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Apostila De Modernismo Até Arte Comteporanea Brasileira

Apostila contendo poesias, manisfestos do movimento Modernista Portugal-Brasil até a Literatura Contemporânea.

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"Modernismo - 1ª "Modernismo - 2ª "Modernismo - 3ª "Literatura " "fase 1922-1930 "fase 1930-1945 "fase "contemporânea 1960 " " " "1945-1960 "até os dias de hoje " "Valorização do "Neo-realista; "Filosófica; "Grande " "cotidiano; "Era de Getúlio "Mística; "desenvolvimento do " "Liberdade de forma e"Vargas; "Universal. "conto, do romance, " "conteúdo; "Romance regionalista" "da crônica; " "Destruição do "e urbano; " "Recriação da " "passado; "Consciência de nosso" "linguagem; " "Paródia; "subdesenvolvimento. " "Carnavalização; " "Fluxo da " " "Regionalismo " "consciência. " " "universalista, " " " " "mágico. " " " "PROSA " " " " "João Guimarães Rosa " " " " "Clarice Lispector " " " " "Lygia Fagundes " " " " "Telles " " "Objetivo artístico: "PROSA " "POESIA " "pôr a sociedade a " " " " "par das vanguardas " " " " "européias. " " " " "Objetivo político: " " " " "resgatar a dignidade" " " " "e mostrar a " " " " "realidade nacional. " " " " " "Graciliano Ramos "POESIA "Adélia Prado " " "Érico Veríssimo " "Carlos Nejar " " "Raquel de Queiroz " "Chico Buarque de " " "Jorge Amado " "Holanda " " "José Américo de " "Caetano Veloso " " "Almeida " "Ferreira Gullar " " "José Lins do Rego " " " " "Dyonélio Machado " " " " "Cyro Martins " " " " " "João Cabral de Melo " " " " "Neto " " " " "A poesia concreta " " " " " " " " " "Décio Pignatari " " " " "Haroldo de Campos " " " " "Augusto de Campos " " "Semana da Arte " " "PROSA " "Moderna; " " " " "Movimentos " " " " "Pós-semana da " " " " "22:Pau-Brasil, " " " " "Verde-Amarelismo, " " " " "Desvairista, " " " " "Antropofágico. " " " " "Oswald de Andrade " " " " "Mário de Andrade " " " " "Manuel Bandeira " " " " "Menotti Del Picchia " " " " "Raul Bopp " " " " "Cassiano Ricardo " " " " "Guilherme de Almeida" " " " "Ronald de Carvalho " " " " "Alcântara Machado " " " " "Juó Bananère " " " " " " " "Luis Antônio de " " " " "Assis Brasil " " " " "Moacyr Scliar " " " " "Josué Guimarães " " " " "Lya Luft " " " " "Caio Fernando Abreu " " " " "Luís Fernando " " " " "Veríssimo " " " " "José C. Pozenato " " " " "Lygia Fagundes " " " " "Telles " " " " "Osman Lins " " " " "Ivan Ângelo " " " " "Autran Dourado " " " " "Rubem Fonseca " " " " "Ignácio Loyola " " " " "Brandão " " " " "Fernando Sabino " " " " "Rubem Braga " " " " "Luís Fernando " " " " "Veríssimo " " " " "Millôr Fernandes " " " " "Carlos Heitor Cony " " " " "Dalton Trevisan " " " " "Antônio Callado " " " " "Fernando Gabeira " " " " "João Ubaldo Rieiro " " "POESIA "Modernismo em " " " " "Portugal " " " "Cecília Meireles "Ferreira de Castro " " " "Mário Quintana "Alves Redol " " " "Vinicius de Moraes "Fernando Namora " " " "Carlos Drummond de "Vergílio Ferreira " " " "Andrade "José Saramargo " " " "Murilo Mendes " " " " "Jorge de Lima " " " " " " "TEATRO " " " " "Oswald de Andrade " " " " "Nelson Rodrigues " " " " "Ariano Suassuna " " " " "Plínio Marcos " " " " "Oduvaldo Viana Filho" " " " "Augusto Boal " " " " "Chico Buarque de " " " " "Holanda " " " " "Dias Gomes " " " " "Gianfrancesco " " " " "Guarnieri " " " " "Joracy Camargo " " " " "Jorge Andrade " " " " "Millôr Fernandes " " " " "Paulo Pontes " "Fragmento "Fundação e manifesto do futurismo", 1908, publicado em 1909. " " " ""Então, com o vulto coberto pela boa lama das fábricas - empaste de escórias " "metálicas, de suores inúteis, de fuliges celestes -, contundidos e enfaixados os " "braços, mas impávidos, ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens vivos " "da terra: " " " "1. Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da temeridade. " "2. A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia. " "3. Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. " "Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto " "mortal, a bofetada e o murro. " "4. Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a " "beleza da velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a " "serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a " "metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia. " "5. Queremos celebrar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a " "Terra, lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita. " "6. O poeta deve prodigalizar-se com ardor, fausto e munificência, a fim de " "aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais. " "7. Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo" "pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto " "contra as forças ignotas para obrigá-las a prostrar-se ante o homem. " "8. Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para " "trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço" "morreram ontem. Vivemos já o absoluto, pois criamos a eterna velocidade " "onipresente. " "9. Queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo -, o militarismo, o " "patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas idéias pelas quais se " "morre e o desprezo da mulher. " "10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo tipo, e " "combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária. " "11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela " "sublevação; cantaremos a maré multicor e polifônica das revoluções nas capitais " "modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros " "incendiados por violentas luas elétricas: as estações insaciáveis, devoradoras de " "serpentes fumegantes: as fábricas suspensas das nuvens pelos contorcidos fios de " "suas fumaças; as pontes semelhantes a ginastas gigantes que transpõem as fumaças, " "cintilantes ao sol com um fulgor de facas; os navios a vapor aventurosos que " "farejam o horizonte, as locomotivas de amplo peito que se empertigam sobre os " "trilhos como enormes cavalos de aço refreados por tubos e o vôo deslizante dos " "aeroplanos, cujas hélices se agitam ao vento como bandeiras e parecem aplaudir " "como uma multidão entusiasta. " " " "É da Itália que lançamos ao mundo este manifesto de violência arrebatadora e " "incendiária com o qual fundamos o nosso Futurismo, porque queremos libertar este " "país de sua fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários. " "Há muito tempo a Itália vem sendo um mercado de belchiores. Queremos libertá-la " "dos incontáveis museus que a cobrem de cemitérios inumeráveis. " "Museus: cemitérios!... Idênticos, realmente, pela sinistra promiscuidade de tantos" "corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios públicos onde se repousa sempre ao" "lado de seres odiados ou desconhecidos! Museus: absurdos dos matadouros dos " "pintores e escultores que se trucidam ferozmente a golpes de cores e linhas ao " "longo de suas paredes! " "Que os visitemos em peregrinação uma vez por ano, como se visita o cemitério no " "dos dos mortos, tudo bem. Que uma vez por ano se desponta uma coroa de flores " "diante da Gioconda, vá lá. Mas não admitimos passear diariamente pelos museus " "nossas tristezas, nossa frágil coragem, nossa mórbida inquietude. Por que devemos " "nos envenenar? Por que devemos apodrecer? " "E que se pode ver num velho quadro senão a fatigante contorção do artista que se " "empenhou em infringir as insuperáveis barreiras erguidas contra o desejo de " "exprimir inteiramente o seu sonho?... Admirar um quadro antigo equivalente a " "verter a nossa sensibilidade numa urna funerária, em vez de projetá-la para longe," "em violentos arremessos de criação e de ação. " "Quereis, pois, desperdiçar todas as vossas melhores forças nessa eterna e inútil " "admiração do passado, da qual saís fatalmente exaustos, diminuídos e espezinhados?" " " "Em verdade eu vos digo que a frequentação cotidiana dos museus, das bibliotecas e " "das academias (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, " "registros de lances truncados!...) é, para os artistas, tão ruinosa quanto a " "tutela prolongada dos pais para certos jovens embriagados por seu os prisioneiros," "vá lá: o admirável passado é talvez um bálsamo para tantos os seus males, já que " "para eles o futuro está barrado... Mas nós não queremos saber dele, do passado, " "nós, jovens e fortes futuristas! " "Bem-vindos, pois, os alegres incendiários com seus dedos carbonizados! Ei-los!... " "Aqui!... Ponham fogo nas estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais " "para inundar os museus!... Oh, a alegria de ver flutuar à deriva, rasgadas e " "descoradas sobre as águas, as velhas telas gloriosas!... Empunhem as picaretas, os" "machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas! " "Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: resta-nos assim, pelo menos um decênio mais" "jovens e válidos que nós jogarão no cesto de papéis, como manuscritos inúteis. - " "Pois é isso que queremos! " "Nossos sucessores virão de longe contra nós, de toda parte, dançando à cadência " "alada dos seus primeiros cantos, estendendo os dedos aduncos de predadores e " "farejando caninamente, às portas das academias, o bom cheiro das nossas mentes em " "putrefação, já prometidas às catacumbas das bibliotecas. " "Mas nós não estaremos lá... Por fim eles nos encontrarão - uma noite de inverno - " "em campo aberto, sob um triste galpão tamborilado por monótona chuva, e nos verão " "agachados junto aos nossos aeroplanos trepidantes, aquecendo as mãos ao fogo " "mesquinho proporcionado pelos nossos livros de hoje flamejando sob o vôo das " "nossas imagens. " "Eles se amotinarão à nossa volta, ofegantes de angústia e despeito, e todos, " "exasperados pela nossa soberba, inestancável audácia, se precipitarão para " "matar-nos, impelidos por um ódio tanto mais mais implacável quanto seus corações " "estiverem ébrios de amor e admiração por nós. " "A forte e sã Injustiça explodirá radiosa em seus olhos - A arte, de fato, não pode" "ser senão violência, crueldade e injustiça. " "Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: no entanto, temos já esbanjado tesouros, " "mil tesouros de força, de amor, de audácia, de astúcia e de vontade rude, " "precipitadamente, delirantemente, sem calcular, sem jamais hesitar, sem jamais " "repousar, até perder o fôlego... Olhai para nós! Ainda não estamos exaustos! " "Nossos corações não sentem nenhuma fadiga, porque estão nutridos de fogo, de ódio " "e de velocidade!... Estais admirados? É lógico, pois não vos recordais sequer de " "ter vivido! Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso " "desafio às estrelas! " "Vós nos opondes objeções?... Basta! Basta! Já as conhecemos... Já entendemos!... " "Nossa bela e mendaz inteligência nos afirma que somos o resultado e o " "prolongamento dos nossos ancestrais. - Talvez!... Seja!... Mas que importa? Não " "queremos entender!... Ai de quem nos repetir essas palavras infames!... " "Cabeça erguida!... " "Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às " "estrelas." " "PRIMEIRO MANIFESTO DADÁ " "(Hugo Ball) " " " "Dadá é uma nova tendência da arte. Percebe-se que o é porque, sendo até agora " "desconhecido, amanhã toda a Zurique vai falar dele. Dadá vem do dicionário. É " "bestialmente simples. Em francês quer dizer "cavalo de pau" . Em alemão: "Não me " "chateies, faz favor, adeus, até à próxima!" Em romeno: "Certamente, claro, tem " "toda a razão, assim é. Sim, senhor, realmente. Já tratamos disso." E assim por " "diante. " "Uma palavra internacional. Apenas uma palavra e uma palavra como movimento. É " "simplesmente bestial. Ao fazer dela uma tendência da arte, é claro que vamos " "arranjar complicações. Psicologia Dadá, literatura Dadá, burguesia Dadá e vós, " "excelentíssimo poeta, que sempre poetastes com palavras, mas nunca a palavra " "propriamente dita. Guerra mundial Dadá que nunca mais acaba, revolução Dadá que " "nunca mais começa. Dadá, vós, amigos e Também poetas, queridíssimos Evangelistas. " "Dadá Tzara, Dadá Huelsenbeck, Dadá m'Dadá, Dadá mhm'Dadá, Dadá Hue, Dadá Tza. " "Como conquistar a eterna bemaventurança? Dizendo Dadá. Como ser célebre? Dizendo " "Dadá. Com nobre gesto e maneiras finas. Até à loucura, até perder a consciência. " "Como desfazer-nos de tudo o que é enguia e dia-a-dia, de tudo o que é simpático e " "linfático, de tudo o que é moralizado, animalizado, enfeitado? Dizendo Dadá. Dadá " "é a alma-do-mundo, Dadá é o Coiso, Dadá é o melhor sabão-de-leite-de-lírio do " "mundo. Dadá Senhor Rubiner, Dadá Senhor Korrodi, Dadá Senhor Anastasius " "Lilienstein. " "Quer dizer, em alemão: a hospitalidade da Suíça é incomparável, e em estética tudo" "depende da norma. " "Leio versos que não pretendem menos que isto: dispensar a linguagem. Dadá Johann " "Fuchsgang Goethe. Dadá Stendhal. " "Dadá Buda, Dalai Lama, Dadá m'Dadá, Dadá m'Dadá, Dadá mhm'Dadá. Tudo depende da " "ligação e de esta ser um pouco interrompida. Não quero nenhuma palavra que tenha " "sido descoberta por outrem. Todas as palavras foram descobertas pelos outros. " "Quero a minha própria asneira, e vogais e consoantes também que lhe correspondam. " "Se uma vibração mede sete centímetros, quero palavras que meçam precisamente sete " "centímetros. As palavras do senhor Silva só medem dois centímetros e meio. " "Assim podemos ver perfeitamente como surge a linguagem articulada. Pura e " "simplesmente deixo cair os sons. Surgem palavras, ombros de palavras; pernas, " "braços, mãos de palavras. Au, oi, u. Não devemos deixar surgir muitas palavras. " "Um verso é a oportunidade de dispensarmos palavras e linguagem. Essa maldita " "linguagem à qual se cola a porcaria como à mão do traficante que as moedas " "gastaram. A palavra, quero-a quando acaba e quando começa. " "Cada coisa tem a sua palavra; pois a palavra própria transformou-se em coisa. " "Porque é que a árvore não há-de chamar-se plupluch e pluplubach depois da chuva? E" "porque é que raio há-de chamar-se seja o que for? Havemos de pendurar a boca " "nisso? A palavra, a palavra, a dor precisamente aí, a palavra, meus senhores, é " "uma questão pública de suprema importância. " " " "Zurique, 14 de Julho de 1916 " 3. Pessoal:           MANIFESTO PAU-BRASIL   A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança. Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil. O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho. A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária. Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram. A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa tratando de cozinha. A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem. Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo : o teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris. Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Agil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia. A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança. Uma sugestão de Blaise Cendrars : – Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino. Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias. A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação. Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho... Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo. Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Stravinski. A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas. Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano. Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 10) a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 20) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva. O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau- Brasil. Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos. A síntese O equilíbrio O acabamento de carrosserie A invenção A surpresa Uma nova perspectiva Uma nova escala. Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa. Uma nova perspectiva. A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão ética. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua. Uma nova escala: A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos. O redame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte. A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O quadro histórico, uma aberração. A escultura eloquente, um pavor sem sentido. Nossa época anuncia a volta ao sentido puro. Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz. A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente. Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres. Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a algebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de "dorme nenê que o bicho vem pegá" e de equações. Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas; nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil. Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil. O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional. Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época. O estado de inocência substituindo o estada de graça que pode ser uma atitude do espírito. O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica. A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna. Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau- Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil. (MANIFESTO DO VERDE-AMARELISMO,OU DA ESCOLA DA ANTA) A descida dos tupis do planalto continental no rumo do Atlântico foi uma fatalidade histórica pré-cabralina, que preparou .o ambiente para as entradas no sertão pelos aventureiros brancos desbravadores do oceano. A expulsão, feita pelo povo tapir, dos tapuias do litoral, significa bem, na história da América, a proclamação de direito das raças e a negação de todos os preconceitos. Embora viessem os guerreiros do Oeste, dizendo "ya so Pindorama koti, itamarana po anhatim, yara rama recé", na realidade não desceram com a sua Anta a fim de absorver a gente branca e se fixarem objetivamente na terra. Onde estão os rastros dos velhos conquistadores? Os tupis desceram para serem absorvidos. Para se diluírem no sangue da gente nova. Para viver subjetivamente e transformar numa prodigiosa força a bondade do brasileiro e o seu grande sentimento de humanidade. Seu totem não é carnívoro: Anta. E' este um animal que abre caminhos, e aí parece estar indicada a predestinação da gente tupi. Toda a história desta raça corresponde (desde o reinol Martim Afonso, ao nacionalista `verdamarelo', José Bonifácio) a um lento desaparecer de formas objetivas e a um crescente aparecimento de forças subjetivas nacionais. .O tupi significa a ausência de preconceitos. O tapuia é o próprio preconceito em fuga para o sertão. O jesuíta pensou que havia conquistado o tupi, e o tupi é que havia conquistado para si a religião do jesuíta. O português julgou que o tupi deixaria de existir; e o português transformou-se, e ergueu-se com fisionomia de nação nova contra metrópole: porque o tupi venceu dentro da alma e do sangue do português. O tapuia isolou-se na selva, para viver; e foi morto pelos arcabuzes e pelas flechas inimigas. O tupi socializou-se sem temor da morte; e ficou eternizado no sangue da nossa raça. O tapuia é morto, o tupi é vivo. O mameluco voltou-se contra o índio, para destruir a expressão formal, a exterioridade aborígine; porque o que há de interior no bugre subsistirá sempre na alma do mameluco e se perpetuará nos novos tipos de cruzamento. E a fisionomia própria da gente brasileira, não fichada em definições filosóficas ou políticas, mas revelada nas tendências gerais comuns. Todas as formas do jacobinismo na América são tapuias. O nacionalismo sadio, de grande finalidade histórica, de predestinação humana, esse é forçosamente tupi. Jacobinismo quer dizer isolamento, portanto desagregação. O nacionalismo tupi não é intelectual. E sentimental. E de ação prática, sem desvios da corrente histórica. Pode aceitar as formas de civilização, mas impõe a essência do sentimento, a fisionomia irradiadora da sua alma. Sente Tupã, Taniandaré ou Aricuta através mesmo do catolicismo. Tem horror instintivo pelas lutas religiosas, diante das quais sorri sinceramente: pra quê? Deram-lhe uma casaca da Câmara dos Comuns, durante mais de meio século, e a República encontrou-o igualzinho ao que ele já era no tempo de D. João, ou no tempo de Tiradentes. Não combate nem religiões, nem filosofias, porque toda a sua força reside na sua capacidade sentimental. A Nação é uma resultante de agentes históricos. O índio, o negro, o espadachim, o jesuíta, o tropeiro, o poeta, o fazendeiro, o político, o holandês, o português, o índio, o francês, os rios, as montanhas, a mineração, a pecuária, a agricultura, o sol, as léguas imensas, o Cruzeiro do Sul, o café, a literatura francesa, as políticas inglesa e americana, os oito milhões de quilômetros quadrados... Temos de aceitar todos esses fatores, ou destruir a Nacionalidade, pelo estabelecimento de distinções, pelo desmembramento nuclear da idéia que dela formamos. Como aceitar todos esses fatores? Não concedendo predominância a nenhum. A filosofia tupi tem de ser forçosamente a `não filosofia'. O movimento da Anta baseava-se nesse princípio. Tomava-se o índio como símbolo nacional, justamente porque ele significa a ausência de preconceito. Entre todas as raças que formaram o Brasil, a autóctone foi a única que desapareceu objetivamente. Em uma população de 34 milhões não contamos meio milhão de selvagens. Entretanto, é a única das raças que exerce subjetivamente sobre todas as outras a ação destruidora de traços caracterizantes; é a única que evita o florescimento de nacionalismos exóticos; é a raça transformadora das raças, e isso porque não declara guerra, porque não oferece a nenhuma das outras o elemento vitalizante da resistência. Essa expressão de nacionalismo tupi, que foi descoberta com o movimento da Anta (do qual resultou um sectarismo exagerado e perigoso), é evidente em todos os lances da vida social e política brasileira. Não há entre nós preconceitos de raças. Quando foi o 13 de Maio, havia negros ocupando já altas posições no país. E antes, como depois disso, os filhos de estrangeiros de todas as procedências nunca viram os seus passos tolhidos. Não há também no Brasil o preconceito político: o que nos importa é a administração, no que andamos acertadíssimos, pois só assim consultamos as realidades nacionais. Os teoristas da República foram os que menos influíram na organização prática do novo regime. No Império, o sistema parlamentar só se efetivou pela interferência do Poder Moderador. Dentro da República os que mais realizam são os que menos doutrinam. Ainda agora, nas plataformas dos nossos candidatos, não procuramos os traços de uma ideologia política, porém o que nos interessa é apenas a diretriz da administração. País sem preconceitos, podemos destruir as nossas bibliotecas, sem a menor conseqüência no metabolismo funcional dos órgãos vitais da Nação. Tudo isso, em razão do nacionalismo tupi, da não-filosofia, da ausência de sistematizações. Somos um país de imigração e continuaremos a ser refúgio da humanidade por motivos geográficos e econômicos demasiadamente sabidos. Segundo os de Reclus, cabem no Brasil 300 milhões de habitantes. Na opinião bem fundamentada do sociólogo mexicano Vasconcelos, é de entre as bacias do Amazonas e do Prata que sairá a 'quinta raça', a `raça cósmica', que realizará a concórdia universal, porque será filha das dores e das esperanças de toda a humanidade. Temos de construir essa grande nação, integrando na Pátria Comum todas as nossas expressões históricas, étnicas, sociais, religiosas e políticas. Pela força centrípeta do elemento tupi. Mas, se o tupi se erigir em filosofia, criará antagonismos, provocará dissociação, será uma força centrifuga. E o Brasil falhará, pois precipitará acontecimentos. Toda e qualquer sistematização filosófica entre nós será tapuia (destinada a desaparecer assediada por outras tantas doutrinas) porque viverá a vida efêmera das formas ideológicas de antecipação, das fórmulas arbitrárias da inteligência, tendo necessidade de criar uma exegese específica, unilateral e sem a amplitude dos largos e desafogados pensamentos e sentimentos americanos e brasileiros. Foi o índio que nos ensinou a rir de todos os sistemas e de todas as teorias. Criar um sistema em nome dele será substituir a nossa intuição americana e a nossa consciência de homens livres por uma mentalidade de análise e de generalização características dos povos já definidos e cristalizados. A continuação do caminho histórico tupi só se dará pela ausência de imposições temáticas, de imperativos ideológicos. O arbítrio mental não pode sobrepor-se às fatalidades cósmicas, étnicas, sociais ou religiosas. O estudo do Brasil já não será o estudo do índio. Do mesmo modo que o estudo da humanidade, que produziu o budismo, o cristianismo, a Grécia, a Idade Média, o romantismo e a eletricidade, não será apenas a pesquisa freudiana do homem da pedra lascada. Se Freud nos dá um algarismo, a história da Civilização nos ofereceu uma equação em que esse algarismo entra tão-só como um dos muitíssimos fatores. Assim, também o índio é um termo constante na progressão étnica e social brasileira; mas um termo não é tudo. Ele já foi dominado, quando se agitou entre nós a bandeira nacionalista, - o denominador .comum das raças adventícias. Colocá-lo como numerador seria diminuí-lo. Sobrepô-lo será fadá-lo ao desaparecimento. Porque ele ainda vive, subjetivamente, e viverá sempre como um elemento de harmonia entre todos os que, antes de desembarcar em Santos, atiraram ao mar, como o cadáver de Zaratustra, os preconceitos e filosofias de origem. Estávamos e estamos fartos da Europa ,e proclamamos sem cessar a liberdade de ação brasileira. Há uma retórica feita de palavras, como há uma retórica feita de idéias. No fundo, são* ambas feitas de artifícios e esterilidades. Combatemos, desde 1921, a velha retórica verbal, não aceitamos uma nova retórica submetida a três ou quatro regras, de pensar e de sentir. Queremos ser o que somos: brasileiros. Barbaramente, com arestas, sem auto-experiências científicas, sem psicanálises e nem teoremas. Convidamos a nossa geração a produzir sem discutir. Bem ou mal, mas produzir. Há sete anos que a literatura brasileira está em discussão. Procuremos escrever sem espírito preconcebido, não por mera experiência de estilos, ou para veicular teorias, sejam elas quais forem, mas com o único intuito de nos revelarmos, livres de todos os prejuízos. A vida, eis o que nos interessa, eis o que interessa à grande massa do povo brasileiro. Em sete anos a geração nova tem sido o público de si mesmo. O grosso da população ignora a sua existência e se ouve falar em movimento moderno é pelo prestígio de meia dúzia de nomes que se impuseram pela força pessoal de seus próprios talentos. O grupo `verdamarelo', cuja regra é a liberdade plena de cada um ser brasileiro como quiser e puder; cuja condição é cada um interpretar o seu país e o seu povo através de si mesmo, da própria determinação instintiva; - o grupo `verdamarelo', à tirania das sistematizações ideológicas, responde com a sua alforria e a amplitude sem obstáculo de sua ação brasileira. Nosso nacionalismo é de afirmação, de colaboração coletiva, de igualdade dos povos e das raças, de liberdade do pensamento, de crença na predestinação do Brasil na humanidade, de fé em nosso valor de construção nacional. Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil, como o fez, através de quatro séculos, a alma da nossa gente, através de todas as expressões históricas. Nosso nacionalismo é 'verdamarelo' e tupi. O objetivismo das instituições e o subjetivismo da gente sob a atuação dos fatores geográfico e histórico. (Correio Paulistano, 17 de maio de 1929.) MANIFESTO ANTROPÓFAGO Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa. O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará. Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande. Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem n6s a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls. Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaig-ne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.. Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia. O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores. Só podemos atender ao mundo orecular. Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem. Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. O instinto Caraíba. Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo. Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. Catiti Catiti Imara Notiá Notiá Imara Ipeju* A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais. Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia. Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso? Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César. A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue. Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas. Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida. Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti. Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais. Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário. As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo. De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia. O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa. É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci. O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso? Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz. A alegria é a prova dos nove. No matriarcado de Pindorama. Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada. Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimarnos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas. Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI. A alegria é a prova dos nove. A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos. Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo. A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte. Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.   OSWALD DE ANDRADE Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha." (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.) BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA (Alcântara Machado) LISETTA Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho. Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela. Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na boca. Pôs mas não chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam absolutamente nada. No colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e feliz. - Olha o ursinho que lindo, mamãe! - Stai zitta! A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o urso. Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a esquerda, depois para a direita, olhou para cima, depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda a importância. Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam, se cruzam, batem umas nas outras. - As patas também mexem, mamã. Olha lá! - Stai ferma! Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o bichinho que custara cinqüenta mil-réis na Casa São Nicolau. - Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa? - Ah! - Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças são muito levadas. Scusi. Desculpe. A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha, sorriu para o bicho, fez uma carícia na cabeça dele, abriu a bolsa e olhou o espelho. Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido da filha: - In casa me lo pagherai! E pespegou por conta um beliscão no bracinho magro. Um beliscão daqueles. Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou. Soluçou. Chorou. Soluçou. Falando sempre. - Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu que...ro o... o... o... Hã! Hã! - Stai ferina o ti amazzo, parola d'onore! - Um pou...qui...nho só! Hã! E... hã! E... hã! Um pou...qui... - Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più! Um escândalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro testemunhou o feio que Lisetta fez. O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para a direita, para cima e para baixo. - Non piangere più adesso! Impossível. O urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de má, antes de entrar no palacete estilo empreiteiro português, voltou-se e agitou no ar O bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta viu. Dem-dem! O bonde deu um solavanco, sacudiu os passageiros, deslizou, rolou, seguiu. Dem-dem! - Olha à direita! Lisetta como compensação quis sentar-se no banco. Dona Mariana (havia pago uma passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão. A entrada de Lisetta em casa marcou época na história dramática da família Garbone. Logo na porta um safanão. Depois um tabefe, Outro no corredor. Intervalo de dois minutos. Foi então a vez das chineladas. Para remate. Que não acabava mais. O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe. Mas o Ugo chegou da oficina. - Você assim machuca a menina, mamãe! Cotadinha dela! Também Lisetta já não agüentava mais. - Toma pra você. Mas não escache. Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do tamanho de um passarinho. Mas urso. Os irmãos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quis logo pegar no bichinho. Quis mesmo tomá-lo à força. Lisetta berrou como uma desesperada: - Ele é meu! O Ugo me deu! Correu para o quarto. Fechou-se por dentro. ************** NOTAS BIOGRÁFICAS DO NOVO DEPUTADO O coronel recusou a sopa. - Que é isso, Juca? Está doente? O coronel coçou o queixo. Revirou os olhos. Quebrou um palito. Deu um estalo com a língua. - Que é que você tem, homem de Deus? O coronel não disse nada. Tirou uma carta do bolso de dentro. Pôs os óculos. Começou a ler: Ex.mo snr. coronel Juca. - De quem é? - Do administrador da Santa Inácia. - Já sei. Geada? - Escute. Ex.mo snr. coronel Juca. Rospeitosas Saudações. Em primeiro lugar Saudo-vos. V. Ecia. e D. Nequinha. Coronel venho por meio desta respeitosameute comunicar para V. E. que o cafezal novo agradeceu bastante as chuvarada desta semana. E tal e tal e tal. Me acho doente diversos incomodos divido o serviço. - Coitado. - Mas não é isso. O major Domingo Neto mandou buscar a vacca... Oh senhor! Não acho... - Na outra página, Juca. - Está aqui. Vá escutando. Em último lugar, vos communico que o seu comprade João Intaliano morreu... - Meu Deus, não diga?! - ... morreu segunda que passou de uma anemia nos rim. Por esses motivos recolhi em casa o vosso afilhado e orpham Gennrinho. Pesso para V.E. que me mande dizer o distino e tal. E agora, mulher? Dona Nequinha suspirou. Bebeu um gole de água. Mandou levar a sopa. - E então? Dona Nequinha passou a língua nos lábios. Levantou a tampa da farinheira. Arranjou o virote. - E então? Que é que eu respondo? Dona Nequinha pensou. Pensou. Pensou. E depois: - Vamos pensar bem primeiro, Juca. Não coma o torresmo que faz mal. Amanhã você responde. E deixe-se de extravagâncias. Gennarinho desceu na estação da Sorocabana com o nariz escorrendo. Todo chibante. De chapéu vermelho. Bengalinha na mão. Rebocado pelo filho mais velho do administrador. E com uma carta para o Coronel J. Peixoto de Faria. Tomou o coche Hudson que estava à sua espera. Veio desde a estação até a Avenida Higienópolis com a cabeça para fora do automóvel soltando cusparadas. Apertou o dedo no portão. Disse uma palavra feia. Subiu as escadas berrando. - Tire o chapéu. Tirou. - Diga boa noite. Disse. - Beije a mão dos padrinhos. Beijou. - Limpe o nariz. Limpou com o chapéu. - Pronto, Nhãzinha. A telefonista cortou. Chegou anteontem. Espertinho como ele só. Nem você imagina. Tem nove anos. É sim. Crescidinho. Juca ficou com dó dele. Pois é. Coitadinho. Imagine. Pois é. Faz de conta que é um filho. Já estou querendo bem mesmo. Gennarinho. O quê? É sim. Nome meio esquisito. Também acho. O Juca está que não pode mais de satisfeito. Ele que sempre desejou ter tanto um filho, não é? Pois então. Nasceu no Brás. O pai era não sei o quê. Estava na fazenda há cinco anos já. Bom, Nhãzinha. O Juca está me chamando. Beijos na Marianinha. Obrigada. O mesmo. Até amanhã. Ah! Ah! Ah Imagine! Nesta idade!... Até amanhã, Nhãzinha. Que é que você queria, Juca? - Agora é tarde. Você não sabe o que perdeu. - O Gennarinho, é? - Diabinho de menino! Querendo a toda força levantar a saia da Atsué. - Mas isso não está direito, Juca. Vou já e já... - É. Direito não está mesmo. Mas é engraçado. - ... dar uns tapas nele. - Não faça isso, ora essa! Dar à toa no menino! - Não é à toa, Juca. - Bom. Então dê. Olhe aqui: eu mesmo dou, sabe? Eu tenho mais jeito. Um dia na mesa o coronel implicou: - Esse negócio de Gennarinho não está certo. Gennarinho não é nome de gente. Você agora passa a se chamar Januário que é a tradução. Eu já indaguei. Ouviu? Êta menino impossível! Sente-se já aí direito! Você passa a se chamar Januário. Ouviu? - Ouvi. - Não é assim que se responde. Diga sem se mexer na cadeira: Ouvi, sim senhor. - Ouvi, sim senhor coronel! Dona Nequinha riu como uma perdida. Da resposta e da continência. Uma noite na cama Dona Nequinha perguntou: - Juca: você já pensou no futuro do menino? O coronel estava dorme não dorme. Respondeu bocejando: - Já-á-á!... - Que é que você resolveu? O coronel levou um susto. - O quê? Resolveu o quê? - O futuro do menino, homem de Deus! - Hã!... - Responda. O coronel coçou primeiro o pescoço. - Para falar a verdade, Nequinha, ainda não resolvi nada. O suspiro desanimado da consorte foi um protesto contra tamanha indecisão. - Mas você não há de querer que ele cresça um vagabundo, eu espero. - Pois está visto que não quero. Aproveitando o silêncio o despertador bateu mais forte no criado-mudo. Dona Nequinha ajeitou o travesseiro. São José dentro de sua redoma espiou o vôo de dois pernilongos. - Eu acho que... Apague a luz que está me incomodando. - Pronto. Acho o quê? - Eu acho que a primeira cousa que se deve fazer é meter o menino num colégio. - Num colégio de padres. - É. - Eu sou católica. Você também é. O Januário também será. - Muito bem... - Você parece que está dizendo isso assim sem muito entusiasmo... Era sono. - Amanhã-ã-ã... ai! ai!... nós vemos isso direito, Nequinha... Até o coronel ajudou a aprontar o Januário. Foi quem pôs ordem na cabelada cor de abóbora. Na terceira tentativa fez uma risca bem no meio da cabeça. - Agora só falta a merenda. Dona Nequinha preparou logo. Pão francês. Goiabada Pesqueira. Queijo Palmira. - Diga pro Inácio tirar o automóvel. O fechado. A comoção era geral. Dona Nequinha apertou mais uma vez a gravata azul do Januário. O coronel deu uma escovadela, pensativo, no gorro. Januário fez uma cara de vítima. - Vamos indo que está na hora. Dona Nequinha (o coronel já se achava no meio da escadaria de mármore carregando a pasta colegial) beijou mais uma vez a testa do menino. Chuchurreadamente. Maternalmente. - Vá, meu filhinho. E tenha muito juízo, sim? Seja muito respeitador. Vá. Todo compenetrado, de pescoço duro e passo duro, Januário alcançou o coronel. A meninada entrava no Ginásio de São Bento em silêncio e beijava a mão do Senhor Reitor. Depois disparava pelos corredores jogando os chapéus no ar. As aulas de portas abertas esperavam de carteiras vazias. O berreiro sufocava o apito dos vigilantes. - Cumprimente o Senhor Reitor. D. Estanislau deu umas palmadinhas na nuca do Januário. Januário tremeu. - Crescidinho já. Muito bem. Muito bem. Como se chama? Januário não respondeu. - Diga o seu nome para o Senhor Reitor. - Januário. - Ah! Muito bem. Januário. Muito bem. Januário de quê? Januário estava louco para ir para o recreio. Nem ouviu. - Diga o seu nome todo, menino! Com os olhos no coronel: - Januário Peixoto de Faria. O porteiro apareceu com unia sineta na mão. Dlin-dlin! Dlin-dlin! Dlin- dlin! O coronel seguiu para o São Paulo Clube pensando em fazer testamento. O MONSTRO DE RODAS O Nino apareceu na porta. Teve um arrepio. Levantou a gola do paletó. - Ei, Pepino! Escuta só o frio! Na sala discutiam agora a hora do enterro. A Aída achava que de tarde ficava melhor. Era mais bonito. Com o filho dormindo no colo Dona Mariângela achava também. A fumaça do cachimbo do marido ia dançar bem em cima do caixão. - Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora Dona Nunzia descabelada enfiava o lenço na boca. - Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora. Sentada no chão a mulata oferecia o copo de água de flor de laranja. - Leva ela pra dentro! - Não! Eu não quero! Eu... não... quero!... Mas o marido e o irmão a arrancaram da cadeira e ela foi gritando para o quarto. Enxugaram-se lágrimas de dó. - Coitada da Dona Nunzia! A negra de sandália sem meia principiou a segunda volta do terço. - Ave Maria, cheia de graça, o Senhor... Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepípedos da Rua Sousa Lima. Passavam cestas para a feira do Largo do Arouche. Garoava na madrugada roxa. - ... da nossa morte. Amém. Padre Nosso que estais no Céu... O soldado espiou da porta. Seu Chiarini começou a roncar muito forte. Um bocejo. Dois bocejos. Três. Quatro. - ... de todo o mal. Amém. A Aída levantou-se e foi espantar as moscas do rosto do anjinho. Cinco. Seis. O violão e a flauta recolhendo de farra emudeceram respeitosamente na calçada. Na sala de jantar Pepino bebia cerveja em companhia do Américo Zamponi (SALÃO PALESTRA ITÁLIA – Engraxa-se na perfeição a 200 réis) e o Tibúrcio (- O Tibúrcio... – O mulato? – Quem mais há de ser?). - Quero só ver daqui a pouco a noticia do Fanfulla. Deve cascar o almofadinha. - Xi, Pepino! Você é ainda muito criança. Tu é ingênuo, rapaz. Não conhece a podridão da nossa imprensa. Que o quê, meu nego. Filho de rico manda nesta terra que nem a Light. Pode matar sem medo. É ou não é, Seu Zamponi? Seu Américo Zamponi soltou um palavrão, cuspiu, soltou outro palavrão, bebeu, soltou mais outro palavrão, cuspiu. - É isso mesmo, Seu Zamponi, é isso mesmo! O caixãozinho cor-de-rosa com listas prateadas (Dona Nunzia gritava) surgiu diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a molecada pulava) nas mãos da Aída, da Josefina, da Margarida e da Linda. - Não precisa ir depressa para as moças não ficarem escangalhadas. A Josefina na mão livre sustentava um ramo de flores. Do outro lado a Linda tinha a sombrinha verde, aberta. Vestidos engomados, armados, um branco, um amarelo, um creme, um azul. O enterro seguiu. O pessoal feminino da reserva carregava dálias e palmas-de-são-josé. E na calçada os homens caminhavam descobertos. O Nino quis fechar com o Pepino uma aposta de quinhentão. - A gente vai contando os trouxas que tiram o chapéu até a gente chegar no Araçá. Mais de cinqüenta você ganha. Menos, eu. Mas o Pepino não quis. E pegaram uma discussão sobre qual dos dois era o melhor: Friedenreich ou Feitiço. - Deixa eu carregar agora, Josefina? - Puxa, que fiteira! Só porque a gente está chegando na Avenida Angélica. Que mania de se mostrar, que você tem! O grilo fez continência. Automóveis disparavam para o corso com mulheres de pernas cruzadas mostrando tudo. Chapéus cumprimentavam dos ônibus, dos bondes. Sinais-da-santa-cruz. Gente parada. Na Praça Buenos Aires, Tibúrcio já havia arranjado três votos para as próximas eleições municipais. - Mamãe, mamãe! Venha ver um enterro, mamãe! Aída voltou com a chave do caixão presa num lacinho de fita. Encontrou Dona Nunzia sentada na beira da cama olhando o retrato que a Gazeta publicara. Sozinha. Chorando. - Que linda que era ela! - Não vale a pena pensar mais nisso, Dona Nunzia... O pai tinha ido conversar com o advogado. ********************** A SOCIEDADE - Filha minha não casa com filho de carcamano! A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque. O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço. O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia - uiiiia! Adriano MeIli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiiiia-uiiiiia! - O que você está fazendo aí no terraço, menina. - Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais? Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço. - Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar! - Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus! Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista. Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar: Dizem que Cristo nasceu em Belém... Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais. Os pares dançarmos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos. - Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade. - Não! - Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu. ... mas a história se enganou! As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu- turururum! - Meu pai quer fazer um negocio com o seu. - Ah sim? Cristo nasceu na Bahia, meu bem... O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons. ... e o baiano criou! - Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu? - Já sei, mulher, já sei. Mas era cousa muito diversa. O Cav. Uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmcnte as vantagens econômicas de sua proposta. - O doutor... - Eu não sou doutor, Senhor Melli. - Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser. lo resto à sua disposição. Ma pense bem! Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Cousas de herança. Não lhe davam renda alguma. O Cav. Uff. tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O Cav. Uff. com o capital. Armavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo. - É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital e senhor compreende é impossível... - Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio. O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café. - Dopo o doutor me dá a resposta. lo só digo isto: pense bem. O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro. - Bonita pintura. Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês. - Francese? Não é feio non. Serve. Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se. - Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce. - Sei, sei... O seu filho? - Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele? O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cav. Uff. na direção da porta. - Repito un'altra vez: O doutor pense bem. O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado. - E então? O que devo responder ao homem? - Faça como entender, Bonifácio... - Eu acho que devo aceitar. - Pois aceite. E puxou o lençol. A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois. O Conselheiro José Bonifácio ----------O Cav. Uff. Salvatore Melli de Matos e Arruda ------------------------------------e------- --------e ----------------------------------------senhora senhora ------------------------------------------ têm a honra de participar -------------- têm a honra de participar a V. Ex.a e Ex.ma família o ------------a V. Ex.a e Ex.ma família o contrato de casamento de sua ----contrato de casamento de seu filha Teresa Rita com o Sr.------- filho Adriano com a Senhorinha ---------Adriano Melli.---------------Teresa Rita de Matos Arruda. Rua da Liberdade, n.0 259-C. ------Rua da Barra Funda, n.0 427. S. Paulo 19 de fevereiro de 1927. No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau português, quase sempre fiado e até sem caderneta. *************** GAETANINHO — Xi, Gaetaninho, como é bom! Gaetaninho ficou banzando1 bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão. — Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro. Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo. — Subito! Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varoupela esquerda porta adentro. Eta salame de mestre! Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho. O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem. Mas se era o único meio? Paciência. Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro. Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho. Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só. Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com a mania de realização muito difícil. Um sonho. O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem. Mas se era o único meio? Paciência. Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro. Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia 5 do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho. Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só. Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com a mania de realização muito difícil. Um sonho. O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem. Mas se era o único meio? Paciência. Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro. Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho. Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só. Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com a mania de realização muito difícil. Um sonho. O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem. Mas se era o único meio? Paciência. Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro. Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho. Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queriadeixar. Nem por um instantinho só. Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com a mania de cantar o "Ahi, Mari!" todas as manhãs o acordou. Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio. Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, Seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído. Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo. O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando. — Você conhecia o pai do Afonso, Beppino? — Meu pai deu uma vez na cara dele. — Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou! O Vicente protestou indignado: — Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando! Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades. O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa. — Passa pro Beppino! Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua. — Vá dar tiro no inferno! — Cala a boca, palestrino!7 — Traga a bola! Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou. No bonde vinha o pai do Gaetaninho. A gurizada assustada espalhou a notícia na noite. — Sabe o Gaetaninho? — Que é que tem? — Amassou o bonde! A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras. Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha. Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino. ----------------------- 1. 1. Esclareça a sobreposição de imagens utilizada pelo poeta. (Cubismo) Hípica Saltos records Cavalos da Penha Correm jóqueis de Higienópolis Os magnatas As meninas E a orquestra toca Chá Na sala de cocktails (Oswald de Andrade) Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime Ser completo como uma máquina! Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento A todos os perfumes de óleos e calores e carvões Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável! (Álvaro Campos – Fernando Pessoa) 1. Aponte alguns aspectos característicos do movimento futurista. 2. Que tipo de relação se estabelece entre o enunciador e a máquina? A terra é uma paisagem imensa que Deus nos deu. Temos que olhar para ela de tal forma que chegue até nós sem deformação. Ninguém duvida de que a essência das coisas não seja a sua realidade exterior. A realidade tem que ser criada por nós. A significação do assunto deve ser sentida. Os fatos acreditados, imaginados, anotados não são o suficiente; pelo contrário, a imagem do mundo tem de ser espelhada puramente e não falsificada. Mas isso está apenas dentro de nós mesmos. (Kasimir Edschmid) (Expressionismo) A criação artística, evidentemente, não é delírio. Mas é, igualmente, uma alteração, uma deformação, uma transformação da realidade, segundo as leis particulares da arte. A arte, por mais fantástica que seja, não dispõe de nenhum outro material além daquele que lhe fornecem o mundo de três dimensões e o mundo mais estreito da sociedade de classes. Mesmo quando o artista cria o céu ou cria o inferno, ele simplesmente transforma a experiência de sua própria vida em fantasmagorias, até inclusive a conta não-paga do aluguel. (Trotski, 1969, p. 153-4) (Expressionismo) a canção de um dadaísta que tinha dadá no coração cansava demasiado seu motor que tinha dadá no coração o ascensor levava um rei pesado frágil e autônomo cortou seu grande braço direito o enviou ao papa em roma (Tristan Tzara) (Dadaísmo) Pegue um jornal Pegue uma tesoura Escolha um artigo do jornal na dimensão que você quer dar ao seu poema Recorte o artigo Depois recorte alguns palavras do artigo e as ponha numa pequena bolsa Sacuda-a suavemente Tire em seguida cada palavra uma após outra Copie honestamente na ordem em que saíram da bolsa E o poema estará pronto e parecido com você E você será um poeta de original, fascinante sensibilidade, ainda que a plebe não o compreenda. Álvaro de Campos o Poeminha surrealista Gostaria, querida, De ser inesperado Como uma madrugada amanhecendo À noite E engraçado, também, Como um pato num trem. (Millôr Fernandes) No trono havia uma vez um velho rei que se aborrecia e pela noite perdia o seu manto e por rainha puseram-lhe ao lado a re a re a realidade. CAUDA: dade dade a reali dade dade a realidade A real a real idade idade dá a reali ali a re a realidade (Surrealismo) As realidades (fábula) Era uma vez uma realidade com suas ovelhas de lã real a filha do rei passou por ali E as ovelhas baliam que linda que está a re a re a realidade. Na noite era uma vez uma realidade que sofria de insônia Então chegava a madrinha fada e realmente levava-a pela mão a re a re a realidade. era uma vez a REALIDADE. 1. Destaque as características surrealistas dos textos do Millôr Fernandes e Murilo Mendes. 2. Ilustre os poemas. Botafogo Desfilam algas sereias peixes e galeras E legiões de homens desde a pré-história Diante do Pão de Açúcar impassível. Um aeroplano bica a pedra amorosamente A filha do português debruçou-se à janela Os anúncios luminosos lêem seu busto A enseada encerrou-se num arranha-céu. (Murilo Mendes) 1. O poema apresenta uma cena com elementos estranhos ao real, que remetem ao universo dos sonhos. Que cena é essa? 2. O título do poema apresenta mais de um significado possível. Qual seria o significado mais convencional da expresão pastor pianista? 3. Na última estrofe, o eu lírico deixa de se referir aos pianos e passa a reletir sobre a natureza humana. Quais são, segundo o eu lírico, as ações desempenhadas pelo homem no mundo? 4. Através de que meios o homem "comunica-se com os deuses." O pastor pianista Soltaram os pianos na planície desenta Onde as sombras dos pássaros vêm beber. Eu sou o pastor pianista, Vejo ao longe com alegria meus pianos Recortarem os vultos monumentais Contra a lua. Acompanhado pelas rosas migradoras Apascento os pianos: gritam E transmitem o antigo clamor do homem Que reclamando a contemplação, Sonha e provoca a harmonia, Trabalha mesmo à força, E pelo vento nas folhagens, Pelos planetas, pelo andar das mulheres, Pelo amor e seus contrastes, Comunica-se com os deuses. (Murilo Mendes) Manifesto do Surrealismo (André Breton - 1924) Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão ( o que ele chama decisão! ) . Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência moral, admito que lhe é indiferente. Se conservar alguma lucidez, não poderá senão recordar-se de sua infância, que lhe parecerá repleta de encantos, por mais massacrada que tenha sido com o desvelo dos ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo conhecido lhe dá a perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a essa ilusão; só quer conhecer a facilidade momentânea, extrema, de todas as coisas. Todas as manhãs, crianças saem de casa sem inquietação. Está tudo perto, as piores condições materiais são excelentes. Os bosques são claros ou escuros, nunca se vai dormir. Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distância apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o homem ao seu destino sem luz. Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que pouco a pouco lhe faltam razões para viver, incapaz como ficou de enfrentar uma situação excepcional, como seja o amor, ele muito dificilmente o conseguirá. É que ele doravante pertence, de corpo e alma, a uma necessidade prática imperativa, que não permite ser desconsiderada. Faltará amplidão a seus gostos, envergadura a suas idéias. De tudo que lhe acontece e pode lhe acontecer, ele só vai reter o que for ligação deste evento com uma porção de eventos parecidos, nos quais não toma parte, eventos perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo que os outros, em suas conseqüências. Ele não descobrirá aí, sob pretexto algum, sua salvação. Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares. Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar ( como se fosse possível enganar-se mais ainda ). Onde começa ela a ficar nociva, e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem? Fica a loucura. "a loucura que é encarcerada", como já se disse bem. Essa ou a outra.. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua liberdade ( o que se vê de sua liberdade ) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas regras, fora das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido. E, de fato, alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo nada desprezível. A mais bem ordenada sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que passaria muitas noites a amansar essa mão bonita nas últimas páginas do livro. A Inteligência de Taine, se dedica a singulares malefícios. As confidências dos loucos, passaria minha vida a provocá-las. São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com loucos para descobrir a América. E vejam como essa loucura cresceu, e durou. Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação. O processo da atitude realista deve ser instruído, após o processo da atitude materialista. Esta, aliás, mais poética que a precedente, implica da parte do homem um orgulho sem dúvida monstruoso, mas não uma nova e mais completa deposição. Convém nela ver, antes de tudo, uma feliz reação contra algumas tendências derrisórias do espiritualismo. Enfim, ela não é incompatível com uma certa elevação de pensamento. Álvaro de Campos Álvaro de Campos Álvaro de Campos 1. A decadentista ou do opiário Autopsicografia 1. Qual o jogo de palavras que aparece na 1ª estrofe do poema? 2. Qual é o tipo de dor apresentada pelo poeta? 3. Explique a 3ª estrofe. Eros e Psique 1. Qual o sentido do poema? 4. Navegar é preciso 1. Como o poeta pode tornar a sua vida grande? Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado, Ele dela é ignorado, Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora, E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia. (F. Pessoa) Eros e Psique  ...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade. (Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio Na Ordem Templária De Portugal) Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada. Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera, Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. (F. Pessoa) Abdicação Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços E chama-me teu filho... eu sou um rei que voluntariamente abandonei O meu trono de sonhos e cansaços. Minha espada, pesada a braços lassos, Em mão viris e calmas entreguei; E meu cetro e coroa - eu os deixei Na antecâmara, feitos em pedaços Minha cota de malha, tão inútil, Minhas esporas de um tinir tão fútil, Deixei-as pela fria escadaria. Despi a realeza, corpo e alma, E regressei à noite antiga e calma Como a paisagem ao morrer do dia. (F. Pessoa) F. Pessoa LIBERDADE Ai que prazer não cumprir um dever. Ter um livro para ler e não o fazer! Ler é maçada, estudar é nada. O sol doira sem literatura. O rio corre bem ou mal, sem edição original. E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal como tem tempo, não tem pressa... Livros são papéis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta A distinção entre nada e coisa nenhuma. Quanto melhor é quando há bruma. Esperar por D. Sebastião, Quer venha ou não! Grande é a poesia, a bondade e as danças... Mas o melhor do mundo são as crianças, Flores, música, o luar, e o sol que peca Só quando, em vez de criar, seca. E mais do que isto É Jesus Cristo, Que não sabia nada de finanças, Nem consta que tivesse biblioteca... O que me dói não é O que há no coração Mas essas coisas lindas Que nunca existirão... São as formas sem forma Que passam sem que a dor As possa conhecer Ou as sonhar o amor. São como se a tristeza Fosse árvore e, uma a uma, Caíssem suas folhas Entre o vestígio e a bruma. (F. Pessoa) 1.Explique como ocorre essa liberdade para o poeta. 1. Explique a metáfora de rei, reinado que o poeta faz. 2. O que o poeta abdica? Tenho tanto sentimento Que é freqüente persuadir-me De que sou sentimental, Mas reconheço, ao medir-me, Que tudo isso é pensamento, Que não senti afinal. Temos, todos que vivemos, Uma vida que é vivida E outra vida que é pensada, E a única vida que temos É essa que é dividida Entre a verdadeira e a errada. Qual porém é a verdadeira E qual errada, ninguém Nos saberá explicar; E vivemos de maneira Que a vida que a gente tem É a que tem que pensar. (F. Pessoa) 1. Qual é a dor sentida pelo poeta? Isto Dizem que eu finjo ou minto Tudo o que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração. Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda. É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda. Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio. Sério do que não é. Sentir? Sinta quem lê! (F. Pessoa) NAVEGAR É PRECISO Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. (F. Pessoa) 1. Compare este poema com o poema autopsicografia. 2. Quais as duas vidas apresentadas pelo poeta? 3. O poeta se deixa levar pela emoção ou pela razão? 1. O que é escrever para o poeta? 2. Explique o jogo entre razão e emoção. III. Os Tempos Quinto/Nevoeiro NEM REI nem lei, nem paz nem guerra, Define com perfil e ser Este fulgor baço da terra Que é Portugal a entristecer – Brilho sem luz e sem arder, Como o que o fogo-fátuo encerr. Ninguém sabe que coisa quere. Ninguém conhece que alma tem. Nem o que é mal nem o que é bem. (Que anciã distante perto chora?) Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. Ó Portugal, hoje és nevoeiro... É a Hora! Valete, Frates (Valei, irmãos) III. As Quinas Quina/D. Sebastião, Rei de Portugal Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria? II. Os Castellos Primeiro/Ulisses O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo – O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo. Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos creou. Mensagem – Fernando Pessoa - ortônimo I. Os symbolos Primeiro/D. Sebastião Espere! Cai no areal e na hora adversa Que Deus concede aos seus Para o intervalo em que esteja a alma imersa Em sonhos que são Deus. Que importa o areal e a morte e a desventura Se com Deus me guardei? É o que eu me sonhei que eterno dura, É Esse que regressarei. MAR PORTUGUÊS Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quere passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. 1 2 3 Porque é natural e justa E é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada, Os meus pensamentos são contentes. Só tenho pena de saber que eles são contentes, Porque, se o não soubesse, Em vez de serem contentes e tristes, Seriam alegres e contentes. Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais. Não tenho ambições nem desejos Ser poeta não é uma ambição minha É a minha maneira de estar sozinho. O Guardador de Rebanho (Alberto Caeiro) I Eu nunca guardei rebanhos, Mas é como se os guardasse. Minha alma é como um pastor, Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar. Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado. Mas eu fico triste como um pôr de sol Para a nossa imaginação, Quando esfria no fundo da planície E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela. Mas a minha tristeza é sossego E se desejo às vezes Por imaginar, ser cordeirinho (Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora. Quando me sento a escrever versos Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro, 2. Fala-se de um paganismo de Caeiro. Pela leitura do poema, você diria que Caeiro acredita ou não em Deus? Por quê? 1. "Os pensamentos de Alberto Caeiro não passam de sensações", isso pode ser comprovado no poema? Que palavras justificam a afirmação? 5 4 E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta Uma cadeira predileta Onde se sentem, lendo os meus versos. E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural — Por exemplo, a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque, cansados de brincar, E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado. Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias, Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho, E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz E quer fingir que compreende. Saúdo todos os que me lerem, Tirando-lhes o chapéu largo Quando me vêem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. Saúdo-os e desejo-lhes sol, E chuva, quando a chuva é precisa, Só esta liberdade nos concedem Os deuses: submetermo-nos Ao seu domínio por vontade nossa. Mais vale assim fazermos Porque só na ilusão da liberdade A liberdade existe. Nem outro jeito os deuses, sobre quem O eterno fado pesa, Usam para seu calmo e possuído Convencimento antigo De que é divina e livre a sua vida. Nós, imitando os deuses, Tão pouco livres como eles no Olímpio, Como quem pela areia Ergue castelos para encher os olhos, Ergamos nossa vida E os deuses saberão agradecer-nos O sermos tão como eles. (Ricardo Reis) Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo, E ao beber nem recorda Que já bebeu na vida, Para quem tudo é novo E imarcescível sempre. Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis, Ele sabe que a vida Passa por ele e tanto Corta à flor como a ele De Átropos a tesoura. Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto, Que o seu sabor orgíaco Apague o gosto às horas, Como a uma voz chorando O passar das bacantes. E ele espera, contente quase e bebedor tranqüilo, E apenas desejando Num desejo mal tido Que a abominável onda O não molhe tão cedo. (Ricardo Reis) Não tenhas nada nas mãos Nem uma memória na alma, Que quando te puserem Nas mãos o óbolo último, Ao abrirem-te as mãos Nada te cairá. Que trono te querem dar Que átropos to não tire? Que louros que não fanem Nos arbítrios de Minos? Que horas que te não tornem Da estatura da sombra Que serás quando fores Na noite e ao fim da estrada. Colhe as flores mas larga-as, Das mãos mal as olhaste. Senta-te ao sol. Abdica E sê rei de ti próprio. (Ricardo Reis) 1. O poeta diz que "na ilusão da liberdade a liberdade existe" . Explique. 2. Explique a comparação entre deuses e seres humanos. 1. O sábio, segundo Ricardo Reis, é uma pessoa que se contenta com o simples e parece ter pouca memória. Por que o poeta o descreve assim? Que consequências boas podem ocorrer com isso? 1.Por que o poeta aconselha a não ter nada nas mãos? 2. Qual o sentido de ser rei de si próprio? O Opiário Ao toque adormecido da morfina Perco-me em transparências latejantes E numa noite cheia de brilhantes, Ergue-se a lua como a minha Sina. Eu, que fui sempre um mau estudante, agora Não faço mais que ver o navio ir Pelo canal de Suez a conduzir A minha vida, cânfora na aurora. Perdi os dias que já aproveitara Trabalhei para ter só o cansaço Que é hoje em mim uma espécie de braço Que ao meu pescoço me sufoca e ampara. É por um mecanismo de desastres, Uma engrenagem com volantes falsos, Que passo entre visões de cadafalsos Num jardim onde há flores no ar, sem hastes. Vou cambaleando através do lavor Duma vida-interior de renda e laca. Tenho a impressão de ter em casa a faca Com que foi degolado o Precursor. Ando expiando um crime numa mala, Que um avô meu cometeu por requinte. Tenho os nervos na forca, vinte a vinte, E caí no ópio como numa vala. É antes do ópio que a minh'alma é doente. Sentir a vida convalesce e estiola E eu vou buscar ao ópio que consola Um Oriente ao oriente do Oriente. Esta vida de bordo há-de matar-me. São dias só de febre na cabeça E, por mais que procure até que adoeça, já não encontro a mola pra adaptar-me. Em paradoxo e incompetência astral Eu vivo a vincos de ouro a minha vida, Onda onde o pundonor é uma descida E os próprios gozos gânglios do meu mal. 3 2 1 6 Sou desgraçado por meu morgadio. Os ciganos roubaram minha Sorte. Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte Um lugar que me abrigue do meu frio. Eu fingi que estudei engenharia. Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda. Meu coração é uma avòzinha que anda Pedindo esmola às portas da Alegria. Não chegues a Port-Said, navio de ferro! Volta à direita, nem eu sei para onde. Passo os dias no smokink-room com o conde - Um escroc francês, conde de fim de enterro. 5 Eu acho que não vale a pena ter Ido ao Oriente e visto a índia e a China. A terra é semelhante e pequenina E há só uma maneira de viver. Por isso eu tomo ópio. É um remédio Sou um convalescente do Momento. Moro no rés-do-chão do pensamento E ver passar a Vida faz-me tédio. Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim, Muito a leste não fosse o oeste já! Pra que fui visitar a Índia que há Se não há Índia senão a alma em mim? 4 E fui criança como toda a gente. Nasci numa província portuguesa E tenho conhecido gente inglesa Que diz que eu sei inglês perfeitamente. Gostava de ter poemas e novelas Publicados por Plon e no Mercure, Mas é impossível que esta vida dure. Se nesta viagem nem houve procelas! A vida a bordo é uma coisa triste, Embora a gente se divirta às vezes. Falo com alemães, suecos e ingleses E a minha mágoa de viver persiste. Volto à Europa descontente, e em sortes De vir a ser um poeta sonambólico. Eu sou monárquico mas não católico E gostava de ser as coisas fortes. Gostava de ter crenças e dinheiro, Ser vária gente insípida que vi. Hoje, afinal, não sou senão, aqui, Num navio qualquer um passageiro. Não tenho personalidade alguma. É mais notado que eu esse criado De bordo que tem um belo modo alçado De laird escocês há dias em jejum. 9 Escrevo estas linhas. Parece impossível Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta! O fato é que esta vida é uma quinta Onde se aborrece uma alma sensível. Os ingleses são feitos pra existir. Não há gente como esta pra estar feita Com a Tranqüilidade. A gente deita Um vintém e sai um deles a sorrir. Pertenço a um gênero de portugueses Que depois de estar a Índia descoberta Ficaram sem trabalho. A morte é certa. Tenho pensado nisto muitas vezes. 8 Não posso estar em parte alguma. A minha Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco. O comissário de bordo é velhaco. Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha. Um dia faço escândalo cá a bordo, Só para dar que falar de mim aos mais. Não posso com a vida, e acho fatais As iras com que às vezes me debordo. Levo o dia a fumar, a beber coisas, Drogas americanas que entontecem, E eu já tão bêbado sem nada! Dessem Melhor cérebro aos meus nervos como rosas. 7 Porque isto acaba mal e há-de haver (Olá!) sangue e um revólver lá pró fim Deste desassossego que há em mim E não há forma de se resolver. E quem me olhar, há-de-me achar banal, A mim e à minha vida... Ora! um rapaz... O meu próprio monóculo me faz Pertencer a um tipo universal. Ah quanta alma viverá, que ande metida Assim como eu na Linha, e como eu mística! Quantos sob a casaca característica Não terão como eu o horror à vida? Ora! Eu cansava-me o mesmo modo. Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali Para sonhos que dessem cabo de mim E pregassem comigo nalgum lodo. Febre! Se isto que tenho não é febre, Não sei como é que se tem febre e sente. O fato essencial é que estou doente. Está corrida, amigos, esta lebre. Veio a noite. Tocou já a primeira Corneta, pra vestir para o jantar. Vida social por cima! Isso! E marchar Até que a gente saia pla coleira! Leve o diabo a vida e a gente tê-la! Nem leio o livro à minha cabeceira. Enoja-me o Oriente. É uma esteira Que a gente enrola e deixa de ser bela. Caio no ópio por força. Lá querer Que eu leve a limpo uma vida destas Não se pode exigir. Almas honestas Com horas pra dormir e pra comer, Que um raio as parta! E isto afinal é inveja. Porque estes nervos são a minha morte. Não haver um navio que me transporte Para onde eu nada queira que o não veja! 12 11 10 15 Nasci pra mandarim de condição, Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira. Ah que bom que era ir daqui de caída Pra cova por um alçapão de estouro! A vida sabe-me a tabaco louro. Nunca fiz mais do que fumar a vida. E afinal o que quero é fé, é calma, E não ter estas sensações confusas. Deus que acabe com isto! Abra as eclusas — E basta de comédias na minh'alma! 14 À boca e morder nelas fundo e a mal. Era uma ocupação original E distraía os outros, os tais sãos. O absurdo, como uma flor da tal Índia Que não vim encontrar na Índia, nasce No meu cérebro farto de cansar-se. A minha vida mude-a Deus ou finde-a... Deixe-me estar aqui, nesta cadeira, Até virem meter-me no caixão. 13 Se ao menos eu por fora fosse tão Interessante como sou por dentro! Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro. Não fazer nada é a minha perdição. Um inútil. Mas é tão justo sê-lo! Pudesse a gente desprezar os outros E, ainda que co'os cotovelos rotos, Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo! Tenho vontade de levar as mãos Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente! Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez! Eia todo o passado dentro do presente! Eia todo o futuro já dentro de nós! eia! Eia! eia! eia! Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita! Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô! Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me. Engatam-me em todos os comboios. Içam-me em todos os cais. Giro dentro das hélices de todos os navios. Eia! eia-hô! eia! Eia! sou o calor mecânico e a electricidade! Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa! Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia! Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá! Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá! Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o! Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z! Ah não ser eu toda a gente e toda a parte! Ode Triunfal À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eternos! Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! Em fúria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora, por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações, Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! [...] Eia! eia! eia! Eia electricidade, nervos doentes da Matéria! 2. Futurista 3. Transcreva os versos em que o eu lírico manifesta desejo de tornar-se máquina. 1. Que elementos do mundo moderno aparecem nos versos transcritos? 2. Qual é a impressão que o eu lírico manifesta, na 1ª estrofe, sobre essa nova realidade? 3. Não me macem, por amor de Deus! Queriam-me casado, fútil quotidiano e tributável? Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. Assim, como sou, tenham paciência! Vão para o diabo sem mim, Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! Para que havermos de ir juntos? Não me peguem no braço! Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho. Já disse que sou sozinho! Ah, que maçada quererem que eu seja a companhia! Ó céu azul – o mesmo de minha infância – Eterna verdade vazia e perfeita! Ó macio Tejo ancestral e mudo, Pequena verdade onde o céu se reflete! Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo... E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! LISBON REVISITED (Lisboa Revisitada) Não: Não quero nada. Já disse que não quero nada. Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica! Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) – Das ciências, das artes, da civilização moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos? Se têm a verdade, guardem-a! Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro a técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram? 1. Destaque as partes nas quais Álvaro de Campos demonstra sua revolta contra os padrões sociais. 2. Destaque um verso em que o poeta explicita sua profissão. 3. Vários textos de Álvaro de Campos evocam uma melancolia saudade de sua infância, de tempos remotos, destruídos e irrecuperáveis. Destaque um verso do texto em que esse tipo de saudade se manifesta. 2 1 Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa. Fui até ao campo com grandes propósitos. Mas lá encontrei só ervas e árvores, E quando havia gente era igual à outra. Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar? Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? TABACARIA Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas 4 3 Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela; Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta, E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada. Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo, E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. Escravos cardíacos das estrelas, Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordamos e ele é opaco, Ser o que penso? Mas penso tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Gênio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um, Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? Não, nem em mim... Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando? Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas - Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, E quem sabe se realizáveis, Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. 6 (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas, Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê - Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! Meu coração é um balde despejado. Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada. Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os cães que também existem, E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) Vivi, estudei, amei e até cri, 5 Levantamo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rápida destes versos, Pórtico partido para o Impossível. Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, Nobre ao menos no gesto largo com que atiro A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas, E fico em casa sem camisa. 8 E vou escrever esta história para provar que sou sublime. Essência musical dos meus versos inúteis, Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, Como um tapete em que um bêbado tropeça Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada. Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada E com o desconforto da alma mal-entendendo. Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, E a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente 7 E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente Fiz de mim o que não soube E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo 10 9 E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto. Depois deito-me para trás na cadeira E continuo fumando. Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira Talvez fosse feliz.) Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica. (O Dono da Tabacaria chegou à porta.) Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu. Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra, Sempre o impossível tão estúpido como o real, Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?) E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. Semiergo-me enérgico, convencido, humano, E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. Sigo o fumo como uma rota própria, E gozo, num momento sensitivo e competente, A libertação de todas as especulações 1. Por que o poeta diz que não é nada? 2. Por que o poeta diz não crer nem em si mesmo? 3. Para quem é o mundo? 4. Explique o título do poema. 5. Com qual vanguarda européia você classifica o poema? 6. Explique o último verso do poema. Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida... Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que venho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. POEMA EM LINHA RETA Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo 1. Qual a crítica que está implícita no poema? 2. O que o poeta quis dizer com: Poderão as mulheres não os terem amado , / Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! /E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído." 3. Como o eu lírico vê a si próprio? Descreva. 4. Qual a situação econômica do eu lírico? Justifique. Álvaro de Campos Álvaro de Campos Eu tenho pena de mim, Pobre menino ideal... Que me faltou afinal? Um elo? Um rastro?... Ai de mim!... Desceu-me n'alma o crepúsculo; Eu fui alguém que passou. Serei, mas já não me sou; Não vivo, durmo o crepúsculo. Álcool dum sono outonal Me penetrou vagamente A difundir-me dormente Em uma bruma outonal. Perdi a morte e a vida, E, louco, não enlouqueço... A hora foge vivida Eu sigo-a, mas permaneço... Castelos desmantelados, Leões alados sem juba... A sua boca doirada E o seu corpo esmaecido, Em um hálito perdido Que vem na tarde doirada. (As minhas grandes saudades São do que nunca enlacei. Ai, como eu tenho saudades Dos sonhos que sonhei!... ) E sinto que a minha morte - Minha dispersão total - Existe lá longe, ao norte, Numa grande capital. Vejo o meu último dia Pintado em rolos de fumo, E todo azul-de-agonia Em sombra e além me sumo. Ternura feita saudade, Eu beijo as minhas mãos brancas... Sou amor e piedade Em face dessas mãos brancas... Tristes mãos longas e lindas Que eram feitas pra se dar... Ninguém mas quis apertar... Tristes mãos longas e lindas... A grande ave doirada Bateu asas para os céus, Mas fechou-as saciada Ao ver que ganhava os céus. Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo: Eu fui amante inconstante Que se traiu a si mesmo. Não sinto o espaço que encerro Nem as linhas que protejo: Se me olho a um espelho, erro - Não me acho no que projeto. Regresso dentro de mim Mas nada me fala, nada! Tenho a alma amortalhada, Sequinha, dentro de mim. Não perdi a minha alma, Fiquei com ela, perdida. Assim eu choro, da vida, A morte da minha alma. Saudosamente recordo Uma gentil companheira Que na minha vida inteira Eu nunca vi... Mas recordo Dispersão Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto E hoje, quando me sinto. É com saudades de mim. Passei pela minha vida Um astro doido a sonhar. Na ânsia de ultrapassar, Nem dei pela minha vida... Para mim é sempre ontem, Não tenho amanhã nem hoje: O tempo que aos outros foge Cai sobre mim feito ontem. (O Domingo de Paris Lembra-me o desaparecido Que sentia comovido Os Domingos de Paris: Porque um domingo é família, É bem-estar, é singeleza, E os que olham a beleza Não têm bem-estar nem família). O pobre moço das ânsias... Tu, sim, tu eras alguém! E foi por isso também Que me abismaste nas ânsias. 2. Em dada estrofe do poema, o eu poético profetiza a própria morte. Que estrofe é essa? 1. Como o poeta justifica a saudade que sente de si mesmo? Num ímpeto difuso de quebranto, Tudo encetei e nada possuí... Hoje, de mim, só resta o desencanto Das coisas que beijei mas não vivi... Um pouco mais de sol - e fora brasa, Um pouco mais de azul - e fora além. Para atingir faltou-me um golpe de asa... Se ao menos eu permanecesse aquém... De tudo houve um começo ... e tudo errou... - Ai a dor de ser - quase, dor sem fim... Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, Asa que se enlaçou mas não voou... Momentos de alma que, desbaratei... Templos aonde nunca pus um altar... Rios que perdi sem os levar ao mar... Ânsias que foram mas que não fixei... Se me vagueio, encontro só indícios... Ogivas para o sol - vejo-as cerradas; E mãos de herói, sem fé, acobardadas, Puseram grades sobre os precipícios... Quase Um pouco mais de sol - eu era brasa, Um pouco mais de azul - eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe de asa... Se ao menos eu permanecesse aquém... Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído Num grande mar enganador de espuma; E o grande sonho despertado em bruma, O grande sonho - ó dor! - quase vivido... Quase o amor, quase o triunfo e a chama, Quase o princípio e o fim - quase a expansão... Mas na minh'alma tudo se derrama... Entanto nada foi só ilusão! 1. Explique o verso "Se ao menos eu permanecesse aquém". 2. Por que o poeta disse que nada foi só ilusão? 3. Qual é a dor de ser-quase do poeta? Caranguejola - Ah, que me metam entre cobertores, E não me façam mais nada... Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada, Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores! Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado... Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira - Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira. Não, não estou para mais - não quero mesmo brinquedos. Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar... Que querem fazer de mim com este enleios e medos? Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar... Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas, E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor... Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor - Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas... Se me doem os pés e não sei andar direito, Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord? - Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito... De que me vale sair, se me constipo logo? E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza? Deixa-te de ilusões, Mário! Bom edrédon, bom fogo - E não penses no resto. É já bastante, com franqueza... Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará. Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria? Tenham dó de mim. Co'a breca! Levem-me prà enfermaria! - Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará. Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo; Em Paris, é preferível - por causa da legenda... Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda - E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo... Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras, Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou. Agora, no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras: Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou. 1. Este foi um dos últimos poemas escritos por Sá-Carneiro. Identifique nele informações autobiográficas. Poemas de Oswald de Andrade Canto de Regresso à Pátria Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lá Minha terra tem mais rosas E quase que mais amores Minha terra tem mais ouro Minha terra tem mais terra Ouro terra amor e rosas Eu quero tudo de lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte pra São Paulo Sem que veja a Rua 15 E o progresso de São Paulo. Verbo crackar Eu empobreço de repente Tu enriqueces por minha causa Ele azula para o sertão Nós entramos em conscordata Vós protestais por preferência Eles escafedem a massa Sê pirata Sede trouxas Abrindo o pala Pessoal sarado Oxalá que eu tivesse sabido que esse verbo era irregular. A Descoberta Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava da Páscoa Topamos aves E houvemos vista de terra os selvagens Mostraram-lhes uma galinha Quase haviam medo dela E não queriam por a mão E depois a tomaram como espantados primeiro chá Depois de dançarem Diogo Dias Fez o salto real as meninas da gare Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis Com cabelos mui pretos pelas espáduas E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha. Azorrague -Chega! Peredoa! Amarrados na escada A chibata preparava os cortes Para a salmoura Ocaso No anfiteatro de montanha Os profetas do Aleijadinho Monumentalizam a paisagem As cúpulas brancas dos Passos E os cocares revirados das palmeiras São degraus da arte de meu país Onde ninguém mais subiu Bíblia de pedra-sabão Banhada no ouro das minas Brasil O Zé Pereira chegou de caravela E preguntou pro guarani da mata virgem — Sois cristão? — Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê! Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu! O negro zonzo saído da fornalha Tomou a palavra e respondeu — Sim pela graça de Deus Canhém Babá Canhém Babá Cum Cum! E fizeram o Carnaval Relicário No baile da Corte Foi o conde d'Eu quem disse Pra Dona Benvinda Que farinha de Suruí Pinga de Parati Fumo de Baependi É come bebê pita e caí Pronominais Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro Amor Humor As Meninas da Gare Eram três ou quatro moças e bem gentis Com cabelos mui pretos pelas espáduas E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha Medo da Senhora A escrava pegou a filhinha nascida Nas costas E se atirou no Paraíba Para que a criança não fosse judiada. Oferta Quem sabe Se algum dia Traria O elevador Até aqui O teu amor Escapulário No Pão de Açúcar De Cada Dia Dai-nos Senhor A Poesia De Cada Dia são josé del rei Bananeiras O Sol O cansaço da ilusão Igrejas O ouro na serra de pedra A decadência O capoeira - Qué apanhá sordado? - O quê? - Quê apanhá? Pernas e cabeças na calçada. Vício na fala Para dizerem milho dizem mio Para melhor dizem mio Para pior pio Para telha dizem teia Para telhado dizem teiado E vão fazendo telhados. Descobrimento Abancado à escrivaninha em São Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De sopetão senti um friúme por dentro, Fiquei trêmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando para mim. Não vê que me lembrei lá no norte, meu Deus! muito longe de mim, Na escuridão ativa da noite que caiu, Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos olhos Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu.... Senhor Feudal Se Pedro Segundo Vier aqui Com história Eu boto ele na cadeia 3 de maio Aprendi com meu filho de dez anos Que a poesia é a descoberta Das coisas que eu nunca vi Que passariam Diriam É o hotel Do menestrel Pra m'inspirar Abro a janela Como um jornal Vou fazer A balada Do Esplanada E ficar sendo O menestrel De meu hotel Mas não há poesia Num hotel Mesmo sendo 'Splanada Ou Grand-Hotel Há poesia Na dor Na flor No beija-flor No elevador 2 1 Balada do esplanada Ontem à noite Eu procurei Ver se aprendia Como é que se fazia Uma balada Antes de ir Pro meu hotel. É que este Coração Já se cansou De viver só E quer então Morar contigo No Esplanada. Eu qu'ria Poder Encher Este papel De versos lindos É tão distinto Ser menestrel No futuro As gerações Aperitivo A felicidade anda a pé Na praça Antônio Prado São 10 horas azuis O café vai alto como a manhã de arranha-céus Cigarros Tietê Automóveis A cidade sem mitos Ditirambo Meu amor me ensinou a ser simples Como um largo de igreja Onde não há nem um sino Nem um lápis Nem uma sensualidade Poemas da amiga Gosto de estar a teu lado, Sem brilho. Tua presença é uma carne de peixe, De resistência mansa e de um branco Ecoando azuis profundos. Eu tenho liberdade em ti. Anoiteço feito um bairro, Sem brilho algum. Estamos no interior duma asa Que fechou. (Mário de Andrade) Quando eu morrer Quando eu morrer quero ficar, Não contem aos meus inimigos, Sepultado em minha cidade, Saudade. Meus pés enterrem na rua Aurora, No Paissandu deixem meu sexo, Na Lopes Chaves a cabeça Esqueçam. No Pátio do Colégio afundem O meu coração paulistano: Um coração vivo e um defunto Bem juntos. Escondam no Correio o ouvido Direito, o esquerdo nos Telégrafos, Quero saber da vida alheia, Sereia. O nariz guardem nos rosais, A língua no alto do Ipiranga Para cantar a liberdade. Saudade... Os olhos lá no Jaraguá Assistirão ao que há de vir, O joelho na Universidade, Saudade... As mãos atirem por aí, Que desvivam como viveram, As tripas atirem pro Diabo, Que o espírito será de Deus. Adeus. (Mário de Andrade) A meditação sobre o Tietê (trecho inicial) Água do meu Tietê, Onde me queres levar? — Rio que entras pela terra E que me afastas do mar... É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável Da Ponte das Bandeiras o rio Murmura num banzeiro de água pesada e oleosa. É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras, Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta O peito do rio, que é como se a noite fosse água, Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões As altas torres do meu coração exausto. De repente O óleo das águas recolhe em cheio luzes trêmulas, É um susto. E num momento o rio Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas, Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam Agora, arranha-céus valentes donde saltam Os bichos blau e os punidores gatos verdes, Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas, Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma Humana corrupta da vida que muge e se aplaude. E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra. Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo, Está negro. As águas oleosas e pesadas se aplacam Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho [ de morte. É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado É um rumor de germes insalubres pela noite insone e [ humana. Rondó pra Você De você, Rosa, eu não queria Receber somente esse abraço Tão devagar que você me dá, Nem gozar somente esse beijo Tão molhado que você me dá... Eu não queria só porque Por tudo quanto você me fala, Já reparei que no seu peito Soluça o coração bem feito De você Pois então eu imaginei Que junto com esse corpo magro, Moreninho que você me dá, Com a boniteza a faceirice A risada que você me dá E me enrabicham como o quê, Bem que eu podia possuir também O que mora atrás do seu rosto, Rosa, O pensamento, a alma, o desgosto De você (Clã do Jaboti) Paulicéia: um dos exemplos de melhor realização da obra é Paisagem nº2 Escuridão dum meio-dia de invernia... Marasmos... Estremeções... Brancos... O céu é toda uma batalha convencional de confetti brancos; e as onças pardas das montanhas no longe... Oh! para além vivem as primaveras eternas! As casas adormecidas parecem teatrais gestos dum explorador do polo que o gelo parou no frio. Lá para as bandas do Ipiranga as oficinas tossem... Todos os estiolados são muito brancos. Os invernos de Paulicea são como enterros de virgem... Italianinha, torna al tuo paese! (...) Deus recortou a alma de Paulicéia num cor de cinza sem odor... Oh! Para além vivem as primaveras eternas!... Mas os homens passam sonambulando... E rodando num bando nefário, vestidas de eletricidade e gasolina, as doenças jocotam em redor... (...) São Paulo é um palco de bailados russos. Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes e também as apoteoses de ilusão... VIII Gosto de estar a teu lado, Sem brilho. Tua presença é uma carne de peixe, De resistência mansa e um branco Escoando azuis profundos. Eu tenho liberdade em ti. Anoiteço feito um bairro, Sem brilho algum. Estamos no interior duma asa Que fechou. (Poemas da Amiga) Moça linda bem tratada, Três séculos de família, Burra como uma porta: Um amor. Grã-fino do despudor, Esporte, ignorância e sexo, Burro como uma porta: Um coió. Mulher gordaça, filó De ouro por todos os poros, Burra como uma porta: Paciência... Plutocrata sem consciência, Nada porta, terremoto Que a porta do pobre arromba: Uma bomba. (Lira Pulistana) Eu Sou Trezentos... Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, As sensações renascem de si mesmas sem repouso, Oh espelhos, oh Pireneus! Oh caiçaras! Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro! Abraço no meu leito as milhores palavras, E os suspiros que dou são violinos alheios; Eu piso a terra como quem descobre a furto Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos! Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, Mas um dia afinal eu toparei comigo... Tenhamos paciência, andorinhas curtas, Só o esquecimento é que condensa, E então minha alma servirá de abrigo. (Remate de Males) Ode ao Burguês Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, O burguês-burguês! A digestão bem feita de São Paulo! O homem-curva! O homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, É sempre um cauteloso pouco-a-pocuo! Eu insulto as aristocracias cutelosas! Os barões lampeões! Os condes Joões! Os duques zurros! Que vivem dentro de muros sem pulos; E gemem sangues de alguns milréis fracos Para dizerem que as filhas da senhora falam o francês E tocam o Printemps com as unhas! Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosais O êxtase fará sempre o Sol! Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais! Morte ao burguês-mensal! Ao burguês-cinema! Ao burguês-tílburi! Padaria Suíça! Morte viva ao Adriano! "-Ai, filha, que te darei pelos teus anos? - Um colar... – Conto e quinhentos!!! Mas nós morremos de fome! Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma! Oh! purée de batatas morais! Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas! Ódio aos temperamentos regulares Ódio aos relógios musculares! Morte a infâmia! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados! Ódio aos sem desfacimentos as mesmices convencionais! De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia! Dois a dois! Primeira posição! Marcha! Cheirando religião e que não crê em Deus! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico! Ódio fundamento, sem perdão! Fora! Fu! Fora o bom burguês!... (Poesias Completas) III Si o teu perfil é puríssimo, si os teu lábios São crianças que se esvaecem no leite, Si é pueril o teu olhar que não reflete por detrás, Si te inclinas e a sombra caminha na direção do futuro: Eu sei que tu sabes o que eu nem sei si tu sabes, Em ti se resume a perversa e imaculada correria dos fatos, És grande por demais para que sejas só felicidade! És tudo o que eu aceito que me sejas Só pra que o sono passe, e me acordares Com a aurora incalculavelmente mansa do sorriso. (Girassol da Madrugada) Poemas de Mário de Andrade Poemas de Manuel Bandeira Não Sei Dançar Sim, já perdi pai, mãe, irmãos. Perdi a saúde também. E por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band. Irene Irene preta Irene boa Irene sempre de bom humor Imagino Irene entrando no céu: - Com licença, meu branco. E São Pedro, bonachão: - Entra, Irene. Você não precisa pedir licença. O bicho Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. (Manuel Bandeira) Doçura de, no estio recente Ver a manhã toucar-se de flores E o rio mole queixoso Deslizar, lambendo areias e verduras; Doçura de ouvir as aves Em desafio de amores cantos risadas Na ramagem do pomar sombrio. (Manuel Bandeira) Pneumotórax Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse. Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três. - Trinta e três... trinta e três... trinta e três... - Respire. - O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. Amanhã é dia dos mortos Vai ao cemitério. Vai E procura entre as sepulturas A sepultura de meu pai. Leva três rosas bem bonitas. Ajoelha e reza uma oração. Não pelo pai, mas pelo filho: O filho tem mais precisão. O que resta de mim na vida É a amargura do que sofri. Pois nada quero, nada espero. E em verdade estou morto ali. (Manuel Bandeira) Teresa Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde Se ele chorar Se ele se ajoelhar Se ele se rasgar todo Não acredita não Teresa É lágrima de cinema É tapeação Mentira Cai fora. Porquinho-da-Índia Quando eu tinha seis anos Ganhei um porquinho-da-índia. Que dor de coração me dava Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! Levava ele prá sala Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos Ele não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas... - O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada. Último poema Assim eu quereria o meu último poema Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos [intencionais Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume A pureza da chama em que se consomem os diamantes [mais límpidos A paixão dos suicidas que se matam sem explicação. Andorinha Andorinha lá fora está dizendo: - "Passei o dia à toa, à toa!" Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! Passei a vida à toa, à toa... Poema do Beco Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? - O que eu vejo é o beco. Madrigal Melancólico O que eu adoro em ti, Não é a tua beleza. A beleza, é em nós que ela existe. A beleza é um conceito. E a beleza é triste. Não é triste em si, Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza. O que eu adoro em ti, Não é a tua inteligência. Não é o teu espírito sutil, Tão ágil, tão luminoso, -Ave solta no céu matinal da montanha. Nem é a tua ciência Do coração dos homens e das coisas. O que eu adoro em ti, Não é a tua graça musical, Sucessiva e renovada a cada momento, Graça aérea como o teu próprio pensamento. Graça que perturba e que satisfaz. O que eu adoro em ti, Não é a mãe que já perdi. Não é a irmã que já perdi. E meu pai. O que eu adoro em tua natureza, Não é o profundo instinto maternal Em teu flanco aberto como uma ferida. Nem a tua pureza. Nem a tua impureza. O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me! O que eu adora em ti, é a vida. Profundamente Quando ontem adormeci Na noite de São João Havia alegria e rumor Vozes cantigas e risos Ao pé das fogueiras acesas. No meio da noite despertei Não ouvi mais vozes nem risos Apenas balões Passavam errantes Silenciosamentev Apenas de vez em quando O ruído de um bonde Cortava o silêncio Como um túnel. Onde estavam os que há pouco Dançavam Cantavam E riam Ao pé das fogueiras acesas? - Estavam todos dormindo Estavam todos deitados Dormindo Profundamente. Quando eu tinha seis anos Não pude ver o fim da festa de São João Porque adormeci. Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Minha avó Meu avô Totônio Rodrigues Tomásia Rosa Onde estão todos eles? - Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo Profundamente. Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente Que Joana a Louca da Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d'água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me e Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostituas bonitas Para a gente namorar Vou-me embora pra Pasárgada E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei —Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada. A Morte Absoluta Morrer. Morrer de corpo e de alma. Completamente. Morrer sem deixar o triste despojo da carne, A exangue máscara de cera, Cercada de flores, Que apodrecerão - felizes! - num dia, Banhada de lágrimas Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte. Morrer sem deixar porventura uma alma errante... A caminho do céu? Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu? Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra, A lembrança de uma sombra Em nenhum coração, em nenhum pensamento, Em nenhuma epiderme. Morrer tão completamente Que um dia ao lerem o teu nome num papel Perguntem: "Quem foi?..." Morrer mais completamente ainda, - Sem deixar sequer esse nome. A Estrela da Manhã Eu quero a estrela da manhã Onde está a estrela da manhã? Meus amigos meus inimigos Procurem a estrela da manhã Ela desapareceu ia nua Desapareceu com quem? Procurem por toda a parte Digam que sou um homem sem orgulho Um homem que aceita tudo Que me importa? Eu quero a estrela da manhã Três dias e três noites Fui assassino e suicida Ladrão, pulha, falsário Virgem mal-sexuada Atribuladora dos aflitos Girafa de duas cabeças Pecai por todos pecai com todos Pecai com os malandros Pecai com os sargentos Pecai com os fuzileiros navais Pecai de todas as maneiras Com os gregos e com os troianos Com o padre e com o sacristão Com o leproso de Pouso Alto Depois comigo Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples Que tu desfalecerás Procurem por toda parte Pura ou degradada até a última baixeza eu quero a estrela da manhã Arte de Amar Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus - ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não. Consolo na praia ... Consoada Quando a Indesejada das gentes chegar (Não sei se dura ou caroável), talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: - Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com os seus sortilégios.) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar. Epílogo Eu quis um dia, como Schumann, compor Um carnaval todo subjetivo: Um carnaval em que o só motivo Fosse o meu próprio ser interior... Quando o acabei - a diferença que havia! O de Schumann é um poema cheio de amor, E de frescura, e de mocidade... O meu tinha a morta morta-cor De senilidade e de amargura... - O meu carnaval sem nenhuma alegria! Belo Belo Belo belo belo, Tenho tudo quanto quero. Tenho o fogo de constelações extintas há milênios. E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes. A aurora apaga-se, E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora. O dia vem, e dia adentro Continuo a possuir o segredo grande da noite. Belo belo belo, Tenho tudo quanto quero. Não quero o êxtase nem os tormentos. Não quero o que a terra só dá com trabalho. As dádivas dos anjos são inaproveitáveis: Os anjos não compreendem os homens. Não quero amar, Não quero ser amado. Não quero combater, Não quero ser soldado. - Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples. Poema Erótico Teu corpo claro e perfeito, - Teu corpo de maravilha Quero possuí-lo no leito Estreito da redondilha... Teu corpo é tudo o que cheira... Rosa... flor de laranjeira... Teu corpo branco e macio É como um véu de noivado... Teu corpo é pomo doirado... Rosal queimado do estio, Desfalecido em perfume... Teu corpo é a brasa do lume... Teu corpo é chama e flameja Como à tarde os horizontes... É puro como nas fontes A água clara que serpeja, Que em cantigas se derrama... Volúpia de água e da chama... A todo momento o vejo... Teu corpo... a única ilha No oceano do meu desejo... Teu corpo é tudo o que brilha, Teu corpo é tudo o que cheira... Rosa, flor de laranjeira... Os Sapos Enfunando os papos, Saem da penumbra, Aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra. Em ronco que aterra, Berra o sapo-boi: - "Meu pai foi à guerra!" - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!". O sapo-tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: - "Meu cancioneiro É bem martelado. Vede como primo Em comer os hiatos! Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos. O meu verso é bom Frumento sem joio. Faço rimas com Consoantes de apoio. Vai por cinquüenta anos Que lhes dei a norma: Reduzi sem danos A fôrmas a forma. Clame a saparia Em críticas céticas: Não há mais poesia, Mas há artes poéticas..." Urra o sapo-boi: - "Meu pai foi rei!"- "Foi!" - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!". Brada em um assomo O sapo-tanoeiro: - A grande arte é como Lavor de joalheiro. Ou bem de estatuário. Tudo quanto é belo, Tudo quanto é vário, Canta no martelo". Outros, sapos-pipas (Um mal em si cabe), Falam pelas tripas, - "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!". Longe dessa grita, Lá onde mais densa A noite infinita Veste a sombra imensa; Lá, fugido ao mundo, Sem glória, sem fé, No perau profundo E solitário, é Que soluças tu, Transido de frio, Sapo-cururu Da beira do rio... Poética Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. Desencanto Eu faço versos como quem chora De desalento , de desencanto Fecha meu livro se por agora Não tens motivo algum de pranto Meu verso é sangue , volúpia ardente Tristeza esparsa , remorso vão Dói-me nas veias amargo e quente Cai gota à gota do coração. E nesses versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre Deixando um acre sabor na boca Eu faço versos como quem morre. Qualquer forma de amor vale a pena!! Qualquer forma de amor vale amar! O Menino Doente O menino dorme. Para que o menino Durma sossegado, Sentada ao seu lado A mãezinha canta: - "Dodói, vai-te embora! "Deixa o meu filhinho, "Dorme... dorme... meu.. Morta de fadiga, Ela adormeceu. Então, no ombro dela, Um vulto de santa, Na mesma cantiga, Na mesma voz dela, Se debruça e canta: - "Dorme, meu amor. "Dorme, meu benzinho... " E o menino dorme. Neologismo Beijo pouco, falo menos ainda. Mas invento palavras que traduzem a ternura mais funda E mais cotidiana. inventei, por exemplo, o verbo teadorar. Intransitivo Teadoro, Teodora. Noite Morta Noite morta. Junto ao poste de iluminação Os sapos engolem mosquitos. Ninguém passa na estrada. Nem um bêbado. No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras. Sombras de todos os que passaram. Os que ainda vivem e os que já morreram. O córrego chora. A voz da noite... (Não desta noite, mas de outra maior.) O Rio Ser como o rio que deflui Silencioso dentro da noite. Não temer as trevas da noite. Se há estrelas nos céus, refletí-las. E se os céus se pejam de nuvens, Como o rio as nuvens são água, Refleti-las também sem mágoa Nas profundidades tranquilas. Juca olhou para a terra e a terra muda e fria pela voz do silêncio ela também dizia: "Juca Mulato, és meu! Não fujas que eu te sigo... Onde estejam teus pés, eu estarei contigo. Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a esfera há uma cova que se abre, há meu ventre que te espera... Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada, e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada. Por isso o que te vale ir, fugitivo e a esmo, buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo? Tu queres esquecer? Não fujas ao tormento... Só por meio da dor se alcança o esquecimento. Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos, que, na terra natal, a própria dor dói menos... E fica que é melhor morrer (ai, bem sei eu!) no pedaço de chão em que a gente nasceu!" Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços, pareciam querer apertá-lo entre os braços! "Filho da mata, vem! Não fomos nós, ó Juca, o arco do teu bodoque, as grades da arapuca, o varejão do barco e essa lenha sequinha que de noite estalou no fogo da cozinha? Depois, homem já feito, a tua mão ansiada não fez, de um galho tosco, um cabo para a enxada? "Não vás" – lhe disse o azul. – "Os meus astros ideais num forasteiro céu tu nunca os verás mais. Hostis, ao teu olhar, estrelas ignoradas hão de relampejar como pontas de espadas. Suas irmãs daqui, em vão, ansiosas, logo, irão te procurar com seus olhos de fogo... Calcula, agora, a dor destas pobres estrelas correndo atrás de quem anda fugindo delas... Poemas de Menotti Del Picchia "A Voz das Coisas" E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado: "Queres tu nos deixar, filho desnaturado?" E um cedro o escarneceu: "Tu não sabes, perverso, que foi de um galho meu que fizeram teu berço?" E a torrente que ia rolar para o abismo: "Juca, fui eu quem deu a água do teu batismo." Uma estrela, a fulgir, disse da etérea altura: "Fui eu que iluminei a tua choça escura no dia em que nasceste. Eras franzino e doente. E teu pai te abraçou chorando de contente... - Será doutor! – a mãe disse, e teu pai sensato: - Nosso filho será um caboclo do mato, forte como a peroba e livre como o vento! – Desde então foste nosso e, desde esse momento, nós te amamos seguindo o teu incerto trilho com carinhos de mãe que defende seu filho!" Das curvas bruscas dos rios Em igarapés, tangendo borés surgiram pajés Bêbedos de sangue tapuia, Trazendo ao almirante português Alvíssaras das tabas tabajaras... E Pedro Álvares Cabral Para inaugurar a pátria de Washington Luís Fincou na terra uma cruz. E, de noite, o estelário queimou fogos de artifício [no céu do Equador, E os marinheiros trouxeram de bordo as guitarras [para que dessem à luz A primeira saudade brasileira. (República dos Estados Unidos do Brasil) A terra se enfeitara das mais raras maravilhas: Pássaros, parasitas, caciques e serpentes, Urros e pios, gritos e cânticos dolentes E o mar de azulejo Palpitava de pirogas e de quilhas. Pelas picadas da floresta Foram chegando as delegações da terra: Generais carijós com tangas e miçangas, Coronéis botocudos com escudos, Tocantins de xavantes, guaicurus e guararapes. A Inauguração A convite da História Universal Que havia marcado a festa para 21 de abril, O Almirante Pedro Álvares Cabral Veio com u7ma frota de luzidas caravelas, Num séqüito naval de mastros e de velas, De estandartes e de cruzes, De sotainas, albardas, couraças e arcabuzes Inaugurar a futura República Dos Estados Unidos do Brasil. Papagaio gaio, quem te ensinou, em mais do mato, a repetir, papagaio, tanto nome feio? Gaio papagaio, gaio, gaio, gaio, que repetes tudo... Antes fosses um pássaro mundo. Papagaio do mato, se nunca estás triste, quem foi que te ensinou, por maldade, a palavra saudade? Papagaio gaio. Gaio, gaio, gaio. Papagaio Gaio Papagaio insensato, que te fêz assim? Que não sabes falar brasileiro e já sabes latim? Papagaio insensato, ave agreste, do mato, que diabo em ti existe, verde-gaio, que nunca estás triste? Papagaio do mato, se nunca estás triste, quem foi que te ensinou, por maldade, a palavra saudade? Papagaio triste, papagaio gaio, quem te fêz tão triste e tão gaio, triste mas verde-gaio? Poemas de Cassiano Ricardo Relâmpago A onça pintada saltou tronco acima que nem um relâmpago de rabo comprido e cabeça amarela: Zás! Mas uma flecha ainda mais rápida que o relâmpago fez rolar ali mesmo Aquele matinal gatão elétrico e bigodudo Que ficou estendido no chão feito um fruto de cor que tivesse caído de uma árvore! Canção para poder viver Dou-lhe tudo do que como, e ela me exige o último gomo. Dou-lhe a roupa com que me visto e ela me interroga: só isto? Se ela se fere num espinho, O meu sangue é que é o seu vinho. Se ela tem sede eu é que choro, no deserto, para lhe dar água: E ela mata a sua sede, já no copo de minha mágoa Dou-lhe o meu canto louco; faço um pouco mais do que ser louco. E ela me exige bis, "ao palco"! Desejo As coisas que não conseguem morrer Só por isso são chamadas eternas. As estrelas, dolorosas lanternas Que não sabem o que é deixar de ser. Ó força incognoscível que governas O meu querer, como o meu não-querer. Quisera estar entre as simples luzernas Que morrem no primeiro entardecer. Ser deus — e não as coisas mais ditosas Quanto mais breves, como são as rosas É não sonhar, é nada mais obter. Ó alegria dourada de o não ser Entre as coisas que são, e as nebulosas, Que não conseguiu dormir nem morrer. Os nomes dados a terra descoberta Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome de ilha de Vera-Cruz. Ilha cheia de graça Ilha cheia de pássaros Ilha cheia de luz. Ilha verde onde havia mulheres morenas e nuas anhangás a sonhar com histórias de luas e cantos bárbaros de pajés em poracés batendo os pés. Depois mudaram-lhe o nome pra terra de Santa Cruz. Terra cheia de graça Terra cheia de pássaros Terra cheia de luz. A grande terra girassol onde havia guerreiros de tanga e onças ruivas deitadas à sombra das árvores mosqueadas de sol Mas como houvesse em abundância, certa madeira cor de sangue, cor de brasa e como o fogo da manhã selvagem fosse um brasido no carvão noturno da paisagem, e como a Terra fosse de árvores vermelhas e se houvesse mostrado assaz gentil, deram-lhe o nome de Brasil. Brasil cheio de graça Brasil cheio de pássaros Brasil cheio de luz. Numa sala de espera. Mas sei também que espera significa luta e não, apenas, Esperança sentada. Não abdicação diante da vida. A esperança Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera. Nunca é figura de mulher Do quadro antigo. Sentada, dando milho aos pombos. A rua Bem sei que, muitas vezes, O único remédio É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem, A dívida, o divertimento, O pedido de emprego, ou a própria alegria. A esperança é também uma forma De continuo adiamento. Sei que é preciso prestigiar a esperança, Poemas de Guilherme de Almeida Nós III Mas não passou sem nuvem de tristeza esse amor que era toda a tua vida, em que eu tinha a existência resumida e a viva chama de minha alma, acesa. Nem lemos sem vislumbre de incerteza a página do amor, lida e relida, mas pouquíssimas vezes entendida, sempre cheia de engano e de surpresa, Não. Quantas vezes ocultei a minha dor num sorriso! Quanta vez sentiste parar, medroso, o coração de gelo! - É que nossa alma às vezes adivinha que perder um amor não é tão triste como pensar que havemos de perdê-lo. Nós I Fico - deixas-me velho. Moça e bela, partes. Estes gerânios encarnados, que na janela vivem debruçados, vão morrer debruçados na janela. E o piano, o teu canário tagarela, a lâmpada, o divã, os cortinados: - "Que é feito dela?" - indagarão - coitados! E os amigos dirão: - "Que é feito dela?" Parte! E se, olhando atrás, da extrema curva da estrada, vires, esbatida e turva, tremer a alvura dos cabelos meus; irás pensando, pelo teu caminho, que essa pobre cabeça de velhinho é um lenço branco que te diz adeus! Esta vida Um sábio me dizia: esta existência, não vale a angústia de viver. A ciência, se fôssemos eternos, num transporte de desespero inventaria a morte. Uma célula orgânica aparece no infinito do tempo. E vibra e cresce e se desdobra e estala num segundo. Homem, eis o que somos neste mundo. Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver dentro da própria morte, o encanto de morrer. Um monge me dizia: ó mocidade, és relâmpago ao pé da eternidade! Pensa: o tempo anda sempre e não repousa; esta vida não vale grande coisa. Uma mulher que chora, um berço a um canto; o riso, às vezes, quase sempre, um pranto. Depois o mundo, a luta que intimida, quadro círios acesos : eis a vida Isto me disse o monge e eu continuei a ver dentro da própria morte, o encanto de morrer. Um pobre me dizia: para o pobre a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre. Deus, eu não creio nesta fantasia. Deus me deu fome e sede a cada dia mas nunca me deu pão, nem me deu água. Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa de andar de porta em porta, esfarrapado. Deu-me esta vida: um pão envenenado. Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver, dentro da própria morte, o encanto de morrer. Uma mulher me disse: vem comigo! Fecha os olhos e sonha, meu amigo. Sonha um lar, uma doce companheira que queiras muito e que também te queira. No telhado, um penacho de fumaça. Cortinas muito brancas na vidraça Um canário que canta na gaiola. Que linda a vida lá por dentro rola! Pela primeira vez eu comecei a ver, dentro da própria vida, o encanto de viver. Haicai Infância Um gosto de amora comida com sol. A vida chamava-se "Agora". Cigarra Diamante. Vidraça. Arisca, áspera asa risca o ar. E brilha. E passa. Indiferença Hoje, voltas-me o rosto, se ao teu lado passo. E eu, baixo os meus olhos se te avisto. E assim fazemos, como se com isto, pudéssemos varrer nosso passado. Passo esquecido de te olhar, coitado! Vais, coitada, esquecida de que existo. Como se nunca me tivesses visto, como se eu sempre não te houvesse amado Mas, se às vezes, sem querer nos entrevemos, se quando passo, teu olhar me alcança se meus olhos te alcançam quando vais. Ah! Só Deus sabe! Só nós dois sabemos. Volta-nos sempre a pálida lembrança. Daqueles tempos que não voltam mais! Écloga tropical Entre a chuva de ouro das carambolas e o veludo polido das jabuticabas, sobre o gramado morno, onde voam borboletas e besouros, sobre o gramado lustroso onde pulam gafanhotos de asas verdes e vermelhas,   Salta uma ronda de crianças! O ar é todo perfume, perfume tépido de ervas, raízes e folhagens.   O ar cheira a mel de abelhas...   E há nos olhos castanhos das crianças a doçura e o travor das resinas selvagens, e há nas suas vozes agudas e dissonantes um áureo rumor de flautas, de trilos, de zumbidos e de águas buliçosas... (Ronald de Carvalho) As Pombigna P'ru aviadore chi pigó o tombo Vai a primeira pombigna dispertada, I maise otra vai disposa da primiera; I otra maise, i maise otra, i assi dista maniera, Vai s'imbora tutta pombarada. Passano fora o dí i a tardi intera, Catano as formiguigna ingoppa a strada; Ma quano vê a notte indisgraziada, Vorta tuttos in bandos, in filera. Assi tambê o Cicero avua, Sobi nu spaço, molto alê da lua, Fica piqueno uguali d'un sabiá. Ma tuttos dia avua, allegre, os pombo!... Inveis chi o Muque, desdi aquilio tombo, Nunga maise quiz avuá. (Juó Bananere) Migna terra tê parmeras, Che ganta inzima o sabiá. As aves che stó aqui, Tambê tuttos sabi gorgeá. A abobora celestia tambê, Che tê lá na mia terra, Tê moltos millió di strella Che non tê na Ingraterra. Os rios lá sô maise grandi Dus rios di tuttas naçó; I os matto si perde di vista, Nu meio da imensidó. Na migna terra tê parmeras Dove ganta a galigna dangola; Na migna terra tê o Vap'relli, Chi só anda di gartolla. (Juó Bananere)