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A Escola e a Comunidade
Reinventar a escola dialogando com a comunidade e com a cidade
Novos Itinerários Educativos
Jaqueline Moll
Sem negar a tradição fundadora de qualquer instituição social, é preciso
que nos questionemos profundamente acerca do sentido da escola para as
novas gerações de nossa sociedade, assim como nos questionamos acerca de
outros cânones instituidores das formas de ser e de estar no nosso tempo,
como a família e as instituições democráticas.
Há muito estamos imersos, atores das cenas pedagógicas que se desenvolvem
no dia-a-dia de nossas escolas, em discussões acerca dos problemas
"congênitos" de que padece a instituição escolar. Problemas que ganham
novos matizes diante das novas exigências e dos novos desafios do presente.
Problemas relacionados à distância (aos desentendidos ou mal-entendidos)
que existe entre a escola e a família, esta, via de regra, acusada de
ausentar-se ou de ignorar as demandas da escola e as necessidades dos
alunos. Problemas relacionados à indisciplina, sobretudo por parte dos
adolescentes, que, supostamente, não se interessam pelo que a escola
ensina. Problemas de não-aprendizagens, ainda denominados de "fracasso
escolar", em relação aos quais os alunos continuam sendo avaliados e
categorizados pelo que não têm e não demonstram saber e raramente pelo que
já construíram. Problemas em relação ao uso da coerção, da repressão que
impede a livre expressão de idéias, comprometendo o futuro da própria
democracia e, portanto, a possibilidade de avanço nas formas de convivência
social.
As leituras dos problemas da escola ganham por vezes contornos bastante
persecutórios: acusam-se professores, pais, alunos, governos como agentes
que podem ser individualmente culpabilizados. Há quem pense – e proponha –
que novos métodos de ensino ou novos processos avaliativos ou novas
disciplinas no currículo escolar ou novos materiais pedagógicos ou a
introdução de novas tecnologias de comunicação e informação podem resolver
ou, pelo menos, minimizar o mal-estar vivido pela escola.
Considerando que muitas podem ser as leituras e variadas as alternativas,
sem dúvida importantes para a renovação do trabalho pedagógico, propomos
outra possível leitura que, ao mesmo tempo, caminhe na contramão das
culpabilizações e permita-nos uma análise e, portanto, saídas menos
pontuais.
Pensando na perspectiva filosófica de Edgar Morin, que nos desafia a ler o
mundo sob a forma do holograma, ou seja, buscando na parte o todo e no todo
a parte, os problemas que a escola vive, de certo modo, refletem os
problemas da contemporaneidade. Sendo a instituição escolar constituída e
constituidora do modo moderno de vida, coetânea dos processos de
industrialização e urbanização que mudaram a face do mundo ocidental pós
século XVIII, podemos afirmar que a crise da escola é a própria crise da
modernidade e vice-versa. Por esse motivo, qualquer perspectiva de
modificação real da escola passa pela sua ressignificação como instituição
social. Passa pela superação da assincronia de tempos, tão bem descrita
pelos pedagogos espanhóis quando dizem que a escola é uma instituição do
século XIX, com professores formados no século XX e preparando alunos para
o século XXI. Sem negar a tradição fundadora de qualquer instituição
social, é preciso que nos questionemos profundamente a cerca do sentido da
escola para as novas gerações de nossa sociedade, assim como nos
questionemos acerca de outros cânones instituidores das formas de ser e de
estar no nosso tempo, como a família e as instituições democráticas.
Nessa perspectiva, surgem diferentes iniciativas que buscam redesenhar
contornos institucionais da escola, rompendo com a rigidez organizativa de
tempos, espaços, campos de conhecimento e com o isolamento que a tem
caracterizado desde sua gênese. Tais movimentos, dos quais podem ser
emblemáticos a escola nova e a escola construtivista, respectivamente nas
primeiras e últimas décadas do século XX, buscaram reformular as práticas
pedagógicas desde o interior da escola.
Sem desconsiderar a importância de tais processos, é preciso focalizar
movimentos mais amplos que buscam transformar as formas de ser e de atuar
da instituição escolar, convertendo a escola em "comunidades de
aprendizagem", ou movimentos que tentam conectar a escola às redes sociais
e aos itinerários educativos que estão no seu entorno no espaço urbano da
construção da "cidade educadora".
Tendo origem em experiências norte-americanas e espanholas, na década de 80
do século XX, a proposta de comunidade de aprendizagem implica sair da
perspectiva isolada que caracteriza a escola para a construção de uma
comunidade na qual,além dos professores e especialistas, os próprios
alunos, os pais e os demais membros da comunidade tomem parte ativa nas
decisões e nos projetos que definem, planejam, avaliam, acompanham as
trajetórias educativas que os alunos percorrem em seus anos de vida
escolar. De forma bastante ampliada, a idéia da cidade cidade educadora,
que nasce a partir de uma rede de cidades convertida em associação
internacional (Associação Internacional de Cidades Educadoras – AICE) em um
congresso na cidade de Barcelona, em 1990, firma-se no pressuposto de que a
cidade admita e exerça funções pedagógicas para além de suas tarefas
econômicas, sociais e políticas tradicionais. Nessa perspectiva, a escola
(e o sistema educacional como um todo) compõe uma "rede" de possibilidades
educativas, exercendo sua especificidade e recolocando-se na relação com os
outros espaços de educação na cidade.
Nesse sentido, tanto o conceito de comunidade de aprendizagem quanto o de
cidade educadora podem ser ampliadores de nossa compreensão de educação
(Sancho, 2002), permitindo-nos reinventar a escola no mesmo movimento que
busca reinventar a cidade e nela a comunidade como lugares de convivência,
de diálogo, de aprendizagens permanentes na perspectiva do aprofundamento
da democracia e da afirmação das liberdades.
Tais processos desafiam-nos a mudanças que, embora também metodológicas,
são mudanças paradigmáticas que implicam produzir novos esquemas mentais
para ler o mundo e criar o que Paulo Freire denominou "inéditos viáveis".
Desse modo, não se colocam como uma nova panacéia, nem como um novo modelo,
mas como mudanças possíveis, porém a médio e longo prazos, as quais só
podem ser construídas a partir de novos pactos sociais e educativos.
Em primeiro lugar, coloca-se a necessidade de ver a educação para além da
escola também na escola, mas não só como responsabilidade de professores e
especialistas. A educação das novas gerações é responsabilidade de todos os
que coabitam no mesmo espaço, mas também, em escala planetária. A partir
dessa visão local e global, é necessário, para não dizer urgente, que
comecemos o diálogo, para além das instituições escolares, sobre nosso(s)
projeto(s) educativo(s). Que olhares diferentes atores sociais (associações
de bairros, grupos ecológicos, empresariado, clubes de serviço, sindicatos,
partidos políticos, etc.) dirigem às crianças, aos adolescentes e aos
jovens em nossa sociedade? Como desobliterar olhares que nos grupos jovens
só enxergam ameaças e problemas?
Nesse aspecto, certamente reside uma dificuldade fundamental: não estamos
habituados ao diálogo e à aproximação com outros atores da cena social. A
AICE propõe como agente mediador desse diálogo o poder público
municipal[i]. Para termos uma idéia da abrangência do que na cidade de
Barcelona designa-se como Projeto Educativo de Cidade, evoquemos as linhas
estratégicas propostas coletivamente em 1998:
Dimensão Social: aprofundar a dimensão social e comunitária da
educação, promovendo um compromisso estável dos agentes sociais em
distritos e bairros.
Igualdade de Oportunidades: desenvolver as ações adequadas para
melhorar a igualdade de oportunidades diante das mudanças
tecnológicas, econômicas, sociais, culturais e institucionais.
Formação Profissional: adequar as diversas possibilidades de
formação profissional às necessidades do entorno produtivo da região
metropolitana.
Cidadania Ativa: promover uma cidadania ativa, crítica, responsável
e aberta à diversidade.
Sustentabilidade e Qualidade de Vida: formar a cidadania no uso
sustentável dos recursos e promover um ecossistema urbano integrado
que melhore a qualidade de vida das pessoas.
Inovação e Conhecimento: capacitar as pessoas para a inovação e a
gestão do conhecimento em todos os campos da ciência, da cultura e das
tecnologias.
Qualificação e Sistema Educativo: aproveitar as oportunidades que
oferece a Carta Municipal para melhorar aa gestão, o planejamento e a
qualificação do sistema educativo.
Assinadas por representantes do poder público, dos sindicatos, das
associações de estudantes, da câmara de comércio, de grupos de ecologistas,
entre outros, essas linhas estratégicas e seus respectivos desdobramentos
expressam o resultado de, no mínimo, um ano de discussões nas quais esses
atores sociais dispõem-se a firmar um novo pacto educativo, pensando a
cidade em seu conjunto, com ações que envolvem o cruzamento de diferentes
instituições, o uso dos espaços urbanos, a disponibilização de tempo para
as novas gerações, bem como a afirmação de novos horizontes e compromissos
por parte da comunidade especificamente escolar. Assim, todos os que vivem
na cidade convertem-se em educadores.
Contudo, para pensar-se a cidade educadora, é necessário – diria até mesmo
imprescindível – construir a interlocução mais local, a interlocução com a
comunidade, considerando-se que a escola pode ser o agente mediador e
desencadeador desse diálogo. Algumas questões podem ser desafiadoras:
Qual é o grau de identidade do projeto pedagógico da escola com as
pessoas que vivem na comunidade? Qual é o diálogo que existe entre
comunidade e escola?
O que a escola conhece da vida da comunidade e de seus espaços de
convivência? Quais são os espaços de convivência que existem na
comunidade? Que atores sociais estão presentes na comunidade?
Como os pais e as outras pessoas da comunidade participam da vida da
escola? Quando essas pessoas vêm à escola e quando a escola vai à
comunidade?
Nos atuais processos de participação, acontece o diálogo com a
exposição e a argumentação explicitadoras de diferentes pontos de
vista? Supera-se o formalismo presente em muitas escolas, nas quais os
pais apenas ratificam decisões já tomadas pela equipe diretiva?
Que lugar a escola ocupa no tecido social em que está inserida? A
comunidade usa o espaço físico da escola fora do período de aulas? A
quadra de esportes, a biblioteca, a sala de informática, o pátio, o
laboratório estão à disposição dessa comunidade sem a presença de quem
dirige a escola? Ou a escola é fechada no fim da tarde de sexta-feira
e só reabre na segunda pela manhã?
É preciso perguntar-se se a escola está inscrita simbolicamente como espaço
de acolhida e de pertencimento na vida da comunidade, constituindo-se como
um agente legítimo para desencadear esse diálogo. É preciso perguntar-se
também em que medida a escola ainda desempenha – e deve desempenhar – a
função de socializar os saberes, as experiências, as cosmovisões, os modos
de vida produzidos pela humanidade ao longo de sua história, função que a
diferencia de outras instituições sociais. Tais indagações podem introduzir-
nos em itinerários de reinvenção da escola e de construção tanto da
comunidade de aprendizagem quanto da cidade educadora como espaços nos
quais o diálogo, a participação e a cooperação do conjunto de atores
sociais sejam características permanentes. Recolocar a escola na cena
urbana, tirá-la de um certo lugar de invisibilidade, construir condições
para que as novas (e também velhas) gerações (re)aprendam a cidade, na
cidade e da cidade e (re)aprendam a conviver colocam-se como possibilidades
histórica de nos reinventarmos como sociedade. Ressignificar a escola,
colocando-a em rede com a comunidade e a cidade, não significa despi-la de
uma tarefa que é eminentemente sua em relação às novas gerações.
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[i] A cidade de Porto Alegre está vinculada à AICE desde 1998
Referências Bibliográficas
MOLL, J. Histórias de Vida, histórias de escola: elementos para uma
pedagogia da cidade. Petrópolis: Vozes, 2000
Sancho, J.M. A diversidade da escola ou a diversidade da educação? Pátio,
ano V nº 20. p 52-55 fev/abr. 2002.
Jaqueline Moll é doutora em
Educação e professora da Faculdade
de Educação da UFRGS
aprendiz.uol.com.br/downloads/educacao_comunitaria/reinventar.doc