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Inflação

Texto de Economia - INFLAÇÃO E POLÍTICA ANTIINFLACIONÁRIA NO BRASIL

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Universidade de Brasília – FACE – Departamento de Economia INTRODUÇÃO À ECONOMIA – 2º/2005 4ª Unidade - Texto de Leitura nº 23 INFLAÇÃO E POLÍTICA ANTIINFLACIONÁRIA NO BRASIL Flávio Rabelo Versiani 1. Antecedentes O Brasil tem longa experiência inflacionária. Nas primeiras décadas do século XX, os indicadores disponíveis, embora precários, indicam uma média anual de aumento de preços de cerca de 5% ao ano. Na década de 1940, quando índicadores de inflação de base mais ampla se tornam disponíveis, a porcentagem de aumento anual de preços atinge, regularmente, dois algarismos. Daí em diante, a tendência geral é de crescimento constante dos índices inflacionários, até os valores estratosféricos, superiores a 2.000% por ano, observados no início dos anos 1990. Há apenas uma interrupção nessa propensão de longo prazo à aceleração inflacionária: o período entre 1964 o início dos anos setenta, quando a inflação tendeu a cair de forma continuada. Foi só após 1994, ano do Plano Real, que se interrompeu a tendência a taxas de inflação cada vez mais altas: os aumentos de preços observados, desde então (ou quedas, em alguns períodos), passaram a ter ordens de grandeza mais congruentes com a experiência internacional. Ver os números da Tabela 1, onde se mostra a evolução, entre 1939 e 2002, de três índices de inflação: o Deflator Implícito do PIB, o Índice Geral de Preços (Disponibilidade Interna), da Fundação Getúlio Vargas, e o Índice do Custo de Vida para a cidade de São Paulo, da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo.1 1 Notar que o índice inflacionário mais usado, atualmente, no balizamento da política econômica, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, só passou a ser produzido em 1979. 2 Tabela 1 – BRASIL: ÍNDICES DE INFLAÇÃO, 1939–2002 (Taxas médias anuais, em %) ÍNDICES DE PREÇOS PERÍODO 1939 - 1948 12,0 Índice de Preços ao Consumidor – São Paulo (FIPE) 17,1 1949 - 1958 14,6 16,9 16,4 1959 - 1964 52,4 57,7 56,9 1965 - 1972 28,2 27,0 24,7 1973 - 1980 46,2 43,4 49,1 1981 - 1987 162,7 170,2 192,3 1988 - 1994 1.470,2 1.312,5 1.391,0 1995 - 1996 47,5 16,6 12,1 5,5 6,4 12,6 7,0 Deflator Implícito do PIB 7,2 1997- 2002 11,6 (*) 2003 - 2005 (*) 2003-2004 Fonte: calculado de dados em IPEADATA. Índice Geral de Preços - Disponibilidade. Interna (FGV) 11,0 Essa convivência com a inflação deu origem, como era natural, a uma vasta literatura sobre o diagnóstico do fenômeno inflacionário brasileiro e as possíveis terapêuticas a serem aplicadas. 2. Monetarismo e estruturalismo No período anterior aos anos setenta, destacou-se o debate entre duas interpretações do processo inflacionário, rotuladas, na época, de monetarista e estruturalista. A discussão se referia não só ao caso brasileiro mas, de forma geral, à inflação em países da América Latina. A posição monetarista (defendida, entre nós, por economistas como Mário Henrique Simonsen e Roberto Campos), enfatizava — em linha com as teorias correntes sobre inflação, na literatura econômica — a importância de pressões de demanda, derivadas de uma expansão monetária excessiva. Esse excesso de moeda decorreria sobretudo de políticas econômicas incorretas: aumento de gastos governamentais além das receitas de impostos, sendo o déficit financiado por emissão de moeda; concessão de aumentos salariais acima dos aumentos de produtividade, 3 pressionando para cima custos e preços e forçando expansões de crédito. A seqüência causal básica seria, assim: aumento de moeda, aumento de demanda, aumento de preços. O remédio estaria em medidas como uma política de contenção de gastos e aumento de receitas públicas, possibilitando maior disciplina fiscal e monetária, e na adoção de formas não-inflacionárias de cobertura dos déficits públicos, quando estes ocorressem. A essa visão contrapunha-se a interpretação estruturalista da inflação (associada a nomes como Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares), que sustentava que a causa básica do fenômeno inflacionário brasileiro não eram excessos de demanda, mas sim inelasticidades de oferta: numa economia em crescimento, e passando por transformações estruturais rápidas (industrialização, urbanização, etc.), a expansão da demanda por certos bens e serviços (como alimentos, produtos importados, energia e transporte) não poderia ser respondida imediatamente por um aumento correspondente da oferta, o que traria pressões inflacionárias; a terapêutica monetarista, se aplicada, traria apenas recessão, sem resolver os problemas “estruturais” de oferta (que não seriam passíveis de correção no curto prazo). Os estruturalistas tendiam a achar que os custos sociais da inflação (pelo menos nos níveis então observados) eram inferiores ao de políticas antiinflacionárias de efeito recessivo. Os governos após o golpe militar de 1964, especialmente o primeiro deles, entre 1964 e 1967, quando Roberto Campos foi Ministro do Planejamento, trouxeram uma oportunidade de aplicação do receituário monetarista. De fato, as reformas dos anos subseqüentes (no sistema bancário e financeiro, no mercado de capitais, no regime tributário, etc.) tenderam a ampliar as receitas e reduzir os gastos públicos, favorecendo o equilíbrio fiscal; e propiciaram também ao governo, com a introdução da correção monetária nos títulos públicos (os quais se tornaram, assim, uma aplicação atraente para investidores), um instrumento não-inflacionário de financiamento de déficits. Houve ainda, nesse período, um considerável arrocho salarial, facilitado pela repressão imposta pelo regime militar aos sindicatos e movimentos reivindicatórios; isso também favoreceu a queda da inflação, malgrado o efeito socialmente perverso. As políticas seguidas nesse período tiveram, em conjunto, um efeito antiinflacionário importante: medida pelo deflator implícito do PIB, a inflação anual caiu de 89,5%, em 1964, para 19,4%, em 1971. Houve, por outro lado, certa retração do 4 crescimento econômico, embora de pequeno alcance e duração: observou-se uma redução de cerca de 0,5% no PIB per capita, em 1965, mas a expansão em ritmo vigoroso foi retomada em 1966, e especialmente em 1968–1974 — período em que o crescimento do PIB per capita atingiu taxas excepcionalmente altas (um aumento médio anual de 7,8%, nesses seis anos).2 Os resultados positivos do programa antiinflacionário dos anos sessenta — queda substancial nas taxas de amento dos preços, sem efeitos recessivos importantes — reforçaram a idéia de que as causas da inflação, e as políticas para combatê-la, eram basicamente as apontadas pelos “monetaristas”. 3. Os anos setenta e oitenta Nos primeiros anos da década de 1970, os índices de preços voltaram a subir (v. a Tabela 1), o que foi de início atribuído, em particular na ótica governamental, essencialmente aos efeitos do “choque do petróleo”, de 1973 — a súbita e violenta elevação nos preços desse produto, decidida naquele ano pela OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), e que causou aumentos generalizados de custos e de preços, com repercussões em toda a economia mundial. Especialmente afetados foram os países, como o Brasil, que dependiam fortemente, na época, de importações de petróleo e derivados. A ocorrência de outro aumento nos preços de petróleo, em 1979 (o chamado “segundo choque do petróleo”), provocou pressões renovadas sobre os custos, e foi certamente um fator na aceleração inflacionária observada a partir desse ano. Além disso, ocorreu também, nesse período, em fins de 1998, uma grande elevação nas taxas de juros internacionais, aumentando substancialmente o ônus do serviço da dívida externa acumulada nos anos anteriores; a assunção de boa parte desse ônus pelo governo contribuiu para desequilibrar as finanças públicas, o que terá sido outro elemento de elevação de preços.3 As taxas de aumento de preços atingiram, nesses anos, 2 Computado de números em IPEADATA. Os demais dados citados abaixo podem ser encontrados nessa fonte ou em: BANCO CENTRAL DO BRASIL, Boletim. 3 Embora o financiamento de déficits públicos se fizesse não por simples emissão de moeda, como em períodos anteriores, mas pela venda de títulos públicos ao setor privado, argumenta-se que o aumento no estoque desses títulos em poder do público tinha, nessa fase, efeito inflacionário. A razão disso é que os 5 patamares nunca antes observados, superando os 100% ao ano, no início da década de oitenta, e os 200% ao ano, em 1984-85. Algumas características do agravamento da inflação, a partir de 1979, sugeriram a analistas contemporâneos a relevância, no período, de outro fator inflacionário, além dos relacionados a pressões de demanda ou choques de custo. Chamava atenção o fato de que a aceleração inflacionária se desse ao mesmo tempo em que ocorria uma forte contração da atividade econômica, associada a políticas recessivas então adotadas. Efetivamente, o PIB per capita reduziu-se em mais de 12%, entre 1980 e 1983 — o maior recuo registrado no País em qualquer época —, sendo preciso esperar até 1986 para que o produto per capita superasse (em 1%) o do início da década. A inflação parecia imune a reduções na renda e na demanda; não era fácil conciliar esse quadro com as explicações tradicionais do processo inflacionário. Ganhou terreno, nesse contexto, o argumento de que a inflação do período tinha um componente de certa forma estrutural, mas de natureza inteiramente diferente da antes defendida pelos “estruturalistas”. Esse componente era a inércia inflacionária, que faria com que o nível de inflação observado num período tendesse a repetir-se nos períodos seguintes, mesmo na ausência de outros elementos determinantes de elevação de preços.4 A inflação passada se reproduziria, em primeiro lugar, em decorrência dos mecanismos formais de correção monetária. A partir da legalização da correção de valores nominais pela inflação, nas reformas de 1964/65, difundiram-se numerosas regras formais (leis, contratos, acordos sindicais, etc.) determinando a correção periódica e automática do valor nominal de salários, aluguéis, prestações, etc., pela aplicação de algum índice de inflação, com o objetivo de manter constante o valor real das importâncias recebidas. A indexação à inflação, imaginada inicialmente como uma forma de viabilizar a existência de aplicações e financiamentos no médio e longo prazo altos e crescentes índices de inflação provocavam fuga da moeda (por motivos óbvios: ninguém quereria manter parte de sua riqueza sob a forma de notas ou depósitos, ativos que se desvalorizavam aceleradamente); nessas circunstâncias, os títulos governamentais (com grande liquidez, e rendendo juros e correção monetária) eram uma boa forma alternativa de manutenção de encaixes líquidos, por parte de empresas ou de indivíduos. Ocorreu, assim, um processo de “substituição monetária”: papéis do governo assumiam, em parte, funções de moeda. Nesse caso, a expansão na circulação desses papéis estimularia aumentos de demanda, pressionando os preços. 4 Um dos primeiros autores a expor esse argumento foi Mário Henrique Simonsen; v. SIMONSEN (1970). 6 (como no caso de títulos públicos e do sistema financeiro de habitação) passou a ser uma prática generalizada. Como a correção monetária é feita, necessariamente, a partir de um indicador da inflação passada, este tenderá a influenciar a inflação futura. Por exemplo: se o salário nominal deste mês for o salário nominal do mês passado, corrigido pela inflação do mês passado, e a mesma regra for aplicada a todos os preços, isso fará com que a inflação do mês passado se repita no mês atual, ainda que não haja qualquer outro fator de aumento de preços. Quanto mais generalizada a aplicação da indexação formal, maior a tendência de que a inflação de hoje venha a refletir-se na inflação de amanhã. Mesmo na ausência de indexação formal, contudo, o comportamento dos agentes econômicos pode produzir um resultado semelhante. Se cada um corrige periodicamente seus preços nominais (ou suas demandas relativas à correção desses preços, como no caso dos assalariados) a partir da inflação passada, ainda que não haja qualquer regra escrita a respeito, também assim haverá um mecanismo de inércia inflacionária. Pode estabelecer-se uma “cultura inflacionária”: todos supõem que os preços são sempre reajustados periodicamente, e agem em função dessa crença, procurando também reajustar periodicamente seus próprios preços, no intuito de evitar perdas reais. Quanto mais arraigada essa cultura, mais forte o efeito inercial. 4. O Plano Cruzado O plano antiinflacionário posto em prática no final de fevereiro de 1986, conhecido como Plano Cruzado, baseou-se na hipótese de que o problema central da inflação brasileira, àquela altura, era o componente inercial: embora os proponentes do plano não desconhecessem a importância de outros fatores inflacionários, admitiam que a influência destes fosse, então, secundária. Essa crença terá sido reforçada por dois fatos. Primeiro, a constatação de que a inflação, no período precedente, parecia ter-se elevado por patamares: ao redor de 50% ao ano entre 1975 e 1979, próxima de 100% de 1980 a 1982, e na vizinhança de 200%, em 1983-85. Esse padrão era compatível com a noção de que, dado que alguma circunstância (como um choque de oferta ou de demanda) empurrasse eventualmente os preços para cima, num certo percentual, esse nível de inflação seria mantido, nos períodos subseqüentes, por causa da inércia; e a ocorrência de choques posteriores elevaria os índices a um novo patamar. Segundo, o 7 fato de a escalada de patamares, em 1980 e 1983, parecia explicável por fenômenos pontuais. Em 1979, além da alta de juros e dos preços do petróleo, introduziu-se, por lei, a correção monetária automática de todos os salários, a cada seis meses, enquanto o período anterior de negociação para reajuste salarial era de um ano. E, no início de 1983, o governo promoveu uma desvalorização cambial de 30%. Sob algumas hipóteses, grande parte da elevação inflacionária desses períodos —para o nível de 100%, e depois para o de 200% — poderia ser atribuída a esses dois fatores.5 O modelo inercial parecia ajustar-se bem aos fatos observados. Por outro lado, não é nada fácil desenhar políticas visando debelar uma inflação alta e predominantemente inercial. Enquanto os instrumentos de combate a uma inflação de demanda são amplamente conhecidos (restrição monetária, disciplina fiscal, etc.), o mesmo não se pode dizer no caso da inflação inercial. A eliminação da correção monetária formal pode ser feita, em principio, pela revogação de leis ou normas que a autorizem ou determinem. Mas a indexação informal é diferente: extingui-la envolve alterar o comportamento dos agentes econômicos, abolindo práticas que eram, na época, arraigadas na conduta da generalidade dos agentes econômicos, por longos anos. As políticas antiinflacionárias usuais pareciam inadequadas para promover essa mudança do que era, de fato, um padrão cultural. A solução então imaginada foi a do chamado “choque heterodoxo”, que tinha quatro ingredientes principais: a) eliminação da indexação formal; b) criação de nova unidade monetária, o cruzado, substituindo o cruzeiro (1 cruzado = 1.000 cruzeiros). Além do efeito psicológico de desvincular o sistema monetário de um padrão que ficara, de certo modo, identificado com a inflação, o estabelecimento de uma nova moeda facilitava, inclusive do ponto de vista legal, a medida mencionada a seguir; c) conversão dos salários em cruzados pela média real dos últimos seis meses. O objetivo aqui era tornar desnecessária a indexação salarial, e portanto aceitável a supressão dos mecanismos de indexação. A idéia é que, se tenho reajustes semestrais em meu salário, então consigo recompor, a cada seis meses, o valor real do salário que 5 Ver, por exemplo, SIMONSEN & CISNE (1989:438). 8 vigorava seis meses antes; mas, entre os reajustes, meu salário real vai sendo corroído pela inflação. O valor real médio de meu salário real, no semestre, vai ser a média do salário real que recebi em cada um dos seis meses.6 Se, de hoje em diante, a inflação for eliminada, a renda real que vinha recebendo será mantida, e não terei, em princípio, motivo para reivindicar novos reajustes; d) congelamento dos preços por certo período. A medida objetivava romper a prática de reajustes periódicos nos preços nominais, partindo do pressuposto de que tal prática estava muito associada a um comportamento defensivo: se eu não reajustar meus preços, e todos os que me vendem insumos o fizerem, ficarei para trás na corrida inflacionária e terei prejuízos. Na medida em que todos estiverem proibidos de reajustar preços, aquele comportamento se tornaria desnecessário, e se daria um fim à cultura inflacionária. Os resultados do Plano Cruzado foram efetivos, mas efêmeros: medida pelo IGP-DI, por exemplo, a inflação mensal manteve-se abaixo de 2% , durante sete meses (até outubro de 1986). Nível tão baixo só fora atingido em alguns meses isolados, nos dez anos anteriores. Depois de outubro, contudo, a inflação retornou com vigor redobrado, superando, no primeiro semestre de 1987, a marca até então inédita de 20% ao mês. Concorda-se hoje que a culpa por esse fracasso recai principalmente no fato de que, por várias razões, o Plano trouxe consigo um verdadeiro choque de demanda. Em primeiro lugar, movido principalmente pelo temor de que o reajuste de salários pela média encontrasse firme resistência por parte dos assalariados, o governo decidiu promover um aumento geral de 8% nos salários, quando de sua conversão em cruzados. Houve também a decisão política de favorecer os que ganham salário mínimo, pela elevação deste em 16%. Esses dois fatores não poderiam deixar de causar uma forte expansão de demanda, pois se tratava de aumentos reais, dada a queda na inflação. Além disso — o que não foi bem percebido na época, mas ficou claro depois — a redução súbita da inflação provocaria uma substancial redistribuição de renda em favor 6 Um exemplo simples: se meu salário nominal for fixado em 100, no dia 1º de julho (quando recebi e gastei o salário relativo a junho), mantendo-se nesse mesmo nível pelos próximos seis meses; e a inflação mensal, nesses seis meses, for de 5%, então meu salário real será, em números redondos: 100 em 1º/jul.; 95 [(100 / 105) x 100] em 1º/ago.; 91 em 1º/set.; 86 em 1º/out.; 82 em 1º/nov.; e 78 em 1º/ dez. Ou seja: meu salário real médio, no semestre, será: (100+95+91+86+82+78) / 6 = 89. 9 das camadas de renda mais baixa da população, trazendo também, em conseqüência, expansão na demanda por bens de consumo, especialmente os chamados bens de salário. É que o imposto inflacionário, ou seja, a parcela do PIB de que o governo se apropria, quando emite moeda, recai, como um ônus, basicamente sobre quem é obrigado a reter moeda, apesar de sua desvalorização acelerada. E esses são principalmente os mais pobres, que, por não terem acesso a aplicações financeiras, não têm alternativa senão manter sua renda sob forma de dinheiro, no período que medeia entre o recebimento do salário e a efetivação dos gastos. Quanto maior a inflação, maior o imposto inflacionário; o fim de uma inflação elevada traz, necessariamente, aumento na renda real dos que mais pagam esse imposto: os que pertencem aos estratos mais baixos de renda. Mesmo com pressões de demanda, o retorno da alta inflação poderia talvez ter sido evitado, por meio de políticas compensatórias. Um aumento de importações, por exemplo, expandindo a oferta interna de bens; ou uma política monetária restritiva. Mas não seria viável um aumento significativo de importações, na época, com exportações em queda e grandes dificuldades na obtenção de financiamento externo, após a moratória mexicana de 1982; e a política monetária seguida no período foi frouxa, em parte por divergências quanto à sua eficácia, entre os condutores do Plano. 5. Outras tentativas de debelar a inflação Nos anos que se seguiram ao Plano Cruzado, diversos outros planos antiinflacionários foram postos em prática — os chamados Planos “Bresser” (1987), “Verão” (1989), “Collor” (1990), e “Collor-II” (1991) —, com efeitos cada vez menos duradouros; a inflação voltava, repetidamente, a níveis próximos ou superiores a 20% ao mês.7 Nos 90 meses entre janeiro de 1987 e junho de 1994, o IPCA esteve entre 10% e 30% por 59 meses, e superou 30% em outros 23 meses. O pico histórico ocorreu em março de 1990, quando o índice atingiu 82%. Esses planos foram uma mistura variada de ações de contenção de demanda com tentativas de desindexação da economia. Mais do que tudo, talvez, podem ser vistos como uma medida do desejo da população pela estabilização de preços, pois esta 7 O Plano Bresser baixou a inflação mensal para menos de 10% durante três meses; o Plano Verão, por dois meses, o Plano Collor, por um mês, e o Plano Collor-II, por dois meses. (Inflação medida pelo IPCA). 10 suportou pacientemente intervenções, por vezes violentas, nas relações econômicas, envolvendo quebra de contratos privados, mudanças bruscas de preços relativos, etc., culminando com o extraordinário confisco de ativos financeiros promovido pelo Plano Collor. 6. O Plano Real O Plano Real, implantado em julho de 1994, tem elementos em comum com o Plano Cruzado, mas diferiu deste em pelo menos dois aspectos importantes. Primeiro, não se partiu da idéia de que a inflação fosse essencialmente inercial. O fracasso do Plano Cruzado havia convencido a maioria dos economistas de que uma política antiinflacionária, para ser bem-sucedida, deveria atacar em várias frentes, envolvendo tanto medidas tradicionais de controle monetário e disciplina fiscal, visando manter sob controle a demanda agregada, quanto ações voltadas à eliminação de fatores de inércia inflacionária. A segunda diferença refere-se às condições sob as quais o plano foi aplicado, no que toca aos pagamentos externos. Ao contrário do que ocorrera nos anos oitenta, a situação do balanço de pagamentos brasileiro era bastante confortável, em meados da década de noventa, principalmente em decorrência do expressivo fluxo de capitais que buscou aplicação em economias emergentes, inclusive o Brasil, a partir dos primeiros anos da década. Um sinal disso é que a média do saldo positivo da Conta Financeira, no balanço de pagamentos brasileiro, passou de US$ 1,8 para US$ 9,6 bilhões, entre 1989– 1991 e 1992–1994. Esse fato possibilitou a utilização da chamada “âncora cambial”, ou seja, a manutenção de uma taxa de câmbio relativamente fixa, facilitando importações e propiciando um aumento da oferta interna de bens8. Entre julho de 1994 e o final de 1998, a cotação do dólar variou de R$ 0,85 a R$ 1,20, aproximadamente. A implantação do plano foi precedida de duas ordens de ações. A primeira, posta em prática a partir de 1993, objetivava melhorar a situação fiscal do governo, dentro do propósito de evitar que déficits orçamentários pressionassem a oferta de moeda e portanto a demanda. Uma dessas medidas foi a desvinculação parcial de receitas 8 A relação entre taxa de câmbio e fluxos internacionais de bens e serviços será detalhada na Unidade 6. 11 governamentais: a Constituição de 1988 enrijecera excessivamente o orçamento do governo, ao destinar receitas específicas para gastos específicos. De fato, obteve-se em 1994 um superávit primário nunca antes (ou depois) alcançado.9 A segunda relacionavase com o objetivo de conquistar, para o plano em gestação, a confiança do público, fortemente abalada pelos sucessivos fracassos dos planos anteriores. O principal recurso utilizado, para esse fim, foi a garantia, repisada com freqüência, de que desta vez não haveria surpresas, choques, confiscos ou intervenção em contratos: tudo se faria às claras, e com aviso prévio. Os elementos principais do Plano Real, fixadas por Medida Provisória em 27 de fevereiro de 1994, foram: a) eliminação da indexação formal; b) criação de uma unidade de conta, a URV (Unidade Real de Valor), equivalente a cerca de US$ 1, e que teria seu valor em moeda nacional atualizado a cada dia, por um índice calculado como uma média dos principais índices de inflação. A URV era uma espécie de pré-moeda, pois seria, após um período de transição, transformada na nova unidade monetária, o real; c) conversão dos salários em URVs, pela média real dos quatro meses anteriores; d) determinação de que novos contratos fossem estabelecidos em URVs, enquanto os vigentes deveriam ser convertidos nessa unidade, por acordo entre as partes, até o momento em que a URV se transformasse em moeda, deixando de existir o padrão monetário anterior (nesse momento, a conversão seria compulsória, e todos os preços passariam a ser expressos em URVs, transformadas agora em reais, a nova moeda). Nota-se que o objetivo aqui é essencialmente o mesmo que se procurou atingir com o congelamento: promover a passagem de uma moeda “velha”, que se deteriorava diariamente, para uma moeda “nova”, imune a essa deterioração. Só que no caso anterior essa passagem, e principalmente a conversão de uma moeda na outra, era determinada compulsoriamente; enquanto no caso da URV havia uma apenas indução para tal passagem — uma indução forte, é verdade, pois havia um prazo para tal — e espaço para negociação. A negociação seria um elemento importante para evitar 9 A situação fiscal vinha melhorando desde 1990, com obtenção de superávits primários acima de 2% do PIB. O valor obtido para 1994 foi equivalente a 5,2% do PIB. 12 distorções, provocadas por conversões de preços inadequadas (de que houvera numerosos exemplos, no Plano Cruzado10). Nota-se que, tanto no congelamento como na URV, o pressuposto básico era de que, uma vez que todos os agentes passassem a usar a nova moeda, sem sofrer perdas com essa passagem, a prática de reajustes periódicos e a demanda por indexação desapareceriam. A nova situação seria percebida, universalmente, como superior à anterior; o problema era que a passagem de uma a outra necessitava de um mecanismo de coordenação. Um economista comparou a situação com a de uma torcida de futebol, quando alguns se levantam para ver uma jogada perto do gol, e todos os demais têm que acompanhá-los, ou de outra forma nada veriam (é o caso em que todos têm que subir os preços, para não sofrerem perdas); a volta à situação anterior, em que afinal todos ficam melhor, pois estão sentados e vêem o jogo da mesma forma, exige algum mecanismo de coordenação, seja compulsório (um guarda com cassetete na mão: o congelamento), seja negociado (um apelo pelo alto-falante: a URV). A grande superioridade do segundo mecanismo reside na possibilidade de minimizar as perdas com a conversão, e portanto maximizar a probabilidade de sua aceitação, e do sucesso do plano. A estabilização de preços pode ser vista, nesse contexto, como um bem público, que exige alguma forma de intervenção governamental para ser “fornecido”. A implantação do plano foi também acompanhada de uma política monetária restritiva, buscando conter a esperada expansão de demanda, associada à drástica redução do imposto inflacionário. O sucesso do Plano Real foi evidente. Nos sete anos e meio anteriores, desde o fracasso do Plano Cruzado (ou seja, do início de 1987 até junho de 1994), a média mensal da inflação, medida pelo IPCA, fora de nada menos que 24,8 %.. Nesses 90 meses, apenas uma vez a inflação desceu abaixo de 5 % ao mês (4,9 %, em julho de 1987, após o Plano Bresser); em 53 meses foi superior a 20 %, e em 23 desses foi maior do que 30 %. Em contraste, no período desde o Plano Real (de agosto de 1994 a dezembro de 2005), a média mensal da inflação foi de 0,75 %, o que corresponde a uma 10 Um exemplo: o congelamento dos preços do leite no varejo, às vésperas de um reajuste anteriormente acordado, trouxe prejuízos para muitos produtores, e causou desabastecimento no mercado. No caso do Plano Real, os novos preços poderiam ser negociados entre produtores e distribuidores. 13 inflação anual de 9,4 %. Como vimos acima, só se registrara uma inflação anual de um dígito, por um período prolongado, nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial. Nos últimos 137 meses, o aumento de preços foi superior a 3 % uma única vez (3,02 %, em novembro de 2002); na maior parte do período, ficou entre 0 e 1% ao mês (94 vezes), sendo negativo em 7 meses. A inflação crônica, mal que afligiu a economia brasileira por mais de meio século, parece efetivamente debelado. A que se deve esse sucesso? Não há um consenso sobre isso. Para muitos, a “âncora cambial” (ou seja, a manutenção do dólar numa cotação baixa, favorecendo as importações) terá sido o elemento crucial do plano. Essa posição ficou, contudo, um tanto enfraquecida quando a flutuação do real, em janeiro de 1999, eliminando a “âncora”, e a desvalorização do real que a isso se seguiu, trouxeram uma elevação de preços, nesse ano, muito inferior ao esperado. O próprio governo previra, após a flutuação do real, uma inflação de 16%, em 1999, e houve quem falasse em 50%; mas o aumento efetivamente observado no IPCA foi de 8,9%. Aparentemente, uma âncora cambial não seria condição necessária da estabilização de preços11. Um ponto importante foi, possivelmente, uma mudança de atitude dos consumidores, tornada viável pelo próprio fim dos altos níveis de inflação. Numa inflação muito elevada, os preços variam com tal freqüência e intensidade que o consumidor é impelido à passividade: é difícil ter uma idéia do que seja o preço “normal” de algum artigo, e o custo de obter tal informação é muito alto; não vale a pena fazer, todos os dias, um pesquisa de preços, para decidir onde comprar mais barato. Em conseqüência, a concorrência baseada em preços fica prejudicada. Ao contrário, em períodos em que os aumentos de preço são moderados, o consumidor pode, recusandose a sancionar altas de preços, estimular a concorrência, colaborando efetivamente para a estabilização. Um exemplo disso parece ter ocorrido quando da súbita alta do dólar, em 1999. Os jornais registraram, na época, a resistência dos consumidores a aumentos de preços de produtos com conteúdo importado, nos supermercados, e uma tendência à substituição de tais produtos por similares nacionais, forçando os vendedores a modificar a composição da oferta e baixar seus preços. Isso sugere uma mudança significativa no comportamento dos consumidores, em comparação ao período de alta inflação, abrindo caminho para um regime mais competitivo de determinação de preços. 11 A relação entre taxa de câmbio e nível de preços interno será detalhada na Unidade 6. 14 7. Política monetária no período recente: metas de inflação A partir de 1999, implantou-se no Brasil, seguindo uma prática adotada por vários países desde o início dos anos noventa, a chamada política de metas de inflação. As autoridades econômicas fixam um nível de inflação considerado factível, para o ano subseqüente, admitindo uma dada margem de variação; e adotam medidas tendentes a manter a inflação dentro dessa meta. O principal instrumento usado para garantir a consecução desse objetivo é a fixação da taxa básica de juros (a chamada taxa SELIC), pelo Conselho de Política Monetária (COPOM), formado pelo presidente e diretores do Banco Central. Essa taxa estabelece como que um piso para os juros cobrados nas diversas áreas do mercado financeiro; seu nível é decidido nas reuniões periódicas do COPOM, ao longo do ano. A utilização da taxa de juros como forma de conter a inflação tem essencialmente o propósito de evitar uma expansão excessiva de demanda, que pressionaria os preços para cima. Um aumento de juros desestimula compras a crédito e dificulta o financiamento de investimentos, ao mesmo tempo em que torna mais atraentes as aplicações financeiras; assim, contribui de várias formas para uma redução das intenções de compras de bens e serviços, e nesse sentido favorece o controle ou redução dos preços. Em tese, um banco central que adota esse tipo de política elevará os juros quando detectar pressões inflacionárias, e os reduzirá à medida que julgue que essas pressões não estão presentes. As decisões do COPOM costumam suscitar críticas, especialmente da parte de representantes da indústria e do comércio, que naturalmente desejam expandir sua produção e vendas, o que se torna mais difícil na presença de juros altos. E os juros brasileiros são dos mais altos do mundo. Às vezes se ouve o argumento de que seria preferível que se fixasse uma meta de inflação mais alta (a meta para 2005, por exemplo, foi um aumento de 5,1 %, medido pelo IPCA); isso permitiria uma redução dos juros, estimulando o crescimento da economia. Essa é uma polêmica antiga: já no século XIX havia uma disputa entre os “papelistas”, que se batiam por maior expansão do crédito, com base em emissão de papel-moeda pelos bancos, estimulando o desenvolvimento da produção; e, de outro lado, os “metalistas”, que advogavam uma política monetária mais 15 restritiva, que restringisse a expansão dos meios de pagamento à disponibilidade de reservas de moeda metálica, pelos bancos, e com isso evitasse pressões inflacionárias. De fato, a atuação do COPOM, e sua capacidade de forçar uma baixa de juros, está sujeita a várias limitações. Por exemplo: o governo tem um volume de gastos superior a sua capacidade de custeá-los com a receita de impostos (mesmo com o grande aumento da carga tributária, nos últimos anos). Com isso, precisa tomar muito dinheiro emprestado no mercado, vendendo títulos da dívida pública — o que impulsiona os juros para cima. Outro aspecto é que boa parte (cerca de 40%) dos empréstimos concedidos pelo sistema bancário não sofre influência das decisões do COPOM, por se tratar de operações com juros subsidiados, destinadas ao setor agrícola, à habitação ou a mutuários do BNDES; assim, os empréstimos restantes terão que pagar juros mais altos, para que a política monetária tenha um mesmo nível de eficácia. Alguns especialistas chamam também atenção para o grau relativamente alto de inadimplência, em certas linhas de financiamento, e para o fato de que nesses casos o credor nem sempre pode se valer do Judiciário, cujas decisões são lentas e às vezes favoráveis a quem não pôde pagar, em nome de critérios de justiça social. Nesse sentido, os juros altos, no Brasil, seriam em parte uma decorrência dessa insegurança institucional: a perspectiva de uma inadimplência elevada faz subir o custo dos empréstimos, de tal forma que os bons pagadores pagam por si e também pelos maus pagadores. Cabe notar, quanto a isso, que os juros de empréstimos onde o credor tem garantias sólidas são relativamente baixos; os financiamentos à compra de automóveis são um exemplo saliente. Nesse caso, o bem financiado pertence de fato ao credor, até a liquidação final do empréstimo, e pode ser facilmente retomado, se não houver pagamento. Referências: BANCO CENTRAL DO BRASIL. Boletim. Disponível em: http://www.bcb.gov.br/?PUBLICACOES IPEADATA. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br SIMONSEN, Mário Henrique. Inflação: Gradualismo x Tratamento de Choque. Rio de Janeiro: Apec, 1970. SIMONSEN, Mário Henrique & Rubens P. CYSNE. Macroeconomia. Rio de Janeiro: Livro Técnico, 1989.