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O Ensaio Sobre a Cegueira
Hernane Zocrato Medeiros
Com o intuito de apresentar um exame sociológico recente aos estudos,
trago para discussões o filme e livro, Ensaio Sobre a Cegueira. O livro
ilustra de forma metafórica, que muitas das crenças sociais não se
sustentam, mas que ainda assim, continuamos inertes à realidade que nos é
apresentada.
Utilizando a cegueira enquanto metáfora cardeal de sua obra, o autor
José Saramago faz eclodir o fenômeno logo na primeira oportunidade, quando
a cegueira surge de forma inexplicável em um dos personagens envoltos na
trama. O efeito desencadeado acontece em meio ao trânsito o que impulsiona
uma série de reclamações de motoristas afoitos para com seus compromissos.
O autor passa então a trabalhar em seu segundo personagem cuja ajuda
oferecida é embasada por interesses financeiros em razão da dificuldade do
então, motorista "cego". Acredito que essa seja uma das mais importantes
críticas do texto das quais se desdobram outras, pois, nós criamos tantas
necessidades para satisfazer que não nos resta tempo para o próximo e
alguns de seus infortúnios.
Ressalvada a própria natureza humana (conforme visto) e as teorias que
se constroem com base na satisfação das necessidades idealizadas por cada
qual, a falta de interesse na coletividade acaba por exacerbar sobremaneira
com muitas das situações aqui dispostas.
Após o inesperado incidente no trânsito, o primeiro personagem
"premiado" com a cegueira branca vai à clínica, e novamente aqui, mesmo
sendo evidente a gravidade de seu problema, o paciente que estava esperando
para ser atendido não demonstra a menor sensibilidade, reclamando o uso de
seus direitos e contando com a anuência dos demais pacientes em razão da
fila de espera. Somente depois de algumas palavras do doutor é que eles
acabam por concordarem. A cegueira que se transmite pelo contato,
representa um tipo novo dentre aquelas até então conhecidas, talvez esse
não tenha sido um dos pontos cujo autor se destinou a trabalhar, mas, acho
importante estabelecer um paralelo aqui, pois, quantos de nós não nos
julgamos conhecedores inquestionáveis acerca de algumas áreas do
conhecimento? Essa característica competitiva da natureza humana acaba por
atrasar o próprio desenvolvimento da humanidade, pois a opinião do outro
adquire um caráter obstante quando deveria ser construtiva.
No desenrolar de seu romance, surge outro importante personagem ao
roteiro, uma jovem prostituta que estava na clínica e fora contaminada pelo
contato da doença ainda na fase de conhecimento da mesma. Fica aqui mais um
apontamento, pois, essa parece querer fechar os olhos para a alienação de
seu corpo, utilizando-se de óculos escuros durante a transa. E não são
raras as vezes em que fechamos os olhos diante das situações que nos são
desconfortáveis. José Saramago se esforça para romper a barreira do
preconceito que se observa na profissão da moça, afinal quantos julgamentos
de plano nós não fazemos todos os dias? Ele demonstra que além de sua
profissão existe um ser humano normal com sentimentos e sonhos. Constrói, a
partir de então, o seu lado mais profundo, quando esta se preocupa em
cuidar do jovem garoto que fora separado de sua genitora.
Outro personagem que adquiriu a doença em sua fase inicial e que
merece uma atenção especial de nossa parte é o ladrão. O autor relativiza a
meu ver acertadamente o furto realizado por este, o que vai de encontro a
algumas das ideologias de ¹Juarez Cirino dos Santos e por mim adotadas, ou
seja, do que nos vale um direito penal tecido a duras penas se o palco das
relações humanas corrobora para a ocorrência desses conflitos na aquisição
e manutenção de posses? É certo que o direito preconiza o estabelecimento
de normas gerais de conduta que garantam a convivência de forma isonômica,
no entanto, a falta de competência de muitos dos nossos governantes, somada
ao egoísmo existente no seio da gestão estatal, acaba por conduzir a
determinados excessos, privilégios, corrupção e outros desvios perversos à
sociedade. Todos os reflexos e implicações provenientes dessas conjunturas
são de difícil mensuração, mesmo que, não seja impróprio dizer, que os
meios escusos adotados por essa parcela da sociedade como forma a
satisfazer suas necessidades, gera insegurança e desconforto para todos,
inclusive para aqueles que praticam a ação tipificada e depende de "sorte"
para escapar intacto.
Com o emanar da história, fica cada vez mais claro que o fulcro do
Ensaio Sobre a Cegueira se assenta no egoísmo dos homens. Em suas
considerações sobre o mesmo tema, Walter Praxedes faz uma interessante
analogia sobre a forma como a cegueira branca é tratada em relação à
loucura;
"Cegueira é também a insensibilidade e a indiferença
diante do infortúnio do outro, como as sofre o próprio
médico ao tentar avisar o Ministério da Saúde sobre a
epidemia de cegueira. O médico, então, conclui: "É desta
massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade
de ruindade" (EC: 40). Para se livrarem rapidamente de
suas responsabilidades, enquanto o Ministro da Saúde e seu
assessor acreditavam que o problema atingiria apenas uma
minoria, trataram de isolar os cegos contagiados em um
manicômio de modo a que estivessem longe da vista dos
demais e não pudessem incomodar, analogamente à maneira
como as sociedades modernas tratam os indivíduos
considerados loucos."
Com o decorrer do tempo mais pessoas adentram ao edifício de
isolamento, gerando diferentes grupos de pessoas assentadas por andar. É
então que um senhor munido de um rádio se integra ao grupo principal,
assumindo a figura de narrador e dando abertura a informações do "mundo
exterior" e de muitos dos posicionamentos tomados pelas autoridades. Um
assunto que merece especial atenção é a questão do financiamento às
pesquisas que, segundo o narrador, a falta de cooperação e acordo entre os
países chega a ser dramática. Ainda nas palavras do senhor, transcrevo um
de seus pertinentes comentários que segue a narrativa em questão;
"Semanas se passaram, e com o tempo e a cobertura
constante, a cidade se entediou e voltou ao trabalho,
indiferentes às provas entorno dela, de que a doença era
imune à burocracia."
A cena que se segue, por sua vez, também é de inestimável valor para
nossos estudos. Em mais uma vinda de novos membros para a quarentena, um
"acidente" acontece no desembarque, se é que se pode assim considerar, uma
vez que, deve ser visto na realidade como um excesso ou falta de preparação
da força policial. Seja como for, as mortes provenientes desse incidente
nos remetem a mais uma questionável comportamento humano. A mulher do
oftalmologista vai buscar a pá para poder enterrar os mortos do incidente,
entretanto, o oficial que deveria conduzi-la aproveita-se da suposta
necessidade especial da moça para se divertir enquanto a faz rodear a pá.
Mais uma vez fica a pergunta: Quantos de nós não zombamos das deficiências
alheias?
Não obstante às ponderações acima, em dado momento um dos "enfermos"
volta-se para os oficiais em razão de seu esgotamento psicológico, no
entanto, não satisfeitos com os avisos que deram o executam sem maiores
reflexões. Fundamentado por essas razões Walter Praxedes tece o seguinte
comentário;
"A atitude do soldado revela tanto o seu medo de cegar
quanto a cegueira representada pelo cumprimento estrito da
ordem recebida por ele para não tolerar as indisciplinas
dos cegos. O narrador demonstra com isso que tanto o medo
de cegar quanto o cumprimento cego às normas tornam os
indivíduos cegos diante das necessidades dos outros."
Todo tipo de poder concedido nas mãos de alguns poucos homens, pode
acabar por cegar seu detentor e dar uma suposta sensação de superioridade,
e o poder de polícia (ou poder militar) não é diferente dos demais formatos
de poder. Um caso notório e recentemente divulgado foram os excessos
cometidos por oficiais do exército americano para com os prisioneiros de
guerra iraquianos.
Com o transcorrer do tempo, um grupo de cegos da ala 3 (três)
denominados pelo narrador como "cegos malvados", resolvem controlar a
comida utilizando-se de uma arma como meio de coação. Como que numa obra de
arte, Saramago desenha um vilão dotado de cinismo e de interesses
egocêntricos. Após as primeiras exigências dos "cegos malvados", um grupo
das outras alas inconformado com a situação comenta enquanto caminha sobre
o fato que o "ditador" da ala 3 é provavelmente negro. Essa é mais uma
plausível ocasião para nosso estudo, pois, descortina-se frente aos
preconceituosos o que um julgamento sem sentido ou contexto pode-nos
falsamente remeter. Como eu não poderia colocar melhor que o colunista
Pablo Villaça, faço menção a uma passagem de sua crítica ao filme;
"A beleza desta cena, além do inteligente uso da ironia
dramática, reside na força de sua alegoria, pois, nesta
sociedade terrivelmente imperfeita em que vivemos, é
justamente nossa visão (literal e metafórica) que muitas
vezes nos cega para o que realmente importa, distorcendo
nossas opiniões em função de preconceitos estúpidos (e
existe outro tipo?) que, ao manterem nosso foco no
superficial (a cor da pele, a orientação sexual, a etnia),
impedem que enxerguemos o real valor daqueles que nos
cercam"
Pablo faz ainda uma observação frente à matéria de forma geral;
"Advogando a tese de que aquelas pessoas (todos nós, na
realidade) já viviam num estado de cegueira antes mesmo de
perderem a visão, o filme, assim como o livro, sugere que
somente ao perdermos a capacidade do pré-julgamento nos
tornamos realmente capazes de estabelecer uma conexão
verdadeira com o mundo ao nosso redor"
Acredito ter-me feito incisivo, pois, é embasado por muitas das
questões aqui retratadas que o trabalho seguinte tomará corpo e fundamento.
Contudo, nas especialíssimas palavras do colunista, finalizo o presente
manifesto.
(a "cegueira" de Saramago) é o reconhecimento inequívoco
de que, afinal, dependemos profundamente uns dos outros e
que enxergar de fato o próximo é, acima de tudo, um
exercício de tolerância e amor.