Transcript
"Modernismo - 1ª "Modernismo - 2ª "Modernismo - 3ª "Literatura "
"fase 1922-1930 "fase 1930-1945 "fase "contemporânea 1960 "
" " "1945-1960 "até os dias de hoje "
"Valorização do "Neo-realista; "Filosófica; "Grande "
"cotidiano; "Era de Getúlio "Mística; "desenvolvimento do "
"Liberdade de forma e"Vargas; "Universal. "conto, do romance, "
"conteúdo; "Romance regionalista" "da crônica; "
"Destruição do "e urbano; " "Recriação da "
"passado; "Consciência de nosso" "linguagem; "
"Paródia; "subdesenvolvimento. " "Carnavalização; "
"Fluxo da " " "Regionalismo "
"consciência. " " "universalista, "
" " " "mágico. "
" " "PROSA " "
" " "João Guimarães Rosa " "
" " "Clarice Lispector " "
" " "Lygia Fagundes " "
" " "Telles " "
"Objetivo artístico: "PROSA " "POESIA "
"pôr a sociedade a " " " "
"par das vanguardas " " " "
"européias. " " " "
"Objetivo político: " " " "
"resgatar a dignidade" " " "
"e mostrar a " " " "
"realidade nacional. " " " "
" "Graciliano Ramos "POESIA "Adélia Prado "
" "Érico Veríssimo " "Carlos Nejar "
" "Raquel de Queiroz " "Chico Buarque de "
" "Jorge Amado " "Holanda "
" "José Américo de " "Caetano Veloso "
" "Almeida " "Ferreira Gullar "
" "José Lins do Rego " " "
" "Dyonélio Machado " " "
" "Cyro Martins " " "
" " "João Cabral de Melo " "
" " "Neto " "
" " "A poesia concreta " "
" " " " "
" " "Décio Pignatari " "
" " "Haroldo de Campos " "
" " "Augusto de Campos " "
"Semana da Arte " " "PROSA "
"Moderna; " " " "
"Movimentos " " " "
"Pós-semana da " " " "
"22:Pau-Brasil, " " " "
"Verde-Amarelismo, " " " "
"Desvairista, " " " "
"Antropofágico. " " " "
"Oswald de Andrade " " " "
"Mário de Andrade " " " "
"Manuel Bandeira " " " "
"Menotti Del Picchia " " " "
"Raul Bopp " " " "
"Cassiano Ricardo " " " "
"Guilherme de Almeida" " " "
"Ronald de Carvalho " " " "
"Alcântara Machado " " " "
"Juó Bananère " " " "
" " " "Luis Antônio de "
" " " "Assis Brasil "
" " " "Moacyr Scliar "
" " " "Josué Guimarães "
" " " "Lya Luft "
" " " "Caio Fernando Abreu "
" " " "Luís Fernando "
" " " "Veríssimo "
" " " "José C. Pozenato "
" " " "Lygia Fagundes "
" " " "Telles "
" " " "Osman Lins "
" " " "Ivan Ângelo "
" " " "Autran Dourado "
" " " "Rubem Fonseca "
" " " "Ignácio Loyola "
" " " "Brandão "
" " " "Fernando Sabino "
" " " "Rubem Braga "
" " " "Luís Fernando "
" " " "Veríssimo "
" " " "Millôr Fernandes "
" " " "Carlos Heitor Cony "
" " " "Dalton Trevisan "
" " " "Antônio Callado "
" " " "Fernando Gabeira "
" " " "João Ubaldo Rieiro "
" "POESIA "Modernismo em " "
" " "Portugal " "
" "Cecília Meireles "Ferreira de Castro " "
" "Mário Quintana "Alves Redol " "
" "Vinicius de Moraes "Fernando Namora " "
" "Carlos Drummond de "Vergílio Ferreira " "
" "Andrade "José Saramargo " "
" "Murilo Mendes " " "
" "Jorge de Lima " " "
" " " "TEATRO "
" " " "Oswald de Andrade "
" " " "Nelson Rodrigues "
" " " "Ariano Suassuna "
" " " "Plínio Marcos "
" " " "Oduvaldo Viana Filho"
" " " "Augusto Boal "
" " " "Chico Buarque de "
" " " "Holanda "
" " " "Dias Gomes "
" " " "Gianfrancesco "
" " " "Guarnieri "
" " " "Joracy Camargo "
" " " "Jorge Andrade "
" " " "Millôr Fernandes "
" " " "Paulo Pontes "
"Fragmento "Fundação e manifesto do futurismo", 1908, publicado em 1909. "
" "
""Então, com o vulto coberto pela boa lama das fábricas - empaste de escórias "
"metálicas, de suores inúteis, de fuliges celestes -, contundidos e enfaixados os "
"braços, mas impávidos, ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens vivos "
"da terra: "
" "
"1. Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da temeridade. "
"2. A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia. "
"3. Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. "
"Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto "
"mortal, a bofetada e o murro. "
"4. Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a "
"beleza da velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a "
"serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a "
"metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia. "
"5. Queremos celebrar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a "
"Terra, lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita. "
"6. O poeta deve prodigalizar-se com ardor, fausto e munificência, a fim de "
"aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais. "
"7. Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo"
"pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto "
"contra as forças ignotas para obrigá-las a prostrar-se ante o homem. "
"8. Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para "
"trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço"
"morreram ontem. Vivemos já o absoluto, pois criamos a eterna velocidade "
"onipresente. "
"9. Queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo -, o militarismo, o "
"patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas idéias pelas quais se "
"morre e o desprezo da mulher. "
"10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo tipo, e "
"combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária. "
"11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela "
"sublevação; cantaremos a maré multicor e polifônica das revoluções nas capitais "
"modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros "
"incendiados por violentas luas elétricas: as estações insaciáveis, devoradoras de "
"serpentes fumegantes: as fábricas suspensas das nuvens pelos contorcidos fios de "
"suas fumaças; as pontes semelhantes a ginastas gigantes que transpõem as fumaças, "
"cintilantes ao sol com um fulgor de facas; os navios a vapor aventurosos que "
"farejam o horizonte, as locomotivas de amplo peito que se empertigam sobre os "
"trilhos como enormes cavalos de aço refreados por tubos e o vôo deslizante dos "
"aeroplanos, cujas hélices se agitam ao vento como bandeiras e parecem aplaudir "
"como uma multidão entusiasta. "
" "
"É da Itália que lançamos ao mundo este manifesto de violência arrebatadora e "
"incendiária com o qual fundamos o nosso Futurismo, porque queremos libertar este "
"país de sua fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários. "
"Há muito tempo a Itália vem sendo um mercado de belchiores. Queremos libertá-la "
"dos incontáveis museus que a cobrem de cemitérios inumeráveis. "
"Museus: cemitérios!... Idênticos, realmente, pela sinistra promiscuidade de tantos"
"corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios públicos onde se repousa sempre ao"
"lado de seres odiados ou desconhecidos! Museus: absurdos dos matadouros dos "
"pintores e escultores que se trucidam ferozmente a golpes de cores e linhas ao "
"longo de suas paredes! "
"Que os visitemos em peregrinação uma vez por ano, como se visita o cemitério no "
"dos dos mortos, tudo bem. Que uma vez por ano se desponta uma coroa de flores "
"diante da Gioconda, vá lá. Mas não admitimos passear diariamente pelos museus "
"nossas tristezas, nossa frágil coragem, nossa mórbida inquietude. Por que devemos "
"nos envenenar? Por que devemos apodrecer? "
"E que se pode ver num velho quadro senão a fatigante contorção do artista que se "
"empenhou em infringir as insuperáveis barreiras erguidas contra o desejo de "
"exprimir inteiramente o seu sonho?... Admirar um quadro antigo equivalente a "
"verter a nossa sensibilidade numa urna funerária, em vez de projetá-la para longe,"
"em violentos arremessos de criação e de ação. "
"Quereis, pois, desperdiçar todas as vossas melhores forças nessa eterna e inútil "
"admiração do passado, da qual saís fatalmente exaustos, diminuídos e espezinhados?"
" "
"Em verdade eu vos digo que a frequentação cotidiana dos museus, das bibliotecas e "
"das academias (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, "
"registros de lances truncados!...) é, para os artistas, tão ruinosa quanto a "
"tutela prolongada dos pais para certos jovens embriagados por seu os prisioneiros,"
"vá lá: o admirável passado é talvez um bálsamo para tantos os seus males, já que "
"para eles o futuro está barrado... Mas nós não queremos saber dele, do passado, "
"nós, jovens e fortes futuristas! "
"Bem-vindos, pois, os alegres incendiários com seus dedos carbonizados! Ei-los!... "
"Aqui!... Ponham fogo nas estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais "
"para inundar os museus!... Oh, a alegria de ver flutuar à deriva, rasgadas e "
"descoradas sobre as águas, as velhas telas gloriosas!... Empunhem as picaretas, os"
"machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas! "
"Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: resta-nos assim, pelo menos um decênio mais"
"jovens e válidos que nós jogarão no cesto de papéis, como manuscritos inúteis. - "
"Pois é isso que queremos! "
"Nossos sucessores virão de longe contra nós, de toda parte, dançando à cadência "
"alada dos seus primeiros cantos, estendendo os dedos aduncos de predadores e "
"farejando caninamente, às portas das academias, o bom cheiro das nossas mentes em "
"putrefação, já prometidas às catacumbas das bibliotecas. "
"Mas nós não estaremos lá... Por fim eles nos encontrarão - uma noite de inverno - "
"em campo aberto, sob um triste galpão tamborilado por monótona chuva, e nos verão "
"agachados junto aos nossos aeroplanos trepidantes, aquecendo as mãos ao fogo "
"mesquinho proporcionado pelos nossos livros de hoje flamejando sob o vôo das "
"nossas imagens. "
"Eles se amotinarão à nossa volta, ofegantes de angústia e despeito, e todos, "
"exasperados pela nossa soberba, inestancável audácia, se precipitarão para "
"matar-nos, impelidos por um ódio tanto mais mais implacável quanto seus corações "
"estiverem ébrios de amor e admiração por nós. "
"A forte e sã Injustiça explodirá radiosa em seus olhos - A arte, de fato, não pode"
"ser senão violência, crueldade e injustiça. "
"Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: no entanto, temos já esbanjado tesouros, "
"mil tesouros de força, de amor, de audácia, de astúcia e de vontade rude, "
"precipitadamente, delirantemente, sem calcular, sem jamais hesitar, sem jamais "
"repousar, até perder o fôlego... Olhai para nós! Ainda não estamos exaustos! "
"Nossos corações não sentem nenhuma fadiga, porque estão nutridos de fogo, de ódio "
"e de velocidade!... Estais admirados? É lógico, pois não vos recordais sequer de "
"ter vivido! Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso "
"desafio às estrelas! "
"Vós nos opondes objeções?... Basta! Basta! Já as conhecemos... Já entendemos!... "
"Nossa bela e mendaz inteligência nos afirma que somos o resultado e o "
"prolongamento dos nossos ancestrais. - Talvez!... Seja!... Mas que importa? Não "
"queremos entender!... Ai de quem nos repetir essas palavras infames!... "
"Cabeça erguida!... "
"Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às "
"estrelas." "
"PRIMEIRO MANIFESTO DADÁ "
"(Hugo Ball) "
" "
"Dadá é uma nova tendência da arte. Percebe-se que o é porque, sendo até agora "
"desconhecido, amanhã toda a Zurique vai falar dele. Dadá vem do dicionário. É "
"bestialmente simples. Em francês quer dizer "cavalo de pau" . Em alemão: "Não me "
"chateies, faz favor, adeus, até à próxima!" Em romeno: "Certamente, claro, tem "
"toda a razão, assim é. Sim, senhor, realmente. Já tratamos disso." E assim por "
"diante. "
"Uma palavra internacional. Apenas uma palavra e uma palavra como movimento. É "
"simplesmente bestial. Ao fazer dela uma tendência da arte, é claro que vamos "
"arranjar complicações. Psicologia Dadá, literatura Dadá, burguesia Dadá e vós, "
"excelentíssimo poeta, que sempre poetastes com palavras, mas nunca a palavra "
"propriamente dita. Guerra mundial Dadá que nunca mais acaba, revolução Dadá que "
"nunca mais começa. Dadá, vós, amigos e Também poetas, queridíssimos Evangelistas. "
"Dadá Tzara, Dadá Huelsenbeck, Dadá m'Dadá, Dadá mhm'Dadá, Dadá Hue, Dadá Tza. "
"Como conquistar a eterna bemaventurança? Dizendo Dadá. Como ser célebre? Dizendo "
"Dadá. Com nobre gesto e maneiras finas. Até à loucura, até perder a consciência. "
"Como desfazer-nos de tudo o que é enguia e dia-a-dia, de tudo o que é simpático e "
"linfático, de tudo o que é moralizado, animalizado, enfeitado? Dizendo Dadá. Dadá "
"é a alma-do-mundo, Dadá é o Coiso, Dadá é o melhor sabão-de-leite-de-lírio do "
"mundo. Dadá Senhor Rubiner, Dadá Senhor Korrodi, Dadá Senhor Anastasius "
"Lilienstein. "
"Quer dizer, em alemão: a hospitalidade da Suíça é incomparável, e em estética tudo"
"depende da norma. "
"Leio versos que não pretendem menos que isto: dispensar a linguagem. Dadá Johann "
"Fuchsgang Goethe. Dadá Stendhal. "
"Dadá Buda, Dalai Lama, Dadá m'Dadá, Dadá m'Dadá, Dadá mhm'Dadá. Tudo depende da "
"ligação e de esta ser um pouco interrompida. Não quero nenhuma palavra que tenha "
"sido descoberta por outrem. Todas as palavras foram descobertas pelos outros. "
"Quero a minha própria asneira, e vogais e consoantes também que lhe correspondam. "
"Se uma vibração mede sete centímetros, quero palavras que meçam precisamente sete "
"centímetros. As palavras do senhor Silva só medem dois centímetros e meio. "
"Assim podemos ver perfeitamente como surge a linguagem articulada. Pura e "
"simplesmente deixo cair os sons. Surgem palavras, ombros de palavras; pernas, "
"braços, mãos de palavras. Au, oi, u. Não devemos deixar surgir muitas palavras. "
"Um verso é a oportunidade de dispensarmos palavras e linguagem. Essa maldita "
"linguagem à qual se cola a porcaria como à mão do traficante que as moedas "
"gastaram. A palavra, quero-a quando acaba e quando começa. "
"Cada coisa tem a sua palavra; pois a palavra própria transformou-se em coisa. "
"Porque é que a árvore não há-de chamar-se plupluch e pluplubach depois da chuva? E"
"porque é que raio há-de chamar-se seja o que for? Havemos de pendurar a boca "
"nisso? A palavra, a palavra, a dor precisamente aí, a palavra, meus senhores, é "
"uma questão pública de suprema importância. "
" "
"Zurique, 14 de Julho de 1916 "
3. Pessoal:
MANIFESTO PAU-BRASIL
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos
verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil.
Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A
formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá,
o ouro e a dança.
Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado
doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui
Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A
riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no
Catumbi. Falar difícil.
O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando
politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de
ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O
Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós
maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.
Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se
deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.
A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos,
critica, donas de casa tratando de cozinha.
A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.
Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo : o teatro de
tese e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser
decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados
como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Agil e ilógico. Ágil o romance,
nascido da invenção. Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars : – Tendes as locomotivas cheias,
ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que
estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso
destino.
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de
jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias.
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A
contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os
futuristas e os outros.
Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de
importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.
Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias
do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros
que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário
oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho...
Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas.
Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo
grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o
artista fotógrafo.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede.
Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o
piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela.
Stravinski.
A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das
fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta
parnasiano.
Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E
as elites começaram desmanchando. Duas fases: 10) a deformação através
do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e
Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 20) o lirismo, a apresentação no
templo, os materiais, a inocência construtiva.
O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira
construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-
Brasil.
Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento
dinâmico dos fatores destrutivos.
A síntese
O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil
O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a
morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento
técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
Uma nova perspectiva.
A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma
ilusão ética. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de
aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia.
Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de
outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
Uma nova escala:
A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos
livros, crianças nos colos. O redame produzindo letras maiores que
torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes.
Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de
fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos
fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte.
A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de
tese era um arranjo monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O
quadro histórico, uma aberração. A escultura eloquente, um pavor sem
sentido.
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.
A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com
passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro
compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal
anda todo o presente.
Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com
olhos livres.
Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça
crédula e dualista e a geometria, a algebra e a química logo depois da
mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de "dorme nenê que o bicho
vem pegá" e de equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas
elétricas; nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de
vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.
Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça
solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade
um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação
militar. Pau-Brasil.
O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio
império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua
época.
O estado de inocência substituindo o estada de graça que pode ser
uma atitude do espírito.
O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão
acadêmica.
A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa
tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.
Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de
mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting
cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências
livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem
ontologia.
Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-
Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério
e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.
(MANIFESTO DO VERDE-AMARELISMO,OU DA ESCOLA DA ANTA)
A descida dos tupis do planalto continental no rumo do Atlântico foi
uma fatalidade histórica pré-cabralina, que preparou .o ambiente para as
entradas no sertão pelos aventureiros brancos desbravadores do oceano.
A expulsão, feita pelo povo tapir, dos tapuias do litoral, significa
bem, na história da América, a proclamação de direito das raças e a
negação de todos os preconceitos.
Embora viessem os guerreiros do Oeste, dizendo "ya so Pindorama koti,
itamarana po anhatim, yara rama recé", na realidade não desceram com a
sua Anta a fim de absorver a gente branca e se fixarem objetivamente na
terra. Onde estão os rastros dos velhos conquistadores?
Os tupis desceram para serem absorvidos. Para se diluírem no sangue da
gente nova. Para viver subjetivamente e transformar numa prodigiosa força
a bondade do brasileiro e o seu grande sentimento de humanidade.
Seu totem não é carnívoro: Anta. E' este um animal que abre caminhos, e
aí parece estar indicada a predestinação da gente tupi.
Toda a história desta raça corresponde (desde o reinol Martim Afonso,
ao nacionalista `verdamarelo', José Bonifácio) a um lento desaparecer de
formas objetivas e a um crescente aparecimento de forças subjetivas
nacionais. .O tupi significa a ausência de preconceitos. O tapuia é o
próprio preconceito em fuga para o sertão. O jesuíta pensou que havia
conquistado o tupi, e o tupi é que havia conquistado para si a religião
do jesuíta. O português julgou que o tupi deixaria de existir; e o
português transformou-se, e ergueu-se com fisionomia de nação nova contra
metrópole: porque o tupi venceu dentro da alma e do sangue do português.
O tapuia isolou-se na selva, para viver; e foi morto pelos arcabuzes e
pelas flechas inimigas. O tupi socializou-se sem temor da morte; e ficou
eternizado no sangue da nossa raça. O tapuia é morto, o tupi é vivo.
O mameluco voltou-se contra o índio, para destruir a expressão formal,
a exterioridade aborígine; porque o que há de interior no bugre
subsistirá sempre na alma do mameluco e se perpetuará nos novos tipos de
cruzamento. E a fisionomia própria da gente brasileira, não fichada em
definições filosóficas ou políticas, mas revelada nas tendências gerais
comuns.
Todas as formas do jacobinismo na América são tapuias. O nacionalismo
sadio, de grande finalidade histórica, de predestinação humana, esse é
forçosamente tupi.
Jacobinismo quer dizer isolamento, portanto desagregação.
O nacionalismo tupi não é intelectual. E sentimental. E de ação
prática, sem desvios da corrente histórica. Pode aceitar as formas de
civilização, mas impõe a essência do sentimento, a fisionomia irradiadora
da sua alma. Sente Tupã, Taniandaré ou Aricuta através mesmo do
catolicismo. Tem horror instintivo pelas lutas religiosas, diante das
quais sorri sinceramente: pra quê?
Deram-lhe uma casaca da Câmara dos Comuns, durante mais de meio século,
e a República encontrou-o igualzinho ao que ele já era no tempo de D.
João, ou no tempo de Tiradentes.
Não combate nem religiões, nem filosofias, porque toda a sua força
reside na sua capacidade sentimental.
A Nação é uma resultante de agentes históricos. O índio, o negro, o
espadachim, o jesuíta, o tropeiro, o poeta, o fazendeiro, o político, o
holandês, o português, o índio, o francês, os rios, as montanhas, a
mineração, a pecuária, a agricultura, o sol, as léguas imensas, o
Cruzeiro do Sul, o café, a literatura francesa, as políticas inglesa e
americana, os oito milhões de quilômetros quadrados...
Temos de aceitar todos esses fatores, ou destruir a Nacionalidade, pelo
estabelecimento de distinções, pelo desmembramento nuclear da idéia que
dela formamos.
Como aceitar todos esses fatores? Não concedendo predominância a
nenhum.
A filosofia tupi tem de ser forçosamente a `não filosofia'. O movimento
da Anta baseava-se nesse princípio. Tomava-se o índio como símbolo
nacional, justamente porque ele significa a ausência de preconceito.
Entre todas as raças que formaram o Brasil, a autóctone foi a única que
desapareceu objetivamente. Em uma população de 34 milhões não contamos
meio milhão de selvagens. Entretanto, é a única das raças que exerce
subjetivamente sobre todas as outras a ação destruidora de traços
caracterizantes; é a única que evita o florescimento de nacionalismos
exóticos; é a raça transformadora das raças, e isso porque não declara
guerra, porque não oferece a nenhuma das outras o elemento vitalizante da
resistência.
Essa expressão de nacionalismo tupi, que foi descoberta com o movimento
da Anta (do qual resultou um sectarismo exagerado e perigoso), é evidente
em todos os lances da vida social e política brasileira.
Não há entre nós preconceitos de raças. Quando foi o 13 de Maio, havia
negros ocupando já altas posições no país. E antes, como depois disso, os
filhos de estrangeiros de todas as procedências nunca viram os seus
passos tolhidos.
Não há também no Brasil o preconceito político: o que nos importa é a
administração, no que andamos acertadíssimos, pois só assim consultamos
as realidades nacionais. Os teoristas da República foram os que menos
influíram na organização prática do novo regime. No Império, o sistema
parlamentar só se efetivou pela interferência do Poder Moderador. Dentro
da República os que mais realizam são os que menos doutrinam. Ainda
agora, nas plataformas dos nossos candidatos, não procuramos os traços de
uma ideologia política, porém o que nos interessa é apenas a diretriz da
administração.
País sem preconceitos, podemos destruir as nossas bibliotecas, sem a
menor conseqüência no metabolismo funcional dos órgãos vitais da Nação.
Tudo isso, em razão do nacionalismo tupi, da não-filosofia, da ausência
de sistematizações.
Somos um país de imigração e continuaremos a ser refúgio da humanidade
por motivos geográficos e econômicos demasiadamente sabidos. Segundo os
de Reclus, cabem no Brasil 300 milhões de habitantes. Na opinião bem
fundamentada do sociólogo mexicano Vasconcelos, é de entre as bacias do
Amazonas e do Prata que sairá a 'quinta raça', a `raça cósmica', que
realizará a concórdia universal, porque será filha das dores e das
esperanças de toda a humanidade. Temos de construir essa grande nação,
integrando na Pátria Comum todas as nossas expressões históricas,
étnicas, sociais, religiosas e políticas. Pela força centrípeta do
elemento tupi.
Mas, se o tupi se erigir em filosofia, criará antagonismos, provocará
dissociação, será uma força centrifuga. E o Brasil falhará, pois
precipitará acontecimentos.
Toda e qualquer sistematização filosófica entre nós será tapuia
(destinada a desaparecer assediada por outras tantas doutrinas) porque
viverá a vida efêmera das formas ideológicas de antecipação, das fórmulas
arbitrárias da inteligência, tendo necessidade de criar uma exegese
específica, unilateral e sem a amplitude dos largos e desafogados
pensamentos e sentimentos americanos e brasileiros.
Foi o índio que nos ensinou a rir de todos os sistemas e de todas as
teorias. Criar um sistema em nome dele será substituir a nossa intuição
americana e a nossa consciência de homens livres por uma mentalidade de
análise e de generalização características dos povos já definidos e
cristalizados.
A continuação do caminho histórico tupi só se dará pela ausência de
imposições temáticas, de imperativos ideológicos. O arbítrio mental não
pode sobrepor-se às fatalidades cósmicas, étnicas, sociais ou religiosas.
O estudo do Brasil já não será o estudo do índio. Do mesmo modo que o
estudo da humanidade, que produziu o budismo, o cristianismo, a Grécia, a
Idade Média, o romantismo e a eletricidade, não será apenas a pesquisa
freudiana do homem da pedra lascada. Se Freud nos dá um algarismo, a
história da Civilização nos ofereceu uma equação em que esse algarismo
entra tão-só como um dos muitíssimos fatores.
Assim, também o índio é um termo constante na progressão étnica e
social brasileira; mas um termo não é tudo. Ele já foi dominado, quando
se agitou entre nós a bandeira nacionalista, - o denominador .comum das
raças adventícias. Colocá-lo como numerador seria diminuí-lo. Sobrepô-lo
será fadá-lo ao desaparecimento. Porque ele ainda vive, subjetivamente, e
viverá sempre como um elemento de harmonia entre todos os que, antes de
desembarcar em Santos, atiraram ao mar, como o cadáver de Zaratustra, os
preconceitos e filosofias de origem.
Estávamos e estamos fartos da Europa ,e proclamamos sem cessar a
liberdade de ação brasileira.
Há uma retórica feita de palavras, como há uma retórica feita de
idéias. No fundo, são* ambas feitas de artifícios e esterilidades.
Combatemos, desde 1921, a velha retórica verbal, não aceitamos uma nova
retórica submetida a três ou quatro regras, de pensar e de sentir.
Queremos ser o que somos: brasileiros. Barbaramente, com arestas, sem
auto-experiências científicas, sem psicanálises e nem teoremas.
Convidamos a nossa geração a produzir sem discutir. Bem ou mal, mas
produzir. Há sete anos que a literatura brasileira está em discussão.
Procuremos escrever sem espírito preconcebido, não por mera experiência
de estilos, ou para veicular teorias, sejam elas quais forem, mas com o
único intuito de nos revelarmos, livres de todos os prejuízos.
A vida, eis o que nos interessa, eis o que interessa à grande massa do
povo brasileiro. Em sete anos a geração nova tem sido o público de si
mesmo. O grosso da população ignora a sua existência e se ouve falar em
movimento moderno é pelo prestígio de meia dúzia de nomes que se
impuseram pela força pessoal de seus próprios talentos.
O grupo `verdamarelo', cuja regra é a liberdade plena de cada um ser
brasileiro como quiser e puder; cuja condição é cada um interpretar o seu
país e o seu povo através de si mesmo, da própria determinação
instintiva; - o grupo `verdamarelo', à tirania das sistematizações
ideológicas, responde com a sua alforria e a amplitude sem obstáculo de
sua ação brasileira. Nosso nacionalismo é de afirmação, de colaboração
coletiva, de igualdade dos povos e das raças, de liberdade do pensamento,
de crença na predestinação do Brasil na humanidade, de fé em nosso valor
de construção nacional.
Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas
mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil, como o fez, através
de quatro séculos, a alma da nossa gente, através de todas as expressões
históricas.
Nosso nacionalismo é 'verdamarelo' e tupi.
O objetivismo das instituições e o subjetivismo da gente sob a atuação
dos fatores geográfico e histórico.
(Correio Paulistano, 17 de maio de 1929.)
MANIFESTO ANTROPÓFAGO
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de
todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de
paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em
drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia
impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo
interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema
americano informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com
toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos
touristes. No país da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E
nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental.
Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência
palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl
estudar.
Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A
unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem n6s a
Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as
girls.
Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre.
Montaig-ne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao
Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro
tecnizado de Keyserling. Caminhamos..
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo.
Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar
comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem
muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira
deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O
antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio
contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da
Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O
stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte
das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das
conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O instinto Caraíba.
Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma
Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.
Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de
senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar
cheio de bons sentimentos portugueses.
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de
ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju*
A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos,
dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a
morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a
garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli
Mathias. Comia.
Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?
Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo
não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.
A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão.
Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um
antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização
que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos
viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.
Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política
que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.
As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses
urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.
De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem.
Antropofagia.
O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das
coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole
curiosa.
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus.
Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga.
Que temos nós com isso?
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a
felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de
Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas
praças públicas. Suprimarnos as idéias e as outras paralisias. Pelos
roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas
estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
A alegria é a prova dos nove.
A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela
contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o
modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para
transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém,
só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz
em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados
por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do
instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De
carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor.
Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao
aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a
inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos
cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de
Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João
VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum
aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito
bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud –
a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem
penitenciárias do matriarcado de Pindorama.
OSWALD DE ANDRADE Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha."
(Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)
BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA (Alcântara Machado)
LISETTA
Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo,
felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.
Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.
Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na boca. Pôs
mas não chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus olhinhos de vidro
não diziam absolutamente nada. No colo da menina de pulseira de ouro e
meias de seda parecia um urso importante e feliz.
- Olha o ursinho que lindo, mamãe!
- Stai zitta!
A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o
urso. Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a
esquerda, depois para a direita, olhou para cima, depois para baixo.
Lisetta acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada. E com um ardor nos
olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda a importância.
Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam, se cruzam, batem umas
nas outras.
- As patas também mexem, mamã. Olha lá!
- Stai ferma!
Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou
alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma
careta horrível e apertou contra o peito o bichinho que custara cinqüenta
mil-réis na Casa São Nicolau.
- Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa?
- Ah!
- Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças são
muito levadas. Scusi. Desculpe.
A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha, sorriu
para o bicho, fez uma carícia na cabeça dele, abriu a bolsa e olhou o
espelho.
Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido da filha:
- In casa me lo pagherai!
E pespegou por conta um beliscão no bracinho magro. Um beliscão daqueles.
Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou. Soluçou. Chorou.
Soluçou. Falando sempre.
- Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe!
Eu que...ro o... o... o... Hã! Hã!
- Stai ferina o ti amazzo, parola d'onore!
- Um pou...qui...nho só! Hã! E... hã! E... hã! Um pou...qui...
- Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più!
Um escândalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro testemunhou o feio
que Lisetta fez.
O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para a direita, para
cima e para baixo.
- Non piangere più adesso!
Impossível.
O urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de má, antes de entrar no
palacete estilo empreiteiro português, voltou-se e agitou no ar O bichinho.
Para Lisetta ver. E Lisetta viu.
Dem-dem! O bonde deu um solavanco, sacudiu os passageiros, deslizou, rolou,
seguiu. Dem-dem!
- Olha à direita!
Lisetta como compensação quis sentar-se no banco. Dona Mariana (havia pago
uma passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.
A entrada de Lisetta em casa marcou época na história dramática da família
Garbone.
Logo na porta um safanão. Depois um tabefe, Outro no corredor. Intervalo de
dois minutos. Foi então a vez das chineladas. Para remate. Que não acabava
mais.
O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de
barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe.
Mas o Ugo chegou da oficina.
- Você assim machuca a menina, mamãe! Cotadinha dela!
Também Lisetta já não agüentava mais.
- Toma pra você. Mas não escache.
Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do
tamanho de um passarinho. Mas urso.
Os irmãos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quis logo pegar no
bichinho. Quis mesmo tomá-lo à força. Lisetta berrou como uma desesperada:
- Ele é meu! O Ugo me deu!
Correu para o quarto. Fechou-se por dentro.
**************
NOTAS BIOGRÁFICAS DO NOVO DEPUTADO
O coronel recusou a sopa.
- Que é isso, Juca? Está doente?
O coronel coçou o queixo. Revirou os olhos. Quebrou um palito. Deu um
estalo com a língua.
- Que é que você tem, homem de Deus?
O coronel não disse nada. Tirou uma carta do bolso de dentro. Pôs os
óculos. Começou a ler:
Ex.mo snr. coronel Juca.
- De quem é?
- Do administrador da Santa Inácia.
- Já sei. Geada?
- Escute. Ex.mo snr. coronel Juca. Rospeitosas Saudações. Em primeiro lugar
Saudo-vos. V. Ecia. e D. Nequinha. Coronel venho por meio desta
respeitosameute comunicar para V. E. que o cafezal novo agradeceu bastante
as chuvarada desta semana. E tal e tal e tal. Me acho doente diversos
incomodos divido o serviço.
- Coitado.
- Mas não é isso. O major Domingo Neto mandou buscar a vacca... Oh senhor!
Não acho...
- Na outra página, Juca.
- Está aqui. Vá escutando. Em último lugar, vos communico que o seu
comprade João Intaliano morreu...
- Meu Deus, não diga?!
- ... morreu segunda que passou de uma anemia nos rim. Por esses motivos
recolhi em casa o vosso afilhado e orpham Gennrinho. Pesso para V.E. que me
mande dizer o distino e tal. E agora, mulher?
Dona Nequinha suspirou. Bebeu um gole de água. Mandou levar a sopa.
- E então?
Dona Nequinha passou a língua nos lábios. Levantou a tampa da farinheira.
Arranjou o virote.
- E então? Que é que eu respondo?
Dona Nequinha pensou. Pensou. Pensou. E depois:
- Vamos pensar bem primeiro, Juca. Não coma o torresmo que faz mal. Amanhã
você responde. E deixe-se de extravagâncias.
Gennarinho desceu na estação da Sorocabana com o nariz escorrendo. Todo
chibante. De chapéu vermelho. Bengalinha na mão. Rebocado pelo filho mais
velho do administrador. E com uma carta para o Coronel J. Peixoto de Faria.
Tomou o coche Hudson que estava à sua espera.
Veio desde a estação até a Avenida Higienópolis com a cabeça para fora do
automóvel soltando cusparadas. Apertou o dedo no portão. Disse uma palavra
feia. Subiu as escadas berrando.
- Tire o chapéu.
Tirou.
- Diga boa noite.
Disse.
- Beije a mão dos padrinhos.
Beijou.
- Limpe o nariz.
Limpou com o chapéu.
- Pronto, Nhãzinha. A telefonista cortou. Chegou anteontem. Espertinho como
ele só. Nem você imagina. Tem nove anos. É sim. Crescidinho. Juca ficou com
dó dele. Pois é. Coitadinho. Imagine. Pois é. Faz de conta que é um filho.
Já estou querendo bem mesmo. Gennarinho. O quê? É sim. Nome meio esquisito.
Também acho. O Juca está que não pode mais de satisfeito. Ele que sempre
desejou ter tanto um filho, não é? Pois então. Nasceu no Brás. O pai era
não sei o quê. Estava na fazenda há cinco anos já. Bom, Nhãzinha. O Juca
está me chamando. Beijos na Marianinha. Obrigada. O mesmo. Até amanhã. Ah!
Ah! Ah Imagine! Nesta idade!... Até amanhã, Nhãzinha. Que é que você
queria, Juca?
- Agora é tarde. Você não sabe o que perdeu.
- O Gennarinho, é?
- Diabinho de menino! Querendo a toda força levantar a saia da Atsué.
- Mas isso não está direito, Juca. Vou já e já...
- É. Direito não está mesmo. Mas é engraçado.
- ... dar uns tapas nele.
- Não faça isso, ora essa! Dar à toa no menino!
- Não é à toa, Juca.
- Bom. Então dê. Olhe aqui: eu mesmo dou, sabe? Eu tenho mais jeito.
Um dia na mesa o coronel implicou:
- Esse negócio de Gennarinho não está certo. Gennarinho não é nome de
gente. Você agora passa a se chamar Januário que é a tradução. Eu já
indaguei. Ouviu? Êta menino impossível! Sente-se já aí direito! Você passa
a se chamar Januário. Ouviu?
- Ouvi.
- Não é assim que se responde. Diga sem se mexer na cadeira: Ouvi, sim
senhor.
- Ouvi, sim senhor coronel!
Dona Nequinha riu como uma perdida. Da resposta e da continência.
Uma noite na cama Dona Nequinha perguntou:
- Juca: você já pensou no futuro do menino?
O coronel estava dorme não dorme. Respondeu bocejando:
- Já-á-á!...
- Que é que você resolveu?
O coronel levou um susto.
- O quê? Resolveu o quê?
- O futuro do menino, homem de Deus!
- Hã!...
- Responda.
O coronel coçou primeiro o pescoço.
- Para falar a verdade, Nequinha, ainda não resolvi nada.
O suspiro desanimado da consorte foi um protesto contra tamanha indecisão.
- Mas você não há de querer que ele cresça um vagabundo, eu espero.
- Pois está visto que não quero.
Aproveitando o silêncio o despertador bateu mais forte no criado-mudo. Dona
Nequinha ajeitou o travesseiro. São José dentro de sua redoma espiou o vôo
de dois pernilongos.
- Eu acho que... Apague a luz que está me incomodando.
- Pronto. Acho o quê?
- Eu acho que a primeira cousa que se deve fazer é meter o menino num
colégio.
- Num colégio de padres.
- É.
- Eu sou católica. Você também é. O Januário também será.
- Muito bem...
- Você parece que está dizendo isso assim sem muito entusiasmo...
Era sono.
- Amanhã-ã-ã... ai! ai!... nós vemos isso direito, Nequinha...
Até o coronel ajudou a aprontar o Januário. Foi quem pôs ordem na cabelada
cor de abóbora. Na terceira tentativa fez uma risca bem no meio da cabeça.
- Agora só falta a merenda.
Dona Nequinha preparou logo. Pão francês. Goiabada Pesqueira. Queijo
Palmira.
- Diga pro Inácio tirar o automóvel. O fechado.
A comoção era geral. Dona Nequinha apertou mais uma vez a gravata azul do
Januário. O coronel deu uma escovadela, pensativo, no gorro. Januário fez
uma cara de vítima.
- Vamos indo que está na hora.
Dona Nequinha (o coronel já se achava no meio da escadaria de mármore
carregando a pasta colegial) beijou mais uma vez a testa do menino.
Chuchurreadamente. Maternalmente.
- Vá, meu filhinho. E tenha muito juízo, sim? Seja muito respeitador. Vá.
Todo compenetrado, de pescoço duro e passo duro, Januário alcançou o
coronel.
A meninada entrava no Ginásio de São Bento em silêncio e beijava a mão do
Senhor Reitor. Depois disparava pelos corredores jogando os chapéus no ar.
As aulas de portas abertas esperavam de carteiras vazias. O berreiro
sufocava o apito dos vigilantes.
- Cumprimente o Senhor Reitor.
D. Estanislau deu umas palmadinhas na nuca do Januário. Januário tremeu.
- Crescidinho já. Muito bem. Muito bem. Como se chama?
Januário não respondeu.
- Diga o seu nome para o Senhor Reitor.
- Januário.
- Ah! Muito bem. Januário. Muito bem. Januário de quê?
Januário estava louco para ir para o recreio. Nem ouviu.
- Diga o seu nome todo, menino!
Com os olhos no coronel:
- Januário Peixoto de Faria.
O porteiro apareceu com unia sineta na mão. Dlin-dlin! Dlin-dlin! Dlin-
dlin!
O coronel seguiu para o São Paulo Clube pensando em fazer testamento.
O MONSTRO DE RODAS
O Nino apareceu na porta. Teve um arrepio. Levantou a gola do paletó.
- Ei, Pepino! Escuta só o frio!
Na sala discutiam agora a hora do enterro. A Aída achava que de tarde
ficava melhor. Era mais bonito. Com o filho dormindo no colo Dona
Mariângela achava também. A fumaça do cachimbo do marido ia dançar bem em
cima do caixão.
- Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora
Dona Nunzia descabelada enfiava o lenço na boca.
- Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora.
Sentada no chão a mulata oferecia o copo de água de flor de laranja.
- Leva ela pra dentro!
- Não! Eu não quero! Eu... não... quero!...
Mas o marido e o irmão a arrancaram da cadeira e ela foi gritando para o
quarto. Enxugaram-se lágrimas de dó.
- Coitada da Dona Nunzia!
A negra de sandália sem meia principiou a segunda volta do terço.
- Ave Maria, cheia de graça, o Senhor...
Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepípedos da Rua Sousa Lima.
Passavam cestas para a feira do Largo do Arouche. Garoava na madrugada
roxa.
- ... da nossa morte. Amém. Padre Nosso que estais no Céu...
O soldado espiou da porta. Seu Chiarini começou a roncar muito forte. Um
bocejo. Dois bocejos. Três. Quatro.
- ... de todo o mal. Amém.
A Aída levantou-se e foi espantar as moscas do rosto do anjinho.
Cinco. Seis.
O violão e a flauta recolhendo de farra emudeceram respeitosamente na
calçada.
Na sala de jantar Pepino bebia cerveja em companhia do Américo Zamponi
(SALÃO PALESTRA ITÁLIA – Engraxa-se na perfeição a 200 réis) e o Tibúrcio (-
O Tibúrcio... – O mulato? – Quem mais há de ser?).
- Quero só ver daqui a pouco a noticia do Fanfulla. Deve cascar o
almofadinha.
- Xi, Pepino! Você é ainda muito criança. Tu é ingênuo, rapaz. Não conhece
a podridão da nossa imprensa. Que o quê, meu nego. Filho de rico manda
nesta terra que nem a Light. Pode matar sem medo. É ou não é, Seu Zamponi?
Seu Américo Zamponi soltou um palavrão, cuspiu, soltou outro palavrão,
bebeu, soltou mais outro palavrão, cuspiu.
- É isso mesmo, Seu Zamponi, é isso mesmo!
O caixãozinho cor-de-rosa com listas prateadas (Dona Nunzia gritava) surgiu
diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a molecada
pulava) nas mãos da Aída, da Josefina, da Margarida e da Linda.
- Não precisa ir depressa para as moças não ficarem escangalhadas.
A Josefina na mão livre sustentava um ramo de flores. Do outro lado a Linda
tinha a sombrinha verde, aberta. Vestidos engomados, armados, um branco, um
amarelo, um creme, um azul. O enterro seguiu.
O pessoal feminino da reserva carregava dálias e palmas-de-são-josé. E na
calçada os homens caminhavam descobertos.
O Nino quis fechar com o Pepino uma aposta de quinhentão.
- A gente vai contando os trouxas que tiram o chapéu até a gente chegar no
Araçá. Mais de cinqüenta você ganha. Menos, eu.
Mas o Pepino não quis. E pegaram uma discussão sobre qual dos dois era o
melhor: Friedenreich ou Feitiço.
- Deixa eu carregar agora, Josefina?
- Puxa, que fiteira! Só porque a gente está chegando na Avenida Angélica.
Que mania de se mostrar, que você tem!
O grilo fez continência. Automóveis disparavam para o corso com mulheres de
pernas cruzadas mostrando tudo. Chapéus cumprimentavam dos ônibus, dos
bondes. Sinais-da-santa-cruz. Gente parada.
Na Praça Buenos Aires, Tibúrcio já havia arranjado três votos para as
próximas eleições municipais.
- Mamãe, mamãe! Venha ver um enterro, mamãe!
Aída voltou com a chave do caixão presa num lacinho de fita. Encontrou Dona
Nunzia sentada na beira da cama olhando o retrato que a Gazeta publicara.
Sozinha. Chorando.
- Que linda que era ela!
- Não vale a pena pensar mais nisso, Dona Nunzia...
O pai tinha ido conversar com o advogado.
**********************
A SOCIEDADE
- Filha minha não casa com filho de carcamano!
A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi
brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com
gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José
Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o
fraque.
O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa
Rita do escritório para o terraço.
O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada
cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia - uiiiia! Adriano MeIli calcou
o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de
novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua.
Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe:
uiiiiia-uiiiiia!
- O que você está fazendo aí no terraço, menina.
- Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?
Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do
Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.
- Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!
- Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!
Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para
a Avenida Paulista.
Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra
para gritar:
Dizem que Cristo nasceu em Belém...
Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o
pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela
vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.
Os pares dançarmos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo
tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços
enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas
contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.
- Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.
- Não!
- Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu.
... mas a história se enganou!
As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de
farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui
Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-
turururum!
- Meu pai quer fazer um negocio com o seu.
- Ah sim?
Cristo nasceu na Bahia, meu bem...
O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra
espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.
... e o baiano criou!
- Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o
filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?
- Já sei, mulher, já sei.
Mas era cousa muito diversa.
O Cav. Uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou
como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmcnte as
vantagens econômicas de sua proposta.
- O doutor...
- Eu não sou doutor, Senhor Melli.
- Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem.
E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando
quiser. lo resto à sua disposição. Ma pense bem!
Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns
terrenos em São Caetano. Cousas de herança. Não lhe davam renda alguma. O
Cav. Uff. tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos.
Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O Cav.
Uff. com o capital. Armavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte
para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo.
- É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital e senhor compreende é
impossível...
- Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor
entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio.
O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a
emoção. A negra de broche serviu o café.
- Dopo o doutor me dá a resposta. lo só digo isto: pense bem.
O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou
para um quadro.
- Bonita pintura.
Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.
- Francese? Não é feio non. Serve.
Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando
para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.
- Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob
a minha direção, si capisce.
- Sei, sei... O seu filho?
- Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?
O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cav. Uff. na direção da
porta.
- Repito un'altra vez: O doutor pense bem.
O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado.
- E então? O que devo responder ao homem?
- Faça como entender, Bonifácio...
- Eu acho que devo aceitar.
- Pois aceite.
E puxou o lençol.
A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.
O Conselheiro José Bonifácio ----------O Cav. Uff. Salvatore Melli
de Matos e Arruda ------------------------------------e-------
--------e ----------------------------------------senhora
senhora ------------------------------------------
têm a honra de participar -------------- têm a honra de participar
a V. Ex.a e Ex.ma família o ------------a V. Ex.a e Ex.ma família o
contrato de casamento de sua ----contrato de casamento de seu
filha Teresa Rita com o Sr.------- filho Adriano com a Senhorinha
---------Adriano Melli.---------------Teresa Rita de Matos Arruda.
Rua da Liberdade, n.0 259-C. ------Rua da Barra Funda, n.0 427.
S. Paulo 19 de fevereiro de 1927.
No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente
recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia
cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau português, quase sempre fiado e
até sem caderneta.
***************
GAETANINHO
— Xi, Gaetaninho, como é bom!
Gaetaninho ficou banzando1 bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e
ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o
palavrão.
— Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro.
Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de
sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
— Subito!
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o
terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de
campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea
e varoupela esquerda porta adentro. Eta salame de mestre!
Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou
carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso
mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho. O
Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade.
Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim
também não era vantagem.
Mas se era o único meio? Paciência. Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do
travesseiro.
Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a
Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela
de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro.
Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO.
Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que
o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que
beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de
gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita
gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o
enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho. Mas Gaetaninho ainda não estava
satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não
queria deixar. Nem por um instantinho só. Gaetaninho ia berrar mas a Tia
Filomena com a mania de realização muito difícil. Um sonho. O Beppino por
exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como?
Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era
vantagem. Mas se era o único meio? Paciência. Gaetaninho enfiou a cabeça
embaixo do travesseiro. Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos
empenachados levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre.
Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia 5 do
carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se
lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas
com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas
segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois
irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o
padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas
dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho. Mas
Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O
desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.
Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com a mania de realização muito
difícil. Um sonho. O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde
atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se
mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.
Mas se era o único meio? Paciência.
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a
Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela
de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro.
Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO.
Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que
o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que
beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de
gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita
gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o
enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho. Mas Gaetaninho ainda não estava
satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não
queria deixar. Nem por um instantinho só. Gaetaninho ia berrar mas a Tia
Filomena com a mania de realização muito difícil. Um sonho.
O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a
cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim
também não era vantagem.
Mas se era o único meio? Paciência.
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a
Tia Filomena para o cemitério.
Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele.
Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro.
Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO.
Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o
irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que
beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de
gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita
gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o
enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho. Mas Gaetaninho ainda não estava
satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não
queriadeixar. Nem por um instantinho só. Gaetaninho ia berrar mas a Tia
Filomena com a mania de cantar o "Ahi, Mari!" todas as manhãs o acordou.
Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio. Tia Filomena teve
um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele
sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou
logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho.
Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, Seu Rubino,
que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.
Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de
sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de
raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca
mesmo.
O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não
estava ligando.
— Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
— Meu pai deu uma vez na cara dele.
— Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
O Vicente protestou indignado:
— Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de
responsabilidades.
O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco
arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas,
Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
— Passa pro Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu
o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
— Vá dar tiro no inferno!
— Cala a boca, palestrino!7
— Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou
e matou.
No bonde vinha o pai do Gaetaninho.
A gurizada assustada espalhou a notícia na noite.
— Sabe o Gaetaninho?
— Que é que tem?
— Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e
Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no
da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a
roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha. Quem na
boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que
feria a vista da gente era o Beppino.
-----------------------
1.
1. Esclareça a sobreposição de imagens utilizada pelo poeta. (Cubismo)
Hípica
Saltos records
Cavalos da Penha
Correm jóqueis de Higienópolis
Os magnatas
As meninas
E a orquestra toca
Chá
Na sala de cocktails
(Oswald de Andrade)
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
(Álvaro Campos – Fernando Pessoa)
1. Aponte alguns aspectos característicos do movimento futurista.
2. Que tipo de relação se estabelece entre o enunciador e a máquina?
A terra é uma paisagem imensa que Deus nos deu. Temos que olhar para
ela de tal forma que chegue até nós sem deformação. Ninguém duvida de que a
essência das coisas não seja a sua realidade exterior. A realidade tem que
ser criada por nós. A significação do assunto deve ser sentida. Os fatos
acreditados, imaginados, anotados não são o suficiente; pelo contrário, a
imagem do mundo tem de ser espelhada puramente e não falsificada. Mas isso
está apenas dentro de nós mesmos. (Kasimir Edschmid) (Expressionismo)
A criação artística, evidentemente, não é delírio. Mas é,
igualmente, uma alteração, uma deformação, uma transformação da realidade,
segundo as leis particulares da arte. A arte, por mais fantástica que seja,
não dispõe de nenhum outro material além daquele que lhe fornecem o mundo
de três dimensões e o mundo mais estreito da sociedade de classes. Mesmo
quando o artista cria o céu ou cria o inferno, ele simplesmente transforma
a experiência de sua própria vida em fantasmagorias, até inclusive a conta
não-paga do aluguel. (Trotski, 1969, p. 153-4) (Expressionismo)
a canção de um dadaísta
que tinha dadá no coração
cansava demasiado seu motor
que tinha dadá no coração
o ascensor levava um rei
pesado frágil e autônomo
cortou seu grande braço direito
o enviou ao papa em roma
(Tristan Tzara)
(Dadaísmo)
Pegue um jornal
Pegue uma tesoura
Escolha um artigo do jornal na dimensão que você quer dar ao seu poema
Recorte o artigo
Depois recorte alguns palavras do artigo e as ponha numa pequena bolsa
Sacuda-a suavemente
Tire em seguida cada palavra uma após outra
Copie honestamente na ordem em que saíram da bolsa
E o poema estará pronto e parecido com você
E você será um poeta de original, fascinante sensibilidade,
ainda que a plebe não o compreenda.
Álvaro de Campos
o
Poeminha surrealista
Gostaria, querida,
De ser inesperado
Como uma madrugada amanhecendo
À noite
E engraçado, também,
Como um pato num trem.
(Millôr Fernandes)
No trono havia uma vez
um velho rei que se aborrecia
e pela noite perdia o seu manto
e por rainha puseram-lhe ao lado
a re a re a realidade.
CAUDA: dade dade a reali
dade dade a realidade
A real a real
idade idade dá a reali
ali
a re a realidade
(Surrealismo)
As realidades
(fábula)
Era uma vez uma realidade
com suas ovelhas de lã real
a filha do rei passou por ali
E as ovelhas baliam que linda que está
a re a re a realidade.
Na noite era uma vez
uma realidade que sofria de insônia
Então chegava a madrinha fada
e realmente levava-a pela mão
a re a re a realidade.
era uma vez a REALIDADE.
1. Destaque as características surrealistas dos textos do Millôr Fernandes
e Murilo Mendes.
2. Ilustre os poemas.
Botafogo
Desfilam algas sereias peixes e galeras
E legiões de homens desde a pré-história
Diante do Pão de Açúcar impassível.
Um aeroplano bica a pedra amorosamente
A filha do português debruçou-se à janela
Os anúncios luminosos lêem seu busto
A enseada encerrou-se num arranha-céu.
(Murilo Mendes)
1. O poema apresenta uma cena com elementos estranhos ao real, que remetem
ao universo dos sonhos. Que cena é essa?
2. O título do poema apresenta mais de um significado possível. Qual seria
o significado mais convencional da expresão pastor pianista?
3. Na última estrofe, o eu lírico deixa de se referir aos pianos e passa a
reletir sobre a natureza humana. Quais são, segundo o eu lírico, as ações
desempenhadas pelo homem no mundo?
4. Através de que meios o homem "comunica-se com os deuses."
O pastor pianista
Soltaram os pianos na planície desenta
Onde as sombras dos pássaros vêm beber.
Eu sou o pastor pianista,
Vejo ao longe com alegria meus pianos
Recortarem os vultos monumentais
Contra a lua.
Acompanhado pelas rosas migradoras
Apascento os pianos: gritam
E transmitem o antigo clamor do homem
Que reclamando a contemplação,
Sonha e provoca a harmonia,
Trabalha mesmo à força,
E pelo vento nas folhagens,
Pelos planetas, pelo andar das mulheres,
Pelo amor e seus contrastes,
Comunica-se com os deuses.
(Murilo Mendes)
Manifesto do Surrealismo
(André Breton - 1924)
Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem
entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse
sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso com seu destino, a custo
repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua
displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar,
ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão ( o que ele chama
decisão! ) . Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que
possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza
para ele não valem nada, quanto a isso, continua recém-nascido, e quanto à
aprovação de sua consciência moral, admito que lhe é indiferente. Se
conservar alguma lucidez, não poderá senão recordar-se de sua infância, que
lhe parecerá repleta de encantos, por mais massacrada que tenha sido com o
desvelo dos ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo conhecido lhe
dá a perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a
essa ilusão; só quer conhecer a facilidade momentânea, extrema, de todas as
coisas. Todas as manhãs, crianças saem de casa sem inquietação. Está tudo
perto, as piores condições materiais são excelentes. Os bosques são claros
ou escuros, nunca se vai dormir.
Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de
distância apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte
da posição a conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só
se lhe permite atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é
incapaz de assumir por muito tempo esse papel inferior, e quando chega ao
vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o homem ao seu destino sem luz.
Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que
pouco a pouco lhe faltam razões para viver, incapaz como ficou de
enfrentar uma situação excepcional, como seja o amor, ele muito
dificilmente o conseguirá. É que ele doravante pertence, de corpo e alma, a
uma necessidade prática imperativa, que não permite ser desconsiderada.
Faltará amplidão a seus gostos, envergadura a suas idéias. De tudo que lhe
acontece e pode lhe acontecer, ele só vai reter o que for ligação deste
evento com uma porção de eventos parecidos, nos quais não toma parte,
eventos perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em relação a um desses
acontecimentos, menos aflitivo que os outros, em suas conseqüências. Ele
não descobrirá aí, sob pretexto algum, sua salvação.
Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares.
Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a
considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo
humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos
infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de
espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela.
Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que
vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si,
de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é
bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante
também para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar ( como se
fosse possível enganar-se mais ainda ). Onde começa ela a ficar nociva, e
onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a possibilidade de
errar não é, antes, a contingência do bem?
Fica a loucura. "a loucura que é encarcerada", como já se disse bem.
Essa ou a outra.. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua
internação senão a um reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e
que, não houvesse estes atos, sua liberdade ( o que se vê de sua liberdade
) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de
sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que ela os impele à
inobservância de certas regras, fora das quais o gênero se sente visado, o
que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas
em relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que
lhes são impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua
imaginação e apreciam seu delírio o bastante para suportar que só para
eles seja válido. E, de fato, alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo
nada desprezível. A mais bem ordenada sensualidade encontra aí sua parte, e
eu sei que passaria muitas noites a amansar essa mão bonita nas últimas
páginas do livro. A Inteligência de Taine, se dedica a singulares
malefícios. As confidências dos loucos, passaria minha vida a provocá-las.
São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como
igual. Foi preciso Colombo partir com loucos para descobrir a América. E
vejam como essa loucura cresceu, e durou.
Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a
bandeira da imaginação.
O processo da atitude realista deve ser instruído, após o processo
da atitude materialista. Esta, aliás, mais poética que a precedente,
implica da parte do homem um orgulho sem dúvida monstruoso, mas não uma
nova e mais completa deposição. Convém nela ver, antes de tudo, uma feliz
reação contra algumas tendências derrisórias do espiritualismo. Enfim, ela
não é incompatível com uma certa elevação de pensamento.
Álvaro de Campos
Álvaro de Campos
Álvaro de Campos
1. A decadentista ou do opiário
Autopsicografia
1. Qual o jogo de palavras que aparece na 1ª estrofe do poema?
2. Qual é o tipo de dor apresentada pelo poeta?
3. Explique a 3ª estrofe.
Eros e Psique
1. Qual o sentido do poema?
4.
Navegar é preciso
1. Como o poeta pode tornar a sua vida grande?
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
(F. Pessoa)
Eros e Psique
...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau
de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são,
ainda que opostas, a mesma verdade.
(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio
Na Ordem Templária De Portugal)
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
(F. Pessoa)
Abdicação
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho... eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
(F. Pessoa)
F. Pessoa
LIBERDADE
Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...
O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...
São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.
São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.
(F. Pessoa)
1.Explique como ocorre essa liberdade para o poeta.
1. Explique a metáfora de rei, reinado que o poeta faz.
2. O que o poeta abdica?
Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
(F. Pessoa)
1. Qual é a dor sentida pelo poeta?
Isto
Dizem que eu finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda.
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio.
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
(F. Pessoa)
NAVEGAR É PRECISO
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse
fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
(F.
Pessoa)
1. Compare este poema com o poema autopsicografia.
2. Quais as duas vidas apresentadas pelo poeta?
3. O poeta se deixa levar pela emoção ou pela razão?
1. O que é escrever para o poeta?
2. Explique o jogo entre razão e emoção.
III. Os Tempos
Quinto/Nevoeiro
NEM REI nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerr.
Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem.
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que anciã distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!
Valete, Frates (Valei, irmãos)
III. As Quinas
Quina/D. Sebastião, Rei de Portugal
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
II. Os Castellos
Primeiro/Ulisses
O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.
Mensagem – Fernando Pessoa - ortônimo
I. Os symbolos
Primeiro/D. Sebastião
Espere! Cai no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É o que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
MAR PORTUGUÊS
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
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3
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
O Guardador de Rebanho
(Alberto Caeiro)
I
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
2. Fala-se de um paganismo de Caeiro. Pela leitura do poema, você diria
que Caeiro acredita ou não em Deus? Por quê?
1. "Os pensamentos de Alberto Caeiro não passam de sensações", isso pode
ser comprovado no poema? Que palavras justificam a afirmação?
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E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que
se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
Só esta liberdade nos concedem
Os deuses: submetermo-nos
Ao seu domínio por vontade nossa.
Mais vale assim fazermos
Porque só na ilusão da liberdade
A liberdade existe.
Nem outro jeito os deuses, sobre quem
O eterno fado pesa,
Usam para seu calmo e possuído
Convencimento antigo
De que é divina e livre a sua vida.
Nós, imitando os deuses,
Tão pouco livres como eles no Olímpio,
Como quem pela areia
Ergue castelos para encher os olhos,
Ergamos nossa vida
E os deuses saberão agradecer-nos
O sermos tão como eles.
(Ricardo Reis)
Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.
Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta à flor como a ele
De Átropos a tesoura.
Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto às horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.
E ele espera, contente quase e bebedor tranqüilo,
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.
(Ricardo Reis)
Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.
(Ricardo Reis)
1. O poeta diz que "na ilusão da liberdade a liberdade existe" . Explique.
2. Explique a comparação entre deuses e seres humanos.
1. O sábio, segundo Ricardo Reis, é uma pessoa que se contenta com o
simples e parece ter pouca memória. Por que o poeta o descreve assim? Que
consequências boas podem ocorrer com isso?
1.Por que o poeta aconselha a não ter nada nas mãos?
2. Qual o sentido de ser rei de si próprio?
O Opiário
Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes,
Ergue-se a lua como a minha Sina.
Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.
Perdi os dias que já aproveitara
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.
É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.
Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.
Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.
É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.
Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.
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Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.
Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avòzinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.
Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smokink-room com o conde -
Um escroc francês, conde de fim de enterro.
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Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.
Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.
Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?
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E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.
Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure.
Se nesta viagem nem houve procelas!
A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.
Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.
Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.
Não tenho personalidade alguma.
É mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado
De laird escocês há dias em jejum.
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Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O fato é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.
Os ingleses são feitos pra existir.
Não há gente como esta pra estar feita
Com a Tranqüilidade. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.
Pertenço a um gênero de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.
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Não posso estar em parte alguma.
A minha Pátria é onde não estou.
Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.
Um dia faço escândalo cá a bordo,
Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que às vezes me debordo.
Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.
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Porque isto acaba mal e há-de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.
E quem me olhar, há-de-me achar banal,
A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...
O meu próprio monóculo me faz
Pertencer a um tipo universal.
Ah quanta alma viverá, que ande metida
Assim como eu na Linha, e como eu mística!
Quantos sob a casaca característica
Não terão como eu o horror à vida?
Ora! Eu cansava-me o mesmo modo.
Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali
Para sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.
Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O fato essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.
Veio a noite. Tocou já a primeira
Corneta, pra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar
Até que a gente saia pla coleira!
Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.
Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,
Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!
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Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.
Ah que bom que era ir daqui de caída
Pra cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.
E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh'alma!
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À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.
O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a...
Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
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Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro.
Não fazer nada é a minha perdição.
Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co'os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!
Tenho vontade de levar as mãos
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!
Ode Triunfal
À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eternos!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
[...]
Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
2. Futurista
3. Transcreva os versos em que o eu lírico manifesta desejo de tornar-se
máquina.
1. Que elementos do mundo moderno aparecem nos versos transcritos?
2. Qual é a impressão que o eu lírico manifesta, na 1ª estrofe, sobre essa
nova realidade?
3.
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havermos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja a companhia!
Ó céu azul – o mesmo de minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
LISBON REVISITED (Lisboa Revisitada)
Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-a!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro a técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
1. Destaque as partes nas quais Álvaro de Campos demonstra sua revolta
contra os padrões sociais.
2. Destaque um verso em que o poeta explicita sua profissão.
3. Vários textos de Álvaro de Campos evocam uma melancolia saudade de sua
infância, de tempos remotos, destruídos e irrecuperáveis. Destaque um verso
do texto em que esse tipo de saudade se manifesta.
2
1
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
4
3
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem
porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
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(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
5
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
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E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
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E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
10
9
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal
disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de
coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
1. Por que o poeta diz que não é nada?
2. Por que o poeta diz não crer nem em si mesmo?
3. Para quem é o mundo?
4. Explique o título do poema.
5. Com qual vanguarda européia você classifica o poema?
6. Explique o último verso do poema.
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
1. Qual a crítica que está implícita no poema?
2. O que o poeta quis dizer com: Poderão as mulheres não os terem amado , /
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! /E eu, que tenho sido
ridículo sem ter sido traído."
3. Como o eu lírico vê a si próprio? Descreva.
4. Qual a situação econômica do eu lírico? Justifique.
Álvaro de Campos
Álvaro de Campos
Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...
Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...
A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que sonhei!... )
E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...
Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...
A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto.
Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo
Dispersão
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.
2. Em dada estrofe do poema, o eu poético profetiza a própria morte. Que
estrofe é essa?
1. Como o poeta justifica a saudade que sente de si mesmo?
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Quase
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
1. Explique o verso "Se ao menos eu permanecesse aquém".
2. Por que o poeta disse que nada foi só ilusão?
3. Qual é a dor de ser-quase do poeta?
Caranguejola
- Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira -
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais - não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com este enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar...
Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...
Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
- Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom edrédon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! Levem-me prà enfermaria! -
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.
Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível - por causa da legenda...
Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda -
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...
Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora, no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.
1. Este foi um dos últimos poemas escritos por Sá-Carneiro. Identifique
nele informações autobiográficas.
Poemas de Oswald de Andrade
Canto de Regresso à Pátria
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.
Verbo crackar
Eu empobreço de repente
Tu enriqueces por minha causa
Ele azula para o sertão
Nós entramos em conscordata
Vós protestais por preferência
Eles escafedem a massa
Sê pirata
Sede trouxas
Abrindo o pala
Pessoal sarado
Oxalá que eu tivesse sabido que esse verbo era irregular.
A Descoberta
Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
os selvagens
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam por a mão
E depois a tomaram como espantados
primeiro chá
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real
as meninas da gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha.
Azorrague
-Chega! Peredoa!
Amarrados na escada
A chibata preparava os cortes
Para a salmoura
Ocaso
No anfiteatro de montanha
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu
Bíblia de pedra-sabão
Banhada no ouro das minas
Brasil
O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
— Sois cristão?
— Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
— Sim pela graça de Deus
Canhém Babá Canhém Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval
Relicário
No baile da Corte
Foi o conde d'Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É come bebê pita e caí
Pronominais
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
Amor
Humor
As Meninas da Gare
Eram três ou quatro moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
Medo da Senhora
A escrava pegou a filhinha nascida
Nas costas
E se atirou no Paraíba
Para que a criança não fosse judiada.
Oferta
Quem sabe
Se algum dia
Traria
O elevador
Até aqui
O teu amor
Escapulário
No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia
são josé del rei
Bananeiras
O Sol
O cansaço da ilusão
Igrejas
O ouro na serra de pedra
A decadência
O capoeira
- Qué apanhá sordado?
- O quê?
- Quê apanhá?
Pernas e cabeças na calçada.
Vício na fala
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mio
Para pior pio
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados.
Descobrimento
Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De sopetão senti um friúme por dentro,
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando para mim.
Não vê que me lembrei lá no norte, meu Deus! muito longe de mim,
Na escuridão ativa da noite que caiu,
Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos olhos
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu....
Senhor Feudal
Se Pedro Segundo
Vier aqui
Com história
Eu boto ele na cadeia
3 de maio
Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi
Que passariam
Diriam
É o hotel
Do menestrel
Pra m'inspirar
Abro a janela
Como um jornal
Vou fazer
A balada
Do Esplanada
E ficar sendo
O menestrel
De meu hotel
Mas não há poesia
Num hotel
Mesmo sendo
'Splanada
Ou Grand-Hotel
Há poesia
Na dor
Na flor
No beija-flor
No elevador
2
1
Balada do esplanada
Ontem à noite
Eu procurei
Ver se aprendia
Como é que se fazia
Uma balada
Antes de ir
Pro meu hotel.
É que este
Coração
Já se cansou
De viver só
E quer então
Morar contigo
No Esplanada.
Eu qu'ria
Poder
Encher
Este papel
De versos lindos
É tão distinto
Ser menestrel
No futuro
As gerações
Aperitivo
A felicidade anda a pé
Na praça Antônio Prado
São 10 horas azuis
O café vai alto como a manhã de arranha-céus
Cigarros Tietê
Automóveis
A cidade sem mitos
Ditirambo
Meu amor me ensinou a ser simples
Como um largo de igreja
Onde não há nem um sino
Nem um lápis
Nem uma sensualidade
Poemas da amiga
Gosto de estar a teu lado,
Sem brilho.
Tua presença é uma carne de peixe,
De resistência mansa e de um branco
Ecoando azuis profundos.
Eu tenho liberdade em ti.
Anoiteço feito um bairro,
Sem brilho algum.
Estamos no interior duma asa
Que fechou.
(Mário de Andrade)
Quando eu morrer
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.
(Mário de Andrade)
A meditação sobre o Tietê
(trecho inicial)
Água do meu Tietê,
Onde me queres levar?
— Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar...
É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oleosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta
O peito do rio, que é como se a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu coração exausto. De repente
O óleo das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,
É um susto. E num momento o rio
Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,
Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus valentes donde saltam
Os bichos blau e os punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,
Está negro. As águas oleosas e pesadas se aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho
[ de morte.
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite insone e
[ humana.
Rondó pra Você
De você, Rosa, eu não queria
Receber somente esse abraço
Tão devagar que você me dá,
Nem gozar somente esse beijo
Tão molhado que você me dá...
Eu não queria só porque
Por tudo quanto você me fala,
Já reparei que no seu peito
Soluça o coração bem feito
De você
Pois então eu imaginei
Que junto com esse corpo magro,
Moreninho que você me dá,
Com a boniteza a faceirice
A risada que você me dá
E me enrabicham como o quê,
Bem que eu podia possuir também
O que mora atrás do seu rosto, Rosa,
O pensamento, a alma, o desgosto
De você
(Clã do Jaboti)
Paulicéia: um dos exemplos de melhor realização da obra é Paisagem nº2
Escuridão dum meio-dia de invernia...
Marasmos... Estremeções... Brancos...
O céu é toda uma batalha convencional de confetti brancos;
e as onças pardas das montanhas no longe...
Oh! para além vivem as primaveras eternas!
As casas adormecidas
parecem teatrais gestos dum explorador do polo
que o gelo parou no frio.
Lá para as bandas do Ipiranga as oficinas tossem...
Todos os estiolados são muito brancos.
Os invernos de Paulicea são como enterros de virgem...
Italianinha, torna al tuo paese! (...)
Deus recortou a alma de Paulicéia
num cor de cinza sem odor...
Oh! Para além vivem as primaveras eternas!...
Mas os homens passam sonambulando...
E rodando num bando nefário,
vestidas de eletricidade e gasolina,
as doenças jocotam em redor... (...)
São Paulo é um palco de bailados russos.
Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes
e também as apoteoses de ilusão...
VIII
Gosto de estar a teu lado,
Sem brilho.
Tua presença é uma carne de peixe,
De resistência mansa e um branco
Escoando azuis profundos.
Eu tenho liberdade em ti.
Anoiteço feito um bairro,
Sem brilho algum.
Estamos no interior duma asa
Que fechou.
(Poemas da Amiga)
Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.
Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.
Mulher gordaça, filó
De ouro por todos os poros,
Burra como uma porta:
Paciência...
Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta do pobre arromba:
Uma bomba.
(Lira Pulistana)
Eu Sou Trezentos...
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Oh espelhos, oh Pireneus! Oh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
(Remate de Males)
Ode ao Burguês
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
O burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
É sempre um cauteloso pouco-a-pocuo!
Eu insulto as aristocracias cutelosas!
Os barões lampeões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos;
E gemem sangues de alguns milréis fracos
Para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
E tocam o Printemps com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
O êxtase fará sempre o Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tílburi!
Padaria Suíça! Morte viva ao Adriano!
"-Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
- Um colar... – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares
Ódio aos relógios musculares! Morte a infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfacimentos as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
(Poesias Completas)
III
Si o teu perfil é puríssimo, si os teu lábios
São crianças que se esvaecem no leite,
Si é pueril o teu olhar que não reflete por detrás,
Si te inclinas e a sombra caminha na direção do futuro:
Eu sei que tu sabes o que eu nem sei si tu sabes,
Em ti se resume a perversa e imaculada correria dos fatos,
És grande por demais para que sejas só felicidade!
És tudo o que eu aceito que me sejas
Só pra que o sono passe, e me acordares
Com a aurora incalculavelmente mansa do sorriso.
(Girassol da Madrugada)
Poemas de Mário de Andrade
Poemas de Manuel Bandeira
Não Sei Dançar
Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
E por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.
Irene
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor
Imagino Irene entrando no céu:
- Com licença, meu branco.
E São Pedro, bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia
num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
(Manuel Bandeira)
Doçura de, no estio recente
Ver a manhã toucar-se de flores
E o rio
mole
queixoso
Deslizar, lambendo areias e verduras;
Doçura de ouvir as aves
Em desafio de amores
cantos
risadas
Na ramagem do pomar sombrio.
(Manuel Bandeira)
Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito
infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Amanhã é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.
Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.
O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.
(Manuel Bandeira)
Teresa
Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você
E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
Se ele chorar
Se ele se ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredita não Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
Cai fora.
Porquinho-da-Índia
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.
Último poema
Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos
[intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes
[mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
- "Passei o dia à toa, à toa!"
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...
Poema do Beco
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco.
Madrigal Melancólico
O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.
O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
-Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento.
Graça que perturba e que satisfaz.
O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.
O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adora em ti, é a vida.
Profundamente
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamentev Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca da Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me e Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostituas bonitas
Para a gente namorar
Vou-me embora pra Pasárgada
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
A Morte Absoluta
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.
A Estrela da Manhã
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa? Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manhã
Arte de Amar
Se queres sentir a felicidade de amar,
esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma. Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Consolo na praia ...
Consoada
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Epílogo
Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior...
Quando o acabei - a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
O meu tinha a morta morta-cor
De senilidade e de amargura...
- O meu carnaval sem nenhuma alegria!
Belo Belo
Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.
Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes.
A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.
O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.
Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.
Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.
As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.
Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.
- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
Poema Erótico
Teu corpo claro e perfeito,
- Teu corpo de maravilha
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...
Teu corpo branco e macio
É como um véu de noivado...
Teu corpo é pomo doirado...
Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...
Teu corpo é a brasa do lume...
Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...
É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama...
Volúpia de água e da chama...
A todo momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...
Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...
Os Sapos
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinquüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."
Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...
Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Desencanto
Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto
Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.
E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca
Eu faço versos como quem morre.
Qualquer forma de amor vale a pena!!
Qualquer forma de amor vale amar!
O Menino Doente
O menino dorme.
Para que o menino
Durma sossegado,
Sentada ao seu lado
A mãezinha canta:
- "Dodói, vai-te embora!
"Deixa o meu filhinho,
"Dorme... dorme... meu..
Morta de fadiga,
Ela adormeceu.
Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela,
Se debruça e canta:
- "Dorme, meu amor.
"Dorme, meu benzinho... "
E o menino dorme.
Neologismo
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo
Teadoro, Teodora.
Noite Morta
Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.
Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.
No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.
Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.
O córrego chora.
A voz da noite...
(Não desta noite, mas de outra maior.)
O Rio
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refletí-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.
Juca olhou para a terra e a terra muda e fria
pela voz do silêncio ela também dizia:
"Juca Mulato, és meu! Não fujas que eu te sigo...
Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.
Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a esfera
há uma cova que se abre, há meu ventre que te espera...
Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada,
e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.
Por isso o que te vale ir, fugitivo e a esmo,
buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo?
Tu queres esquecer? Não fujas ao tormento...
Só por meio da dor se alcança o esquecimento.
Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,
que, na terra natal, a própria dor dói menos...
E fica que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)
no pedaço de chão em que a gente nasceu!"
Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços,
pareciam querer apertá-lo entre os braços!
"Filho da mata, vem! Não fomos nós, ó Juca,
o arco do teu bodoque, as grades da arapuca,
o varejão do barco e essa lenha sequinha
que de noite estalou no fogo da cozinha?
Depois, homem já feito, a tua mão ansiada
não fez, de um galho tosco, um cabo para a enxada?
"Não vás" – lhe disse o azul. – "Os meus astros ideais
num forasteiro céu tu nunca os verás mais.
Hostis, ao teu olhar, estrelas ignoradas
hão de relampejar como pontas de espadas.
Suas irmãs daqui, em vão, ansiosas, logo,
irão te procurar com seus olhos de fogo...
Calcula, agora, a dor destas pobres estrelas
correndo atrás de quem anda fugindo delas...
Poemas de Menotti Del Picchia
"A Voz das Coisas"
E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:
"Queres tu nos deixar, filho desnaturado?"
E um cedro o escarneceu: "Tu não sabes, perverso,
que foi de um galho meu que fizeram teu berço?"
E a torrente que ia rolar para o abismo:
"Juca, fui eu quem deu a água do teu batismo."
Uma estrela, a fulgir, disse da etérea altura:
"Fui eu que iluminei a tua choça escura
no dia em que nasceste. Eras franzino e doente.
E teu pai te abraçou chorando de contente...
- Será doutor! – a mãe disse, e teu pai sensato:
- Nosso filho será um caboclo do mato,
forte como a peroba e livre como o vento! –
Desde então foste nosso e, desde esse momento,
nós te amamos seguindo o teu incerto trilho
com carinhos de mãe que defende seu filho!"
Das curvas bruscas dos rios
Em igarapés, tangendo borés surgiram pajés
Bêbedos de sangue tapuia,
Trazendo ao almirante português
Alvíssaras das tabas tabajaras...
E Pedro Álvares Cabral
Para inaugurar a pátria de Washington Luís
Fincou na terra uma cruz.
E, de noite, o estelário queimou fogos de artifício
[no céu do Equador,
E os marinheiros trouxeram de bordo as guitarras
[para que dessem à luz
A primeira saudade brasileira.
(República dos Estados Unidos do Brasil)
A terra se enfeitara das mais raras maravilhas:
Pássaros, parasitas, caciques e serpentes,
Urros e pios, gritos e cânticos dolentes
E o mar de azulejo
Palpitava de pirogas e de quilhas.
Pelas picadas da floresta
Foram chegando as delegações da terra:
Generais carijós com tangas e miçangas,
Coronéis botocudos com escudos,
Tocantins de xavantes, guaicurus e guararapes.
A Inauguração
A convite da História Universal
Que havia marcado a festa para 21 de abril,
O Almirante Pedro Álvares Cabral
Veio com u7ma frota de luzidas caravelas,
Num séqüito naval de mastros e de velas,
De estandartes e de cruzes,
De sotainas, albardas, couraças e arcabuzes
Inaugurar a futura República
Dos Estados Unidos do Brasil.
Papagaio gaio,
quem te ensinou,
em mais
do mato, a repetir,
papagaio,
tanto nome feio?
Gaio papagaio,
gaio, gaio, gaio,
que repetes tudo...
Antes fosses
um pássaro mundo.
Papagaio do mato,
se nunca estás triste,
quem foi que te ensinou,
por maldade,
a palavra saudade?
Papagaio gaio.
Gaio, gaio, gaio.
Papagaio Gaio
Papagaio insensato,
que te fêz assim?
Que não sabes falar
brasileiro
e já sabes latim?
Papagaio insensato,
ave agreste, do mato,
que diabo em ti existe,
verde-gaio,
que nunca estás triste?
Papagaio do mato,
se nunca estás triste,
quem foi que te ensinou,
por maldade,
a palavra saudade?
Papagaio triste,
papagaio gaio,
quem te fêz tão triste
e tão gaio,
triste mas verde-gaio?
Poemas de Cassiano Ricardo
Relâmpago
A onça pintada saltou tronco acima que nem um relâmpago
de rabo comprido e cabeça amarela:
Zás!
Mas uma flecha ainda mais rápida que o relâmpago fez
rolar ali mesmo
Aquele matinal gatão elétrico e bigodudo
Que ficou estendido no chão feito um fruto de cor
que tivesse caído de uma árvore!
Canção para poder viver
Dou-lhe tudo do que como,
e ela me exige o último gomo.
Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?
Se ela se fere num espinho,
O meu sangue é que é o seu vinho.
Se ela tem sede eu é que choro,
no deserto, para lhe dar água:
E ela mata a sua sede,
já no copo de minha mágoa
Dou-lhe o meu canto louco; faço
um pouco mais do que ser louco.
E ela me exige bis, "ao palco"!
Desejo
As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.
Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.
Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.
Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.
Os nomes dados a terra descoberta
Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome
de ilha de Vera-Cruz.
Ilha cheia de graça
Ilha cheia de pássaros
Ilha cheia de luz.
Ilha verde onde havia
mulheres morenas e nuas
anhangás a sonhar com histórias de luas
e cantos bárbaros de pajés em poracés batendo os pés.
Depois mudaram-lhe o nome
pra terra de Santa Cruz.
Terra cheia de graça
Terra cheia de pássaros
Terra cheia de luz.
A grande terra girassol onde havia guerreiros de tanga e
onças ruivas deitadas à sombra das árvores
mosqueadas de sol
Mas como houvesse em abundância,
certa madeira cor de sangue, cor de brasa
e como o fogo da manhã selvagem
fosse um brasido no carvão noturno da paisagem,
e como a Terra fosse de árvores vermelhas
e se houvesse mostrado assaz gentil,
deram-lhe o nome de Brasil.
Brasil cheio de graça
Brasil cheio de pássaros
Brasil cheio de luz.
Numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
Esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.
A esperança
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera.
Nunca é figura de mulher
Do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.
A rua
Bem sei que, muitas vezes,
O único remédio
É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
A dívida, o divertimento,
O pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
De continuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
Poemas de Guilherme de Almeida
Nós III
Mas não passou sem nuvem de tristeza
esse amor que era toda a tua vida,
em que eu tinha a existência resumida
e a viva chama de minha alma, acesa.
Nem lemos sem vislumbre de incerteza
a página do amor, lida e relida,
mas pouquíssimas vezes entendida,
sempre cheia de engano e de surpresa,
Não. Quantas vezes ocultei a minha
dor num sorriso! Quanta vez sentiste
parar, medroso, o coração de gelo!
- É que nossa alma às vezes adivinha
que perder um amor não é tão triste
como pensar que havemos de perdê-lo.
Nós I
Fico - deixas-me velho. Moça e bela,
partes. Estes gerânios encarnados,
que na janela vivem debruçados,
vão morrer debruçados na janela.
E o piano, o teu canário tagarela,
a lâmpada, o divã, os cortinados:
- "Que é feito dela?" - indagarão - coitados!
E os amigos dirão: - "Que é feito dela?"
Parte! E se, olhando atrás, da extrema curva
da estrada, vires, esbatida e turva,
tremer a alvura dos cabelos meus;
irás pensando, pelo teu caminho,
que essa pobre cabeça de velhinho
é um lenço branco que te diz adeus!
Esta vida
Um sábio me dizia: esta existência,
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero inventaria a morte.
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo. E vibra e cresce
e se desdobra e estala num segundo.
Homem, eis o que somos neste mundo.
Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.
Um monge me dizia: ó mocidade,
és relâmpago ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa;
esta vida não vale grande coisa.
Uma mulher que chora, um berço a um canto;
o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.
Depois o mundo, a luta que intimida,
quadro círios acesos : eis a vida
Isto me disse o monge e eu continuei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.
Um pobre me dizia: para o pobre
a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não creio nesta fantasia.
Deus me deu fome e sede a cada dia
mas nunca me deu pão, nem me deu água.
Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta vida: um pão envenenado.
Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.
Uma mulher me disse: vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo.
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
No telhado, um penacho de fumaça.
Cortinas muito brancas na vidraça
Um canário que canta na gaiola.
Que linda a vida lá por dentro rola!
Pela primeira vez eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver.
Haicai
Infância
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".
Cigarra
Diamante. Vidraça.
Arisca, áspera asa risca
o ar. E brilha. E passa.
Indiferença
Hoje, voltas-me o rosto, se ao teu lado
passo. E eu, baixo os meus olhos se te avisto.
E assim fazemos, como se com isto,
pudéssemos varrer nosso passado.
Passo esquecido de te olhar, coitado!
Vais, coitada, esquecida de que existo.
Como se nunca me tivesses visto,
como se eu sempre não te houvesse amado
Mas, se às vezes, sem querer nos entrevemos,
se quando passo, teu olhar me alcança
se meus olhos te alcançam quando vais.
Ah! Só Deus sabe! Só nós dois sabemos.
Volta-nos sempre a pálida lembrança.
Daqueles tempos que não voltam mais!
Écloga tropical
Entre a chuva de ouro das carambolas
e o veludo polido das jabuticabas,
sobre o gramado morno,
onde voam borboletas e besouros,
sobre o gramado lustroso
onde pulam gafanhotos de asas verdes e vermelhas,
Salta uma ronda de crianças!
O ar é todo perfume,
perfume tépido de ervas, raízes e folhagens.
O ar cheira a mel de abelhas...
E há nos olhos castanhos das crianças
a doçura e o travor das resinas selvagens,
e há nas suas vozes agudas e dissonantes
um áureo rumor de flautas, de trilos, de zumbidos
e de águas buliçosas...
(Ronald de Carvalho)
As Pombigna
P'ru aviadore chi pigó o tombo
Vai a primeira pombigna dispertada,
I maise otra vai disposa da primiera;
I otra maise, i maise otra, i assi dista maniera,
Vai s'imbora tutta pombarada.
Passano fora o dí i a tardi intera,
Catano as formiguigna ingoppa a strada;
Ma quano vê a notte indisgraziada,
Vorta tuttos in bandos, in filera.
Assi tambê o Cicero avua,
Sobi nu spaço, molto alê da lua,
Fica piqueno uguali d'un sabiá.
Ma tuttos dia avua, allegre, os pombo!...
Inveis chi o Muque, desdi aquilio tombo,
Nunga maise quiz avuá.
(Juó Bananere)
Migna terra tê parmeras,
Che ganta inzima o sabiá.
As aves che stó aqui,
Tambê tuttos sabi gorgeá.
A abobora celestia tambê,
Che tê lá na mia terra,
Tê moltos millió di strella
Che non tê na Ingraterra.
Os rios lá sô maise grandi
Dus rios di tuttas naçó;
I os matto si perde di vista,
Nu meio da imensidó.
Na migna terra tê parmeras
Dove ganta a galigna dangola;
Na migna terra tê o Vap'relli,
Chi só anda di gartolla.
(Juó Bananere)