religião, obscurantismo e mito rendem espetáculo, audiência e fortuna. Razão e filosofia não dão nada disso. Toda esta conversa teológico-filosófico-científica tem um propósito fundamental: mostrar a você, comunicador ou estudante de comunicação que, seja lá qual for o fato cuja divulgação estiver sob sua responsabilidade, o buraco é sempre mais embaixo, como se diz por aí. O cuidado em comunicar algo a qualquer pessoa ou grupo de pessoas depende, além de nossa conduta ética, de algum preparo intelectual. Veja o caso das infindáveis interpretações dadas a Deus. Em Seu nome, pessoas foram salvas e pessoas foram mortas; fez-se a guerra e promoveu-se a paz; fez-se a miséria de muitos e a riqueza de uns poucos. E tudo isso, nunca é demais repetir, em nome de Deus, a entidade suprema, infinita no tempo e no espaço e que, singelamente, poderíamos identificar como a Existência em si mesma. Este mesmo Deus, cuja essência, ao longo dos séculos, vem sendo repetida e indevidamente apropriada por profetas, visionários, bemintencionados, mal-intencionados, empresários da fé, malucos e 14 Este raciocínio também tem algo a ver com o Discurso Sobre o Método, de Descartes. O filósofo julgava imprescindível o exercício constante da dúvida. 55 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS vigaristas em geral. E pelos meios de comunicação, no final das contas. Mas, de acordo com Aristóteles, Spinoza e tantos outros, Deus continua, aqui e acolá – no Todo, enfim – impassível e indiferente ao que temos feito em Seu nome. De tudo aquilo que, principalmente através dos meios de comunicação – da Bíblia à televisão – tem-Lhe sido atribuído, Deus, definitivamente, é inocente. Ninguém é do ramo, a não ser o Criador. Sidney Frattini 56 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS VOCÊ É O QUE VOCÊ ENTENDE O homem não é só o inato; é também o adquirido. Goethe Certamente você já ouviu dizer que um homem é o que ele come. Ou o que ele veste. Ou o que ele tem. Ou aquilo que ele sei-láo-que, enfim. Mas, sem o menor medo de errar, posso afirmar que você é o que você entende do mundo que o cerca. Explico: quantas vezes você já se perguntou sobre as razões que o fazem, ou a fazem, entender ou gostar de uma variedade de coisas diferentemente de qualquer outra pessoa? De que modo, no final das contas, você permite que o mundo se comunique com você? Quais portas da sua mente ou do seu coração você deixa abertas às novas experiências e sensações? Há duas formas fundamentais de você perceber o mundo e se relacionar com ele: a intelecção e a emoção. Vejamos o parágrafo acima de outra forma. Sua intelecção, ou capacidade de aprender, é a primeira porta aberta para o mundo. Através de sua habilidade inata de se comunicar, a informação chega até você e, à medida da amplitude de seu conhecimento (sua base de dados) e principalmente desta sua capacidade (inteligência) de inter-relacionar esta nova informação com os dados previamente obtidos, melhor você interpreta os acontecimentos, o mundo, enfim. Dentro da intelecção podemos incluir ainda a moral, isto é, seu conjunto de valores pessoais, não importando, aqui, se estes seus valores foram herdados ou resultado de conclusões próprias. Depois, a emoção e tudo o que isto possa implicar do ponto de vista da psicologia. E o que mais será a emoção – dentro do escopo da comunicação, que é o propósito deste livro – senão a mais imediata maneira de fazer transparecer sua reação e consequente interpretação a um estímulo, a uma dada informação? 57 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Na ponta final do processo, temos a estética. Estamos habituados a entender estética apenas como uma filosofia do belo, ou filosofia da beleza. Porém, podemos perfeitamente entendê-la de modo ampliado, como sendo uma atitude diante da vida. Daí, nada mais fácil que entendermos a mecânica que faz as tais duas portas funcionarem harmoniosamente, para que eu e você possamos perceber a comunicação que o mundo faz: a intelecção se associa à emoção e nos presenteia com o senso estético. Ou seja: informação + interpretação = atitude. Se você prestar atenção, qualquer informação que lhe chegue, terá passado por estas portas. São filtros. Sendo claro que se trata de um processo que se dá de acordo com o conteúdo que sua intelecção conseguiu absorver até o presente momento – e que sua emoção ajudará a transformar em senso estético – nada mais evidente do que sermos diferentes um do outro, pois nossas capacidades de aprender, interpretar, sentir e reagir são igualmente diferentes. Por estas simples razões – da mesma forma que comunicação não é o que você diz, mas aquilo que o outro entende – você também será resultado da forma pela qual interpreta o que o mundo diz para você. E eu serei a forma pela qual interpretarei o que o mundo diz para mim. E já que nossas bagagens e histórias de vida são necessariamente diferentes, somos todos também necessariamente diferentes entre nós. Em português claro, você é exatamente aquilo que você entende sobre este mundo (assim como este livro ou um objeto qualquer serão bons ou ruins, feios ou bonitos, isto ou aquilo, de acordo com seu entendimento). O que me leva a uma conclusão mais do que óbvia: quanto mais e melhor você se comunicar, isto é, quanto mais você estiver aberto ao mundo através desta sua incrível capacidade de processar e comparar livremente informações de toda ordem, mais isto deverá aprimorá-lo. E, sem dúvida, facilitar que você também contribua para um mundo melhor. 58 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS O PODER DA PALAVRA IMPRESSA Nunca é segura a sociedade com os poderosos. Fedro Os chineses inventaram o macarrão. Os chineses inventaram a imprensa. Os chineses inventaram a pólvora. Os chineses inventaram a porcelana. Os chineses inventaram o papel (ou similar). Os chineses inventaram, até, de certa forma, a propaganda. Agora, vejo em um documentário de televisão que, há aproximadamente mil anos, os chineses também descobriram o princípio fundamental para proteção contra doenças infectocontagiosas, artifício que conhecemos pelo vulgo de vacina. Caramba! Quem são estes caras?!? Pois a National Geographic Television apresentou um método milenar usado na China antiga para o controle, ou erradicação regional, da varíola. Pela inoculação de fragmentos das crostas da doença nas narinas de crianças saudáveis, estas mesmas crianças adquiriam imunidade contra um mal que, pelos métodos ocidentais, só viria a ser declarado erradicado do planeta por volta de 1980. O princípio da vacina é, portanto, propriedade intelectual dos chineses. Mas quem virou estátua em praça pública, pelo nobre feito (primeira vacina antivariólica), foi um sujeito chamado Jenner. Cientistas argumentaram que o crédito ao tal de Jenner devese ao fato de que ele criou ‘cientificamente’ a vacina, coisa que os chineses não fizeram (os chineses apenas preveniram a doença com seu método, sem se importar com metodologia científica alguma, coisa, aliás, que nem existia à época). Com argumentos assim, dizer que os chineses não descobriram a vacina é o mesmo que negar a Santos Dumont a paternidade do avião, sob o pretexto de que o Boeing 747 não é projeto seu. O Jenner levou a fama integral da descoberta da vacina devido, entre outras coisas, ao que chamo de poder da palavra impressa. E entendo por palavra impressa toda informação divulgada, prioritariamente, por qualquer meio de comunicação de massa: 59 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS impressa no jornal, no livro, na revista, no rádio, na televisão, etc. Colocou em letra de forma, é outra coisa. Sabedoria popular É incrível como se acredita automaticamente em uma informação divulgada em massa, principalmente na forma jornalística (a comunicação publicitária, neste caso, anda carecendo um pouco de credibilidade). O exemplo clássico da histórica transmissão de rádio feita por Orson Welles, narrando a invasão de nosso planeta por marcianos15, não me deixa mentir. Voltando à seara terapêutica, um amigo médico e pesquisador científico de importante indústria farmacêutica multinacional – e que por razões óbvias não vou identificar – contou-me, em off, que as informações correntes na imprensa sobre, por exemplo, o tabagismo e a AIDS não conferem necessariamente com muitos dos estudos científicos existentes. Porém, a palavra impressa dá a veracidade necessária ao que não é exatamente verdadeiro. Ainda segundo este amigo – de cujas informações confio mais pelo extenso curriculum que pelos vários anos de amizade – fumar até dez cigarros por dia ou não fumar em absoluto, tem o mesmo significado para a saúde, ou seja, nenhum. Mas isto não convém ser muito divulgado. Aliás, sendo isto verdadeiro, como fica, por exemplo, a conversa (muitas vezes, quase histérica) sobre fumantes passivos, já que para se fumar passivamente mais do que dez cigarros ao dia será necessária uma exposição absurdamente grande à fumaça dos cigarros? Será verdade? Será folclore? Se deu no Jornal Nacional, é verdade. Se saiu na Folha ou no Estadão, é verdade. Quando um jornalista diz erroneamente no rádio (como ouvi há pouco) que a Terra está a cento e cinquenta mil 15 Ou, ap ó s o s at e nt a d o s ao World Trade Center e ao Pentá g o n o , a m e s m a c oi s a qu e o g o v e r n o a m e ri c a n o narra n d o a inva s ã o do m u n d o por terr orist a s ára b e s . Uma narrativa qu e, na voz da CNN, fez m uit a g e nt e acr e d it ar qu e to d o s o s ára b e s sã o terro rist a s e to d o s o s terr orist a s do m u n d o sã o ára b e s . 60 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS quilômetros do Sol (e insiste na distância), talvez também deva ser verdade, mesmo considerando que nestas dimensões de proximidade seríamos evaporados. Sempre que penso neste assunto, lembro-me da velhinha de Taubaté, personagem do Luís Fernando Verissimo. Ela era a única pessoa no Brasil que acreditava no governo Figueiredo. Sem dúvida, a velhinha de Taubaté é uma brilhante metáfora sobre boa parte de nosso comportamento. Muito longe de querer ser um psicólogo, imagino que a credibilidade que damos automaticamente aos meios de comunicação esteja ligada a um sentimento congênito, de confiança, que carregamos (já que nos classificamos a nós mesmos como animais gregários, nada mais evidente que termos algum grau de confiança uns nos outros). A confiança que depositamos nos meios de comunicação é, em essência, a mesma que temos no arquiteto desconhecido e responsável pelo teto que, neste instante, está sobre nossas cabeças. Ou no projetista do transatlântico no qual planejamos um dia fazer um cruzeiro. Para dramatizar a questão da confiança – e, por consequência, do poder da palavra impressa – costumo fazer uma brincadeira em palestras. Peço ao anfitrião que me apresente ao grupo como um publicitário importantíssimo (é mentira, mas todos vão acreditar). Depois, digo-lhes que, infelizmente, acabei de receber a notícia de que um dos monstros sagrados da Propaganda Brasileira, um tal de Ernst Mittelstaedt (fictício), morreu naquele mesmo dia. Mais adiante, dramatizo, comentando que tive o privilégio de haver trabalhado com ele, que o Ernst foi meu grande mestre na profissão, etc. (a dramatização intensifica a noção do verdadeiro; e eles continuam acreditando). Falo de minha comoção e, contando com a compreensão de todos, peço-lhes um minuto de silêncio (todos concordam, de cabeça baixa). Marco um minuto exato no relógio (sessenta segundos, numa ocasião destas, são uma eternidade). Finalmente, agradeço a todos e pergunto por que diabos eles fizeram um minuto de silêncio. ‘Ora – respondem alguns – foi pelo Ernst! Você pediu!’ Pergunto novamente se alguém da plateia já tinha ouvido falar do Ernst Mittelstaedt (ninguém responde). Insisto, e nada. Aí, digo que o Ernst, se existiu, jamais me foi apresentado (todos ficam 61 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS atônitos) e que, portanto, todos fizeram um minuto de silêncio por nada, ou melhor, porque eu havia resolvido manipular o grupo, levando-os a uma reação que eu queria que eles todos tivessem. ‘Vá pra PQP! Eu já tinha rezado umas quatro ave-marias!’, foi uma das reações mais elegantes que já obtive nestas ocasiões. Com este teatrinho, mostro que eles creditaram confiança em mim, porque a ‘palavra impressa’ do anfitrião induziu-os a isto (o PQP! indica o quanto dói ter uma confiança traída). Mostro que, em diferentes proporções, nós, todo santo dia, fazemos lá o nosso ‘minuto de silêncio’ diante das notícias várias que recebemos aqui e acolá. E, finalmente, se consigo, com o recurso de uma brincadeira boboca e uma técnica banal de manipulação conduzir o grupo ao objetivo que eu queria, que dizer sobre os conglomerados de comunicação e seus profissionais tão feras no assunto? Por isso, nada mais importante que o cuidado em transmitir ou receber notícias. Confiar cegamente que o jornal ou a televisão SEMPRE dizem a verdade ou, no mínimo, apresentam fatos bem interpretados é franca ingenuidade. Passei a vida toda desconhecendo a vacina chinesa; só acreditei na ‘palavra impressa’ por haver sido apresentado através de um meio de comunicação no qual deposito confiança, mas com certa reserva. Pois, amanhã, nada impede que venham me dizer que a vacina foi inventada pelos assírios ou por uma tribo pré-alagoana recentemente descoberta. Quanto ao atual modelo de distribuição de notícias e informações que se vem praticando por aí, é bom alertar que as respostas do público já começam a parecer diferentes. As sociedades continuam acreditando nos arquitetos, mas algumas dão sinais de que a confiança nos meios de comunicação (imprensa, principalmente) já não é mais a mesma. Talvez (conjectura minha), por perceberem que a imprensa em particular começa a carecer da flexibilidade necessária diante da inédita profusão de informações das últimas décadas. Se a notícia, de alguma forma, anda engessada e não muda, o consumidor da notícia está mudando. Novos sítios jornalísticos 16 já perceberam isto e estão simplesmente oferecendo a possibilidade de se 16 Veja www.thesmokinggun.com. 62 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS ver documentos originais relacionados a um determinado caso ou assunto. São um sucesso. Seus responsáveis pressentiram que as pessoas não querem mais quem lhes traduza a informação, quem lhes diga o que pensar ou como pensar. Este jornalistas aboliram a arrogância da interpretação tutelar17 e ‘definitiva’ dos assuntos em troca do papel de disponibilizadores da informação bruta. Os dados estão lá, e cada um que os entenda como quiser. Ao abrir mão deste poder de interferir na interpretação individual da notícia e da ânsia de querer guiar o leitor pelas mãos como se faz com uma criança, inauguraram o que eu acredito ser o embrião de uma imprensa verdadeiramente democrática, pois o risco de erro ou de manipulação da informação parece ser bem menor. 17 Exemplo: um articulista de importante revista semanal cita Montesquieu e diz ‘Você sabe quem é Montesquieu. Aquele do Espírito das Leis.’ Ora, se eu já sei quem foi Montesquieu, pra que citar sua obra-prima? E se eu não sei, vou, à medida do meu interesse, procurar saber. 63 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 64 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS A IMPORTÂNCIA DAS IDEIAS E A MANIPULAÇÃO DA INFORMAÇÃO A mais potente arma nas mãos do opressor é a mente dos oprimidos. Steven Biko, ativista sul-africano contra o apartheid Olhe à sua volta: tudo que existe de modificado na natureza, aquilo que não está no seu estado natural como uma pedra, uma folha de árvore ou um animal, é resultado de ideias. Melhor dizendo, da concretização destas ideias. Uma árvore não é, nem nunca será, uma mesa ou uma cadeira. Nós apenas usamos sua madeira para tornar viável e real a ideia ‘mesa’ ou a ideia ‘cadeira’ que temos em mente18. Mesmo para as coisas não palpáveis, como a música, recorremos a artifícios que as concretizem; a música não está no instrumento musical, está na cabeça do músico, tanto quanto está na cabeça de quem ouve. Entretanto, foi necessário transformar a ideia do instrumento musical em algo palpável para que possamos realizar e apreciar uma ideia impalpável. E assim é com tudo, repito, o que nos cerca. Nossa existência torna-se cada vez mais possível na razão direta do esforço em conceber mais e melhores ideias. E de fazê-las transitar pelos vários meios que temos para nos comunicar, das cordas vocais aos satélites. Este trânsito de ideias é o que chamamos vulgarmente de comunicação ou informação. Aqui, porém, vamos chamar só de informação. Se concordamos que sem ideias não somos nada de muito relevante e, mesmo que as tenhamos em enormes quantidade e qualidade, sem levá-las adiante ou sem permitir seu trânsito – ou seja, sem gerar e distribuir informação – nada disso será de muita valia para cada um de nós, para nossas famílias, para nossa cidade ou para toda a espécie humana. A informação é, portanto, o único e real tesouro da 18 Roberto Menna Barreto me alerta para a coincidência essencial deste parágrafo com outro, de sua autoria, inserido em seu livro Criatividade No Trabalho E Na Vida (ed. Summus). Mas eu o mantive, mesmo assim, consciente de não ter ocorrido plágio, porque, no final das contas, não é tão difícil chegar-se a esta conclusão. 65 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS humanidade. Por via de consequência, controlar a informação é controlar este tesouro. É controlar a capacidade que as pessoas têm de distribuir suas ideias para que a humanidade produza cada vez mais e melhor; é controlar a possibilidade de que sejamos mais livres, em resumo. Acredito que o ser humano tenha uma ligação atávica com a geração e a distribuição de ideias, como uma das formas de garantir esta liberdade, seja ela no plano individual ou do grupo social a que pertence. Não fosse assim, não teríamos nos esforçado bravamente ao longo de todo o processo evolutivo para desenvolver esta maravilhosa ferramenta. Hoje, porém, na contramão deste indiscutível e magnífico esforço libertário, surgem, por exemplo, os grandes conglomerados da comunicação. Gigantescos grupos empresariais controlam jornais, emissoras de rádio e TV e todos os meios necessários à sua ampla difusão como, entre outros, os satélites de comunicação. E os sujeitos que dirigem os principais impérios de comunicação do mundo têm, invariavelmente, estreitas ligações com aqueles que estão no poder. Pelo que já vimos, é fácil deduzir as razões. Também não é sem motivo que, vez ou outra, governos totalitários instituem a censura. E mesmo muitos dos governos aceitos como democráticos esforçam-se para controlar, ainda que indireta e discretamente, a informação que circula por países e continentes. É um esforço sem tamanho, que, muitas vezes, não mede consequências, nem nos oferece um mínimo de ética, embora aja sob o disfarce da proteção dos mais altos interesses nacionais ou humanitários. Tudo é devidamente apresentado de modo quase que uniformizado pelos mais importantes veículos de comunicação. Quando surge uma notícia sensacional, é comum vermos a imprensa especular sobre ela até a exaustão. Ao assistirmos aos escândalos encenados pelo Judiciário, o Congresso, os vários Legislativos e um setor ponderável do Executivo, verificamos que as sucessivas ‘novelas’ são agravadas pelos meios de comunicação – eles próprios levianos. J. O. de Meira Penna, embaixador, em artigo publicado no Jornal da Tarde de 14 de maio de 2001. 66 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Porém, há casos dramáticos que só vêm à tona através de esforços normalmente desmedidos de algum personagem. Assim foi com o jornalista Ramos Horta no caso do longo sofrimento a que a Indonésia submeteu o Timor Leste. Em poucos anos, centenas de milhares de timorenses19 de ambos os sexos e de todas as idades (bebês, inclusive) foram cruel e covardemente assassinados, mas sem que a grande imprensa mundial desse destaque ao que ocorria naquele pequeno país de língua (quase) portuguesa. Nem a imprensa brasileira deu atenção ao fato. Até que... bem, até que Ramos Horta ganhasse o Prêmio Nobel da Paz20, por seus esforços em alertar o mundo para o massacre que ocorria em seu país. Quinze anos de esforços! Assim foi com tantos outros conflitos, massacres, invasões, crimes e barbaridades contra a humanidade nos quatro cantos do mundo. E, note bem!, não me refiro a fatos ocorridos na mais longínqua antiguidade: falo dos últimos vinte ou vinte e cinco anos, apenas! Onde estavam os principais órgãos de comunicação? Quais serão as razões que fazem com que a grande imprensa mundial dedique seus editoriais apenas a certas causas ‘mais importantes’? Quais os critérios para se elegerem os fatos que terão lugar garantido infinitamente na mídia? Quem serão, ó céus!, os benditos editores de grandes agências de notícias, jornais impressos e televisivos internacionais que tomam a decisão do que deve ou não ‘fazer parte do show’? Mais de duzentos mil timorenses estupidamente assassinados não seriam uma informação bem mais relevante que um escorregão de Margareth Tatcher, ou uma aventura sexual de Bill Clinton, ou outra bobagem qualquer, para ocupar a primeira página do New York Times 19 Falou-se, à época, em 200 mil timorenses. Ou aproximadamente quatro vezes mais que o número de brasileiros mortos no trânsito a cada ano; ou outras quatro vezes o número de soldados americanos mortos no Vietnã; ou umas duzentas vezes o número de vítimas da Intifada versão 2001, ou sabe-se lá quantas vezes mais que o total de mortos em tantas outras tragédias, como as de Angola, Moçambique, Bósnia, dos Tutsi e dos Hutu em Ruanda, etc. O desequilíbrio com que os meios de comunicação tratam de fatos assim, ou é resultado de profundo descaso e desinformação dos responsáveis pela notícia, ou puro preconceito mesmo. De qualquer forma, condutas inconcebíveis e inaceitáveis num mundo que se diz avançado. 20 Ver capítulo ‘O poder da palavra impressa’. 67 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS ou congênere? Esta orientação, este direcionamento sobre o que será notícia ou não, é, em outras palavras, uma parte daquilo que Noam Chomsky, filósofo e linguista norte-americano, traduz por ‘consenso fabricado’ (no original, manufacturing consent). Aliás, é importante notar que Chomsky, pelo seu comportamento em prol da liberdade de expressão é impiedosamente boicotado pelos principais meios de comunicação norte-americanos, os mesmos tais que asseguram ser defensores intransigentes da liberdade de informação. Vamos estudar um bom exemplo21 sobre a avidez de governantes em controlar a informação? Numa segunda-feira, 17 de Maio de 1999, o IDG, empresa de notícias via Internet, informou: Os Estados Unidos estão decidindo se as empresas do país que prestam serviços de Internet para a Iugoslávia terão de interromper estas operações. O governo dos Estados Unidos vai definir nos próximos dias se o embargo decretado contra a Iugoslávia também vale para transmissões de Internet. Há três semanas, a administração Clinton proibiu as empresas americanas de vender ou fornecer mercadorias, software, tecnologia ou serviços para a Iugoslávia em solidariedade aos habitantes de Kosovo. A americana Loral Space and Communications, que possui um sistema de satélites servindo dois provedores iugoslavos, ainda não sabe se terá de cortar as comunicações para seus clientes. Segundo comunicado da empresa, a definição do que ela deverá fazer nos próximos dias ainda não foi tomada e deverá ser anunciada pelo governo dos Estados Unidos. Segundo o Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, geralmente os serviços de informação ficam isentos dos embargos econômicos, mas a Internet apresenta a possibilidade do comércio eletrônico, o que torna a definição da questão mais complicada. A fonte das preocupações pode ser na verdade a disseminação de 21 A ansiedade da mídia por explorar à exaustão o ‘fato do momento’ (e, logo após, esquecer-se solenemente deste mesmo fato) faz parecer que acontecimentos recentes tenham ocorrido há muito mais tempo do que realmente se passou. Assim foi com a guerra do Kosovo. No momento em que escrevia, tive a impressão de estar tratando de um assunto pré-histórico. De qualquer modo, creio, o exemplo serve de modelo para análise de qualquer notícia, particularmente as de aspecto político-social ou ideológico. 68 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS propaganda iugoslava via Internet para o planeta. Vamos analisar esta notícia em alguns de seus detalhes. O governo dos Estados Unidos vai definir nos próximos dias se o embargo decretado contra a Iugoslávia também vale para transmissões de Internet. Ora, esta guerra do Kosovo não foi uma guerra ‘dos Estados Unidos’ contra a Iugoslávia. Em princípio, era uma intervenção da OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte em favor da proteção aos kosovares, o povo de uma província iugoslava que reivindica autonomia em relação àquele país. Ora, se fosse pertinente alguma decisão sobre embargo de comunicação, não seria mais apropriada uma decisão da própria OTAN? Passei 33 anos nos Fuzileiros Navais. A maior parte do meu tempo servindo de força-bruta de alta classe para os grandes negociantes, para Wall Street e para os banqueiros. Em resumo, fui um chantagista em favor do capitalismo. Ajudei a purificar a Nicarágua para a casa bancária internacional Brown Brothers, de 1909 a 1912. Ajudei a fazer do México, e de Tampico em especial, um lugar seguro para os interesses das companhias de petróleo americanas em 1914. Eu trouxe luz à República Dominicana, em benefício dos interesses das empresas de açúcar dos Estados Unidos, em 1916. Ajudei a fazer do Haiti e de Cuba lugares decentes para os rapazes do National City Bank aumentarem suas receitas. Eu ajudei a violentar meia dúzia de repúblicas centroamericanas para o benefício de Wall Street. Smedley D. Butler (1881-1940) General dos Fuzileiros Navais dos Estados Unidos E, por falar nisso, fui à Internet e entrei no sítio da OTAN. Lá, onde esperava uma exposição de motivos para o ataque, só encontrei um desfile de personalidades políticas e militares posando para fotos e reunidos em intermináveis conferências que, invariavelmente, não têm chegado a qualquer resultado prático. Em correspondência a um amigo, escrevi sobre o tal sítio: ‘É um show de péssimo gosto. Patético, descreve visitas ilustres como quem faz uma coluna social. Ali, também, os ataques à Iugoslávia são resumidos a algo meramente circunstancial’. 69 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Esta guerra terá sido mais uma atividade de simples rotina? Mais uma vez, reduziu-se o sofrimento de milhares de seres humanos a um espetáculo colorido para nossa degustação. A CBS Notícias, retransmitida em português para o Brasil, criou, à época, até uma linda vinheta eletrônica animada em computação gráfica para anunciar O ATAQUE DA OTAN! Uma série de bombardeios reduzidos a simples atração, a um espetáculo pirotécnico banal. Qual será o show que vem depois? A novela das oito, o futebol, os Simpsons ou a matança em Kosovo? Talvez já não exista mais diferença. Embora juristas de todo o mundo se esforçassem em ressaltar o caráter de duvidosa legalidade desta intervenção, por haver tratados internacionais que condicionam este tipo de iniciativa a uma decisão do Conselho de Segurança da ONU, o governo norte-americano (note bem: eu disse o governo, e não o povo norte-americano) se deu o direito de tomar as rédeas da situação e, com o apoio (por ato e também por omissão) das grandes redes controladoras das notícias (controladoras, portanto, do trânsito de parcela importante das ideias), decretou serem os Sérvios os ‘bandidos’ do filme. Também foi assim em relação aos Iraquianos22. E já que foi eleito um bandido, nada mais justo que alguém querer se declarar no papel de ‘mocinho’. O antagonismo bem versus mal é indispensável para o êxito desta manipulação ideológica. E, pelas razões que, como já estamos começando a compreender, são óbvias, a administração norte-americana de então quis controlar até a Internet23. 22 Por que será que os povos árabes em geral nos são sempre apresentados como um bando de lunáticos fundamentalistas atrasados? E por que será também que a grande imprensa nunca, ou raramente, comenta que os árabes são os pais da matemática, de boa parte da astronomia, que têm um imaginário dos mais ricos (basta ver a qualidade e quantidade de suas lendas) e um senso estético primoroso, como podemos facilmente observar por sua música, poesia e arquitetura, sem falar na esplêndida culinária? Nunca é demais lembrar, por exemplo, que Portugal e Espanha foram o que foram, nos idos dos séculos XIV e XV, graças à herança cultural obtida com a dominação árabe (mouros) a que a Península Ibérica esteve sujeita por uns oitocentos anos. 23 A Internet é um caso clássico de feitiço que virou contra o feiticeiro, pois nasceu como item estratégico das forças armadas norte-americanas. Expandiu-se às universidades e, depois, ao mundo. Controlá-la pode até ser tecnicamente possível, mas já será, sem dúvida, politicamente inviável. 70 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS A Internet é a realização do sonho de muitos pensadores ao longo de toda a história, pois nunca se viu uma ‘estrada’ tão aberta ao trânsito da informação, qualquer informação. A Internet, em consequência, está mais na mira dos interesses dos países envolvidos no conflito que os próprios alvos militares. Eis que, atualmente, a essência da liberdade no vai-e-vem da informação, do movimento das ideias é, convém lembrar, o que nos leva adiante enquanto seres humanos minimamente dignos de sermos chamados assim. Intervir nesta possibilidade, a de livre trânsito de informação, é intervir no que a nossa condição humana tem de melhor a apresentar. Sem liberdade para fazermos circular nossas ideias — a liberdade de expressão — somos reduzidos a uma massa biológica tão desinteressante quanto, talvez, um protozoário desconhecido das profundezas dos oceanos. Pois, sem isso, que diferença faríamos para nós mesmos? Vamos além: ... solidariedade aos habitantes de Kosovo. Que solidariedade? De que espécie e para qual finalidade? Será apenas por razões humanitárias? E os habitantes da Iugoslávia, gente como eu e você, não serão também merecedores de solidariedade? Será que todos estiveram enfronhados nas matanças que ocorriam? Será que todos os iugoslavos concordaram com tudo o que se passou à sua volta? Eles também não estariam sofrendo? Aliás, toda informação e contra-informação que nos chegou pela imprensa só deu conta de massacres a civis praticados por ‘maldade’ pelos Sérvios, ou por ‘lamentável engano’ pelas forças da OTAN. Estes ‘lamentáveis enganos’ foram o preço da pretensa solidariedade. Um preço alto, inclusive financeiramente, pois os mísseis que lá foram despejados diariamente custam centenas de milhares de dólares CADA UM. Alguns modelos, como já havíamos visto na guerra do Golfo, chegam a apresentar o incrível preço unitário de um milhão de dólares. No entanto, a ajuda humanitária em alimentação, medicamentos, transporte e profissionais de saúde era insuficiente. Talvez porque faltassem recursos! 71 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Decididamente não compreendo por que é mais glorioso bombardear de projéteis uma cidade assediada do que assassinar alguém a machadadas. Dostoievski, Crime e Castigo Também convém lembrar que esta foi uma guerra onde não houve, curiosamente, baixas de soldados. Ao menos em teoria, não deveriam os soldados atacar ou serem atacados e, eventualmente, morrer? Porém, foram civis indefesos que morreram. Esta ‘guerra limpa’24 se assemelhou mais a um gigantesco, sofisticado, delirante e trágico video game. Um video game em que, não importa com quantos pontos a partida termine, eu e você sempre sairemos perdedores. Nunca é demais lembrar que, durante a perseguição nazista aos judeus na Segunda Guerra Mundial, a maioria dos alemães não concordava com os excessos cometidos pelo Terceiro Reich, a título de purificação da raça ariana. Muitíssimos judeus sobreviveram ‘dentro’ da própria Alemanha ao longo de toda a guerra, graças à ajuda corajosa e heróica de cidadãos alemães ‘arianos’. Oskar Schindler, protagonista do filme A Lista de Schindler, decididamente não foi o único herói. Sendo alemães, não deveriam estar todos eles automática e obrigatoriamente de acordo com os princípios nazistas? Não deveriam odiar os judeus? Que estranho sentimento os teria levado a correr tamanho risco, senão o do mais profundo senso de solidariedade e de valorização do ser humano, apenas por ser ele humano, sem rótulos? Talvez estas pessoas compreendessem o real significado de dignidade que dá algum sentido a nossa espécie. Por fim: A fonte das preocupações pode ser na verdade a disseminação de propaganda iugoslava via Internet para o planeta. Do que tinham medo as autoridades norte-americanas? Que propaganda tão poderosa seria esta que a Iugoslávia poderia distribuir pelo planeta? Politicamente, este país não é tão importante no cenário mundial. Ideologicamente, idem, já que não há mais no horizonte o risco de realinhamento da Iugoslávia com o comunismo: o general 24 Chamar de limpa uma guerra, como li em alguns jornais, é o fim da picada. 72 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Josip Broz Tito não passa de um ilustre cadáver; a União Soviética só existe na memória e na saudade de alguns; a Rússia tem poder militar, mas já se ‘converteu’ ao capitalismo neoliberal e passa, no momento, por sérias dificuldades econômicas internas, e meter-se em mais uma guerra sem-fim seria, para os russos, um ato de completa idiotice. Em suma, não há mais uma guerra fria para incomodar o sono dos povos e excitar a imaginação doentia e beligerante, respectivamente, dos políticos e militares das potências ocidentais. O mundo é um lugar perigoso, não devido aos que fazem o mal, mas por causa daqueles que olham e não fazem nada. Albert Einstein Que perigo, enfim, poderia a Iugoslávia representar? Ah, é verdade, existe a posição geográfica estratégica. A Iugoslávia fica num lugar de particular interesse para as economias mais importantes do globo. Aí está o ponto: se a ‘propaganda’ iugoslava se disseminasse, haveria o risco de ser acreditada; em consequência a opinião pública mundial poderia, em maior ou menor período, se tornar simpática à causa iugoslava, qualquer que fosse esta causa. Ou acabar tomando mais consciência de que o que vinha acontecendo com a Iugoslávia, com o Iraque, e que aconteceu com o Vietnã (ou Afeganistão, Chechênia, Tchecoslováquia etc. nas mãos da União Soviética) poderá — por que não? — acontecer com seu próprio país. No caso do Brasil, é bom lembrar que o golpe militar de 1964 teve amplo e fundamental apoio do governo norte-americano. Para não dizer que só falo dos americanos, povo pelo qual tenho enormes simpatias, que tal lembrarmos o que Brasil, Argentina e Uruguai, a Tríplice Aliança, fizeram com o Paraguai em meados do século passado? Uma chacina cruel sob o patrocínio e as ordens da Inglaterra, o império da vez. Solano Lopez, o líder paraguaio de então, era ‘avançadinho’ demais para a época, por haver iniciado um período de desenvolvimento sem precedentes na América Latina. Ameaçou contrariar interesses econômicos ingleses e pagou muito caro. E este caso em particular ilustra com perfeição o poder da 73 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS manipulação da informação: decorridos cento e cinquenta anos do episódio e ainda se ensina nas escolas brasileiras o nosso ‘feito heróico’. Curiosamente, no Paraguai de hoje, o massacre covarde (todo massacre é covarde) que aquela guerra representou é debitado aos mentores intelectuais do fato, os ingleses, e não aos executores Brasil, Argentina e Uruguai. Muda-se a percepção, muda-se a realidade. Nesse sentido, fica particularmente interessante a imprensa brasileira, de quem esperamos ao menos que nos reporte fatos de acordo com interesses tanto brasileiros quanto internacionais, manterse automaticamente alinhada com a imprensa internacional, limitandose, muitas vezes, ao papel de mera distribuidora de notícias. Heródoto Barbeiro, historiador e jornalista, nos diz, em artigo publicado em maio de 1999 no Observatório da Imprensa, edição para a Internet: O caso do enclave de Kosovo é um exemplo de divulgação de uma situação específica da ex-Iugoslávia que, se fosse deixado apenas para a imprensa brasileira, não teria o destaque e a importância que tem, nem a OTAN estaria pressionando tanto a ponto de fazer uma retaliação militar. Recentemente, um vendaval na América Central matou milhares de pessoas e, no entanto, a mídia brasileira deu pouco destaque à tragédia. Notícias e imagens não faltaram, ainda assim quase nada foi divulgado. Talvez se a tragédia tivesse acontecido na Bélgica... A ação da mídia não quer dizer que o leitor, ouvinte, espectador, audiência ou público é inerme, passivo. Mas é preciso destacar que os meios de comunicação, informação e análise organizados na mídia e na indústria cultural agem com muita força e preponderância no modo pelo qual se formam as consciências pelo mundo afora (grifo meu). E mais: A globalização da mídia destaca cada vez mais a cultura da imagem, ou da televisão. Alguém já disse que o que não aparece na televisão não existe, outros questionam se somos cidadãos ou espectadores... E isto vale para produtos e marcas de consumo, partidos políticos e religiões. (...) As multinacionais de comunicação são as que mais colaboram para o enfraquecimento dos Estados nacionais, nascidos na modernidade e consolidados na época contemporânea (grifo meu). 74 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS São as que mais influenciam, pois seu business é a difusão de notícias e entretenimento. Reproduzem os objetivos e práticas das nações capitalistas desenvolvidas, ou centrais, e criam ou consolidam conceitos globais. Ao mesmo tempo em que contribuem para a formação de uma opinião pública globalizada, ganham dinheiro e poder com isso. Uma maior consciência global seria um transtorno sem fim para determinados interesses políticos e econômicos. Muitos deles se misturam ao ponto de que, muito provavelmente, seu principais beneficiários não mais tenham plena consciência dos seus objetivos. Fica prevalecendo o exercício do poder pelo exercício do poder. Se este ponto de vista tiver algum fundo de verdade, teremos a mais cabal demonstração da insanidade25 que move muitas decisões no mundo atual. Mas isto é um assunto que vai longe demais. De qualquer modo, serve de ponto de partida para sua própria análise. Que tal, agora, você escolher aleatoriamente uma notícia estampada num jornal ou divulgada pela TV e tentar descobrir o que poderá haver por detrás? Faça este exercício. Será que o ocorrido terá sido exatamente o que está ali relatado? A imprensa mais moderna costuma alardear sua imparcialidade, mostrando ‘os dois lados da notícia’. Mas é bom saber que, há milhares de anos, os chineses já diziam que toda história tem três versões: a minha, a sua e a verdadeira26. Em suma, pense. Erre. Acerte. Mude de opinião quantas vezes achar que deve. Acredite que seu maior patrimônio é sua capacidade de produzir e fazer circular ideias. Esta é a sua garantia de liberdade. 25 A Philip Morris, multinacional do fumo, acaba de ultrapassar as últimas fronteiras da loucura, divulgando uma nota (julho de 2001) em que afirma ter contribuído para a redução de despesas previdenciárias da República Tcheca. O argumento é de espantar: já que os cigarros matam, o tesouro tcheco estaria economizando uns tostões em pensões e aposentadorias. Que bom! Fica a sugestão aos traficantes de drogas em geral: alegando a mesma coisa, quem sabe se eles não poderão se valer de algum benefício dos governos? 26 Veja, a este respeito, o capítulo que dá título a este livro. 75 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Liberdade é a pré-condição para se adquirir a maturidade necessária à própria liberdade, não um presente a ser concedido quando tal maturidade tenha sido alcançada. Immanuel Kant Algumas palavras de Noam Chomsky: ‘O cidadão só tem uma maneira de defender-se do sistema de propaganda: o de adquirir algum controle sobre sua vida, vencendo o isolamento e organizando-se. As ideias da livre associação, do controle popular das instituições e de derrubada das estruturas autoritárias são o caminho da liberdade e da democracia.’ Exercitando nossa capacidade crítica, mantemos as coisas sob controle. Será demais imaginarmos que poderemos controlar a avidez de alguns pelo poder da informação, a ponto de termos certeza absoluta de que a informação que nos chega é o menos contaminada possível? Será um sonho? Mas o que é o sonho senão a mais doce forma de uma ideia? E, como já vimos, não é exatamente esta nossa capacidade de idealizar que nos diferencia dos demais seres vivos, inclusive dos tais protozoários das águas abissais? Se nos esforçarmos em realizar o que sonhamos, podemos, portanto, construir um mundo mais doce. Voltando ao início deste capítulo, o que devemos fazer para preservar nossa capacidade de gerar e fazer transitar as ideias, garantindo nossa sobrevivência enquanto indivíduos livres e íntegros? Qual é o esforço que temos feito, individualmente, para obtermos ideias próprias, sem medo de errar? E se, adiante, descobrirmos que estávamos errados, excelente! Teremos a oportunidade de buscar e testar novas ideias. Por tudo isso, vamos, ao menos, pensar um pouco. 76 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS CENSURA Não concordo com uma única de suas palavras. Mas daria minha vida para defender seu direito de dizê-las. Voltaire, em correspondência a Rousseau Teoria da comunicação; bê-á-bá da matéria: toda comunicação tem uma mensagem, um meio, um emissor e um receptor. Bê-á-bá 2: existe uma figura que pode prejudicar parcial ou integralmente a comunicação, que é o ruído. Qualquer coisa que afete um dos nossos cinco sentidos e que, em maior ou menor grau, prejudique a realização plena da comunicação será um ruído. É o caso da censura27, o ruído absoluto. Haverá quem diga que censura não pode ser ruído porque impede a existência da comunicação; porém, quero lembrar, existe sempre a possibilidade de censura parcial. A censura, evidentemente, é praticada por um censor. Este sujeito outorga-se a si mesmo (ou lhe é outorgado) o direito de interferir na comunicação, no trânsito das ideias, conforme sua conveniência. Sua mente funciona mais ou menos assim: ‘você deve ser conduzido para o caminho que eu considero bom para você ou melhor para os meus propósitos. Porque você é um idiota nãopensante que carece ser orientado para agir de acordo com as normas que eu, censor, acredito ou represento. E tenho dito.’ O censor que atua assim nos meios de comunicação não passa de um serzinho desprezível e repugnante. E, por favor, caro leitor, não considere censor apenas aquele elemento histórico que invadia redações de jornais para dar pau nas reportagens e, às vezes, recomendar iguais pauladas nos jornalistas. Ele continua existindo neste momento, embora não mais afeto à violência física, mas ainda travestido de guardião de uma bobagem qualquer, como a defesa da moralidade abalada, da religião 27 Pode parecer incrível, mas não considero anacrônico falar em censura nos dias de hoje. 77 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS em perigo, deste ou daquele princípio de conduta, etc. Nada contra defender-se ideias, mas tudo contra empurrá-las goela abaixo do alheio. O grande problema é que o censor podemos ser eu e você. Por reprimir a priori qualquer manifestação espontânea de pensamento que nos pareça de alguma forma estranha, matamos impiedosamente o que poderia vir a ser um raciocínio altamente criativo. Em bom português, estaremos deixando que uma magnífica possibilidade de solução de um problema vá solenemente para o esgoto. E quando somos censores de nós mesmos, neste execrável processo que recebe a alcunha de auto-censura, aí fodeu de vez. Na propaganda isto acontece muito. ‘Acabo de ter uma ideia fantástica. Mas é melhor não apresentar, porque o cliente não vai aprovar. O feijão-com-arroz é mais seguro’. Tudo bem, continue com seu sexo papai-e-mamãe. Quanto ao jornalismo, só posso pensar em quantas grandes matérias deixaram de ser editadas por esta mesma razão. Sacou? Então, já chega. Censura não merece mais do que estas poucas linhas28. 28 Êpa! Censurei a censura. 78 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS COMO VEJO O ENSINO DE COMUNICAÇÃO E que é, a meu pensar, para que bem se viva, A escola da experiência a mais educativa. Moliére Por pouco mais de quatro anos, fui professor em algumas faculdades de comunicação social; duas, tidas como de primeira linha, e outras duas ainda sem maior reconhecimento, digamos, público. Embora minha experiência, se comparada à da maioria dos colegas com quem convivi no período, possa ser considerada pequena (duas aulas por semana, à noite, contra incontáveis aulas dos outros professores ao longo de toda a semana), mesmo assim pude observar claramente algumas ocorrências dignas de nota. Antes, porém devo deixar muito claro que minha amostra resume-se às tais quatro escolas em que lecionei, e mais algumas outras que visitei por razões variadas. Se este empirismo destrói qualquer possibilidade de análise com rigor científico, na via oposta me deixa à vontade para lembrar que, no mais das vezes, verdades científicas nascem da observação pura e simples, vulgo hipótese. E, tenho muitas razões para supor, o ensino superior de comunicação social, em particular os cursos de publicidade & propaganda, não vai lá muito bem em qualidade de oferta de informação e formação profissional. Além disso, sabe-se, o ensino superior em geral tem-se caracterizado, de um lado, pelo sucateamento de muitas universidades públicas; de outro, pela extrema mercantilização praticada por várias instituições particulares. Há, é óbvio, as tais honrosas exceções. Mas abrem-se faculdades como são abertas padarias. Talvez mais faculdades do que padarias, porque, mesmo para vender pãezinhos é necessária alguma demanda reprimida nas imediações do ponto-devenda (algo que se caracteriza, entre outras coisas, por concorrência insuficiente), o que não acontece necessariamente com instituições de ensino: se o curso de publicidade não der certo, tudo bem; ‘a gente lança um de fisioterapia’. Se as normas do Ministério da Educação não 79 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS dão margem à leviandade da forma que acabei de descrever, também não há grandes indicativos de que estejamos muito longe disso. Posso parecer intolerante, mas sempre quis acreditar que um curso superior fosse absolutamente indispensável à boa formação de um publicitário (ou de um jornalista). No entanto, alguns publicitários dignos de todo respeito profissional já disseram que três meses em uma agência de propaganda valem mais do que quatro anos de faculdade. Quando ouvi este tipo de comentário pela primeira vez, discordei. Hoje, lamentavelmente, vejo-me forçado a concordar inteiramente. Não me restam muitas alternativas. A experiência me levou a uma realidade distante da que enfrentei, muitos anos atrás, quando quem estava nos bancos escolares era eu. Minha turma – e as demais contemporâneas – era briguenta, no sentido de ser exigente para consigo mesma e para com os professores e instituição. Assuntos tratados em aula eram discutidos com fervor. O conhecimento geral que trazíamos, embora longe de ser um primor em erudição, era grande o suficiente para estimularmos os professores a pisarem no acelerador; tínhamos – sintoma de uma época – a bagagem escolar necessária para acompanhar, por conhecimento prévio ou boa capacidade analítica e de dedução, quaisquer que fossem os novos temas apresentados em sala de aula. E, suprema graça divina, os professores eram normalmente gente do ramo, que não apenas diziam o que o curriculum escolar exigia, mas também para quê serviriam aquelas informações todas. Havia, em aula, a clara sensação de estarmos em franca manipulação prática da profissão. Mais tarde, fui convidado a dar aulas e, entre outras razões, acreditando poder encontrar turmas desafiadoras como a minha, aceitei a tarefa, pronto para enfrentar as feras. Mas dei de cara com uma imensa, indescritível e insolúvel pasmaceira. O objetivo da rapaziada era, via de regra, o diploma. Só o diploma, nada além do diploma, este instrumento perfeitamente inútil, desnecessário, para acesso ao mercado de trabalho da propaganda. A indolência com que a maioria dos alunos assistia às aulas (minhas e de todos os outros professores; tomei o cuidado de checar) talvez pudesse ser explicada pelo péssimo preparo intelectual das 80 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS turmas. Não raro, havia a necessidade de reposição de conhecimentos do ensino secundário. Coisas básicas como regra de três, equações simples, notas históricas, conceitos elementares de geografia, fatos e acontecimentos do dia-a-dia, etc. Esta reposição fazia o papel de pé no freio dos cursos, para prejuízo evidente dos alunos. Alguns professores preocupavam-se; outros, não. Saí da primeira faculdade em que dei aula por haver desclassificado seu vestibular, chamando-o peneira de malha grossa. Tanto quanto os alunos, professores devem ser acompanhados de perto pela direção da instituição. Mas nunca coordenadores de curso vieram ter comigo para averiguar os conteúdos que eu aplicava às classes (exceto a Prof a. Laura Gallucci, da ESPM). Um deles, em particular, me disse literalmente ‘diga em aula o que você quiser. Esses caras não estão nem aí mesmo!’ Se eu fosse um demente ensandecido falando absurdos, ninguém viria a saber. Certa vez, convocado a contribuir com a reforma curricular de uma instituição tradicional no ramo da comunicação social, sugeri que a cadeira Direção de Arte fosse incluída com urgência no curso de Publicidade. Para meu terror, a diretora considerou a sugestão inválida pois ‘já temos um laboratório de fotografia digital’. Caso o leitor não esteja acostumado à terminologia publicitária, analogamente posso exemplificar que alguém sugeriu um curso de pilotagem e foi-lhe argumentado, em contrapartida, já existir uma oficina de carburadores. Sintoma claro do fracasso do modelo, é que, curiosamente, faculdades de comunicação fazem péssimos comerciais de si mesmas. Qualquer publicitário em início de carreira (preferencialmente o que trabalha em agência) pode apontar com facilidade uma incontável sequência de bobagens técnicas29 nos anúncios com que faculdades tentam arrebanhar suas ovelhas. Ora, já que metem-se a ensinar, deveriam saber fazer muito bem, não é mesmo? O mais importante, sem dúvida, é a omissão quanto às reais possibilidades no mercado de trabalho. Por estarem resumidas, muitas das faculdades, a simples mercadoras de conhecimentos (duvidosos), 29 Eu também já fiz péssimos anúncios para instituições de ensino. A preocupação de boa parte deste pessoal é o umbigocentrismo, onde o que menos importa é falar com o público-alvo de modo apropriado. 81 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS os esforços no sentido de orientação vocacional e encaminhamento profissional são nulos. Fica, enfim, a triste sensação de que alunos enganam professores, que enganam escolas, que enganam alunos que, no final das contas, enganam apenas a si mesmos. Convicto de que escolas de comunicação social não formam publicitários, fundamentalmente pelas razões expostas acima, insisto em repetir: perdem tempo suprindo falhas dos ensinos fundamental e médio, e oferecem currículos escolares normalmente deficientes somados a atividades práticas que são uma piada. Hoje em dia, nas condições culturais em que nos encontramos, as pessoas gastam muito tempo tentando reencontrar a si próprias, em saber o que são, o que elas querem, mas, frequentemente, descobrem as respostas tarde. Muitas pessoas envelhecem sem realizar aquilo que gostariam de ter realizado. Edgar Morin Mas criticar, simplesmente, não basta. Acredito ser meu dever valer-me de meus pontos de vista para tentar contribuir. Por isso, andei pensando em um modelo de curso de publicidade (que, imagino, também valha para o jornalismo) que atenda, de fato, àqueles requisitos fundamentais que o mercado de trabalho e, acima de tudo, a satisfação pessoal exigem. Um modelo extremamente simples. Minha escola ideal de comunicação, em primeiro lugar, concederá, quando muito, um simples certificado de participação no curso, pois, como já vimos, pode-se prescindir perfeitamente do diploma formal (também acho um absurdo a exigência de diploma para jornalistas. Diplomas em jornalismo não passam, a meu ver, de passaportes para acesso a discutíveis reservas de mercado). A primeira barreira que o candidato ao curso deveria enfrentar seria o exame de consciência. Uma escola digna providenciaria profissionais aptos em aconselhamento vocacional para, juntamente a quem já exerce a profissão, conversarem com os pretendentes, fazendo-os ver todos os prós e os contras que irão enfrentar no futuro próximo. Depois, já no decorrer das aulas, o aluno passaria a ter contato 82 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS muito íntimo com filosofia, antropologia, sociologia, história geral, história da arte, literatura em verso e prosa, política nacional e internacional, psicologia, administração, geografia física e econômica, direito, estatística, música, economia, religiões e assuntos mundanos. De um curso de quatro anos, estes temas ocupariam três anos e meio. Os seis meses finais, aí sim, seriam ocupados com a apresentação das técnicas específicas da profissão. Seis meses são mais que suficientes para tal. Conceitos técnicos, em comunicação social, são apenas ferramentas de trabalho. A matéria-prima (esta, sim, indispensável) não é outra coisa senão a informação generalista e ampla. Na minha escola ideal de comunicação, no entanto, mais importante que fornecer informações à farta, seria orientar os alunos a desenvolverem seus métodos de busca destas mesmas informações. Criar em suas cabeças algo como um fichário de biblioteca – porque é virtualmente impossível trazer milhares de assuntos, com profundidade, na memória – para que, à medida das necessidades, saibam exatamente onde obter a informação desejada. Ajudá-los a desenvolver a capacidade de encadear com alguma harmonia dois ou mais raciocínios, subsequentes ou não. O estudo prévio das matérias que citei facilitaria imensamente o processamento das informações conseguidas. Isto, quero crer, é tão mais importante à medida em que cresce a facilidade de acesso à informação (leia-se Internet, principalmente) e a própria produção de conhecimento. Quem, hoje, ensina estudantes a procurar, diante de infinitas opções, as fontes de consulta mais adequadas? Quem lhes dá um guia seguro? O modelo tradicional de ensino não me parece, no momento, dos mais bem aparelhados para a tarefa. O que obteríamos com isso? Publicitários (e jornalistas) recém-formados aptos a interpretar com razoável profundidade o mundo que os rodeia. Garotos prontos a entender mais claramente o que se espera deles e no que eles podem contribuir para com a sociedade de um modo geral. Estes garotos, se não chegarem alguns deles a ser sucessos explosivos em suas profissões estarão, ao menos, isentos de muitas das frustrações a que o preparo acadêmico inadequado normalmente conduz. 83 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 84 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS II SOBRE PROPAGANDA 85 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 86 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS CIGARROS: NA COMUNICAÇÃO, O MINISTÉRIO DA SAÚDE PERDE Os maiores triunfos da propaganda não foram obtidos fazendo alguma coisa, mas deixando de fazêla. A verdade é grande, mas ainda maior é o silêncio acerca da verdade. Aldous Huxley Durante uma palestra que fiz, certa vez, um participante perguntou o que eu achava da proibição à propaganda de cigarros. Na hora, citei o argumento do CONAR e da ABA30, de que um produto vendido licitamente não poderia sofrer este tipo de sanção, de que isto seria inconstitucional, etc. Também comentei, claro, que eu, embora publicitário e fumante, não me incomodaria nem um pouco se os fabricantes de cigarros tivessem seu acesso à grande mídia definitivamente restringido, a exemplo do que vem acontecendo em outros países. Mas era apenas uma opinião pessoal. Passei a considerar mais atentamente o assunto, tentando entender porque a batalha ‘propaganda de cigarros versus propaganda contra cigarros’ dava ampla vantagem à primeira contendora. Eis que, um dia, na rua, vi um outdoor do Hollywood, com um magnífico carro de Fórmula Indy e, eureka!, caiu a ficha: aquele cigarro me embarcava num carrão de corrida e fazia de mim um campeão; o Sr. José Serra, atual ministro da saúde, com sua cruzada anti-tabagista incansável, fazia constar do mesmo outdoor a inscrição de que fumar dá câncer de pulmão. Em outras palavras, ele queria me embarcar num caixão de defunto. Prefiro um autódromo ao cemitério. Qualquer estudante de comunicação recém-formado sabe, ou deveria saber, o que significa o componente psicológico na comunicação de massa. Nunca vendemos produtos a quem o consumidor é, mas a quem ele quer ser. Um dirigente da indústria automobilística, a este respeito, disse uma frase lapidar: ‘A casa mostra quem o consumidor é; o carro, quem ele quer ser’. Da mesma forma, também não situamos o 30 Respectivamente, Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária e Associação Brasileira de Anunciantes. 87 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS consumidor onde ele está, mas onde ele gostaria de estar. A realidade já basta por si mesma, não é mais necessário mostrá-la. E a propaganda tem a função de levar o consumidor, subconscientemente, a um mundo onírico, belo e perfeito, o melhor dos mundos. Assim, dominamos com maestria técnicas de persuasão geralmente imbatíveis e irresistíveis à maior parte dos cidadãos comuns. Exatamente por isso, em um comercial de televisão, o Hollywood também me leva de helicóptero a uns lugares maravilhosos, acompanhado de mulheres sensacionais; de quebra, faz de mim (psicologicamente) um gostosão, o Paul Newman da Mooca. Carlton, além do raro prazer, me oferece, nos incomparáveis layouts dos seus anúncios, alta qualidade visual para brindar meu senso estético; pôxa, como sou chic fumando Carlton! E o Free, mais moderninho, resolve de vez o problema: ‘Cada um na sua’. Quer dizer: não me encha o saco. Sou fumante, e pronto! Toda esta comunicação me dá o aval necessário para continuar com minhas inocentes baforadas. Curiosamente, a propaganda do governo insiste em nos aterrorizar: ‘Sabe aquele cowboy do Marlboro? Morreu de câncer.’ dizia um anúncio recente. Ora, direi eu, azar dele! Não, leitor, não sou um cínico de coração empedernido. O que quero dizer é que, lá no subconsciente de todos está a descrença de que algum mal possa nos afetar de modo tão contundente. Quem se dana é sempre o outro. Queremos sempre firmar a melhor autoimagem. O anúncio anti-Marlboro, inclusive, me fez lembrar de uma piadinha idiota de humor negro, onde o Joãozinho pergunta à Mariazinha se ela sabe o que ele tem na mão. ‘Chicletes?’, pergunta ela. ‘Errou! Paralisia’, responde o garoto, mostrando a mão torta. Se um anúncio consegue evocar este tipo de comentário, há nele algo de seriamente errado. Embora com propósitos louváveis e execução técnica muitas vezes impecável, a comunicação do governo está, mais uma vez, essencialmente errada (o que, em verdade, não é muito de espantar). Os publicitários que fazem anúncios assim – e o ministro que, em 88 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS última instância, os aprova – deveriam lembrar de que será muito mais eficaz vender os benefícios de não fumar que os malefícios do cigarro. O não-fumante poderia pilotar por mais tempo o carrão de corrida, ir bem mais longe e vencer, graças à sua melhor forma física, porque dirigir por duas horas a 400 Km/h realmente exige ótimo preparo. Idem para o cowboy abstêmio da nicotina. O gatão do helicóptero daria, tranquilamente, umas cinco naquela gostosa do comercial. E o papo-cabeça do Free revelaria, de vez, seu ridículo. Honestamente, não entendo porque o governo nunca adotou uma linha de atitude positiva, em vez deste terrorismo pessimista. Acho que os resultados seriam infinitamente melhores. A linha da atitude positiva funcionou muito bem em minha própria casa. Meus filhos adolescentes, embora com pai e mãe fumantes, hoje são antitabagistas convictos, simplesmente porque, quando quiseram começar a fumar, mostrei a eles (adaptando algumas técnicas publicitárias à psicologia do lar) que não fumar era muito melhor negócio. Fumar só pode ser bom negócio para fabricantes de cigarros, agências de propaganda e, obviamente, para o próprio pessoal do governo, pela estonteante arrecadação de impostos. Até desenvolvi uma máxima a este respeito: enquanto o Ministério da Saúde adverte, o Ministério da Fazenda se diverte. Talvez, por isso mesmo, se faça uma comunicação que, no final das contas, não estimula quase ninguém a deixar de fumar. 89 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 90 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS MCDONALD’S E O JOGO DOS SETE ERROS Dois hamburguers, alface, queijo, molho especial, cebola, pickles, um pão com gergelim. (Letra de jingle publicitário que, muito após o lançamento, teve o plural de hamburguer corrigido para hambúrgueres) Comunicação empresarial, mal comparando, é como pintura de automóvel: um simples arranhão pode desvalorizar o carro inteiro. O que deixa a coisa sempre mais interessante é como muitas empresas, independentemente do seu porte ou experiência no trato com o público, cometem pequenos ou grandes equívocos. É muito curioso o desleixo de alguns administradores de comunicação e marketing, particularmente os que trabalham nos principais anunciantes. Talvez, inebriados pelo maior apelo que determinados meios de comunicação naturalmente apresentam, concentram-se na aprovação de cada detalhe que tais meios, como TV ou revista, envolvem (sabe como é: dá um bom ibope pessoal), e descuidam de instrumentos de comunicação tidos como de menor appeal, mas que atingem número igualmente excepcional de consumidores. McDonald’s, por exemplo, tão profícuo na distribuição de abraços e sorrisos na mídia TV, merece um puxão de orelhas pela desatenção com a mídia de ponto-de-venda. As toalhas de papel que recobrem as bandejas da rede trazem, este mês (janeiro de 2001), mais uma série de curiosidades, como é praxe desta empresa, para ‘informação’ da garotada, consumidora ávida de seus Big Macs. Agora é a vez dos principais eventos ocorridos no século que findou. Em uma série de quadrinhos, vão-se dispondo pequenas notas, da primeira transmissão de rádio (ano 1901) até a manipulação dos genes (ano 2000). Lendo rapidamente seu conteúdo, verifiquei que ali se desfia uma série de inutilidades informativas, como o ano em que foi fundada a tal rede de lanchonetes como um dos mais importantes do 91 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS século (caramba, como eu pude viver até hoje sem saber disso?). Mas o mais curioso foram três pequenas pérolas dignas de nota. Em primeiro lugar, a obra documental McDonaldiana é pomposamente chamada de ‘Os cem anos que fizeram o século XX’. Eu gostaria de saber se, sob a óptica dos responsáveis pela comunicação institucional e publicitária da rede, um século poderia ser composto por alguma coisa outra que não cem anos. De que mais se compõem os séculos do McDonald’s? De noventa e nove anos? De dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola, pickles, num pão com gergelim? Ao que me consta, os séculos, desde que foram concebidos como tal, representam conjuntos de cem anos e, ao que tudo indica, assim deverá continuar, per seculae seculorum. Caminhando pela sinuosa sequência de informações, vemos que, em 1911, exploradores chegaram pela primeira vez ao pólo norte. Um dado inteligentemente ilustrado com figuras de pinguins, simpáticos animais que, para tristeza dos enciclopédicos comunicadores do McDonald´s, teimam em existir apenas no pólo sul. Bem, talvez tenha havido, recentemente, por obra das sempre evolutivas artes da engenharia genética, alguma espécie de mutação dos ursos polares (que não existem no pólo sul), e que acabaram se transformando em aves, sabe-se lá. Avanço mais alguns anos e chego a 1935, ano em que, segundo eles, foi ‘descoberto’ o Nylon, composto sintético do qual deve haver enormes jazidas naturais espalhadas pelo planeta, tal é a quantidade de Nylon que se usa hoje em dia. Seria bastante mais adequado se dissessem que este material foi ‘inventado’, não descoberto. A propósito, o nome Nylon, saiba a inteligentsia publicitária McDonaldiana, é uma homenagem de seus inventores às cidades de New York e London. Parei em 1935. Com medo de descobrir mais. Acredito que, na verdade, o citado material de ponto-devenda é um daqueles jogos dos sete erros que a garotada que vai bem na escola resolve com facilidade. Eu, quarentão, só descobri um: o da prestação do desserviço. Depois do espetacular e surpreendente século de cem anos, dos terríveis pinguins mutantes do pólo norte e da descoberta das jazidas de Nylon, que tal a rede lançar um novo sanduíche? Sugiro um nome: McJerk. 92 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS PROPAGANDA ENGANADA Cínico é um homem que sabe o preço de tudo e o valor de nada. Oscar Wilde O aumento da propaganda comercial no primeiro terço do século XIX, na Inglaterra, irritou os jornais mais respeitáveis como o Athaeneum e o Frazer’s que se manifestaram revoltados por terem de anunciar graxas para sapatos e pó dentifrício nas mesmas linhas que a literatura: o Athenaeum chegou a protestar, em editorial, que ‘por força de tópicos externos’, até ‘o mais imbecil maço de papéis para lixo pode ser posto obrigatoriamente à venda’, e que ‘poderia ocorrer que Day e Martin, Rowland, Eady, Warren (anunciantes) e outros da mesma laia não pudessem esbanjar tanto dinheiro no elogio a seus óleos, livros, pílulas e graxas se não houvesse uma espécie de seres humanos tão vorazes em acreditar.’ Roberto Menna Barreto, Cultura de Verniz II. Muito se discute a propaganda enganosa, aquela que é feita com o propósito deliberado de mentir, de induzir ao erro através da criação de expectativas além de falsas. Em primeiro lugar, é indispensável estabelecer os critérios com que vamos definir a expressão ‘enganosa’ quando relacionada à propaganda. Por que, sob um aspecto extremamente rígido, poderíamos caracterizar toda propaganda como enganosa. Basta que se tome, por exemplo, o simples fato de que qualquer produto ou serviço anunciado tenta nos convencer, implícita ou explicitamente, de que ele é ‘melhor’ do que seus concorrentes. Ora, por definição, só poderá haver um único ‘melhor’; todos os demais produtos concorrentes estarão, portanto, faltando com a verdade em sua comunicação. A propaganda enganosa será aquela normalmente praticada por anunciantes de pouca ou nenhuma ética e, via de regra, que assim se conduzem de ponta a ponta em seu processo institucional. Uma indústria desonesta, por exemplo, não reservará sua falha de caráter apenas à propaganda. Ela é desonesta em todo seu espectro: compras, 93 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS vendas, formulação ou projeto de produtos etc. Comumente, estas instituições são assessoradas por agências de propaganda sem maior expressão técnica, oportunistas, ou, quando se trata de agência de grosso calibre, mesmo assim, serão dirigidas por praticantes convictos da renúncia moral. Porém, charlatanismo existe em todas as profissões; esse pessoal é caso de polícia e não merece mais que as linhas acima. O que às vezes me incomoda é ver o contigente de bons profissionais de agências e anunciantes caírem no que me parece uma espécie de armadilha. Sejamos francos: uma parte razoável daquilo que nós publicitários (e, algumas vezes, também os jornalistas) escrevemos e ‘leiautamos’ é mentira, no sentido de suprema maquiagem. Está mais do que provado que as pessoas em geral, consumidores em particular, querem ser ‘enganadas’. E, ‘enganá-las’ é, em última análise, nosso ‘dever de ofício‘. Mais e mais, publicitários, principalmente os novos na profissão, são levados a acreditar nisso, particularmente em virtude da sonegação da informação ética que lhes é transmitida na forma de verdades da profissão (nunca é demais lembrar que Ética é a ciência da Moral, e que esta última é a coletânea de hábitos e costumes que regem o comportamento do indivíduo para que este viva melhor com e para a coletividade). Todas as sociedades modernas têm duas espécies de contrato social que regem a convivência entre seus cidadãos e instituições. Um, subjetivo, é o conjunto de hábitos e costumes ao qual chamamos moral. Outro, objetivo, é o conjunto de leis escritas. É este o Espírito do Direito: cooperar com o aperfeiçoamento do convívio social, do bem-estar dos cidadãos. Eu, em uma ocasião qualquer Fazemos anúncios dourados, mostramos que o imóvel é maior do que parece e que sua localização é inevitavelmente perfeita (nem um idiota completo acredita que todos os bairros e ruas de São Paulo são perfeitos, como quer fazer crer a propaganda imobiliária), que o sabonete é milagroso para a pele e que vai fazer de você a mulher dos sonhos, que determinado leite é o que há de mais saudável 94 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS para nossos filhos. Também mostramos que o automóvel confere o status que não teríamos necessariamente em razão dos nossos próprios méritos pessoais. Anunciamos produtos e serviços que normalmente não agregam absolutamente nada à condição de seres humanos que tanto apregoamos ter (é duro ser publicitário...). Você, leitor, poderá imaginar que estou fazendo um tremendo juízo de valor sobre nossas atividades e nossa conduta. Mas não. Por incrível que pareça, acho que devemos continuar fazendo o que fazemos. Só que não da forma que fazemos. Temos em nossas mãos, pelos meios de comunicação, mais poder que os generalecos de qualquer revolução jamais tiveram com seus canhões e soldadesca. Temos o poder da informação. Transformamos hábitos, destruímos e construímos costumes, criamos valores. Muitos deles, falsos valores31. Há pouco tempo (escrevo em abril de 2001), só para citar um exemplo, determinado fabricante de rações para cães deixou-se seduzir pelos argumentos contidos em campanha publicitária de gosto, conteúdo e eficiência técnica duvidosos apresentada por sua agência de propaganda. A campanha alertava que uma família consternada procurava por sua cadela de estimação, recentemente desaparecida. Muitos pensaram tratar-se de algum milionário excêntrico o suficiente para gastar uma fortuna em veiculações de televisão, na tentativa de reaver o animal. Outros, indignavam-se: ‘com o dinheiro que foi gasto, dava para tirar um menino da rua!’. Nada disso. Era apenas uma ‘sacadinha’ cretina que nos dizia que o cão, na ausência de determinada marca de ração, havia preferido fugir de casa. A infeliz brincadeira moveu milhares de pessoas a solidarizarem-se com a família em prantos (família e lágrimas obviamente fictícios); foram milhares de pessoas reais que sofreram por ver seu semelhante sofrendo igualmente e, ingenuamente, estenderam suas mãos solidárias. Mesmo alguns publicitários experientes que conheço chegaram a ter uma ponta de dúvida se 31 Existe u m a c orr e n t e de ntr o da pro p a g a n d a qu e adv o g a qu e anú n ci o s nã o cria m há bit o algu m , ap e n a s reflet e m o qu e já é, d e c ert a for m a , c o n s a g r a d o na s o ci e d a d e . O julga m e n t o é s e u , leit or. 95 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS aquilo tudo era verdadeiro ou não. E alguns ‘executivos’ na agência de propaganda e nos escritórios do anunciante certamente gabando-se do excelente recall da ação publicitária. Isto é imoral. Não temos, sob nenhum argumento, o direito de manipular corações e mentes de gente que conhecemos e, muito menos, de quem nunca vimos. A mesma espécie de propaganda que dá pensamento e livrearbítrio aos cães, os nega ao ser humano. Desculpem-me, senhores fabricantes de ração, mas eu e todas as pessoas que conheço temos senso crítico mais que suficiente para concluir que vocês escolheram mal sua agência de propaganda e, não bastasse, aprovaram os anúncios errados. Esta conduta faz com que pareçamos, nós publicitários, ser um bando de privilegiados, pagos para torcermos as mentes humanas ao nosso bel-prazer e em função dos interesses de quem nos paga. De quem nos paga muitas vezes regiamente. Mas, na contrapartida, o que nos impediria de fazer propaganda convincente, porém não mentirosa? O conceito de propaganda enganosa previsto em lei é absolutamente ridículo. Nós sabemos, muito mais que os legisladores ingênuos de plantão, que temos o poder da mentira verdadeira. Porque nunca poderá existir lei alguma que consiga bloquear as reações psicológicas (e seus desdobramentos) estimuladas por magníficas técnicas de convencimento; será sempre impossível proibir por decreto o poder da persuasão. A propaganda é, sem dúvida, a atividade humana que reúne a maior tecnologia para persuasão individual e, preferencialmente, de grupos. Qual será, meu Deus, a dificuldade de assumirmos o papel de crazy people e dizermos puramente a verdade através das técnicas maravilhosas que conhecemos e dominamos? A Volkswagen fez isso ao entrar no difícil mercado norte-americano, na década de sessenta, e com tremendo sucesso comercial. Em pouco tempo, o Fusca seria o líder de vendas de importados pequenos. Título de um dos anúncios: ‘É feio, mas leva você lá.’ Nossa imensa habilidade em dar excelente forma à mensagem nos dispensa perfeitamente da fraude no conteúdo. 96 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS É na perseguição ao impossível que se alargam os limites do possível. Clóvis Rossi, em editorial na Folha de S. Paulo de 18/5/2001. E o que isto tudo tem a ver com as nossas vidas, a minha e a sua? Óbvio: vivemos em um pequeno planeta onde a maioria das pessoas passa por sérias dificuldades econômicas; milhões não têm sequer o que comer. A água, elemento que, junto ao ar faz da Terra azul, já não é mais sinônimo de recurso abundante e, portanto, de vida abundante: começa a se delinear no horizonte político a ameaça de conflitos por sua posse. Nossos antepassados mais recentes, pais e avós, nos ridicularizariam se, voltando ao passado, lhes disséssemos que, dentro de poucos anos, estariam correndo perigo a saúde da água, do ar e do verde. E das pessoas. Sempre me pergunto o que temos realmente feito de útil, não por elas em si mesmas, mas pelo que elas representam enquanto continuidade da nossa espécie? As esmolas dadas a um mendigo o mantém vivo hoje para que sua miséria seja prolongada amanhã. Schopenhauer Acredito firmemente que chegou a hora de iniciarmos um período de humanismo como a história jamais registrou. Um humanismo onde as pessoas sejam mais respeitadas, e que, ao menos na comunicação jornalística e publicitária, as convençamos através da inteligência, do bom humor e do estímulo à sagacidade, não pelas vias escusas, medíocres e fáceis que muitos de nós têm usado. Vamos brincar de ser inteligentes. Vamos, finalmente, mudar alguma coisa. Nós, publicitários tão poderosos que mandamos no mundo atual, que somos o capitalismo e seus tentáculos, temos uma oportunidade de mostrar ao que viemos, a qual senhor serve nossa inteligência. A qual senhor serve, de fato, nossa inteligência? 97 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Qual o problema em dizer que o produto é bom mas não é perfeito? Qual será, por todos os deuses!, o problema em admitir que o produto é concebido e fabricado por seres humanos iguais a cada um de nós, com todos os nossos defeitos e virtudes? Qual o problema, enfim, em respeitar integralmente, sem a mínima margem de tolerância para a esperteza, o outro ser humano? Ora, até quando vamos continuar tão arrogantes, achando que somos mais espertos que o homem comum? Que tal tratá-lo com, no mínimo, a mesma inteligência que estamos convencidos em ter e com que queremos ser tratados? A Propaganda Brasileira (sempre escrevo isto em maiúsculas) é tida e havida como uma das melhores do mundo. Então, temos autoridade técnica e moral mais que suficientes para mudar o mundo da Propaganda. Para mudar o mundo inteiro. Façamos isso. Pelo menos em nome dos nossos herdeiros e da continuidade de alguma coisa que valha a pena. 98 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS AUDIÊNCIA (DES)QUALIFICADA Na briga entre Faustão e Gugu quem apanha é você. Título (resumido) de anúncio da TVA, operadora de TV por assinatura Televisão é um meio que, por magnetizar todas as atenções da sociedade, merece igualmente todas as discussões do mundo. O IBGE divulgou, recentemente (abril de 2001), que algo em torno de 98% do território nacional já está coberto pelo sinal da TV. Mais, até, que o próprio rádio, um dia chamado de meio de integração nacional por excelência. Em matéria publicada n’O Estado de São Paulo acerca das opções de tecnologia que o Brasil está estudando para a implantação da televisão de sinal digital, o jornalista Ethevaldo Siqueira pergunta de que adianta tamanha preocupação com apuros técnicos se, em conteúdo, vivemos o que se poderia chamar de broadcast trash (expressão minha, devidamente ‘televisado’ e globalizado32). E cita o inevitável apresentador Ratinho, do SBT, como figura exponencial, crème-de-la-crème, desta tendência inequívoca à suprema podridão. A despeito da brilhante matéria, o articulista fez, a meu ver, um comentário inexato, responsabilizando unicamente os donos das redes de TV pela baixa qualidade das programações, por serem estes movidos apenas pela possibilidade de elevação de índices de audiência. De fato, cabe a eles uma parcela importante da responsabilidade. Mas também devemos entender que estes ‘profissionais’ de comunicação não passam de simples mercadores, não lhes importando muito o que vendam, desde que haja quem compre. Bons camelôs que são (e um deles, de fato, orgulhosamente ainda o é), enaltecem à grita os supostos benefícios de seus produtos; no caso, a audiência que geram para seus anunciantes. Mas que audiência é esta? Antes de mais nada, quero lembrar que veículos de 32 Globaliza d o na c o n di ç ã o de vítim a da s circu n s t â n c i a s . Mas c o ntinu o m e e sf o r ç a n d o brav a m e n t e para m e m a nt e r s e m p r e bra siliza d o . 99 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS comunicação vendem o acesso da informação que anunciantes têm a oferecer sobre seus produtos a segmentos quantitativos de mercado que venham a satisfazer os interesses comerciais destes mesmos anunciantes. Em outras palavras, nenhum veículo de comunicação vende de fato espaço quantificado em centímetros de coluna, páginas ou tempo de exibição: vendem acesso. E, quanto maior for este acesso, quanto mais pessoas estiverem expostas a determinada programação, nada mais lógico que cobrar mais caro. Surpreende que anunciantes dos mais variados portes e culturas de comunicação de massa, e suas agências de propaganda, caiam como patinhos nesta armadilha. São estes anunciantes, em última análise, os responsáveis pelo que se vê. Porque, houvesse exigência, mínima que fosse, por uma melhor qualidade de programação (quero que meu produto seja visto na melhor companhia), os mercadores da mídia girariam o timão de seus barcos televisivos, dando, talvez, uma guinada do Ratinho a Shakespeare (ok, exagerei um pouquinho). Supra-sumo da esperteza comercial, os veículos inventaram um megatério, hediondo monstrengo que atende pelo nome de audiência qualificada. Tudo, hoje, é audiência qualificada. Do Domingo Legal, deste honorável Gugu Liberato, a um documentário de efetiva qualidade da TV Cultura de São Paulo ou do The National Geographic Channel, o argumento que os veículos levam às agências é, adivinhe!, qualificação de audiência. Dizem que este show pretende atingir a faixa de 18 a 35. Idade ou Q.I.? Comentário de Frank, da dupla de personagens de quadrinhos Frank & Ernest, diante de um televisor. O papel comporta tudo, o vídeo comporta tudo e, é claro, as estatísticas comportam tudo. A enorme amplitude de facetas auditadas pelos institutos de pesquisa de audiência permite que seja sempre possível destilar um número plenamente favorável a qualquer veículo, a qualquer programa. É incrível como o filezão da sociedade assiste sempre, e simultaneamente, aos mesmos programas; e seja sempre 100 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS retratado como o ‘melhor’ público. Ao que se vê, telespectadores brasileiros já desenvolveram o dom da ubiquidade. Dois programas de emissoras diferentes, levados ao ar simultaneamente, não raro têm o mesmo percentual de público classes A e B. É curioso, mais ainda quando a soma destas audiências ultrapassa os 100%. Talvez o leitor não esteja acostumado a tratar com representantes comerciais de jornais, revistas, rádios e televisões. Mas posso garantir que é assim mesmo. Estes representantes trazem a informação da qualificação. Converse com algum deles e você sairá convencido que só temos obras-primas na mídia, e que estas obrasprimas atendem ao clamor das massas. A comunicação é de massa. A massa é unanimidade. E unanimidade é burra. Institutos de pesquisa de audiência, por sua vez, mal arranham em seus relatórios a emissão de conceitos opinativos sobre perfis verdadeiramente qualitativos de audiência. O que é esperado, pois o trabalho destes institutos não é o de tomadores de decisão, apenas o de recenseadores de informação. Seus relatórios trazem fundamentalmente números e, sabemos, números dão margem a toda sorte de interpretação imediata. A interpretação pensada, aquela que toma os dados numéricos e frios como simples coadjuvantes de decisões, bem, esta normalmente fica para a literatura acadêmica de propaganda e marketing. Alguns destes institutos também investem os tubos no desenvolvimento e manutenção de sistemas de acompanhamento de audiência em ‘tempo real’ (existirá, acaso, o tempo irreal?). Agências de propaganda e anunciantes raramente questionam com profundidade a propriedade da compra de espaços norteada exclusivamente por números: ‘Se está quantificado no relatório, basta’. A infinidade de equações matemáticas sofisticadas desenvolvidas por agências de propaganda (GRP, TARP, CPM etc.) tem uma certa aura que dá ar quase místico aos tais reports. E são estes sistemas de monitoração das preferências populares que dão tom à coisa. Como uma equipe de mecânicos das provas automobilísticas, executivos de TV ficam em seus boxes acompanhando as voltas de seus carros, onde cada segundo de 101 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS vantagem representa uma eternidade. Nos boxes dos sistemas instantâneos de aferição de audiência, cada pontinho a mais equivale a uma fortuna potencial em venda de espaços publicitários. E onde fica, finalmente, a responsabilidade social de anunciantes, publicitários e, sobretudo, das emissoras de TV? Concessões que são do serviço público, as televisões (e as rádios) deveriam trabalhar em favor do interesse público, não sobejamente do interesse DO público. São ideias diferentes. Num país de alto grau de analfabetismo, de incontáveis mazelas sociais frutos indiscutíveis da desinformação (dengue, malária, AIDS, verminoses, etc.), dar aos mercadores da mídia estes poderes é o mesmo que entregar a chave do galinheiro às raposas. Porque emissoras estão, muitas delas, nas mãos de congressistas e seus afetos (e, portanto, a serviço de interesses ainda mais discutíveis que os puramente econômicos). Convido publicitários e anunciantes a exigirem mais em qualidade de programação ao acenar sua verbas milionárias aos meios de comunicação. E não confie, caro leitor, nesta obra de ficção a que se convencionou chamar audiência qualificada, a menos que a expressão seja ampliada para audiência financeira e politicamente qualificada. Em tempo Penso, logo insisto. A discussão sobre conduta ética nos meios de comunicação é necessariamente ampla e, ao que parece, infindável, uma vez que a Ética vai-se alterando lenta e continuamente, à medida em que as sociedades dão curso a inevitáveis modificações nos seus hábitos e nos seus costumes. Em editorial que, a meu ver, prima pela exata reflexão, o jornal O Estado de São Paulo, de 30 de agosto de 2001, comenta o debate que se faz em torno da divulgação de informações sobre sequestros de pessoas, e a quais critérios obedecer em momentos assim. E questiona até onde tal divulgação poderá ser benéfica ou 102 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS prejudicial às vítimas. O assunto sequestro em si mesmo não nos cabe, aqui, comentar. Mas a matéria cita decisão judicial que condena a Rede Globo de Televisão ‘por expor a vida do garoto (nome), de 12 anos, ao não respeitar os apelos de sua família para que não divulgasse o sequestro’. O fato é que um dos sobrenomes do menino denotava sua descendência de família famosa e associada à riqueza. Ainda segundo o jornal, ‘ao noticiar o crime, o Jornal Nacional alertou os sequestradores, que indagaram ao garoto seu sobrenome’. Reproduzo o final da matéria: ‘Na sentença, o magistrado considerou que a emissora expôs de forma irresponsável e dolosa a vida de uma criança que estava em cativeiro, desrespeitando o direito à intimidade da família e da criança. No Tribunal de Justiça, onde referida ação se encontra em grau de apelação — e onde a emissora se defende alegando ter sua própria ética —, a posição crítica de alguns desembargadores já foi manifestada em frases como esta: Eles colaboram para o bom andamento do crime, acabam quase como parceiros no delito. Ou esta: É uma atitude de muita prepotência tomar a decisão de noticiar um sequestro, alardeando que isto ajuda a desvendar o caso. Isto a imprensa não sabe e não deve fazer. Realmente, a imprensa não é polícia, não tem uma onisciente linha direta para a solução de crimes que as autoridades policiais não conseguem resolver, assim como não tem o direito de pretender ter uma ética própria — no caso, uma ética do ibope — que coloque o valor do espetáculo noticioso, e seus respectivos índices de audiência, acima do respeito à vida humana.’ Ética do ibope é um eufemismo primoroso. É a ética da audiência pela audiência, sem nenhum outro parâmetro que não o dos mágicos pontinhos que sobem e descem nos monitores informatizados dos bastidores das emissoras de TV. Para desespero de alguns detratores da publicidade comercial, há uma grossa fatia de profissionais de peso praticando o jornalismo do mais puro interesse financeiro, para não dizer mais. Eis ao menos um campo onde publicidade comercial e jornalismo já não se comportam mais como água e óleo. Ética própria é, no mínimo, muita cara-de-pau. Impressionante o primarismo de raciocínio, a franca ingenuidade, de quem, seja lá 103 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS quem for — jornalista, advogado ou os próprios donos da emissora —, ouse proclamar uma determinada auto-suficiência ética. Ou será igualmente impressionante como demonstração de arrogância. Assim sendo — e considerando o poder de influência que os conglomerados de comunicação têm sobre todas as gentes, inclusive eu e você, leitor —, estaremos também aptos a declarar nossos próprios códigos de ética (sejam lá quais forem) em benefício dos nossos interesses (sejam lá, novamente, quais forem: legítimos ou ilegítimos), rasgando solenemente normas e regras, e, por que não?, leis e constituições. Esta ética própria, que é exatamente o âmago daquilo que tanto condenamos nos políticos corruptos, nos criminosos e nos meliantes em geral, está agora, e graças ao aval poderosíssimo de uma ou outra enorme cadeia de comunicação, também ao nosso alcance. Pôxa, que bom! Tudo bem: viva a esculhambação ética, legal, constitucional, moral ou doutrinária! Mas me resta perguntar o óbvio: como vou explicar aos meus filhos que este é o mundo que lhes deixo de herança? Mais que um problema pontual em si mesmo (sequestros), o espírito da matéria do jornal paulista é o questionamento dos critérios de respeito à sociedade e ao indivíduo. Coincidentemente, em data próxima à da referida publicação, chega-nos também a notícia de que o editor do periódico francês Paris Match recusara-se eticamente a adquirir fotos do presidente francês nu, obtidas por um paparazzo qualquer. A rádio CBN referiuse ao comportamento do tal editor como muito ético e digno do melhor jornalismo. O ‘Estadão’ ataca a conduta da Rede Globo de Televisão. E a rádio CBN, afiliada da própria Globo, faz elogios rasgados ao procedimento não só do editor francês, mas como a toda a imprensa daquele país. Pela conduta ética! Ou estamos diante de imensa incoerência, quase um paradoxo jornalístico, onde uma poderosa rede de comunicações tece loas a um congênere por agir de maneira diametralmente oposta à sua, ou vemos sinais de indiscutível liberdade de imprensa, onde um editor de 104 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS subsidiária não afina seu discurso com o editorial da rede-mãe; ou, em última análise — e quero, aqui, estar bastante equivocado —, a divulgação de notícias atualmente obedece mais ao padrão samba-docrioulo-doido que a algum critério analítico razoável. De qualquer modo, isto ajuda a fortalecer minha tese de que quem faz a notícia somos nós mesmos, leitores e espectadores, quando nos esforçamos por interpretar com independência a informação que nos chega. Isto é muito bom, no final das contas. 105 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 106 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS O QUE É PRECISO PARA LEVAR UM CLIENTE PARA SUA AGÊNCIA? O editor de uma revista especializada em Propaganda me pediu, certa vez, para responder àquela que é, talvez, a mais difícil pergunta da Propaganda: como conquistar um novo cliente? Tivesse eu uma resposta segura e infalível, certamente já seria um homem rico. David Ogilvy, recentemente falecido (agosto de 1999), tinha a resposta: levou excelentes clientes para sua agência, fez dela um importante grupo internacional de comunicação, mudou a cara da Propaganda mundial e deixou de presente, para mim e para você, alguns textos memoráveis a este respeito. Talvez, com uma leitura atenta, nós encontremos a tal resposta nas entrelinhas. Conquista de contas publicitárias pode acontecer das mais variadas formas. Seja através da prospecção competente à indicação de clientes e amigos; seja da participação em concorrências à procura espontânea de um anunciante (só estou considerando algumas das formas lícitas). O importante é você ficar tranquilo: trabalhe bem e as contas virão, cedo ou tarde, na razão direta da sua determinação em conquistá-las. Esta determinação, convém frisar, também é sinônimo de planejamento de portfolio de contas. Sair à cata de clientes sem objetivo pré-determinado é gastar sola de sapato à toa. Um aparte sobre prospecção de contas: provavelmente você já ouviu falar de uma coisa chamada alinhamento internacional de contas. Em outras palavras, a matriz de uma empresa multinacional entrega sua conta publicitária à matriz de uma agência igualmente multinacional. Com isso, em todo o mundo — worldwide, como eles gostam de dizer — a mesma conta será atendida pela mesma agência. O que significa, em outras palavras, que uma filial de agência multinacional aqui no Brasil fará esforço igual a zero para conquistar uma conta muito importante, num jogo de cartas marcadas onde a competência das agências locais não é levada em consideração (assim não brinco mais, ora!). 107 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Mas e você, que não é multinacional, que tem um cliente em mira, de um segmento de negócios ou com um produto com os quais você se identifica e sabe que tem estrutura adequada para atender? Então, pesquise-o, conheça antecipadamente seu mercado e seus concorrentes, veja o que ele tem veiculado por aí, saiba o máximo a seu respeito. Em essência, é a mesma coisa que tentar uma conquista para namoro sério, onde o sujeito vê uma menina e algo lhe diz que ali está alguém que realmente o encanta, uma moça para propósitos muito mais edificantes que uma simples farra de final de semana. Conhecer seus hábitos e preferências facilita as coisas. Reunindo informações, você estará ampliando sensivelmente suas chances de sucesso. O que posso dizer com segurança, pelas experiências que vivi e pelas infinitas conversas que já tive com muitos colegas de profissão — gente de pequenas, médias e grandes agências — é que é muito mais importante saber como manter seus bons clientes. E isto é uma arte que começa por saber ouvir mais do que falar (lembre-se: temos dois ouvidos e uma boca só!), porque, digam o que quiserem, as melhores campanhas e as melhores ideias não raro estão lá mesmo, na cabeça do cliente. A verdadeira habilidade do bom publicitário é interpretar o que o cliente tem a dizer e dar forma adequada e sedutora a tudo isto através daquelas pequenas obras magistrais a que chamamos vulgarmente de anúncios. Depois, o companheirismo, pois nem sempre o cliente está em condições de realizar todas as nossas propostas mirabolantes. Há ocasiões em que temos de ter maturidade e elevado espírito de renúncia para dizer, por exemplo, ‘não anuncie’! Porque, muitas vezes, anunciar em hora errada também pode causar expectativas na cabeça dos consumidores e que o cliente, por uma razão qualquer, não está em condições de satisfazer plenamente. O melhor é ficar quieto, arrumar a casa e, depois, anunciar. Os bons clientes saberão reconhecer os méritos de uma iniciativa assim e darão ainda mais valor ao seu trabalho. E imagino que esta afirmação deva ter alguma verdade, pois recentemente eu e um colega de trabalho decidimos desistir de uma campanha publicitária que, acredite, já havia sido aprovada pelo cliente. Alguma coisa lá no fundo da nossa intuição nos 108 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS disse que a campanha, embora muito bonita e ‘tecnicamente correta’, estava essencialmente errada. Expusemos nossas ponderações ao cliente, que compreendeu o fato e nos deu carta branca para apresentarmos outra ideia, esta sim bastante eficaz, como seus resultados comprovaram. Enfim, tudo o que você puder fazer em favor dos reais interesses do cliente reverterá inevitavelmente em seu próprio benefício. Ah, aproveitando o embalo, nunca é demais lembrar que poderá haver ocasiões em que o divórcio é a melhor opção. Se seu cliente não é parceiro e só quer arrancar sua pele, se não paga um preço justo por suas ideias (em última análise, ideias são a única coisa que sua agência produz de verdadeiramente seu), ou não é fiel à relação comercial, repassando serviços de agência a terceiros sem seu prévio conhecimento (e isto acontece muito), ou tem outras atitudes que o impeçam de obter lucro minimamente razoável, dê preferência a uma conta filantrópica onde você não ganha dinheiro do mesmo jeito, mas ao menos faz alguma coisa de relevância social e, de quebra, trabalha com tesão e ganha visibilidade para facilitar sua busca por uma boa conta substituta. Finalmente, será que existe uma fórmula mágica para se conquistar contas publicitárias? Não faço ideia! Só sei é que o negócio todo da propaganda se chama bom senso. 109 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 110 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS É O MELHOR DE QUE VOCÊ É CAPAZ? Existe sempre uma solução fácil para cada um dos problemas humanos: simples, plausível e errada. H. L. Mencken. Entre 1985 e 1986, fui redator33 da Morumbi, house-agency da Editora Abril. Éramos umas quatro ou cinco duplas de criação, e atendíamos a uns oitenta títulos diferentes da casa. Do Tio Patinhas à Revista Saúde, eram anúncios e mais anúncios que seriam veiculados nas próprias revistas da Abril. E sempre tínhamos o exagero de jobs e a exiguidade de prazo rondando nossas cabeças. Além disso, eu, metido a besta que era, também aceitei fazer planejamento de mídia34 interna, ou seja, calcular a intensidade e a frequência com que os anúncios de uma determinada revista deveriam aparecer nas demais. Calcule, leitor, oitenta revistas vezes oitenta revistas, tudo isso vezes um ano, considerando haver títulos semanais, quinzenais e mensais; dava algo como oitenta vezes cinquenta e duas semanas, ou vinte e seis quinzenas, ou doze meses. Quase pirei. E até hoje, confesso, não tenho a menor ideia do que possa ter significado tudo aquilo que fiz. Bem, eu tinha, ao menos, o alívio de trabalhar ao lado da Stela, morenaça estonteante. Voltando às tarefas criativas, na Morumbi reencontrei o Willians Barros, ex-colega de turma na ESPM, onde havíamos nos formado alguns anos antes. O Willians sempre foi um redator brilhante, o segundo melhor que conheci na vida (o primeiro no meu ranking é o Fernando Nogueira, carioca com quem trabalhei em Curitiba). Com seu jeitão meio riponga — cabeludo, barbudo e bolsa de 33 Redator: Aquele suj eit o a qu e m prim e ir o s e d el e g a a tar ef a de redi gir u m text o agr a d á v e l e per s u a s i v o so b r e as qu alid a d e s do pro d u t o a s er anu n ci a d o . E qu e , d e p o i s , c o m o auxílio do Atendi m e n t o e da ca n e t a do clie nt e , vê tod o s e u trab al h o ir para o vina g r e . Sofrim e n t o qu e ta m b é m é c o m p a r tilh a d o pel o Diretor de Arte. 34 O d e p a rt a m e n t o de Mídia é o qu e eu ch a m o d e A Eng en h a ri a da Propa g a n d a . 111 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS couro cru a tiracolo — o Willians tinha o dom do sarcasmo requintado, sendo autor de frases lapidares, como ‘o hálito faz o longe’ e tantas outras. Também era capaz de publicar, só por gozação, anúncios classificados com preciosidades como ‘vendo mala por motivo de viagem. Tratar com... (e dava seu nome e telefone reais)’. Essas coisas. Pelo refinamento com que sabia lidar com as palavras, eu o adotei como meu consultor para os momentos de desespero. Que, aliás, eram vários e frequentes. Era Willians aqui, Willians acolá, e ele, com um sorriso falsamente contido, porém de escandalosa superioridade nos lábios, me arranjava a palavra que faltava num texto, ou invertia a ordem do que eu havia escrito, me mostrando que, agora sim, o texto havia ficado bom. Tudo bem, não existem mesmo refeições grátis, e ter de suportar aquele sorrisinho arrogante era o preço que eu pagava para ver meus pepinos desempepinados. À época, a Editora Abril mantinha uma outra house-agency, a Panambi, motivo das mais retumbantes invejas de todos nós da Morumbi. Pelo simples motivo de que os caras de criação da Panambi cuidavam só de uma meia dúzia de títulos, os melhores da casa, como Cláudia, Quatro Rodas etc. O crème-de-la-crème, enfim. E, não bastasse, os tais caras ainda ganhavam mais, o que aumentava nossa ira. Eis que, certo dia, alguém que sinceramente não recordo comentou que a Panambi estava procurando um novo redator. Pronto! Corri e me apresentei, esperançoso. Se eu conseguisse o cargo, significaria entrar para a turma do filé mignon e, de quebra, dar uma folguinha ao meu apertado orçamento doméstico; eu, casado e pai de dois filhos pequenos (que sempre que os via, ao chegar em casa, por alguma razão lembrava daqueles filhotes de passarinho com os bicos abertos para fora do ninho e à espera de comida). O chefão lá da Panambi me recebeu e, sem muita conversa, já mandou um desafio: ‘Faça um anúncio comemorativo para o aniversário de vinte e cinco anos da Quatro Rodas. Se for muito bom, vou ver o que posso fazer’. O modo como ele disse ‘muito’ me fez ver a palavra em caixa alta, corpo 72: MUITO! Jacta est alea e lá fui eu quebrar a cabeça para fazer um anúncio MUITO bom. Fiz um punhado de textos, tentativas com várias 112 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS abordagens, mas nenhum deles tinha cara de MUITO. Finalmente, surgiu um texto que me agradou; com algumas reservas, mas me agradou. Considerando que o prazo que o sujeito da Panambi me dera já estava estourado, lancei mão da minha arma secreta, o meu Santo Expedito particular e protetor nas horas difíceis, o Willians. — Ô, meu! Dá uma olhadinha aí e me diz o que você acha. Sem nem ao menos virar-se para mim, o Willians apanhou o papel, pôs na mesa e continuou redigindo um texto — lembro com nitidez — sobre a matéria de capa da Revista Saúde que tratava das virtudes medicinais do mamão. Depois de terminar o trabalho, pegou meu texto com aquela irritante fleuma à inglesa, que eu sabia ser pura sacanagem, o leu e perguntou, impávido: — Isto é o MELHOR que você é CAPAZ de fazer? E eu, mostrando minha indignação com todas as letras: — Mas é CLARO que não! Você sabe que eu sou CAPAZ de fazer coisas bem melhores! Ele continuou de costas para mim, devolveu-me o texto por sobre o ombro e decretou: — Então FAÇA! Fiquei pê da vida, voltei a minha mesa e, mais por raiva que já por interesse na vaga da Panambi, em poucos minutos fiz um texto que ainda hoje guardo com carinho, principalmente em função do que aprendi com tudo o que me levou a fazê-lo: a nossa capacidade humana de superação, de que sempre dá para fazer melhor. A propósito, o título do anúncio para a Quatro Rodas era ‘A INVENÇÃO DA RODA FOI UM ACHADO. GENIAL MESMO FOI JUNTAR QUATRO’. O chefão lá da Panambi elogiou bastante, só que ‘achei que você não viria mais e, infelizmente, já contratei outro redator.’ Fiquei sem o cargo, mas ficou uma lição inesquecível. 113 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 114 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS UMA EXPERIÊNCIA EDIFICANTE Quando se fala em função social da propaganda, a facção neoliberalizada do setor, para tirar da reta aquilo que tanto prezam, tem sempre o mesmo discurso imediato: ‘a propaganda gera milhares e milhares de empregos, contribui ativamente com os cofres públicos, faz girar a roda da economia com mais velocidade e, em consequência, gera mais empregos, impostos, etc.’ Ora, isto qualquer setor regular da economia faz. Grande novidade. Existe, porém, uma boa parte de profissionais que não pensa assim, pois sabem que podem e devem usar as ferramentas da comunicação para propósitos um pouco mais relevantes que vender alguns sabonetes a mais, ou fazer com que uma marca de cerveja ganhe um pontinho extra de participação de mercado. É a turma do social. Gente que, pelas mais variadas razões, resolve dispor gratuitamente de algum tempinho e de alguns meios para contribuir com qualquer causa que lhes pareça digna de atenção. Vez ou outra, vemos campanhas para o Exército de Salvação, CVV, Ação Criança, AACD, APAE, Hospital do Câncer e mais uma série de instituições e iniciativas que, não fosse a contribuição desinteressada de publicitários e agências, gráficas, fotolitos, produtoras de imagem e som, jornais, revistas, empresas de outdoor e emissoras de rádio e TV, não teriam recursos financeiros para publicar algo maior que um anúncio classificado. Mas, caramba!, como é bom ver os anúncios que são feitos para esta finalidade. Invariavelmente, são campanhas além de magníficas, pois os criativos não têm de se deparar com o maldito briefing ‘profissional’, aquela chatice repleta de senões do cliente que, sejamos francos, nunca ajuda em muita coisa. Anúncios de caráter social, sem briefing, dão margem a que os criativos comportem-se apenas como seres humanos imbuídos somente pelo instinto de servir ao próximo através da velha e boa persuasão publicitária. Por esta simples razão, extraem lá do fundo de suas almas o melhor de si mesmos, o que, combinado ao domínio das tantas técnicas da propaganda, resulta em peças maravilhosas. 115 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS E inesquecíveis, como ‘COZINHE O LEÃO COM A APROVAÇÃO DE DEUS’, título de um outdoor criado para o Exército de Salvação. A imagem era o famoso caldeirão onde são depositadas as doações. O outdoor explicava, rapidamente, que as doações poderiam ser abatidas do imposto de renda. Ou: ‘EM CASO DE DESESPERO, APONTE PARA O OUVIDO’, num outro outdoor para o CVV – Centro de Valorização da Vida, entidade que, entre outras coisas, ajuda, pelo telefone, pessoas deprimidas, solitárias ou prestes a cometer suicídio. Na foto, apenas parte de um gancho de telefone, em posição sugestiva. Que peça magnífica! Você, leitor, com certeza já viu muita coisa assim. O que imagino que você não saiba é que, muitas vezes, as boas intenções ficam realmente perdidas no caminho do inferno. Certa vez, li uma reportagem de jornal sobre crianças surdas carentes atendidas por uma daquelas entidades heróicas, mantida exclusivamente por uma senhora de posses razoáveis pero no mucho. A matéria reproduzia pergunta pungente de uma criança surda congênita: ‘mãe, qual é o som da nuvem quando ela se move, e qual é o som de um raio de sol batendo num objeto? Aquilo me tocou de tal maneira que, num instante, criei um comercial de TV que apenas reproduzia a primeira pergunta. No final, o locutor pedia ao espectador que ‘ajude as crianças surdas. Elas ouvem seu coração’, além da citação do nome da entidade, endereço e telefone para doações, essas coisas. Uma produtora de comerciais realizou gratuitamente o filmete de trinta segundos e... bem, passados uns doze anos, até hoje estou esperando uma emissora de televisão que conceda veiculações gratuitas em prol de uma boa causa. Foi trilhar o tal caminho do inferno. Às vezes, porém, a coisa funciona bem, e, quando a gente consegue realizar até o fim – puta que pariu! –, que sensação boa! Principalmente, quando o retorno é excelente. Foi assim quando eu e o Newton Cesar35, diretor de arte que 35 Autor d e ‘Dire ç ã o De Arte Em Prop a g a n d a ’, edit o r a Futura. Até o m o m e n t o , únic o livro bra sil eir o so b r e o as s u nt o . Leitura o brig at ó ri a para 116 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS me suporta há séculos, criamos uma campanha para o Albergue Noturno de Curitiba, instituição de caridade mantida pela Federação Espírita do Paraná e que, como o nome indica, dá abrigo, banho e alimentação gratuitos a mendigos e desamparados em geral. O problema36 – o tal briefing! – era simples: faltava tudo. Cobertores, lençóis, travesseiros, comida, pratos, máquinas de lavar roupas, fogões, etc. Só não seriam aceitas doações em dinheiro. Com o apoio de uma gráfica, de uma empresa de fotolitos, de um estúdio de fotografia e dos jornais e empresas de ônibus de Curitiba, criamos e veiculamos dois anúncios bastante bons. As fotos eram de mendigos reais. Os títulos e textos, simplíssimos: ‘[título] DEUS DÁ O FRIO CONFORME O COBERTOR. [texto] Neste inverno, ajude a gente. Você dá o cobertor e Deus entra com o calor. Ligue e faça qualquer tipo de doação’. Outro: ‘[título] ÁGUA NO FEIJÃO QUE CHEGOU MAIS UM. [texto] Aí, estará na hora de botar mais feijão na água. Ligue e faça qualquer tipo de doação’. O mais bonito de tudo foi a logomarca que o Newton criou. Uma letra A que, ao mesmo tempo, simboliza um teto que acolhe uma pessoa. Genial e surpreendente. Veja e julgue você mesmo. Mas nada foi não tão surpreendente quanto o telefonema que, poucos dias após o início da veiculação, recebemos do cliente. Embaraçado, ele nos perguntava se seria possível suspender as qu e m s e inter e s s a por pro p a g a n d a . 36 Henri Gede o n , u m velh o a mi g o pu blicit ári o , insistia e m m e en sin a r: ‘pro p a g a n d a nã o s erv e para s e fazer anú n ci o s ; s erv e para re s o lv e r pro bl e m a s ’ . 117 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS veiculações nos jornais e as afixações dos cartazes nas ruas e em todas as linhas de ônibus da cidade. Ficamos desconcertados, tentando imaginar onde havíamos falhado. Nada disso: o pedido devia-se ao fato de as peruas do Albergue não mais darem conta de buscar tantas doações e, ainda que conseguissem, os depósitos da entidade já estavam mesmo abarrotados. Que imensa satisfação! E é claro que não retiramos a campanha dos meios de comunicação coisa nenhuma, deixando o cliente com o agradável problema de administrar excessos. 118 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS UM SAPO IMITA A ARTE Enfunando os papos... Início do poema Os Sapos, de Manuel Bandeira Criação publicitária, ao contrário do que muitos imaginam, raramente é resultado de alguma capacidade concedida pela divindade a alguns poucos iluminados. Nada disso. Criar para Propaganda é, antes de tudo, manter a percepção muito aguçada. Basta perceber o que está bem debaixo dos nossos narizes, mas que ninguém jamais notou. É apenas questão de atenção. Por força da profissão, já assisti a incontáveis comerciais de todo tipo de produto, de toda ordem de anunciante e de praticamente todos os países do mundo. A esmagadora maioria destes comerciais tem um certo quê em comum: traduzem nada além do nosso dia-a-dia de simples mortais, eventos pelos quais passamos, fatos que vivemos corriqueiramente e aos quais damos pouca ou nenhuma atenção. Até que... até que algum publicitário os transforme em pequenas pérolas do ramo. Caso de um comercial inglês de cerveja, onde o personagem vê uma mulher um tanto quanto feiosinha no outro lado do bar. Ele toma um gole, ela solta o cabelo; ele toma outro gole, ela tira os óculos; terceiro gole, e ela, já sensualíssima, abre alguns botões de sua camisa; quarto gole, e a tal moça já virou capa da Playboy. Entusiasmado, o rapaz vê que sua cerveja acabou e, antes de pedir mais uma, também vê que aquela delícia de mulher voltou a ser a feiosa de antes. Quer melhor representação da realidade, daquela conversa de botequim que diz que, quanto maior a dose, mais bonita e gostosa fica a mulher? Eu, nestes meus tantos anos de profissão, mesmo tendo criado muitos comerciais, e mesmo já tendo visto cenas da realidade que condiziam com a retratação publicitária, jamais havia visto a vida imitar a arte com tamanha fidedignidade quanto a cena que se me apresentou durante uma gravação de comercial. 119 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Era ‘externa’, no caso, filmagem nas próprias instalações do cliente, uma tradicional instituição de ensino. Por uma razão que não vem muito ao caso, não havíamos feito pesquisa de elenco, o que significa que os alunos que apareceriam no filme eram reais. Lá estávamos eu e a equipe da produtora de filmes rodando alguns takes com a turminha da educação infantil, crianças na faixa dos quatro ou cinco anos. Numa das pequenas mesas, três menininhas brincavam com um joguinho de peças para encaixar. Ao ver aquilo, comentei com a equipe sobre um antigo comercial dos automóveis Volvo. Este fabricante, como se sabe, investe muito dinheiro em pesquisa e desenvolvimento de itens de segurança para seus produtos e, igualmente, outras pequenas fortunas em propaganda para que todos nós saibamos sobre as virtudes deste carros. O comercial a que me referi foi o seguinte. Quatro menininhas, todas também na faixa dos quatro ou cinco anos, conversavam em situação idêntica à que acabei de descrever. Uma delas diz algo como: “Meu pai me ama, porque ele me deu uma boneca”. A segunda replica: “Meu pai me ama. Ele me deu duas bonecas”. A terceira treplica: “Meu pai é que me ama: ele me deu três bonecas, roupinhas das bonecas, casinha de boneca, etc.” A última das meninas, impassível, arremata: ”Meu pai me ama. Ele comprou um Volvo”. Grande comercial. Disse tudo. Eis que eu acabava de reproduzir [com alguma inexatidão, é claro] o roteiro do filme da Volvo, e as menininhas que estavam ao nosso lado disparam: “Na minha casa eu tenho um sapo”, diz a primeira. “Na minha casa, eu tenho dois sapos”, rebate a segunda. E a terceira menina, soberana, lança a bomba mortal: “Eu tenho um sapo só. Na minha fazenda.” Ah, doce crueldade infantil! Neste instante, a vida imitou a arte, ou melhor, a propaganda, esta arte que imita maravilhosamente a vida. E eu aprendi mais uma. Com a ajuda de um sapo. 120 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS A CANTADA VIA DISCURSO / OUTRA CANTADA VIA ANÚNCIO Venha para o lado negro da força, Luke! Darth Vader para Luke Skywalker, em Guerra nas Estrelas. Perco o amigo mas não perco a piada. No reino da molecagem, onde sou amigo do Rei, não tenho a mulher que quero na cama que escolherei — como disse Bandeira — mas não perco a chance de me divertir sempre que posso. E o que fiz, certa vez, foi a mais pura molecagem; algo de uma irresponsabilidade sem limites, porém divertidíssimo. Nunca contei isso a ninguém, exceto, mais tarde, ao Aramis e ao Gustavo, respectivamente diretor de arte e redator que trabalharam comigo. O Aramis, infelizmente, já se foi, mas o Gustavo está vivinho da Silva e deve se lembrar de tudo. Durante uns bons pares de anos, prestei serviço para uma agência de Curitiba, a Complan Propaganda, da qual o Aramis era um dos sócios. Outro sócio, o Vermelho, era o Atendimento. Pois bem: fiel às suas funções e às necessidades dos clientes, o Vermelho nos trazia toda espécie de demanda, inclusive, e por incrível que pareça, solicitações de anúncios! Tínhamos clientes dos mais variados setores de atividades. E, graças aos deuses da Propaganda — que, via de regra, nos deixam na mão, mas às vezes dão o ar de sua graça — também tínhamos UMA cliente. Loira, linda, balzaquiana preservadíssima, seios fartos e quadris abundantemente generosos, um mulherão daqueles. Dona absoluta da empresa, pois enviuvara precocemente, fazia questão de ela mesma tratar dos assuntos publicitários, o que muito nos alegrava e enternecia. Numa dessas idas e vindas, o Vermelho nos chega com um pedido inédito. A empresa da nossa doce ninfa inspiradora estava prestes a completar vinte e cinco aninhos. — Ôba! Campanha comemorativa... — Nada disso, meu caro Martins (o Vermelho só me chama de 121 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Martins)! Preciso de um discurso! — O quê? — É, um discurso. A grana é pouca, e a cliente resolveu investir em uma festa para os funcionários. Preciso de um discurso para ela ler na festa. Era o que me faltava. O redator orgulhoso sendo rebaixado a ghost writer de perua. Fiquei pê da vida, xinguei telepaticamente o Vermelho, atravessei a rua e fui ao boteco do Sílvio tomar uma cerveja. Tomei umas quatro, acho. Voltei inspiradão, pleno daquela inspiração diabólica com que o ódio invariavelmente nos presenteia, fulminei o monitor do micro com um olhar congelante e tasquei na tela: VOCÊ É UM TESÃO. Eu pensava na cliente, obviamente, não no computador. Dispus a frase na vertical e iniciei os parágrafos; o primeiro deles, com V, o segundo com O, e assim sucessivamente. Tomei o cuidado de deixar que estas letras estivessem em tamanho ligeiramente maior que as demais no texto e, requinte final, as coloquei em negrito. Maior bandeira, impossível. VOCÊ É UM TESÃO estava nítido demais, bastava um olhar minimamente atento. Passei o texto ao Vermelho, que o leu, não sacou nada, aprovou e mandou a secretária enviar imediatamente por fax àquele deleite de freguesa. — Ô, Martins! Aprovado. Ela agradeceu e disse que vai ler o discurso amanhã, na festa. — Porra, Vermelho! Agora só falta você me pedir texto de anúncio fúnebre. Ninguém desconfiara de nada. Plano perfeito. O episódio havia despertado o monstro da comunicação que hibernava em mim. Jamais eu me imaginara dono de tamanha cara-de-pau, fazendo algo que, de tão sórdido, beirava o bizarro. Depois disso, passei a esgueirarme sorrateiro pela calada da noite publicitária à espera da próxima vítima. E de outra oportunidade igualmente perfeita. O que viria a ocorrer muito mais brevemente do que eu poderia supor (é muito melhor quando as oportunidades surgem no auge das nossas intenções). Outro cliente precisava fazer um comunicado urgente à praça, 122 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS para ontem, e — suprema felicidade! — pediu anúncio de página inteira de jornal, pois havia muito o que dizer. Isto significava texto longo que, por sua vez, também significava a possibilidade de tantos quanto fossem os parágrafos que eu julgasse necessários (ou convenientes aos meus torpes propósitos). Em homenagem a uma das secretárias daquele cliente, mocinha a quem eu classificava singelamente de pequeno monumento, mandei brasa: FULANA É GOSTOSA. — Ahá! Tião Gavião ataca Penélope Charmosa! Exclamei a exclamação dos eufóricos e, em tempo recorde, dedilhei o teclado do computador com a mesma perícia do Wes Montgomery dedilhando um jazz em sua guitarra. E lá se foi o texto. Passou, sei disso, até pelas delicadas mãozinhas da homenageada que, como todos os demais, não se apercebeu da pequena ode publicitária ali contida e em seu louvor. Mais uma vez, texto aprovado, à exceção do parágrafo que começava com É. Ficou só o FULANA GOSTOSA. E foi publicado. E eu entrei em pânico: — E se alguém por aí – são tantos os leitores! – perceber a trama? E se este alguém entrar em contato com o jornal? E se o jornal entrar em contato com a agência; pior, com o cliente? E se essa turma toda entrar em contato comigo? Os dias que se seguiram foram de pura aflição. Horrorosamente angustiantes. O que terminou por me fazer jurar bem jurado que, daí em diante, nada de gozações públicas. Nada que envolvesse terceiros inocentes. Logo eu daria o caso por encerrado, posto que ninguém realmente viu nada. Só o Aramis, mesmo assim porque eu mostrei. E ele até que foi bastante gentil e compreensivo: — Na próxima, eu te mato! Muito tempo depois, fui a uma reunião no tal cliente. Tranquilo e certo de que ninguém havia visto nada. Lá estava eu na recepção, aguardando, quando o pequeno monumento passou e comentou: — Oi! Adorei o anúncio! Por que você não me telefonou? Fiquei mudo. Bem, daí em diante já não vem mais ao caso. 123 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 124 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS O CLIENTE Faz tempo, eu e o Aramis alimentávamos um sonho dourado: vamos ganhar na loteria e abrir uma agência de propaganda em alguma ilha paradisíaca do Pacífico Sul, aquelas cheias de nativas gostosas dançando hula-hula. Ali, com o bolso cheio de grana, poderíamos criar uma infinidade de anúncios e, sem dúvida, a maioria seriam obras magníficas. Água de coco, mar azul, nativas gostosas e anúncios maravilhosos completariam o ciclo divino que todos os publicitários almejam. Se a propaganda já existisse na Grécia antiga, o Olimpo seria descrito como acabei de apresentar. Que montanha, que nada! Durante um destes devaneios criativos, o Atendimento da agência, com a inconveniência peculiar a muitos profissionais de atendimento, larga uma bomba atômica sobre o nosso atol de Mururoa: ‘E cadê o cliente? Os deuses aí fariam anúncios para quem?’ Imediatamente, olhares fulminantes, nós o reduzimos a Hades, o deus grego dos infernos. Êta sujeito! O legal do sonho é exatamente o fato de se poder fazer anúncios sem precisar do cliente! Fazê-los pelo barato de fazer, ora! Mas o Atendimento é um sujeito que tem ligações umbilicais com o cliente. Dizia, sabiamente, um velho amigo meu: ‘Deus os cria e eles se unem’. Só pode ser esta a explicação. Na prática, as coisas funcionam assim: a agência cria um portentoso cavalo árabe e mostra para o cliente, aguardando sua aprovação. O cliente aprova, mas com ‘pequenas ressalvas’; e transforma o cavalo num camelo, sob o argumento de que este também tem quatro patas e um pescoção (com o que o Atendimento prontamente concorda). A criação fica pê da vida, tenta desfazer a bobagem que o cliente fez e, no final, só consegue lapidar um pouquinho, para acabar publicando um dromedário. Eis que estou vendo TV, um documentário sobre as tais ilhas do Pacífico Sul. Juro que até me vi por lá jogando anúncio fora, numa boa, quando os deuses da propaganda, com sua requintada ironia sarcástica, interrompem meu barato para a entrada dos comerciais. 125 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS Inevitavelmente, um deles era puro lixo. Pergunto ao meu filho André como alguém poderia ter aprovado uma idiotice daquelas. Sem nem ao menos olhar para a minha cara, sonolento, ele retruca: ‘Quem aprovou não tem obrigação de entender de propaganda. A obrigação é de quem criou. Portanto, o idiota é ele.’ Foi um choque. Meu filho, meu próprio filho, sangue do meu sangue, mas nada além de um pirralho de dezessete anos (se bobear, vai ser Atendimento), detona minha ilha, desta vez não com uma simples bomba atômica, mas com toda a potência da erupção do Krakatoa. Desisto. Amanhã cedo, volto para a agência e volto para os clientes. 126 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS PARA MATAR A CURIOSIDADE No capítulo sobre etimologia, deixei em aberto a pergunta ‘o que um dromedário tem a ver com pistas de Fórmula 1?’. A palavra dromedário vem do latim dromedarius, que, por sua vez, vem do grego dromás (ou dromades) e significa corredor, porque este é relativamente veloz entre os animais andantes. Do mesmo prefixo grego drom deriva dromós que quer dizer, entre outras coisas, lugar de corrida, ou lugar onde se pratica a velocidade. Uma pista de Fórmula 1 é, obviamente, um autódromo (auto + dromós), ou seja, lugar onde se pratica a velocidade com os automóveis que, é claro, significam ‘aqueles que movem-se por si mesmos’. Como se observa, dromedários e pistas de Fórmula 1 têm tudo a ver entre si. 127 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 128 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS III THE END 129 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS 130 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS MORAL DA HISTÓRIA Eu sou como os pequenos regatos: eles são transparentes porque são pouco profundos. Voltaire Não li, ao longo de minha vida, nem uma pequena fração do total de livros, revistas e jornais que gostaria de haver lido. Também não ouvi nem um pouco do que gostaria de tudo aquilo que já se fez na música. Muito menos, fui ao cinema e ao teatro com a frequência desejada. Em resumo, deixei escapar pelos dedos – por impossibilidade de acesso, preguiça em perseguí-las ou simples azar – a esmagadora maioria das informações que, com toda certeza, teriam feito de mim alguém diferente, no sentido de ter, hoje, uma compreensão, se não mais ampla, ao menos não tão titubeante acerca do mundo e da humanidade. Imagino que, em maior ou menor grau, o mesmo possa ter acontecido com você também, leitor. Mas isto nem importa tanto assim. Tenho estado bastante satisfeito por poder perseguir a informação, graças à minha capacidade de comunicação e, fundamentalmente, à mesma capacidade de todos aqueles que se comunicam comigo. É incrível como, pela comunicação, nos enriquecemos uns aos outros. É o trânsito da informação que poderá nos fazer melhores. Ao contrário do que pensam uns poucos eruditos que primam pelo acúmulo da informação em si mesma para nada fazer disso senão um instrumento de vaidade pessoal, tenho comigo uma verdade: a informação não traz juízo de valor implícito, isto é, ela não vale mais nem menos por si mesma; seu valor está no uso que nos é dado fazer dela. E ela não é minha nem sua, é nossa. Devemos, pois, usá-la com toda generosidade. Aí está o propósito deste livro: dividir com você o prazer que tenho em pensar sobre comunicação, e convidá-lo a pensar comigo. Alguém já disse que felicidade não é uma estação de chegada, mas uma maneira de viajar; a satisfação de poder seguir em busca de algum conhecimento também não contempla um fim em si mesmo, 131 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS mas um modo muito prazeroso de se relacionar com o Todo. Ars gratia artis. Sinceramente, não me importei muito com a falta de ‘critério acadêmico’ ao escrever, como, imagino, exigiriam alguns dos tais eruditos. Da mesma forma com que falei de Deus, também falei sobre como usar a mídia para passar uma cantada publicamente, ou me esforcei por alertá-lo sobre que cuidados tomar com a manipulação da informação. Como comentei no prefácio, procurei a minha e a sua diversão, tratando de assuntos de maior ou menor intensidade conceitual, subindo e descendo como se faz em uma montanha russa. Fica mais gostoso. Mais divertido. Mais show. E o show, respeitável público!, deve continuar. Comunique-se, portanto. 132 DEUS É INOCENTE ZECA MARTINS A pedido de amigos, aí vai uma BIBLIOGRAFIA Leia todos os jornais e revistas ao seu alcance; Leia os livros e artigos de Noam Chomsky; Leia os livros do meu amigo Roberto Menna Barreto; Leia Direção De Arte Em Propaganda, do meu amigo Newton Cesar Leia Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade; Leia filosofia; Leia Padre Vieira, Pêro de Magalhães Gândavo e Gregório de Matos; Leia a Bíblia, o Alcorão e a Torá, Leia revistinhas de sacanagem; Leia outdoors (os bons, são uma aula de síntese); Leia tampinhas de garrafas; Leia manuais de automóveis e eletrodomésticos; Leia rótulos em geral e bulas de remédio; Leia Playboy pelas ‘excelentes reportagens’; Leia Playboy pelas mulheres peladas; Leia, enfim, tudo o que você achar que deva ler: vai ser bom para você. 133