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Cidadania E Meio Ambiente

edição especial da Revista Cidadania e meio ambiente.

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E D I T O R I A L A revista Cidadania & Meio Ambiente é uma publicação da Câmara de Cultura Caros Amigos, A relevância do Fórum Social Mundial 2009 (Belém, PA, de 27/ 01 a 01/02/08) motivou-nos a publicar essa edição Especial de Cidadania & Meio Ambiente. Ela constitui nossa contribuição às entidades e movimentos da sociedade civil que, como nós, militam por uma sociedade mais justa e inclusiva. Assim como o FSM 2009 é um espaço aberto plural, diversificado, não confessional, não governamental e não partidário, esta edição procura agregar em quatro módulos temáticos – Modelo de Desenvolvimento, Segurança Alimentar, Segurança Hídrica e Direitos Humanos e Cidadania – um mosaico de dados balizador da atual realidade planetária. Não temos a intenção de esgotar nenhuma perspectiva, afirmar pontos de vista sectários ou apresentar soluções esquemáticas. Desejamos tão somente oferecer informações que permitam a percepção da urgência por atitudes e ações coletivas que minimizem a crise planetária e humanitária em andamento. Da identificação dos males atuais é que poderemos articular as negociações para resgatar a civilização – e nossa morada sideral – da atual destruição programada. A informação necessária à compreensão reflexiva das “emergências” abordadas em cada módulo transcende o limitado número de páginas da edição. Na verdade, cada artigo é uma fonte inesgotável de pesquisa cruzada através de referências bibliográficas e de links para consultas on-line a instituições e aos próprios articulistas. Cada artigo é apenas a “ponta do iceberg”, que merece ser apreciado em sua totalidade. Objetivamos – à semelhança do FSM 2009 – ampliar a rede de discussão crítica e de engajamento às questões planetárias. Daí o cuidado que tivemos em selecionar textos riquíssimos em conteúdo, a cujos autores expressamos nosso grato reconhecimento. Esperamos já na próxima edição regular da Cidadania & Meio Ambiente apresentar um balanço das questões discutidas no FSM 2009. Helio Carneiro Editor www.camaradecultura.org [email protected] Diretora Regina Lima [email protected] Editor Hélio Carneiro [email protected] Subeditor Henrique Cortez [email protected] Projeto Gráfico Lucia H. Carneiro [email protected] Revisores Vanise Macedo Adílson dos Santos Colaboraram nesta edição The New Scientist Norbert Suchanek Rogério Grasseto Teixeira da Cunha Ladislau Dowbor Hervé Kempf PNUD Leonardo Boff Miguel A. Altieri Revista Consciencia.Net Moisés Vélasquez-Manoff Herton Escobar Miguel Mora Mário José de Lima Henrique Cortez João Suassuna Roberto Malvezzi Charles Kenny Carlos Ferreira de Abreu Castro Aldicir Scariot Frei Beto Leonardo Sakamoto OMS-UNICEF João Alfredo Telles Melo Francisco Alves Mike Davis Horand Knaup Visite o portal EcoDebate [Cidadania & Meio Ambiente] www.ecodebate.com.br Uma ferramenta de incentivo ao conhecimento e à reflexão através de notícias, informações, artigos de opinião e artigos técnicos, sempre discutindo cidadania e meio ambiente, de forma transversal e analítica. A Revista Cidadania & Meio Ambiente não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos em matérias e artigos assinados. Editado e impresso no Brasil - Distribuição gratuita. Especial 2009 Capa: Foto The Children at Risk Foundation MODELO DE DESENVOLVIMENTO 4 6 8 12 14 18 20 Reduzir o consumo: chave para um futuro sustentável – Henrique Cortez Como a economia está matando o Planeta – New Scientist Desenvolvimento: por quê e para quem? – Norbert Suchanek Débito de futuro: a crise definitiva – Rogério Grasseto A lógica do sistema é insustentável ambientalmente – Ladislau Dowbor Como os ricos estão destruindo a Terra – Hervé Kempf Mudança de clima e pobreza mundial – PNUD SEGURANÇA ALIMENTAR 23 24 26 30 33 35 A fome sempre existiu, mas hoje resulta do consumo – Por Leonardo Boff Agricultura sustentável e soberania alimentar – Miguel A. Altieri O biorrisco das tecnologias Traitor e Terminator – Revista Consciência.Net Vegetais: dieta para o planeta superpovoado – Moisés Velásquez-Manoff Planeta de famélicos e de obesos – Miguel Mora Uma porta para o nada – Mário José de Lima SEGURANÇA HÍDRICA 39 40 44 46 52 54 58 A questão dos aqüíferos fronteiriços – Henrique Cortez Rio São Francisco: as questões técnicas da transposição – Por João Suassuna O século do agronegócio: água virtual – Henrique Cortez Água: a questão na América Latina – Roberto Malvezzi Água e corrupção: uma questão de vida e de morte – Charles Kenny Escassez de água: crise silenciosa – Carlos F. Castro e Aldicir Scariot – PNUD Saciar a sede de água e cidadania – Frei Beto DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA Por que a Lei Áurea não representou a abolição definitiva? – Leonardo Sakamoto 2,5 bilhões sem saneamento – OMS-UNICEF Aquecimento global: ecologismo dos pobres e ecossocialismo – João A.Telles Mello Por que morrem os cortadores de cana? – Francisco Alves Planeta favela – Mark Davis Todos em guerra contra Gaia – Leonardo Boff África: a corrida do ouro verde – Horand Knaup Para onde caminha a humanidade? – Roberto Malvezzi Azrainman 61 66 68 72 76 79 80 83 M O D E L O D ED E S E N V O L V I M E N T O E ste tema central é completamente desprezado pelos governos e pelas empresas, já que almejam apenas a manutenção do modelo que melhor atende aos seus interesses – quaisquer que sejam. O manejo sustentável dos recursos naturais e a agricultura familiar não figuram na agenda de compromissos dos grandes interesses econômicos e, em conseqüência, também não são brindados na agenda dos governos. Ainda mantém-se a “versão século XXI” do modelo colonial, no qual as colônias exportavam produtos primários (com pequeno valor agregado) para beneficiamento pelas metrópoles, que os reexportavam (com grande valor agregado). Assim, as colônias financiaram o desenvolvimento dos países colonialistas – e ainda é assim que o Terceiro Mundo financia os países que se dizem desenvolvidos. Precisamos intensificar as discussões sobre este modelo econômico. É necessário questionar a quem ele serve e a quem beneficia. Ou questionamos para encontrarmos outro modelo de desenvolvimento ou continuaremos no modelo colonial de exportação de produtos primários. Neste sentido, destacamos nosso conceito base: “Compreendemos desenvolvimento sustentável como sendo socialmente justo, economicamente inclusivo e ambientalmente responsável. Se não for assim não é sustentável. Aliás, também não é desenvolvimento. É apenas um processo exploratório, irresponsável e ganancioso, que atende a uma minoria poderosa, rica e politicamente influente.” Henrique Cortez 4 REDUZIR O CONSUMO: chave para um futuro sustentável Pesquisadores do Australian Commonwealth Scientific and Research Organization (CSIRO) confirmam as previsões do controverso livro The Limits to Growth, editado em 1972, que previa o colapso global, em termos econômicos e ecológicos, em meados do século 21. por Henrique Cortez A cada dia novos estudos e pesquisas confirmam que o atual modelo de desenvolvimento, baseado no “infinito” crescimento do consumo, é insustentável. Vivemos em um planeta finito, com recursos igualmente finitos. Logo, o conceito de desenvolvimento baseado na expansão infinita da economia não funcionará por muito tempo. Pena que reconhecer o óbvio nem sempre seja simples. substancialmente nosso consumo, a economia mundial entrará em colapso em meados deste século.” O livro Limits to Growth1 desenhou cenários para o futuro da economia global e meio ambiente, recomendando mudanças profundas na nossa forma de viver, para evitar uma catástrofe. Em artigo publicado na atual edição do Global Environmental Change, o pesquisador do CSIRO, Dr Graham Turner2, comparou a análise do livro com os dados globais dos últimos 30 anos. A pesquisa é a primeira tentativa de testar, exaustivamente, as previsões do livro, que permanece como um dos mais completos modelos globais vinculando o meio ambiente e a economia global. “Os dados reais dos últimos 30 anos basicamente confirmam os modelos do The Limits to Growth. Eles mostram que, de acordo com o modelo, o mundo seguiu exatamente a trajetória insustentável, que o livro já definia como cenário provável. A modelagem original prevê que, se continuarmos nesta trajetória, sem reduzir “Dados atuais como os preços crescentes do petróleo, as mudanças climáticas, as crises de água, de alimento e de segurança claramente confirmam a tendência de colapso definido como provável no premonitório livro”, informa Turner. Até o momento, as recomendações do The Limits to Growth, que incluem mudanças fundamentais nas políticas de sustentabilidade e de comportamento de consumo, não foram executadas. Os limites do crescimento documentados no livro resultaram de um estudo realizado por Meadows et al, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) por encomenda do Clube de Roma3. A obra modela as conseqüências do rápido crescimento demográfico mundial frente aos recursos naturais finitos. Ou seja, as conseqüências das ações antrópicas sobre o meio ambiente. O livro tornou-se best-seller da história ambiental, vendendo mais de 30 milhões de exemplares em 30 idiomas. “Desde 1972, The Limits to Growth tem suscitado muitas críticas, mas nossa pesquisa indica que as principais restrições contra a modelagem são falsas”, diz o Dr. Turner. O tema está cada vez mais relevante e foi discutido no relatório “Special report: How our economy is killing the Earth”, publicado pela revista New Scientist (ver pág.6 ). NOTA: 1 – A íntegra do artigo “A Comparison of The Limits to Growth with 30 years of reality”, publicado em Global Environmental Change, Volume 18, Issue 3, August 2008, Pages 397411 Globalisation and Environmental Governance: Is Another World Possible? é restrito a assinantes. O abstract pode ser baixado em www.ecodebate.com.br de 19/11/2008. 2 – E-mail: [email protected] Henrique Cortez – Coordenador do Portal EcoDebate. Cidadania&MeioAmbiente 5 COMO A ECONOMIA ESTÁ MATANDO O PLANETA por New Scientist Em plena crise global, com governos e mercados aterrorizados com uma possível recessão mundial, a revista New Scientist analisa no relatório Special report: How our economy is killing the Earth a insensatez da busca pelo crescimento ilimitado (ver gráfico) que está levando o planeta ao desastre. “The Wee Man”. Foto: Law Keven Nosso planeta enfrenta uma crise. 6 O consumo dos recursos aumento com extrema rapidez, a biodiversidade está declinando e quase todos os indícios mostram como nós, humanos, estamos afetando a Terra em larga escala. A maioria aceita a necessidade de um modo de vida mais sustentável via redução das emissões de carbono, desenvolvimento de tecnologia renovável e aumento da eficiência energética. Essa última afirmação é tida como heresia econômica. Para a maioria dos economistas, o crescimento é tão essencial quanto o ar que respiramos. Para eles, o modelo econômico atual é a única força capaz de resgatar os pobres da pobreza, de alimentar a crescente população mundial, de enfrentar o custeio dos gastos públicos e de estimular o desenvolvimento tecnológico – sem falar no sustento de estilos de vida crescentemente caros. Eles não conseguem impor limites ao crescimento econômico. Estarão os esforços para salvar o planeta fadados ao fracasso? Contingente crescente de especialistas examina os índices de insustentabilidade e afirma que a adesão individual ao controle das emissões de CO2 e o ambientalismo em termos coletivos são fúteis enquanto nosso sistema econômico estiver lastreado na suposição de crescimento. A ciência diz-nos que se quisermos agir seriamente em defesa da Terra, teremos que reformar o atual modelo econômico. Desde o estouro da bolha econômica internacional, ficou claro como os governos apavoramse frente a qualquer situação que ameace o crescimento, como provam os bilhões de dinheiro público vertidos em um cambaleante sistema financeiro. Em meio à confusão, qualquer desafio ao dogma de crescimento precisa ser analisado muito cuidadosamente. E essa questão centra-se numa pergunta há muito colocada: como enquadrar os recursos finitos da Terra ao fato de que o crescimento econômico exige o crescimento dos recursos naturais para sustentá-lo?! Para a economia alcançar sua atual dimensão foi necessário todo o desenvolver da história humana. Mas no contexto em que agora se apresenta, em apenas duas décadas o cenário econômico dobrará. Neste número especial, New Scientist reúne os pensadores mais categorizados em política, economia e filosofia; eles discordam profundamente do dogma do crescimento e concordam com os cientistas que monitoram nossa frágil biosfera. Herman Daly, pai da economia ecológica, explica por que nossa economia é cega aos custos ambientais de crescimento (The World Bank’s blind spot)1, enquanto Tim Jackson, conselheiro para desenvolvimento sustentável do governo do Reino Unido, envereda por números para mostrar que os remendos tecnológicos não compensarão a velocidade horripilante na qual a economia está se expandindo (Why politicians dare not limit economic growth)2. Gus Speth, ex-conselheiro ambiental do Presidente Jimmy Carter, explica por que após quatro décadas trabalhando nos mais altos níveis da articulação de políticas dos EUA acredita que os A globalização e a “ financeirização da economia criaram um modelo apenas baseado no consumo desmedido e na especulação. ” valores verdes não têm chance alguma contra o capitalismo de hoje (Champion for green growth)3. E Susan George, principal cabeça da esquerda política argumenta que somente o esforço global capitaneado por governos poderá mudar o rumo do curso destrutivo em que nos encontramos (We must think big to fight environmental disaster)4. Para Andrew Simms, diretor de política da New Economics Foundation, baseada em Londres, é crucial demolir uma das principais justificativas para crescimento desenfreado: a de que ele pode resgatar os pobres da pobreza (The poverty myth)5. E o radialista e ativista David Suzuki explica como ele inspira os líderes empresariais e políticos a mudarem seus pensamentos se (Interview with an environmental activist)6. O que uma verdadeira economia sustentável seria é explorado em Life in a land without growth7, quando New Scientist recorre a uma concepção de Daly para imaginar a vida numa sociedade que não torra os recursos mais rapidamente do que o mundo pode recriar. Espere observações duras a respeito de riqueza, imposto, trabalho e taxas de natalidade. Mas, como enfatiza Daly, a transição do crescimento para o desenvolvimento não tem que significar o imobilismo soturno típico da tirania O REGISTRO GRITANTE DA CRISE QUE NOSSO PLANETA ESTÁ ENFRENTANDO 1- Temperatura média da superfície no Hemisfério Norte 2- População 3- Concentração de CO2 4- PIB 5- Perda de florestas tropicais e bosques 6- Água utilizada 7- Extinções de espécies 8- Consumo de papel 9- Veículos motorizados 10- Pesqueiros explorados 11- Investimento internacional 12- Redução de ozônio 1 12 6 2 3 5 4 1750 1800 1850 7 10 8 1900 11 9 1950 2000 comunista. A inovação tecnológica nos dar-se-ia cada vez mais dos recursos que já temos e, como a filósofa Kate Soper apresenta em Nothing to fear from curbing growth8, restringir nossa dependência pelo trabalho e pelo lucro melhoraria nossas vidas de muitas maneiras. Trata-se de uma perspectiva que John Stuart Mill, um dos fundadores da economia clássica, teria aprovado. Em Princípios de Economia Política, publicado em 1848, Mill previu que, uma vez encerrado o crescimento econômico, emergiria uma economia ‘estacionária’ que possibilitaria o foco no melhoramento humano: “Haveria uma amplitude nunca vista para todos os tipos de pensamento, progresso moral e social... em prol do melhoramento da arte de viver, com muito mais probabilidade deste objetivo ser alcançado quando as cabeças deixam de se fixar na arte de acumular”. Os economistas de hoje rejeitam tais idéias como ingênuas e utópicas; mas, com os mercados financeiros em derrocada, o preço dos alimentos em alta vertiginosa, o mundo em processo de aquecimento e o preço do petróleo no pico (ou em baixa), tais idéias estão se tornando cada vez mais difíceis de serem ignoradas. ■ Nota do Editor: Recomendamos a leitura on-line (em inglês) dos textos referenciados no artigo da New Scientist. Abaixo, os links para acessá-los: 1 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.300special-report-economics-blind-spot-is-a-disaster-for-theplanet.html 2 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.100special-report-why-politicians-dare-not-limit-economicgrowth.html 3 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.500interview-champion-for-green-growth.html 4 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.100special-report-why-politicians-dare-not-limit-economicgrowth.html 5 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.600special-report-does-growth-really-help-the-poor.html 6 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.200special-report-interview—the-environmental-activist.html 7 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026786.900special-report-life-in-a-land-without-growth.html 8 – www.newscientist.com/channel/opinion/mg20026787.000special-report-nothing-to-fear-from-curbing-growth.html Gráfico:Springer-Verlag, Berlin, Heidelberg, New York. Cidadania&MeioAmbiente 7 DESENVOLVIMENTO: ? POR QUE E PARA QUEM por Norbert Suchanek A definição de pobreza, segundo o padrão econômico hegemônico vigente, é a grande responsável pelo contingente de milhões de seres humanos a cada ano reduzidos à indigência. A miséria só será erradicada quando o modelo das sociedades de subsistência for aceito e integrado ao mercado mundial. “Por iniciativa do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Nós, o Presidente Jacques Chirac, da França, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, o Presidente Ricardo Lagos, do Chile, e o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, nos reunimos, hoje, 30 de janeiro de 2004, em Genebra, para intercambiar opiniões a respeito de temas sociais e econômicos globais. Expressamos nossa forte preocupação com as tragédias humanas causadas pela fome e pobreza no mundo. Recordamos que 1,1 bilhão de pessoas lutam para sobreviver com menos de um dólar por dia.” Declaração dos Presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Jacques Chirac, Ricardo Lagos e o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, encontro “Ação contra a fome e a pobreza”. ECONOMIA DE SUBSISTÊNCIA: RIQUEZA... SEM DÓLAR Era um dia de muito calor. Mas a cabana de palafitas era fresca e bem ventilada. Eu não sentia nenhum calor. Estava a 20 mil km fora do meu apartamento alugado, agora junto com uma família Papua de cinco pessoas, às margens do Rio Ok Tedi, no ano de1993. Nas refeições ofereciam-me batata-doce, sagu e legumes. Quase tudo de que precisavam para viver chegava de seus próprios jardins florestais cheios de frutas e legumes, às margens do rio. Caça, remédios e lenha chegam do mato perto da horta e o rio era repleto de peixes. Eu estava cheio de admiração e inveja. Eles tinham tudo o que eu não tinha. Eles tinham uma casa, uma grande horta e jardim, e um território próprio. E eu não tinha nada disso, somente um trabalho dependente para ajudar-me mais ou menos a pagar aluguel, telefone, alimentação, computador e energia elétrica. Em comparação 88 aos meus generosos anfitriões, eu era uma pessoa pobre. Mas na definição do Banco Mundial e de instituições para o desenvolvimento, esta família que tem tudo de que precisa é uma das famílias mais pobres do mundo, porque esses Papuas não ganham nenhum dólar por dia. O fato é que eles não têm nenhuma necessidade de ganhar dinheiro. Diferente é o lingüista de uma igreja fundamentalista norte-americana que vive entre os Papuas num container com ar condicionado e gerador movido a diesel. E que se alimenta somente com pão branco importado, geléia de laranja e, para um cidadão dos Estados Unidos, o “indispensável” creme de amendoim, igualmente importado. O trabalho dele era estudar a língua local para traduzir a Bíblia. A minha família de Papua, com tolerância, ainda sorria sobre o jeito de viver dele. “Hoje, prevalece o modelo da revolução verde. Em Punjab, região noroeste da Índia, 150 mil agricultores se suicidaram no espaço de 10 anos, porque seu campo não valia mais nada e porque não tinham mais do que viver, após terem abandonado sua cultura de subsistência, que ao menos os tornavam auto-suficientes e os alimentavam!” - Vandana Shiva, vencedora do prêmio Nobel Alternativo, em 1993, e Diretora da Fundação de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Recursos Naturais, Índia. Exatamente como os Papuas ao Leste de Papua-Nova Guiné vivem desta economia de subsistência, também vivem até hoje milhares de famílias de outros povos, em outros continentes. Uma economia de muita liberdade sofisticada. Esta economia de subsistência é a forma ideal de uma economia regional, sustentável e ecológica - ou seja, ela é exatamente o que o “novo” modelo de movimento ecológico internacional para o desenvolvimento sustentável almeja. Mercado local contra mercado mundial. O cultivo local, a produção local, o mercado local e o consumo local: o pequeno agricultor de subsistência no Brasil, os povos indígenas Penan da Ilha Borneo, os Papuas de Nova Guiné fazem tudo isso de forma perfeita. Trocam o excedente com seus vizinhos, não precisam de dinheiro para viver. “Por séculos os princípios de subsistência permitiram a sociedades em todo o planeta sobreviverem e até mesmo prosperarem. Nessas sociedades, os limites da natureza foram respeitados, guiando os limites do consumo humano.” - Vandana Shiva Os habitantes da aldeia indígena Kikretum, dos Kayapó (Pará), não precisam de dólar para garantir sobrevivência e qualidade de vida. Foto: Antonio Cruz/ABr É claro que estes camponeses e povos autônomos que produzem seus próprios alimentos nunca vão ao supermercado para comprar frutas e legumes. O mercado mundial não tem nenhuma chance para ganhar dinheiro com eles. E nenhum empresário tem chance de desempregá-los. Estes povos autônomos só vão ser pobres quando alguém tirar a terra deles. Quando alguém matar o rio deles. Ou quando alguém mudar a cultura e o jeito de vida deles para o estilo consumista ocidental, movendo-os, neste momento, à dependência. Foi exatamente isso que aconteceu em nome do desenvolvimento, com financiamento do Banco Mundial ou com apoio de instituições estatais e internacionais para o desenvolvimento e vários grupos religiosos fundamentalistas nas últimas décadas. Cidadania&MeioAmbiente 99 QUEM NO MUNDO É CONSIDERADO POBRE? ■ Segundo o Banco Mundial, quem ganha menos de um dólar por dia vive na pobreza extrema. Já quem ganha até dois dólares por dia vive na pobreza. Calcula-se que, atualmente, 1,2 bilhão de pessoas vivem em situação de pobreza extrema. ■ Hoje, 2,7 bilhões de pessoas vivem na pobreza, ou seja, com cerca de US$2 por dia. ■ Segundo o Banco Mundial, a China conseguiu avanços notáveis na luta contra a pobreza extrema. O contingente de pobres caiu de 606 milhões, em 1981, para 212 milhões em 2001. ■ A Índia tem cerca de 350 milhões de pessoas sobrevivendo com menos de US$ 1 por dia. O Brasil é um país rico, mas com uma grande parcela da população vivendo na pobreza. Segundo o IBGE, são 57 milhões de pobres no país. ■ Paulo Galvão Júnior e Rodrigo de Luna Barbosa, “O Futuro G-13 – Parte 2: os quatro graves problemas mundiais”, 2007, Conselho Federal de Economia. global. Os povos são tidos pobres se viverem numa casa feita por eles mesmos, com materiais naturais ecologicamente adaptados como o bambu e a lama, e não em casas de concreto. Os povos sustentáveis são percebidos como pobres quando usam roupas de fibras naturais feitas com suas próprias mãos e não roupas com fibras sintéticas.” Uso como exemplo a Nova Guiné, onde em 1993 investiguei as conseqüências de mineração de ouro e cobre (financiada por instituições internacionais) numa região em que quase 100% da população viviam da subsistência autônoma. Para alguns destes povos habitantes das áreas baixas do Rio Ok Tedi ficou impossível viver com a subsistência. Devido à mineração de cobre e ouro, grande parte do rio foi poluída e sufocada pelos resíduos da atividade: metais pesados e o veneno mais forte do mundo, o cianeto. Os jardins da floresta, às margens do Rio Ok Tedi, foram encobertos e destruídos com lama cinza de metais pesados. No mundo, a cada ano, milhões de pessoas perdem a terra e a existência – em função de projetos de desenvolvimento equivocados que só almejam o mercado mundial via fornecimento de matérias-primas baratas e trabalhadores baratos transformados, neste momento, em pobres de verdade, porque passaram a receber um dólar por dia. Esse sistema de criação de pobreza acontece agora, por exemplo, na Índia, onde no estado Orissa povos indígenas são expulsos por causa da mineração de ferro, cobre e bauxita. VIDA EM SUBSISTÊNCIA X RENDA MONETÁRIA Nem para as companhias transnacionais e nem para os fundos de pensão internacional é possível ganhar diretamente com os povos indígenas autônomos, sendo preciso expulsá-los e transformá-los em pobres. Por isso, os povos que vivem de subsistência, ainda em lugares não globalizados, precisam se deslocar e se transformar em trabalhadores locais ou em pequenos agricultores dependentes do mercado mundial, como, por exemplo, produtores de soja ou produtores de dendê e mamona para biodiesel. Esta é a única chance para aumentar o capital internacional. Por isso o Banco Mundial e as instituições de desenvolvimento estabeleceram a quantia de um dólar para a definição de pobre. Por causa desta definição equivocada estas instituições e governos podem destruir impunemente, em nome do “desenvolvimento”, estas sociedades de subsistência – que foram nomeadas falsamente de “sociedades atrasadas” – e integrá-las ao mercado mundial, como se este fosse o único caminho para a humanidade. A economia de subsistência das sociedades africanas reflete milenar integração ao meio ambiente, existência sustentável, estrutura social estável e identidade cultural. Foto: Morgana ECONOMIA DE MERCADO CRIA POBREZA GENERALIZADA As economias sustentáveis não são pobres no sentido de ausência de bens. Mas a ideologia do desenvolvimento as definem assim porque não participam da economia de mercado, e não consomem os produtos industrializados. Segundo a cientista Vandana Shiva: “Os povos são percebidos como pobres se comerem painço (produzido pelas mulheres) e não a junk food (alimentos industrializados) produzida e comercializada pelo agrobusiness 10 Este sistema de desenvolvimento quer mudar a vida em subsistência para uma existência que precisa estar associada à renda monetária, qualquer que seja. Mas a renda sem dólar em seu próprio território tem na realidade muito mais riqueza e valor do que a renda de um trabalhador de 10 ou 20 dólares por dia no Rio de Janeiro ou São Paulo. Por isso, na opinião da ecologista Vandana Shiva, o não ter dinheiro não está relacionado ao problema da pobreza no “Terceiro Mundo”. O que faz a miséria é a restrição de acesso aos recursos básicos como água e comida. “Uma vida de subsistência que o ocidental rico chama de pobreza não é uma vida de qualidade menor. Ao contrário, economia com base de subsistência possui Jhaan povos autônomos só vão ser pobres quando alguém “lhesOs tirar a terra, matar o rio, mudar a cultura e introduzir o padrão de vida consumista ocidental que leva à dependência. uma qualidade de vida de alto nível, quando focamos valores como direito à alimentação, água saudável, existências sustentáveis, estruturas sociais estáveis e identidade cultural.” Agricultores de subsistência são chamados há decênios pelos economistas, técnicos ou outros empregados do sistema em que vivemos de “atrasados”, um obstáculo ao desenvolvimento. Por isso eles “precisam” ser expulsos. Por isso eles são as maiores vítimas dos grandes projetos de desenvolvimento – como os atuais projetos brasileiros do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), em especial o da Transposição do Rio São Francisco. Os maiores beneficiários serão as empreiteiras que irão executar as obras e os grandes fazendeiros, critica o cientista Aziz Ab’Saber. Os grupos que perdem são os agricultores tradicionais que plantam nas vazantes do Rio Jaguaribe no Ceará. “Os vazanteiros que fazem horticultura no leito dos rios que `cortam´ - que perdem fluxo durante o ano - serão os primeiros a ser totalmente prejudicados. Mas os técnicos insensíveis dirão com enfado: ‘A cultura de vazante já era’. Sem ao menos dar qualquer prioridade para a realocação dos heróis que abastecem as feiras dos sertões. A eles se deve conceder a prioridade maior em relação aos espaços irrigáveis que viessem a ser identificados e implantados.” Aziz Ab’Saber: Se a ONU e as instituições de desenvolvimento e governos desejam combater a pobreza e a miséria de verdade, eles precisam primeiro esquecer a definição de pobreza associada a um dólar por dia. Eles precisam acabar com os mecanismos e ideologias que na realidade criam a pobreza, como, por exemplo, a cobiça irresponsável da indústria na aquisição de materiais básicos e de ” novos mercados, e que está atualmente consubstanciada na ideologia do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). “O Banco Mundial calcula que, se quisermos cumprir com os compromissos assumidos durante a Reunião de Cúpula de Milênio, ou seja, reduzir à metade o número de homens, mulheres e crianças que sofrem de fome antes de 2015, será preciso que a ajuda pública para o desenvolvimento aumente 50 bilhões de dólares por ano, ou seja, que passe dos atualmente 60 para 110 bilhões de dólares por ano.” Expresidente da França, JACQUES CHIRAC, Genebra, 30 de janeiro de 2004. “Então os US$50 bilhões de ajuda humanitária do Norte para o Sul é apenas um décimo dos US$500 bilhões que são sugados através de parcelas de pagamentos e outros mecanismos injustos da economia global imposta pelo Banco Mundial e pelo FMI. Se queremos seriamente dar fim à pobreza, precisamos seriamente pôr fim aos sistemas que criam a pobreza ao roubar as riquezas do bem comum e as rendas dos pobres. Antes de fazermos da pobreza um capítulo da história, precisamos entender a história da pobreza corretamente. A questão não é o quanto as nações ricas podem dar; a questão é o quanto menos elas devem retirar.” Vandana Shiva ■ Norbert Suchanek - Jornalista, autor de livros e artigos sobre Ecologia, Desenvolvimento e Direitos Humanos e colaboradorarticulista do Portal EcoDebate. Artigo escrito com a colaboração da socióloga Márcia Gomes, março de 2007. Cidadania&MeioAmbiente 11 Débito de futuro: Foto: Guesus a crise definitiva Temos que frear o consumismo desregrado, reduzir paulatinamente Enquanto o Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci (1452-1529), traduz as concepções de proo que achamos ser necessidade, porção, simetria e equilíbrio aplicadas à natureza humana, o burlesco Homer de Vitruvio (acima) aumentar a reciclagem, repensar representa o desequilibrado homem contemporâneo, vitimado por seu consumismo insustentánosso estilo de vida e mudar a nossa vel (fast-food, eletrônicos, e-lixo, poluentes...). relação com o meio ambiente. Caso contrário, só teremos uma opção: a extinção! por Rogério Grassetto Teixeira da Cunha E mbora a crise econômico-financeira atual motive preocupação, principalmente em relação às conseqüências para os mais pobres, preocupo-me muito mais com turbulências de outra natureza, que só tendem a aumentar e terão impacto muito mais profundo. Isso porque estou convicto de que as crises ocasionadas pela reação da natureza aos nossos despautérios ambientais (embora negligenciadas pela maioria da mídia e da sociedade) aumentarão muito em freqüência, serão muito piores e terão efeitos mais duradouros que aquelas geradas pela criatividade burra de engravatados milionários. Ao focarmos nossa atenção apenas nos aspectos econômicos da crise atual, estamos perdendo uma importante chance de discutir com coragem as bases insustentáveis da economia global. Ou seja, o modelo que se baseia no crescimento eterno 12 e funciona no formato de um fluxo linear, que começa na extração de recursos naturais e termina na disposição de lixo. Mas não. O principal tema que domina as discussões é o temor da recessão e da queda no consumo, vendidas como monstros terríveis. Na verdade elas são, sim, monstros, mas apenas se aceitarmos esse modelo. Por isso que é preciso analisá-lo e criticá-lo a partir de uma perspectiva externa, para fugir das amarras que nos impõe e mostrar suas incongruências. CONSUMO E CRESCIMENTO SUICIDAS Por exemplo, essa falsa necessidade de que é preciso crescer, crescer sempre, crescer a qualquer custo. Mas a economia não existe como algo que paira suspenso no vácuo (embora alguns financistas tenham lucrado muito vendendo essa idéia, antes que a bomba estourasse no colo de todos). Ela precisa de dois elementos básicos, além do trabalho humano: matéria-prima e energia. Como seu suprimento destes é finito, simplesmente não há recursos naturais suficientes para sustentarem um crescimento constante da economia. Aliás, não há recursos suficientes nem mesmo para sustentar por muito tempo a taxa atual de consumo de recursos naturais, ainda que as economias permaneçam com a dimensão atual, sem crescimento algum! É até assustador, de tão simples e óbvio. Não há pirotecnia de argumentos tecnicistas que possam contradizer essa realidade inquestionável. Até uma criança pode entender isso facilmente (às vezes elas entendem melhor do que muitos adultos nas principais cadeiras das maiores universidades). Experimente. Dê a ela uma pilha de qualquer coisa (feijões, bolinhas, botões – que seriam os recursos naturais não-renováveis) e pro- ponha um jogo: “Olha, toda a vez que você quiser brincar ou ganhar um doce (os objetos de consumo), você tem que jogar no lixo um item”. A criança trocará seus itens até que acabem, e só então irá abalar-se de verdade. Mas daí perceberá que os recursos finitos são justamente isso, finitos e, uma vez terminados, adeus consumo. ESTAMOS EM “DÉBITO DE FUTURO” Diversos cálculos já foram feitos mostrando que o planeta não conseguirá suprir recursos naturais suficientes para sustentarmos taxas até mesmo modestas de crescimento até o fim deste século. Outros cálculos comparam a quantidade de recursos que consumimos a cada ano com aquela que o planeta é capaz de repor no mesmo período. Essas estimativas mostram que, a partir de meados de 1980, passamos a gastar mais recursos naturais do que o planeta pode repor. Com isso, criamos um débito de futuro. Os responsáveis pela idéia usam uma metáfora, pela qual vão somando o consumo diário de recursos desde o dia primeiro de janeiro. Na data em que o uso acumulado iguala a quantidade que o planeta é capaz de repor ao longo do ano inteiro, chega-se ao limite que poderíamos ter consumido naquele período. A partir daí, passamos a avançar nos recursos do futuro. E essa data tem chegado mais cedo a cada ano. cursos que fosse inferior à capacidade de reposição do planeta. “Ah, mas recessão gera desemprego e pobreza”, dirão. Sim, é verdade, mas apenas se forem mantidos outros pressupostos e pilares dessa estrutura socioeconômica. Se houvesse distribuição mais eqüitativa da riqueza gerada, o problema seria menor. Mais, se o lucro e a produtividade não fossem os únicos parâmetros a guiarem as atividades econômicas, e sim a função social das mesmas, teríamos mais elementos positivos para combater o desemprego. Por fim, e mais importante, o problema seria imensamente menor se a estrutura econômica não fosse calcada no consumismo, num sem-número de necessidades fictícias que foram criadas nos últimos séculos, e sem as quais convivemos sem grandes crises durante 99,9% do tempo em que estivemos aqui neste planeta. Reduzindo-se a necessidade de satisfação dos desejos de consumo, reduz-se também a precisão de dinheiro para adquiri-los, o que casa perfeitamente com uma distribuição mais eqüitativa da riqueza e com o foco voltado à função social das produções industrial, agrícola e de serviços. E se você acha a proposta muito radical, é bom lembrar que a crise ambiental já vem apresentando-se aos poucos. É um furacão Catarina aqui, um desastre de Nova Orleans ali, uma abertura do mar do Pólo Norte acolá. Não sabemos ao certo se a catástrofe ambiental virá na forma de uma batida abrup- CONSUMISMO: A PRAGA QUE DEVORA A TERRA Qual a solução? Bem, em primeiro lugar, seria necessário que houvesse uma estagnação do crescimento e uma recessão por algum tempo, até que as economias chegassem a um nível de consumo de re- População em bilhões Ou seja, não estamos nem pagando e nem estacionando a nossa dívida, mas aumentando-a continuamente. Pior ainda, a própria quantia que descontamos a cada ano de nosso futuro também vem aumentando. É como POPULAÇÃO MUNDIAL E se estivéssemos na mão de um Média variável agiota cruel:nós mesmos! Por das projeções isso, ainda que toda a economia do planeta parasse subitaMundo mente de crescer, ficaríamos estacionados no volume atual e, mesmo assim, a Terra não agüentaria por muito tempo. CONSUMO Nove bilhões de pessoas em 2050 População sustentável ao nível de consumo de renda média A população da Índia deve suplantar a da China por volta de 2030. População sustentável ao nível de consumo de renda alta ta contra o muro que afetará a todos (ou a maioria) de uma vez só ou se seguirá de forma mais gradual e dispersa, como tem acontecido, intensificando-se aos poucos. Porém, qualquer que seja o processo, logo não será questão de escolha: seremos forçados a uma redução drástica no consumo. Dependendo da magnitude da crise, talvez sejamos obrigados até mesmo a mudar para um estágio pré-industrial. Não defendo agora um retorno ao estilo de vida pré-industrial como solução. Primeiramente, porque não sei se seria preciso ser tão radical. Ademais, por julgar que nunca conseguiremos isso por vontade própria, por mais que seja interessante do ponto de vista ambiental. Teremos sim (por bem ou por mal) que frear muito o consumismo, reduzir paulatinamente o que achamos ser necessidade (e no geral não o é...), mudar a nossa relação com o meio ambiente, repensar nosso estilo de vida, aumentar muito a reciclagem e tentar ir equilibrando por aí. Aqueles que começarem mais cedo estarão mais preparados e sofrerão menos (física e psicologicamente) com as mudanças que inevitavelmente virão. Bem, há outra opção: a nossa extinção. ■ Rogério Grassetto Teixeira da Cunha – Doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews e biólogo, colunista do Correio da Cidadania (www.correio cidadania.com.br), parceiro estratégico do portal EcoDebate na socialização da informação socioambiental. Artigo publicado em www.ecodebate (12/11/2008) com o título As outras crises. Os bens que hoje acumulamos serão resíduos e lixo amanhã. As projeções indicam que, antes do ano 2050, a Terra abrigará nove bilhões de indivíduos. Segundo o Global Print Network, nosso planeta é atualmente incapaz de garantir o sustento de dois bilhões de pessoas com padrão de consumo semelhante ao dos países mais ricos da atualidade. E já somos seis bilhões e meio de almas. De acordo com a pegada ecológica – a métrica que possibilita calcular a pressão humana sobre o planeta –, se cada habitante da Terra vivesse o estilo de vida do cidadão americano médio, o sustento da população mundial exigiria nada menos do que cinco Terras. Fontes: Population Division of the Department of Economic and Social Affairs of the United Nations Secretariat, World Population Prospects: The 2004 Revision; Global Footprint Network, 2005. Cidadania&MeioAmbiente 13 Para o professor Ladislau Dowbor, do PPG em Administração da PUC-SP, “o drama é que nós não temos tanto tempo assim” para agir em benefício do Planeta. Nesta entrevista à IHU On-Line, Ladislau faz uma análise da situação do planeta, a partir dos dados apontados pelo relatório do International Panel of Climate Change ou Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) que tratou do aquecimento global. LADISLAU DOWBOR “A lógica do sistema é simplesmente insustentável ambientalmente.” IHU ON-LINE – QUAIS OS PRINCIPAIS PONTOS DE CONVERGÊNCIA E DIVERGÊNCIA ENTRE OS CIENTISTAS SOBRE O AQUECIMENTO GLOBAL? LADISLAU DOWBOR – O principal ponto é que há pouquíssimas divergências. Uma das coisas impressionantes do Relatório do Painel Intergovernamental, publicado em fevereiro, é que ele foi chamado o “relatório das certezas”. Foram deixadas de lado não as coisas sobre as quais há divergência, mas aquelas onde as certezas não são completas. Surgiram dúvidas apenas em relação a aspectos originados de pressões políticas. Temos, por exemplo, o grupo Exxon Mobil, que é produtor de petróleo, que tem financiado pessoas das mais variadas áreas para tentar dar suficientes “mexidas” no ambiente, para causar a impressão de que ninguém tem certeza das coisas. Na realidade, a grande característica é a convergência. Existe um debate em curso referente à dimensão da participação humana nos processos de aquecimento global e qual é a parte das vari- 14 ações naturais, ligadas a ciclos solares. Esse é um argumento válido em termos científicos, mas em termos políticos é secundário. Mesmo que haja uma participação num processo natural de aquecimento, os impactos para a sociedade, para a agricultura, para a nossa vida vão ser iguais. Se a gente ainda, além de um processo natural, estiver aumentando as emissões do efeito estufa, as coisas só vão piorar. Hoje, no conjunto, estamos razoavelmente seguros do processo. Essa segurança está ligada à forma como olhamos para o futuro. Se começarmos a tomar medidas hoje, com mudanças corretivas climáticas, vamos ter que esperar algumas décadas até as coisas começarem a se reequilibrar. O que preocupa, basicamente, é o seguinte: não podemos esperar ter todas as certezas para começa a agir. Porque o ritmo de mudar os rumos é muito lento pela inércia dos processos planetários. Esperar que as catástrofes surjam de maneira generalizada para começar a tomar medidas é simplesmente irresponsável. IHU – O QUE FARIA PARTE DE UM DEBATE da economia mundial, as pessoas mais pobres, tem uma voz muito fraca no PlaHá um imenso segmento L.D. – Está no centro, hoje, o problema neta. Por exemplo, sabemos que a pesca das alternativas energéticas, que vem industrial oceânica está destruindo as da economia mundial tanto pelo lado do impacto ambiental – reservas de vida dos mares e a principal que está baseado emissões de gás, aquecimento global etc. base de vida do Planeta. Isso está im– como pelo fato de que estamos liquipactando cerca de trezentos milhões de simplesmente em destruir dando a principal reserva de energia mópessoas no mundo, que vivem diretavel do Planeta. Essa nossa pequena esmente de pesca artesanal, buscando as bases de sobrevivência paçonave Terra veio com reservas de suas proteínas nas costas marítimas. A do Planeta, sobretudo das combustível, que chamamos de petróleo. cada dia, sentimos isso nas costas braLevaram mais de 100 milhões de anos para sileiras, inclusive, porque há menos peigerações futuras. se constituir e teremos acabado com ela xes. E não há como gritar. Afinal, se grita em 200 anos. A pressão nisso é muito com quem? São empresas que dizem forte e o mecanismo é simples. Tirar petróleo da Arábia Saudita custa “esse é um espaço internacional, as águas são internacionais, dois dólares o barril. No mercado internacional, esse bruto vai se trata-se de uma economia de mercado, e estamos legitimamente vender entre 60 e 70 dólares o barril. Os lucros das empresas que pescando o que queremos”. extraem o petróleo são tão gigantescos que ninguém consegue segurar a vontade delas de ganhar dinheiro. A relação de poder é central porque temos uma economia que se globalizou enquanto que os controles políticos da economia, a chaO ponto central é que elas não estão produzindo o petróleo, e sim mada política econômica, continuam fragmentados em cerca de 200 apenas extraindo reservas naturais que pertencem ao Planeta. países. Não se consegue montar um sistema de controle. Algumas Isso leva a uma reconsideração de como vemos os recursos nadas áreas mais destrutivas são claramente da área do banditismo. turais em geral. Lester Brown caracteriza isso como o sistema Temos cerca de 65 paraísos fiscais, que essas empresas usam para natural de suporte da economia. Estão no centro a alternativa evadir impostos, para lavar dinheiro de droga. A África está inundaenergética e o comportamento da sociedade em relação ao conda por armas de pequeno porte, que são vendidas para diversos junto dos recursos naturais do Planeta, que as empresas explogrupos políticos. Ninguém controla o comércio mundial de armas. ram sem produzir, apenas extraem, como é o caso da destruição Depois são investidos gigantescos recursos para controlar o terroflorestal, da destruição da vida marítima, da poluição das águas. rismo. São claros sinais de um processo econômico que está globaPara as empresas, isso vem virtualmente ou quase de graça. Dá lizado, e não temos os sistemas de controle correspondentes. Formuito dinheiro. Há um imenso segmento da economia mundial mas de governança planetária estão na ordem do dia. que está baseado simplesmente em destruir as bases de sobrevivência do Planeta, sobretudo das gerações futuras. IHU – TUDO BEM QUE VIVEMOS NA CULTURA CAPITALISTA, MAS NÃO POLÍTICO SOBRE O CAOS AMBIENTAL? “ ” PODEMOS VISLUMBRAR A POSSIBILIDADE DA PREOCUPAÇÃO AMBIENTAL Nesse processo, há um estudo interessante do Banco Mundial sobre o fato de que todo esse processo de globalização serve a mais ou menos um terço do Planeta. O relatório se chama “Os próximos 4 bilhões”, que foca os 4 bilhões de habitantes do Planeta que não estão sendo beneficiados pelo processo de globalização. Isso significa que a problemática do aquecimento global, do esgotamento dos recursos naturais, e a problemática da desigualdade, do não acesso a bens e direitos básicos convergem e geram o que está na mesa em termos políticos. Temos que produzir outras coisas, produzir de outras maneiras, e administrar esse processo de forma inovadora. IHU - QUAL A ALTERNATIVA PARA QUE O PODER E OS INTERESSES ECONÔMICOS NÃO PREVALEÇAM SOBRE AS QUESTÕES AMBIENTAIS? L.D. – O motor desse processo de ruptura de equilíbrios planetários são hoje as grandes corporações. Hoje elas têm produtos internos empresariais. O PIB empresarial equivale ao PIB de muitas nações. As empresas têm gigantescos recursos financeiros e mobilizam os recursos naturais a nível globalizado, contando que não há governo mundial. Então, por exemplo, se temos empresas que geram determinado caos num país, é natural que o governo tome medidas. Na esfera das empresas transnacionais, como não há governo mundial, faz-se o que se quer. Cortam-se as florestas nos países de governos mais fracos, consegue-se, via corrupção, outros métodos de exploração de recursos naturais. É preciso ver também que essa massa dos 4 bilhões do “andar de baixo” SER MAIOR DO QUE A PREOCUPAÇÃO ECONÔMICA GANANCIOSA? ATÉ POR UMA QUESTÃO DE SOBREVIVÊNCIA… L.D. – A preocupação está surgindo sob forma basicamente de conscientização, de uma maneira cada vez mais generalizada no Planeta. Isso é importante. Tanto assim que, sentindo a pressão, muitas empresas hoje estão se declarando a favor de responsabilidade social e ambiental. Por exemplo, vejamos a força do Instituto Ethos, que tenta agrupar as empresas que tentam uma certa responsabilidade. Surgem movimentos como o Ethical Market Place, nos Estados Unidos, e no Brasil já surgiu também um com o nome de Mercado Ético (www.mercadoetico.com.br –, inspirado por Hazel Henderson). Temos todo o trabalho das Nações Unidas, a imensa importância que foi a Eco 92, no Rio de Janeiro. Enfim, o progresso da tomada de consciência é cada vez maior. Mas quando olhamos a força da principal base de poder político do país, que é o governo Bush, cercado por grandes grupos de empresas de petróleo e grandes grupos que estão ligados ao governo norteamericano, vemos que temos uma longa briga pela frente. Há esperança pelo trabalho das ONG’s, pelas empresas que estão se dando conta da responsabilidade social e ambiental, há esperança quando algumas mídias, nesse caso mais raras, começam a efetivamente divulgar o problema. Mas é um processo longo. A janela de tomada de consciência avança mais lentamente do que a proximidade da vulnerabilidade. O drama é esse: nós não temos tanto tempo assim. Cidadania&MeioAmbiente 15 IHU – EM QUE MEDIDA UMA MUDANÇA DO PADRÃO ENERGÉTICO MUNDIAL PODERÁ AJUDAR NO CONTROLE DO AQUECIMENTO GLOBAL? ESSA AJUDA VIRIA EM CURTO, MÉDIO OU LONGO PRAZO? L.D. – Se nos colocarmos na frente da televisão para registrar diversos programas, vamos encontrar dezenas de mensagens publicitárias: que é preciso comprar um carro mais potente, com mais cilindradas. Nós continuamos a empurrar uma coisa que sabemos ser simplesmente irreal. “ Peguemos como exemplo a cidade de São Paulo. Hoje estamos utilizando carros individualmente. Para irmos de um lugar a outro, é preciso energia para transportar as duas toneladas do carro para uma pessoa que pesa só 70 quilos e a média da velocidade do trânsito em São Paulo é 14 quilômetros por hora. Na cidade de São Paulo há 6 milhões de automóveis e quase todos, hoje, andam em primeira e segunda marcha o tempo todo, revelando o gigantesco desperdício que estamos cometendo. Há cidades que optaram pelo transporte público. Temos iniciativas muito interessantes. Por exemplo, em Barcelona, foram inaugurados, neste mês, 100 estacionamentos de bicicletas públicas. Em toda a cidade, em qualquer lugar, as pessoas estão a uma distância a pé de pegar uma bicicleta. A pessoa pega um cartão, paga um dinheiro pequeno, se identifica, e é liberada a bicicleta. Ela vai onde quer e larga a bicicleta em outro estacionamento; tranca e outra pessoa pode pegar. É uma coisa pequena, mas na realidade envolve a mudança do estilo de todos nós. Eu me peguei dias atrás levando uma carta para o correio. Estava atrasado, e era urgente. Tirei minha Blazer de duas toneladas, mais os meus 90 quilos, para levar para o correio uma carta de 20 gramas. Isso é surrealista. Sabemos, pois os cálculos já foram feitos, que nós precisaríamos de quatro planetas para sustentar isso. O nosso modelo de consumo é simplesmente inviável. As montadoras de automóvel, as concessionárias, as autopeças, toda essa gente não está nem aí. Enquanto não houver uma regulamentação rigorosa sobre esses processos, a tendência é a pessoa simplesmente comprar o carro quando seus recursos o permitem. Estou pegando o exemplo do carro porque é óbvio, e é imensamente absurdo. Mas podemos pegar outras coisas. Eu tenho problemas a cada vez que compro algo numa loja. Compro um produto que já vem embrulhado num plástico, esse plástico está dentro de uma caixinha, daí a moça me dá uma sacolinha, e quer que eu leve isso dentro da sacola da loja para mostrar aos outros onde eu comprei. Há países onde quando se entrega uma geladeira numa casa a empresa é obrigada a retirar a embalagem e usá-la de novo em outras entregas, ao invés de guardarmos em nossa casa, para depois jogá-la na rua e haver ainda o custo de o lixeiro levá-la. É só a gente parar para pensar. Estamos com um modelo, que a publicidade e as novelas nos empurram, de sermos consumidores frenéticos. E nos dizem que isso é bom para o PIB. Na realidade, isso é de uma demagogia profunda. O cálculo que fazemos nas cidades é que nós jogamos fora, por dia, meio quilo de embalagens 16 por pessoa. Tudo isso é custo de produção. É petróleo, são as florestas que produzem papel. Tudo isso jogado fora, desperdiçado de maneira surrealista. Outro exemplo: o japonês gosta de barbatana de tubarão. Grandes empresas de pesca caçam os tubarões, sendo que no ano de 2005 foram mortos 93 milhões de tubarões. Eles cortam as barbatanas e jogam o resto fora. O drama não é só fazer essa burrice. Isso se ensina nas escolas de administração: “você otimiza a sua viagem, o diesel do barco de pesca, se você pega só as coisas que vão render mais”. A lógica do sistema é simplesmente insustentável. Constatamos que estamos chegando ao limite do caos onde a busca de lucro por corporações, por grupos privados, gera o caos para o resto do Planeta. Esperar que as catástrofes surjam de maneira generalizada para começar a tomar medidas é simplesmente irresponsável. ” IHU – EM QUE ALTERNATIVAS PODEMOS PENSAR QUANDO FALAMOS DE MUDANÇA DE PADRÃO ENERGÉTICO? L.D. – Os estudos estão avançando bem. O problema é que a indústria não está interessada, não acompanhando esses processos. A energia geotérmica tem um gigantesco potencial. Cada vez que se aprofunda na Terra aumenta a temperatura, e se pode usar essas diferenças de temperatura para gerar energia. Temos a energia solar, a energia eólica, e a produção de células fotovoltaicas começa a ser perfeitamente viável. E estão surgindo com muita força tanto a expansão do etanol e do biodiesel, como a transformação energética a partir da celulose, que permitirá utilizar todos os subprodutos dos vegetais. Há países que estão investindo na energia nuclear, em meio ao debate que vivenciamos. Hoje, as alternativas estão razoavelmente bem mapeadas. Só que não enchem os bolsos como o petróleo. Esse é o lado da mudança das fontes de energia. Do lado do consumo de energia, há imensos ganhos. Quando aconteceu o choque do petróleo, ainda nos anos 1970, em que ele aumentou brutalmente de preço, os americanos fizeram uma campanha gigantesca de redução do consumo de aquecimento doméstico, que é uma grande absorção de energia nos Estados Unidos durante o inverno. Descobriram que com coisas simples, como pôr janelas duplas, com vácuo, é possível mudar radicalmente. E realmente conseguiram reduzir drasticamente o consumo de energia no país. Mas isso envolve uma mudança de cultura da população, e essa cultura envolve a participação dos meios de comunicação. O principal controlador de mídia no mundo, que é Rupert Murdoch, e tem a Fox e outros canais que controlam grande parte da mídia mundial, estão com toda a força do lado da expansão do consumo, porque daí todo mundo fica mais rico. Esse é o discurso. O peso da mídia, sua democratização, o acesso a essas informações, está se tornando crucial para poder mudar a cultura ambiental no Planeta. O erro do cálculo do PIB – Outro ponto importante é que temos que mudar o cálculo do PIB. Até hoje, se aumentarmos a produção de petróleo, isso aumenta nosso PIB. O Banco Mundial começou a mudar esse cálculo. Ele diz que tirar o petróleo da terra não é produto, é descapitalização. Estamos vendendo os móveis da casa. Abater florestas também já não é considerado (como calculamos no Brasil hoje) aumento do PIB e sim descapitalização. É destruição de um capital natural que não estará disponível para gerações futuras. Essas são mudanças da forma de cálculo do produto, o que é essencial. meses por ano de solo congelado. Nós somos um dos países mais bem dotados Constatamos que em água do planeta. Frente a isso e frente à demanda crescente de cereais no plaestamos chegando ao neta e à nova pressão de uso de produlimite do caos onde a tos agrícolas na parte energética, substiIHU – Que relação podemos estabelecer tuindo o petróleo, o Brasil tem cartas exbusca de lucro por entre modelos alternativos de energia, motremamente fortes na mão. Vai depender delos alternativos de produção e padrões de como ele passa a utilizá-las. Existe prescorporações, por grupos alternativos de consumo? Que modelo de são dos grandes grupos, tanto nacionais privados, gera o caos produção e de organização social deveria – como os grandes produtores de soja, emergir da crise anunciada pelas prováveis as tradicionais agroexportadoras –, como para o resto do Planeta. alterações climáticas em escala planetária? os gigantes do comércio de grãos, que L.D. – De um lado, temos um conjunto de estão interessados simplesmente em utinovas metodologias de cálculo. O cálculo do lizar o Brasil como um espaço físico para PIB é, em termos metodológicos, simplesmente errado. Temos inexpandir a produção para alimentar os automóveis. dicadores de progresso genuíno, em que descontamos o que estamos descapitalizando do planeta. As diversas metodologias de A alternativa para mais um ciclo agroexportador, com todos os cálculo que estão surgindo estão resumidas num livrinho muito desastres, tanto ambientais como sociais, será dinamizar o conjunbom que se chama Os novos indicadores de riqueza, de Jean to da base de pequenos e médios produtores do Brasil, associanGadrey. Temos que passar a contabilizar corretamente. Imagine do com uma produção energética, mas com o que se chama de que, na nossa casa, calculemos nossos gastos, as nossas entracultivos associados. É feita a agroexportação e é realizado, no meio das, o salário, mas estamos vendendo os móveis e esquecemos de desse processo, em rodízio, um conjunto de produtos alimentares. calcular isso. Estamos, com isso, reduzindo o capital. Então temos Com isso, se tira esses agricultores da miséria, indo-se muito além que fazer outro tipo de cálculo. da dinâmica já positiva que tem hoje o Pronaf e se organiza uma base agrícola diversificada. Essa é a grande oportunidade sobre a No conjunto, precisamos equilibrar nesse processo três elemenqual estamos trabalhando. A negociação internacional vai depentos desse cálculo do aquecimento global: der da capacidade do Brasil de entender a carta que tem. 1) energia, a sua forma de produção e seus volumes e formas de consumo; IHU – QUAIS OS MAIORES RISCOS DO USO ENERGÉTICO DA 2) a produção de alimentos, porque não podemos desenvolAGRICULTURA? ver ou sustentar artificialmente a produção de automóveis no L.D. – Isso envolve conseqüências das relações de poder. O mercado à custa da produção e do equilíbrio alimentar do mundo produz hoje mais de um quilo de cereal por dia, por habitanplaneta, que já é muito crítico; e te. Comer um quilo de arroz por dia é muita coisa. Não há insufici3) o nível das emissões. ência de produção de alimentos. O que há é o mau uso desses alimentos e má distribuição. Disso resulta o fato de que temos hoje Esse processo precisa ser sustentável no longo prazo. Cada país cerca de 1 bilhão de pessoas desnutridas no planeta. A grande terá de buscar os processos correspondentes. Por exemplo, a preocupação é a seguinte: quem conseguirá falar mais alto? As Coréia do Sul fez com o trabalho voluntário um gigantesco propessoas que têm fome ou os proprietários de automóveis que cesso de reflorestamento do país. Há países que estão cobrando querem continuar a ajudá-lo de maneira que desperdice energia? taxas muito mais elevadas às pessoas que usam carros em centros urbanos, caso de Singapura, onde as pessoas passam a A problemática ambiental precisa ser vista conjugada com outro preferir o transporte coletivo, que é muito mais econômico. Quangrande drama planetário, que é a desigualdade. Só venceremos o do olhamos as diferentes iniciativas, vemos que está todo mundesafio resgatando a inclusão da base, do conjunto dos excluídos do buscando alternativas para uma consciência vaga e difusa, à do planeta, ou dos excluídos do Brasil, no nosso caso, cruzando medida que estamos indo lentamente para um desastre. Os ameisso com o desenvolvimento da agricultura familiar, a associação da ricanos têm uma fórmula “simpática” que se chama “slow motion agricultura energética com a agricultura alimentar, num processo catastrofe”. Estamos vivendo uma catástrofe em câmera lenta. equilibrado e de distribuição equilibrada dos resultados. ■ “ ” IHU – O SENHOR INSISTE NUM APROVEITAMENTO DA MÃO-DE-OBRA EXCEDENTE. NO CASO BRASILEIRO, DE QUE FORMA ESSA MÃO-DEOBRA PODERIA SER APROVEITADA NA ELABORAÇÃO DE UM PLANO DE PRODUÇÃO ENERGÉTICA E DE ALIMENTOS NUM MESMO ESPAÇO INTEGRADO, DE FORMA A ASSOCIAR A AGRICULTURA ALIMENTAR COM A PRODUÇÃO ENERGÉTICA? L.D. . – Para já, nós temos 20 milhões de pessoas, como ordem de grandeza, ocupadas na agricultura. É muita gente. Nós temos hoje a maior reserva de terra, de solo agrícola, parada do planeta. Nós temos um clima excelente. Nós não temos, como na Rússia, sete Ladislau Dowbor – Formado em Economia Política pela Universidade de Lausanne, Suíça, e doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Também faz consultoria para diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios. É autor e co-autor de cerca de 40 livros, e de numerosos artigos. Destacamos o livro Formação do Terceiro Mundo. 15. ed. São Paulo: Brasiliense. O professor tem um site pessoal – http://dowbor.org/ – onde publica seus artigos. Entrevista publicada originalmente pelo IHU On-line [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.] Cidadania&MeioAmbiente 17 Bonacheladas COMO os ricos estão destruindo a TERRA por Herve Kempf Nossa biosfera está morrendo e, com ela, o sustento de bilhões de seres vivos. Mas a elite globalizada que dita os modelos de interação homem-meio ambiente permanece insensível a tudo que não seja o seu próprio ego e imensos lucros. E, assim, a crise planetária cevada na insustentabilidade continua triunfando. Haverá meios de reverter esse quadro caótico? Leia, aqui, como enfrentar as forças destrutivas para reinaugurar uma nova era de LIBERDADE ECOLOGIA FRATERNIDADE 18 V ivemos uma emergência. Em menos de uma década, teremos de mudar de rumo – assumindo que o colapso da economia norte-americana ou a explosão do Oriente Médio não imponham uma mudança via caos. Para confrontar essa emergência, temos deentender o objetivo do plano de ação: criar uma sociedade sóbria; delinear o caminho para sair do impasse; realizar essa transformação com justiça, isto é, forçando os mais aquinhoados a segurarem o fardo da transformação dentro e entre as sociedades e inspirarem-se nos valores coletivos de “Liberdade, ecologia, fraternidade”. OS PRINCIPAIS OBSTÁCULOS A ENFRENTAR EM PRIMEIRO LUGAR, as arraigadas certezas recebidas – na verdade, preconceitos – que orientam a ação coletiva, sem que ninguém realmente as analise em profundidade. E a mais poderosa dessas idéias preconcebidas é a crença no crescimento como único e exclusivo meio de solucionar os problemas sociais. Uma crença ferozmente defendida até mesmo quando os fatos contradizem-na. Uma posição que descarta a ecologia, pois seus apóstolos defensores têm consciência de que o crescimento é incapaz de solucionar a questão ambiental. A SEGUNDA CERTEZA, menos convincente, embora amplamente disseminada, proclama que o progresso tecnológico solucionará os problemas ambientais. A propagação dessa idéia dá aos indivíduos a esperança de não ter de enfrentar sérias mudanças nos comportamentos coletivos graças ao progresso tecnológico. O desenvolvimento da tecnologia – ou melhor, de certos canais técnicos em detrimento de outros – reforça o sistema e avaliza proveitosos lucros. A TERCEIRA CERTEZA vem a ser a inevitabilidade do desemprego, concepção fortemente atrelada a duas certezas prévias. O desemprego tornou-se uma determinante fabricada pelo capitalismo para assegurar a docilidade da população, muito especialmente dos nichos operários. No entanto, outra forma de olhar a questão indica que a transferência de riqueza das oligarquias à efetivação dos serviços públicos; um pesado sistema de tributação sobre o capital e a poluição, não mais sobre o emprego; uma política agrícola sustentável para os países em desenvolvimento e pobres e a pesquisa em eficiência energética constituem imensas fontes de emprego. A QUARTA CERTEZA geralmente associa a Europa e os Estados Unidos a uma comunidade de riqueza. No entanto, os caminhos de cada um deles divergem. A Europa ainda é o arauto de um ideal universalista, cuja validade é manifestada pela habilidade em reunir – apesar dos problemas – estados e culturas tão diferentes. Outras características – como o consumo de energia, os valores culturais (por exemplo, o sentido crítico do alimento), a rejeição à pena de morte e à tortura, a desigualdade menos pronunciada e a manutenção de um ideal de justiça social, de respeito ao direito internacional e de apoio ao Protocolo de Kyoto na questão climática – separam a Europa dos Estados Unidos. Aquela está distanciada do poder opressor e deve se aproximar mais dos países pobres, a menos que este realmente mostre que pode mudar. A OLIGARQUIA PODE SER DIVIDIDA O primeiro obstáculo a vencer é o poder do próprio sistema. Os fracassos que ocorrerão não serão em si mesmos suficientes para fragilizarem o sistema, pois, como sabemos, as forças oligárquicas podem criar pretextos para promoverem um sistema autoritário despido de qualquer grau de democracia. De qualquer modo, o movimento social despertou e pode continuar ganhando poder. Mas, sozinho, ele não será capaz de enfrentar abertamente o surgimento da repressão: será necessário que as classes médias e parte da oligarquia – não-monolítica – claramente optem pelas liberdades públicas e pelo bem comum. Os meios de comunicação de massa constituem um desafio central. Hoje, eles apóiam o capitalismo devido à sua própria condição econômica. Em sua maioria, as mídias dependem de publicidade, fato que lhes torna difícil pleitear a redução do consumo. Além disso, o desenvolvimento de publicações independentes que precisam de publicidade aumenta ainda mais a pressão sobre os jornais pagos de grande circulação, muitos dos quais abrigados nos estábulos de grandes grupos industriais. Embora imensa, não é certo que as possibilidades de informação geradas pela Internet– pelo menos enquanto a rede permanecer com livre acesso – sejam fortes o suficiente para contrabalançarem o peso dos meios de comunicação de massa, caso todos se tornem a voz da oligarquia. A mais poderosa “idéia preconcebida é a crença no crescimento como único e exclusivo meio de solucionar os problemas sociais e acabar com a pobreza. ” Não obstante, nem todos os jornalistas estão escravizados; assim, poderiam ser galvanizados para o ideal de liberdade. A terceira força – manca – é a esquerda. Considerando que o componente socialdemocrata tornou-se seu centro de gravidade, esse grupo abdicou de toda e qualquer ambição de transformar o mundo. Ao estabelecer um acordo com o liberalismo de livre-mercado, a esquerda mergulhou de cabeça em seus valores do liberalismo de livre-mercado tão fortemente que já não ousa – exceto em condições muito cautelosas – deplorar a desigualdade social. Para coroar a questão, ainda se recusa a envolver-se verdadeiramente nas questões ambientais. Assim, permanece aferrada à idéia de progresso concebida no século 19 e ainda acredita que ciência é produzida do mesmo modo como à época de Albert Einstein, e entoa o canto do crescimento econômico sem o mais leve traço de reflexão crítica. Além disso, para ela, “capitalismo social” em vez de “democracia social” tornou-se indubitavelmente o termo mais apropriado. A despeito de tudo, poderão os desafios do século 21 ser encampados pelas correntes da tradição diferentemente daquela que um dia identificou na desigualdade seu motivo primário de revolta? Esse hiato está no coração da vida política. A esquerda renascerá ao unir as causas da desigualdade e do meio ambiente – ou, incapaz disso – desaparecerá na desordem geral que se baterá sobre ela e sobre tudo mais? De qualquer forma, não devemos deixar de ser otimistas. Otimistas, pois existem cada vez mais pessoas que entendem – ao contrário de todos os conservadores – a novidade histórica da situação: estamos vivendo uma nova e nunca antes vista fase da história da espécie humana. Eis um momento em que após ter conquistado a Terra e atingido seus limites, a humanidade tem de repensar sua relação com a natureza, com o espaço e com seu próprio destino. Estamos otimistas pela amplitude da conscientização frente à importância dos desafios atuais, e pelo fato de que o espírito de liberdade e de solidariedade despertou. Desde Seattle e dos protestos contra a Organização Mundial de Comércio, em 1999, o pêndulo começou a balançar em direção à preocupação coletiva acerca das escolhas futuras e da busca por cooperação em vez de competição. A, até certo ponto, bem-sucedida, embora ainda incompleta, luta européia contra os Organismos Geneticamente Modificados; a perseverança da comunidade internacional na efetivação do Protocolo de Kyoto, de 2001, apesar do boicote dos Estados Unidos; a negativa européia em participar da invasão do Iraque, em 2003; e o reconhecimento unânime e urgente dos desafios propostos pelas mudanças climáticas são sinais de que o vento do futuro começou a soprar. Apesar da escala dos desafios que nos esperam, começam a surgir soluções – em oposição aos prognósticos sombrios promovidos pelos oligarcas – e o desejo de reconstruir o mundo está em franco renascimento. ■ Hervé Kempf – Jornalista especializado em informação ambiental e ecológica desde 1988. Editor de Meio Ambiente do jornal Le Monde, desde 1998, e criador da revista ambiental Reporterre. Também publica em jornais científicos e econômicos. O texto acima foi extraído de seu novo livro – How the Rich Are Destroying the Earth (Chelsea Green Publishing, 2008) – e publicado em www. alternet.org/ environment/107988, em 22/11/2008. Tradução livre realizada pela editoria de Cidadania & Meio Ambiente. Cidadania&MeioAmbiente Cidadania&MeioAmbiente 19 19 fotos: Bangladeshboat. e Pinakianisk MUDANÇA DE CLIMA E POBREZA MUNDIAL Os países desenvolvidos – maiores poluidores – são os mais aptos a enfrentar as conseqüências do aquecimento global que vai penalizar os países pobres e desencadear forte retrocesso do desenvolvimento em escala planetária. por PNUD 20 O Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – Combatendo a Mudança Climática: Solidariedade Humana num Mundo Dividido – revela um mundo cada vez mais dividido entre nações altamente poluidoras e países pobres. E mostra que, enquanto os pobres contribuem de maneira desprezível ao aquecimento global, são eles que vão sofrer os resultados mais imediatos da mudança no clima. O aquecimento global, alerta o relatório, provavelmente desencadeará um forte retrocesso no desenvolvimento e o completo fracasso em implementar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), acordados na Organização das Nações Unidas em 2000, para a redução da pobreza mundial. AS DESIGUALDADES PEGADAS DE CARBONO DESIGUAIS: Enquanto apenas 13% da população do planeta vivem nas nações economicamente mais desenvolvidas, são essas as nações responsáveis por mais da metade da emissão dos gases de efeito estufa. ■ O estado australiano de Nova Gales do Sul (6,9 milhões de habitantes) tem uma pegada de carbono de 116Mt CO2. ■ Esse índice é comparável ao total de Bangladesh, Camboja, Etiópia, Quênia, Marrocos, Nepal e Sri Lanka juntos. ■ ■ Nos Estados Unidos, os 23 milhões de habitantes do estado do Texas somente são responsáveis por mais emissões de gás carbônico (CO2) do que os 690 milhões de habitantes da África subsaariana. ■ Um residente médio dos Estados Unidos é responsável pela emissão de 20,6 toneladas de gás carbônico por ano. Um chinês médio, 3,8 toneladas; um etíope, apenas 0,1 tonelada. ■ O crescimento per capita de emissão de CO2 no Canadá desde 1990 (cinco toneladas) é maior do que o total de emissões per capita na China hoje. ■ Os Estados Unidos e a União Européia juntos são responsáveis por 10Gt dos 29 Gt liberados anualmente em todo o planeta. Se todo o mundo seguisse a trajetória dos Estados Unidos nas emissões de CO2, afirma o relatório, nós precisaríamos de nove planetas para absorver, a salvo, todos os gases que provocam o efeito estufa. APARTHEID DA ADAPTAÇÃO Enquanto os países mais pobres são os mais despreparados para se adaptarem às mudanças climáticas, são as suas populações que passarão pelo maior deslocamento nas próximas décadas. “ Adaptação tornou-se um eufemismo para injustiça social em escala global. ■ O relatório afirma que US$ 279 mi- lhões foram prometidos ao Fundo Especial de Mudança Climática, formado para ajudar os países pobres a mitigar os efeitos do aquecimento global. Isso corresponde à metade do que o estado alemão de Baden Würtemberg planeja gastar anualmente para fortalecer suas proteções contra enchentes. ■ Em alguns locais, a agricultura comercial poderá se tornar 8% mais produtiva em conseqüência do aquecimento global. Por outro lado, a previsão para a agricultura irrigada por chuvas, da qual depende o agricultor mais pobre, é de que se torne 9% menos produtiva. A estimativa para 2060 é de que a renda da África do subsaariana caia um quarto em relação aos níveis atuais. ■ Na Etiópia, os reservatórios armazenam 50 metros cúbicos de água por pessoa. Na Austrália, eles armazenam 4.700 metros cúbicos por residente. ■ A França gasta atualmente em sistemas de monitoramento meteorológicos mais do que gasta toda a África subsaariana. A Holanda possui 32 vezes mais estações meteorológicas por 10 mil km² do que a África. ■ Quando furacões, enchentes e secas atingem o mundo desenvolvido, companhias de seguro privadas compensam grande parte das vítimas. Nos países mais pobres, a cobertura dos seguros é extremamente limitada e desastres naturais podem desencadear a condenação à pobreza por gerações. Isto ficou demonstrado quando o furacão Mitch atingiu Honduras, em 1998. A porção mais pobre da população, com menos cobertura de seguro, perdeu mais e levou mais tempo para se recuperar. Os mais ricos perderam menos e começaram o processo de reconstrução mais rápido. Fenômeno semelhante aconteceu quando Nova Orleans foi arrasada pelo furacão Katrina, em 2005. Em 2001, quando Gujurat na Índia sofreu um forte terremoto, somente 2% das vítimas possuíam seguro. ■ O relatório destaca ainda outra questão relacionada: a atenção da mídia enfoca mais os desastres que acontecem no primeiro mundo, tais como a enchente causada pelo furacão Katrina. Igualmente devastadores furacões na América Central recebem apenas uma fração da atenção e uma fração dos recursos de reconstrução pós-desastre. ” “ Nos países mais pobres, a cobertura dos seguros é limitada e desastres naturais podem desencadear a condenação à pobreza por gerações. Numa seção especial do relatório, o ex-arcebispo da Cidade do Cabo, Desmond Tutu, chama a isso de o surgimento do Apartheid da Adaptação. As desigualdades são várias: ■ Os países ricos possuem muito mais recursos para aplicar em defesas contra enchentes, sistemas de armazenamento de água e em modificações na agricultura. O Reino Unido gasta anualmente US$1,2 bilhão no manejo de enchentes e prevenção da erosão costeira. A Agência Ambiental requisitou US$ 8 bilhões a serem investidos no fortalecimento das defesas contra enchentes em Londres. O estado alemão de Baden-Württemberg estima que terá que gastar um excedente de US$685 milhões por ano, em infra-estrutura de proteção contra enchentes. O Japão elaborou planos de proteção do país contra a elevação dos níveis do mar, cujos custos poderiam chegar a US$93 bilhões. ■ Ao mesmo tempo, mulheres do Delta do Ganges, Bengala Ocidental, na Índia, se preparam contra os crescentes riscos de enchente, construindo como refúgio plataformas elevadas feitas de bambu. Soluções semelhantes estão sendo introduzidas nas ilhas Char, em Bangladesh. No Egito, estima-se que o aumento do nível do mar pode custar ao país US$ 35 bilhões e desalojar dois milhões de pessoas. ” Adaptação tornou-se um eufemismo para injustiça social em escala global, alertam os autores do Relatório de Desenvolvimento Humano. Cada vez mais, o mundo é dividido entre países que estão desenvolvendo a capacidade de se adaptar à mudança climática e aqueles que não estão. ■ Cidadania&MeioAmbiente 21 S E G U R A N Ç A AL I M E N T A R 22 A produção agrícola mundial é, comprovadamente, mais do que suficiente para alimentar a população do planeta. Mesmo assim enfrentamos uma inaceitável crise alimentar. A partir de dados estatísticos coletados em 2006, a FAO (Food and Agriculture Organization, das Nações Unidas) pôde afirmar que a produção de alimentos no planeta é suficiente para garantir à população mundial uma dieta diária de quase 3.000 calorias. Portanto, o problema da fome episódica ou crônica não é a falta do que comer, mas os recursos financeiros para ter-se acesso ao alimento, cada dia mais caro. A crise alimentar atual é causada pela conjunção de fatores associados: especulação agrofinanceira, aumento artificial do preço das commodities, fatores climáticos adversos, consumo e desperdício obscenos, agricultura intensiva e asfixia da agricultura familiar, entre outros. Em muitos países – em especial na África e na Ásia –, o potencial de crise é maximizado pelos “grandes interesses econômicos internacionais” (entenda-se os países economicamente desenvolvidos), que não têm o menor escrúpulo em especular, em manipular os preços das commodities e em incentivar a substituição da produção de alimentos pela de agrocombustíveis. Afinal, se os países economicamente desenvolvidos já não se importam com a fome de 800 milhões de indivíduos, porque se importariam com a fome de 1 bilhão e meio? A insegurança alimentar é hoje a mais gritante, abjeta e desnecessária realidade mundial. Henrique Cortez FOME por Leonardo Boff A fome é uma constante em todas as sociedades históricas. Hoje, entretanto, ela assume dimensões vergonhosas e simplesmente cruéis. Revela uma humanidade que perdeu a compaixão e a piedade. Erradicar a fome configura-se como imperativos humanístico, ético, social e ambiental. Uma precondição mais imediata e possível de ser posta logo em prática é um novo padrão de consumo. A sociedade dominante é notoriamente consumista. Dá centralidade ao consumo privado, sem autolimite, como objetivo da própria sociedade e da vida das pessoas. Consome não apenas o necessário, o que é justificável, mas o supérfluo, o que questionável. Esse consumismo só é possível porque as políticas econômicas que produzem os bens supérfluos são continuamente alimentadas, apoiadas e justificadas. Grande parte da produção destina-se a gerar o que, na realidade, não precisamos para viver decentemente. Como se trata de supérfluos, recorrem-se a mecanismos de propaganda, de marketing e de persuasão para induzir as pessoas a consumirem e a fazê-las crerem que o supérfluo é necessário e fonte secreta da felicidade. O fundamental para esse tipo de marketing é criar hábitos nos consumidores a Sokwanele Sempre existiu, mas hoje resulta do consumo. tal ponto que se crie neles uma cultura consumista e a necessidade imperiosa de consumir. Mais e mais se suscitam necessidades artificiais e em função delas, monta-se a engrenagem da produção e da distribuição. As necessidades são ilimitadas por estarem ancoradas no desejo que, por natureza, é ilimitado. Em razão disso, a produção tende a ser também ilimitada. Surge então uma sociedade, já denunciada por Marx, marcada por fetiches, abarrotada de bens supérfluos, pontilhada de shoppings, verdadeiros santuários do consumo, com altares cheios de ídolos milagreiros, mas ídolos; no termo, uma sociedade insatisfeita e vazia porque nada a sacia. Por isso, o consumo é crescente e nervoso, sem sabermos até quando a Terra finita aguentará essa exploração infinita de seus recursos. materiais. O PIB não contempla a beleza de nossa poesia, nem a solidez dos valores familiares, não mede nossa argúcia, nem a nossa coragem, nem a nossa compaixão, nem a nossa devoção à pátria. Mede tudo menos aquilo que torna a vida verdadeiramente digna de ser vivida”. Três meses depois, ele foi assassinado. Para enfrentar o consumismo urge sermos conscientemente anticultura vigente. Há que se incorporar na vida cotidiana, os quatro “erres” principais: reduzir os objetos de consumo, reutilizar os que já temos usado, reciclar os produtos dandolhes outro fim e finalmente rejeitar o que é oferecido pelo marketing com fúria ou sutilmente para ser consumido. Não causa espanto o fato de o Presidente Bush conclamar a população para consumir mais e mais e, assim, salvar a economia em crise, lógico, à custa da sustentabilidade do planeta e de seus ecossistemas. Sem esse espírito de rebeldia conseqüente contra todo tipo de manipulação do desejo e com a vontade de seguir outros caminhos ditados pela moderação, pela justa medida e pelo consumo responsável e solidário, corremos o risco de cairmos nas insídias do consumismo, aumentando o número de famintos e empobrecendo o planeta já devastado. ■ Contra isso, cabe recordar as palavras de Robert Kennedy, em 18 de março de 1968: “Não encontraremos um ideal para a nação nem uma satisfação pessoal na mera acumulação e no mero consumo de bens Leonardo Boff - Teólogo, professor adjunto de Ética, de Filosofia da Religião e de Ecologia na (UERJ). Artigo publicado pelo O Tempo, MG em 09/05/2008 e no EcoDebate , 12/05/2008. Cidadania&MeioAmbiente 23 SOBERANIA ALIMENTAR por Miguel A. Altieri Somente desafiando o controle que as multinacionais exercem sobre o sistema de produção de alimentos e o modelo agroexportador patrocinado pelos governos neoliberais poder-se-á deter a espiral de pobreza, fome, migração rural e degradação ambiental. 24 AGRICULTURA INDUSTRIAL: MODELO NÃO-SUSTENTÁVEL A agricultura mundial está numa encruzilhada. A economia global impõe demandas conflitantes sobre os 1.500 milhões de hectares cultivados. Não apenas se exige que a terra agricultável produza alimento suficiente para uma população em crescimento, como também que forneça biocombustíveis, e que o faça de modo ambientalmente correto, preservando a biodiversidade, diminuindo a emissão de gases de efeito estufa e ao mesmo tempo garantindo aos agricultores uma atividade economicamente viável. Essas pressões desencadeiam uma crise no sistema de produção de alimento em escala planetária sem precedentes: a crise já se manifesta nos protestos contra a escassez de alimentos em muitos países da Ásia e da África. Afinal, 33 deles estão à mercê da instabilidade social devido à carência e ao preço dos alimentos. Tal cri- se, que ameaça a segurança alimentar de milhões de indivíduos, resulta diretamente de um modelo de agricultura industrial, que não só depende perigosamente dos hidrocarbonetos como também se converteu numa das maiores forças entrópicas da biosfera. As crescentes pressões sobre a área agrícola em retração estão solapando a capacidade de a natureza suprir as demandas de alimentos, de fibras e de energia para a humanidade. E o impasse decorre do fato de o contingente humano depender dos serviços ecológicos (ciclos de água, agentes polinizadores, solos férteis, clima local benevolente etc.) que a agricultura intensiva continuamente empurra para além de seus limites. Antes mesmo do final da primeira década do século 21, a humanidade conscientizase de que o modelo industrial capitalista de agricultura dependente do petróleo já não é capaz de garantir o suprimento de alimentos. O desafio imediato de nossa ge- foto: Luc Legay AGRICULTURA SUSTENTÁVEL: ração é iniciar a transição nos sistemas de produção de alimentos para que eles não dependam mais do petróleo. SEGURANÇA ALIMENTAR Os preços inflacionários do petróleo inevitavelmente incrementam os custos de produção; os preços dos alimentos chegaram a tal ponto que um dólar hoje compra 30% menos produtos que há um ano. Na Nigéria, uma pessoa gasta 73% de seus rendimentos em alimentos; no Vietnã, 65%; e na Indonésia, 50%. Essa situação agudiza-se rapidamente na medida em que a terra agrícola é destinada à produção de biocombustíveis e que as alterações climáticas reduzem a produtividade agrícola via secas ou inundações. Expandir o contingente de terras agricultáveis aos biocombustíveis ou aos transgênicos – que já alcançam mais de 120 milhões de hectares – exacerbará os impactos ecológicos das monoculturas, que continuamente degradam os ciclos da natureza. Além disso, a agricultura industrial atualmente contribui com mais de 1/3 das emissões globais dos gases de efeito estufa, em especial o metano e os óxidos nitrosos. Continuar com esse processo degradante promovido pelo sistema econômico neoliberal não é uma opção viável nem ecologicamente honesta, pois não reflete as externalidades ambientais. O desafio imediato de nossa geração é iniciar a transição nos sistemas de produção de alimentos para que eles não dependam mais do petróleo AGRICULTURA SUSTENTÁVEL E SOBERANIA ALIMENTAR Necessitamos de um paradigma alternativo de desenvolvimento agrícola que propicie formas de agricultura ecológica, sustentável e socialmente justa. Redesenhar o sistema de produção de alimentos a formas mais equitativas e viáveis para os agricultores e consumidores requererá mudanças radicais nas forças políticas e econômicas que determinam o que produzir, como, onde e para quem. O livre comércio sem controle social é o principal mecanismo que desaloja os agricultores de suas terras e vem a ser o principal obstáculo à garantia do desenvolvimento e da segurança alimentar regionais. Somente desafiando o controle que as empresas multinacionais exercem sobre o sistema de produção de alimentos e o modelo agro-exportador patrocinado pelos go- foto:Gustavo Ferri dólar compra “Um hoje 30% menos alimentos do que há um ano. ” vernos neoliberais é que se poderá deter a espiral de pobreza, fome, migração rural e degradação ambiental. O conceito de soberania alimentar – como o promovido pelo movimento mundial de pequenos agricultores, a Via Campesina – constitui a única alternativa viável ao sistema alimentar em colapso, totalmente falho ao postular que o comércio livre internacional seria a chave para solucionar o problema alimentar em escala mundial. A soberania alimentar enfatiza os circuitos locais de produção-consumo e as ações organizadas para se ter aceso à terra, à água, à agrobiodiversidade etc., recursoschave que as comunidades rurais devem controlar para poderem produzir alimentos com métodos agroecológicos. AGRICULTORES E CONSUMIDORES: ALIANÇA ESTRATÉGICA Não há dúvida de que uma aliança entre agricultores e consumidores é de importância estratégica. Ao mesmo tempo em que os consumidores devem interferir na cadeia alimentar ao consumirem menos proteína animal, também precisam se conscientizar de que sua qualidade de vida está intimamente associada ao tipo de agricultura praticada nos cinturões verdes que circundam povoados e cidades. E isso não ocorre apenas pelo tipo e pela qualidade dos cultivos ali produzidos, mas igualmente pelos serviços ambientais, como a qualidade da água, o microclima e a conservação da biodiversidade etc. que essa agricultura multifuncional gera. Porém, a multifuncionalidade somente transparece quando a paisagem é dominada por centenas de pequenas propriedades biodiversas que, como demonstram os estudos, podem produzir entre duas a dez vezes mais por unidade de área que as propriedades em escala industrial. Nos Estados Unidos, a agricultura sustentável – em sua maioria garantida por pequenos e por médios agricultores – gera uma produção total maior que os monocultivos extensivos, ainda sendo capaz de reduzir a erosão e conservando mais a biodiversidade. As comunidades no entorno das pequenas propriedades apresentam menos problemas sociais (alcoolismo, dependência de drogas, violência familiar, etc.) e exibem economias mais fortes que aquelas cercadas por propriedades grandes e mecanizadas. No estado de São Paulo, as cidades cercadas por grandes plantações de cana-de-açúcar são mais quentes que as rodeadas por propriedades agrícolas médias e diversificadas. Portanto, deveria ser óbvio para um consumidor urbano que comer constitui a um só tempo um ato ecológico e político. Ao comprar alimentos em mercados locais ou em feiras de agricultores vota-se por um modelo de agricultura adequada à era pós-petróleo. Por outro lado, ao comprar em grandes cadeias de supermercados perpetua-se o modelo agrícola não-sustentável. A escala e a urgência do desafio que a humanidade enfrenta são sem precedentes, e as providências a serem tomadas são de ordens ambiental e social, politicamente exeqüíveis. Erradicar a pobreza e a fome mundiais exige um investimento anual de, aproximadamente, 50 bilhões de dólares – uma migalha se comparado ao orçamento militar mundial que abocanha mais de um trilhão de dólares por ano. A velocidade com que se deve implementar a mudança deve ser urgente. No entanto, será que existe vontade política para transformar radical e velozmente o sistema nutricional, antes que a fome e a insegurança alimentar alcancem proporções planetárias e irreversíveis? ■ Miguel A. Altieri – Professor da University of California, Berkeley e da Sociedad Científica Latinoamericana de Agroecología (SOCLA). Artigo publicado originalmente em www.cadtm.org e nos sítios EcoPortal.net, http://ecoportal.net/content/view/full/78323 e EcoDebate (12 Maio 2008). Cidadania&MeioAmbiente 25 O BIORRISCO DAS TECNOLOGIAS TRAITOR E TERMINATOR Fotos Rodrigo Baleia/Greenpeace por Revista Consciência.Net A tecnologia de restrição no uso genético cria um mecanismo de exclusão tecnológica e submete a humanidade aos imperativos de lucro das multinacionais da transgenia. CONHEÇA O PERIGO QUE NOS AMEAÇA. D esde 1994, os transgênicos apareceram à venda nas prateleiras de supermercado dos EUA. Introduzidos em nossa alimentação sem consulta prévia ou estudos que verifiquem seus potenciais riscos a médio e longo prazos, convivemos com tecnologias cada vez mais avançadas e que, hoje, não se restringem a substâncias químicas e artefatos mecânicos. A tecnologia de hoje utiliza seres vivos como matéria-prima e instrumento. A questão é: em prol de quem elas estão sendo criadas? 26 TRAITOR e TERMINATOR são definições para tecnologias empregadas na manipulação genética de organismos vivos. Ambas as palavras parecem ter saído de uma história de terror. Afinal, a transferência de genes entre espécies distintas é alusiva à história de Mary Shelley, onde, no final, a zelada criatura destrói seu criador. Não considerando a tentativa de construção moral – empregada pela autora de Frankenstein como barreira ao desenvolvimento tecnológico –, devemos constar que o uso da transgenia na medicina e em cultivares comerciais ou experimentais pelo mundo tem sido regulado por instrumentos legais como o Protocolo de Cartagena, do qual o Brasil é um dos 131 signatários. Alguns países como Argentina, Chile, Uruguai, Canadá, Estados Unidos, Austrália e Rússia ainda não assinaram o protocolo. O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO O Protocolo de Cartagena é o primeiro e único acordo internacional existente na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), sendo adotado em 2000, para entrar em vigor apenas em 2002. Desde então, ele rege a transferência, o manejo, o uso e a comercialização de Organismos Geneticamente Modificados (OGM/transgênicos). Essas questões importantes no âmbito nacional e internacional serão discutidas na 3a Reunião das Partes do Protocolo de Cartagena (MOP-3) em Curitiba, a partir do dia 13 de março. gentina, a empresa teve sua soja introduzida em plantações no Rio Grande do Sul. O material modificado disseminou-se, contaminando 80% da área semeada no estado. Naquela época, os produtores levantavam a hipótese de que a soja modificada também tivesse se espalhado para outros estados. A propagação da soja contrabandeada caracterizava-se como fato consumado, o que permitiu em 2004, ao governo federal, liberar para comercialização a soja ilegal. A conhecida polêmica entre entidades civis, movimentos amEssa situação fez as entidades ambientalistas versus as empresas bientalistas afirmarem que liberar de biotecnologia gira em torno a comercialização da soja transdos conflitos criados por integênica desencadearia uma série resses desiguais, como as leis de outras medidas favoráveis às de comércio e o regime de biosempresas de biotecnologia. Dessegurança internacional. Concita maneira, a Monsanto conseliar tais interesses, seguindo-se guiu que suas pesquisas em bioo Princípio da Precaução propostecnologia e comercialização da to formalmente na Conferência sua soja, milho e algodão fossem Rio-92 e reiterado constanteautorizadas. A CTNBio, responA soja produzida via tecnologia GURT obriga o agricultor a mente pelas organizações ambisável pela regulação das pesquicomprar sementes a cada safra, já que abole a possibilidade entalistas, demonstra-se impossas e do comércio de transgênisível pois, até hoje, não é recocos no país, concedeu autorizanhecido, como norma jurídica, apenas um O T de transgênico deveria estar nas embação para a Monsanto, em nota pública. princípio não universalmente aplicado. lagens com produtos que contêm soja transgênica. Você já viu algum estampado? AS EXTERMINADORAS A utilização do Princípio da Precaução fere DO FUTURO interesses comerciais, englobando áreas TRANSGÊNICOS: De origem inglesa, as palavras TRAITOR e como saúde, meio ambiente, agricultura, coA IMPORTÂNCIA DO BRASIL TERMINATOR referem-se a traços (de traits municação e do direito, pois parte do presEm períodos de COP8/MOP3 a discussão para expressão genética) e exterminador suposto da ‘Incerteza científica’ quanto à aumenta e ambientalistas declaram preo(de Terminator). Quando nos referimos às implementação e uso de novas tecnologicupação com relação à posição do Brasil, sementes Terminator logo vem à cabeça as. O desafio em torno da Biossegurança é no que diz respeito à transgenia. Por ser o o filme de ficção estrelado por Arnold justamente o reconhecimento da ocorrênsegundo maior produtor de soja no munSchwarzenegger. Dividido em três partes, cia de danos oriundos do emprego de nodo, na sua maioria convencional, os olhos a saga narra a história de uma família tenvas tecnologias e para isso faz-se necessáde países produtores de transgênicos tando impedir que o futuro seja devastario uma criteriosa avaliação de risco. como Canadá, Estados Unidos e Argentido pelas máquinas. O Exterminador do na e de empresas transnacionais que faFuturo vivido por Schwarzenegger volta A Comissão Técnica Nacional de Biossegubricam sementes modificadas, como a ao passado para proteger o futuro sobrerança (CTNBio), que desde março de 2005, Monsanto e Delta & Pine, voltam-se para vivente e líder da resistência, John através da Lei de Biossegurança (Lei 11.105), o Brasil. O país é considerado estratégico Connor, que tenta no presente salvar o na difusão global dos transgênicos, tais mundo que um dia será dominado por regula o uso de OGM´s no país, tem como multinacionais são as grandes propagamáquinas altamente desenvolvidas pelo diretrizes o estímulo ao avanço científico na doras de seus “benefícios” e uma posicomputador Skynet. área de biossegurança e biotecnologia, a proção positiva do Brasil, com relação aos teção à vida e à saúde humana, animal e vetransgênicos, pode ajudá-las na impleNão é à toa que o termo tenha sido colocagetal e a observância do Princípio da Precaumentação de seus produtos. do na semente produzida por nossos vizição para a proteção do meio ambiente nhos da América do Norte. Em 1998, a mul(art. 1o). Mas segundo o atual presidente da Desde 1996, a Monsanto está em destatinacional Delta & Pine obteve do DeparComissão, Walter Colli, o Princípio da Preque na briga pela liberalização dos transtamento de Agricultura dos EUA (USDA) caução ainda deverá entrar num consenso e gênicos. De forma ilegal, permitindo o cono direito de patente sobre o ‘Controle de a partir dele a Comissão continuará seu tratrabando de suas sementes através da ArExpressão Genética Vegetal’ das sementes balho (O Estado de SP, 17/02/2006). Cidadania&MeioAmbiente 27 “ Em nosso país, apenas 10 transnacionais têm o controle monopólico das principais atividades agrícolas do país. ” que se comportam como suicidas, ao terem determinados traços de expressão genética ativados. A empresa do ramo de sementes, transgênicos e agrotóxicos é uma das mais expressivas na área de sementes geneticamente modificadas e híbridas. O termo correto para tais tecnologias é Tecnologia de Restrição no Uso Genético, em inglês Genectic Use Restriction Technology (GURT’s). As tecnologias GURT’s dependem da ativação ou desativação de genes através de indutores químicos ou pela multiplicação de organismos estéreis, já com seus genes de esterilização ativados. Dentro das GURT’s existem duas tecnologias distintas: a T-GURT e a V- GURT (ver quadro). A tecnologia Terminator confere às empresas que obtiverem o uso de sua patente um benefício econômico inigualável, pois a partir dessas sementes é criado um mecanismo de exclusão tecnológica: O agricultor seria obrigado a comprar sementes a cada safra, o replantio seria abolido, e não por vias contratuais como é atualmente, mas pela impossibilidade genética de replantio. TECNOLOGIA DE RESTRIÇÃO NO USO GENÉTICO TRAITOR / T-GURT Do inglês trait variety genetic use restriction technologies, onde o T refere-se a traits (traços) e consiste na transferência de genes que conferem determinadas características (traços) à semente e suas respectivas plantas. Tais particularidades podem ser de esterilização ou não, e ocorrem mediante a aplicação de determinado produto químico. As características podem conferir o crescimento, o nascimento de frutos etc. Tal tecnologia também é conhecida como switch technologies, ao pé da letra, tecnologias de interruptor, nas quais as plantas são ligadas por interruptores químicos. TERMINATOR / V-GURT Do inglês variety genetic use restriction technologies, onde o V refere-se a variety (variedade) e consiste na transferência de genes que tornam totalmente estéreis as sementes da 2.ª geração e, por isso, são denominadas sementes suicidas e /ou estéreis. A tecnologia V-GURT, vulgo Terminator, representa o último grau no processo de esterilização das gerações iniciado pela hibridação, onde por meio do melhoramento genético – diferente de transgenia – as gerações de sementes posteriores não atingem o mesmo grau de excelência da primeira geração, tendo algumas comportamento inclusive estéril. CORPORAÇÕES MAIS ENVOLVIDAS COM AS TECNOLOGIAS GURT’S: * Monsanto * Bayer * Novartis-Syngenta * Du Pont * Advanta * Aventis 28 Devido a essa questão que fere o direito dos agricultores em perpetuar suas plantações sem a intromissão de empresas multinacionais e também pelo fato de que a tecnologia Terminator não tem comprovação segura quanto aos seus riscos de disseminação, contaminação e na saúde, é criada uma moratória, em 2000, com relação a sua venda, uso, patenteamento, licenciamento e registro como OGM. Entendendo o perigo que a tecnologia representa, foi a CDB de 2000 quem primeiro requeriu aos governos de todo o mundo a não comercialização e o não plantio – inclusive experimental – dessas sementes. Segundo o economista David Hathaway as tecnologias Traitor e Terminator foram criadas para fortalecer a proteção sobre o direito de propriedade das empresas que as fabricam, assegurado que os agricultores que as utilizem não as replantem, nem a concorrência as copiem. As tecnologias Traitor também conferem benefícios econômicos às multinacionais ao comercializar sementes em conjunto a outros produtos fornecidos pela empresa, como o caso da soja Round-up Ready da Monsanto, resistente ao herbicida trole algum sobre a forma como são produzidos alimentos e remédios; como serão distribuídos, comercializados ou se são benéficos ou não à sociedade. Para o MST, o Brasil já sofre este risco, pois apenas 10 transnacionais têm o controle monopólico das principais atividades agrícolas do país. São elas: Bunge, Cargill, Monsanto, Nestlé, Danone, Basf, ADM, Bayer, Sygenta e Norvartis. Round-up fabricado por ela, e do milho Starlink, resistente ao herbicida fabricado pela Aventis. O BLOCO DAS BIOTECNOLOGIAS Desde 1996 é possível verificar a fusão e incorporação de empresas do ramo farmacêutico, de agroquímicos, sementes e alimentos. Segundo Gabriel Fernandes, um dos dirigentes da campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos, sozinha a Monsanto domina 88% do mercado de sementes transgênicas e em relação ao mercado de sementes mundial, 10 empresas concentram 50% do mercado. Conhecidas mundialmente como empresas do ramo de cereais e agroquímicos, agora Cargill, Novartis, Du Pont, Pioneer, Quaker Oats Co., Delta & Pine colocam suas fichas no monopólio de sementes. Já empresas como Bayer, Basf, CibaGeygi, Syngenta-Novartis, Pfizer, Pharmacia permanecem enfocadas nas tecnologias de laboratório e suas possíveis patentes para uso medicinal. Segundo o jornal inglês The Independent, os recursos biológicos do continente africano têm sido explorados por uma dezena de multinacionais do Oeste, sem que os benefícios conquistados a partir de seus derivados sejam repassados aos países ou comunidades de origem. Para Beth Burroows, do instituto norte-americano Edmonds, um dos responsáveis pelo relatório que demonstra a ação dessas empresas no continente, “é uma nova forma de pilhagem colonial, o problema é que vivemos num mundo em que as empresas apropriam-se do que querem e onde querem e depois nos passam a idéia de que assim fazem para o bem da humanidade”. Para o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), entidades ambientalistas como o Greenpeace e entidades de defesa do consumidor como o Instituto de Defesa do Consumidor -IDEC, a fusão de empresas de setores tão diversos e tão primordiais, como alimentos, sementes e medicamentos, representa um perigo para a sociedade, que em breve não terá con- de empresas “deA fusão alimentos, sementes e medicamentos representa um perigo: a sociedade não terá controle sobre sua produção. ” Recentemente, a empresa Monsanto alegou não ter interesse em usar a biotecnologia Terminator, mas nada se referiu à tecnologia T-GURT da soja Round-up Ready, produzida pela transnacional pertencente ao grupo americano Elly Lilly – a maior produtora de defensivos e drogas farmacêuticas, do planeta. Mesmo vivenciando uma briga por patentes e royalties em Argentina, Brasil, EUA e Canadá, a empresa de biotecnologia continua a passar a idéia de que seu trabalho é apenas em benefício da humanidade. O perigo das sementes suicidas Terminator e suas irmãs Traitor é sua contaminação do meio ambiente: por se tratarem de organismos vivos passivos da reprodução, a humanidade não teria tamanho controle. A disseminação das sementes transgênicas é uma ameaça diferente da vivida pelo personagem de ficção John Connor, mas não tão diferente se vista pela perspectiva do computador Skynet, que fora de controle estava destruindo a humanidade. Infelizmente, não teremos um herói como Schwarzenegger voltando ao passado para salvar o que restaria da humanidade sendo dominada pela biotecnologia, hoje praticamente monopolizada por empresas que se dizem humanitárias, mas que, ao fim de todo o balanço, entregam sua alma às contas de seus acionistas. ■ Reportagem especial da Editoria de Ecologia da Revista Consciência.Net, março de 2006. http:// www.consciencia.net/2006/0309-biorrisco.html Contato:[email protected] Cidadania&MeioAmbiente 29 Foto:Timsnell VEGETAIS DIETA PARA O PLANETA SUPERPOVOADO O aumento da renda pessoal em escala global repercute no crescente apetite pela dieta à base de carne. Mas essa escalada pode ter sérias conseqüências para a saúde do planeta e da própria humanidade. Especialistas discutem a questão e indicam que para a Terra superpovoada a solução será a dieta vegetal. por Moises Velasquez-Manoff N o primeiro trimestre de 2008, os preços dos grãos sofreram uma escalada nunca vista em 30 anos. Em média, os preços dos alimentos estão 54% mais altos do que em 2007. Os grãos subiram 92%. Turbas famintas em busca da subsistência revoltaram-se no Haiti, no México e em Bangladesh. Os especialistas apontam uma “tempestuosa conjunção” de especulação, seca na Austrália e desvio de grãos para a fabricação de biocombustíveis como responsáveis pela crise mundial de alimento. No entanto, para outros, a escalada do preço dos grãos é apenas a concretizacão de uma previsão há muito anunciada: a crescente população mundial tem maior poder de compra, e os novos consumidores estão se banqueteando com mais carne! Por isso, boa parte da crescente produção agrícola mundial é destinada ao consumo animal. Embora os estoques de grãos sejam mais do que suficientes para alimentar a população do planeta, a atual escalada de preços revela que essa provisão não garante que os mais pobres não passem fome. Em breve, chegará o dia em que não haverá 30 grãos em quantidade suficiente à alimentação humana e à ração animal – ao menos nos EUA, aos atuais índices de consumo. Somem-se a isso os impactos ambientais da atual produção industrial de carne e não se pode deixar de pensar se, em 2050, com uma populacão mundial prevista para 9,5 bilhões, não estaremos todos condenados ao vegetarianismo. Talvez nem todos, alegam os especialistas. Mesmo com as inovações tecnológicas alimentares, provavelmente comeremos muito menos carne. E, quem sabe, os habitantes da África subsaariana comerão um pouco mais. Um terço da terra cultivável do mundo é destinada à produção de alimento para gado e aves de corte, e aproximadamente 36% da produção mundial de grãos viram ração animal. O problema, dizem os especialistas, reside na ineficiência da conversão do grão em carne. Para se produzir meio quilo de carne são necessários sete quilos e meio de grão. Para a carne de porco, a relação é de um para três; e para o frango, de um para dois. (Peixes de sangue frio, que não precisam de energia para manter temperatura corporal, são criados com maior eficiência.) O INSUSTENTÁVEL MODELO AMERICANO “Os grãos usados para alimentar gado e não pessoas estão exercendo enorme pressão sobre os estoques”, informa Katarina Wahlberg, coordenadora do programa de políticas econômicas e sociais do Global Policy Forum, ONG sediada na cidade de Nova Iorque. “Os atuais níveis de consumo são insustentáveis”. O americano médio consome aproximadamente 140 kg de carne por ano, informa a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Cada um deles consome 885 kg/ano de grãos, diz Lester Brown, autor de “Plan B 3.0: Mobilizing to Save Civilization”. E apenas 110 kg de grão são consumidos na forma de pão, massas e cereais. O restante é ingerido via produtos animais. Se todos os habitantes do planeta consumissem grãos na escala dos EUA, sua atual safra mundial de dois bilhões de toneladas de grãos alimentaria apenas 2,5 bilhões de indivíduos – dois quintos da população mundial! Se o mundo comesse no padrão italiano – 400 kg/ano de grão por pessoa – teríamos como alimentar cinco cinco bilhões de pessoas. E se todos nós adotássemos o regime alimentar vegetariano, típico dos habitantes da Índia – 5 kg/ ano de carne por pessoa ou 200 kg de grão –, a atual produção mundial de grãos poderia alimentar 10 bilhões de indivíduos. rápido para cada indivíduo reduzir sua pegada de carbono. “Essa providência pode ser tomada imediatamente. É algo que poderíamos fazer imediatamente. Não precisamos inventar nada renovável.” Para Lester Brown, as comparações acima têm sérias implicações. Mesmo se Foto:Fiona MacGinty desconsideramos os aspectos morais da questão, não podemos esquecer que pessoas famintas conduzem ao desassossego social – fato de conseqüências para todos. “Quantos estados desabarão antes do fracasso global da civilização?”, interroga Brown. “Ninguém sabe a resposta, porque ninguém jamais enfrentou tal realidade. As tendências de consumo mundial indicam maior – e não menor – consumo de carne. De 1970 a 2005, a produção mundial de carne nos países em desenvolvimento mais que quintuplicou: de 30 milhões para 162 de milhões de toneladas, segundo a FAO. Se a tendência continuar, a demanda global por carne aumentará pela metade novamente antes de 2030. Um terço da terra “cultivável no mundo Por volta de 2050, a produção mundial de carne mais do que dobrará a do nível de 2000: alcançará 513 milhões de toneladas/ ano. O aumento do poder de compra em escala mundial acelera o apetite por carne. Segundo o relatório de 2003 da National Academy of Sciences, aproximadamente 1,1 bilhão de novos consumidores – pessoas com significativa renda disponível – emergiu em décadas recentes. Um contingente que se soma aos 850 milhões de consumidores dos países ricos. Todos querem comer carne. E, como os novos consumidores aumentaram esse consumo de carne, também deixaram de ser menos saudáveis. Cerca de 1,6 bilhões de adultos ao redor do mundo apresentam sobrepeso (400 milhões são obesos), informa a Organização Mundial de Saúde (OMS). Infelizmente, cerca de 800 milhões sofrem desnutrição crônica. “O mundo não precisa ter famintos”, diz a médica Polly Walkert, é destinada à produção de alimento para gado e aves de corte, e cerca de 36% da produção mundial de grãos vira ração animal. ” diretora associada do Center for a Livable Future, do Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, em Baltimore. “Trata-se de uma questão de justiça que deveria incomodar a todos.” A CARNE E O IMPACTO AMBIENTAL Mesmo abstraindo a questão da escassez de grãos, muitas vozes afirmam que o impacto ambiental é argumento suficiente para repensar a produção animal em escala industrial. A criação de animais para alimento gera 18% dos gases estufa na forma de metano, mais que todo o setor de transporte. “Mudar a dieta humana é essencial para controlar a mudança climática”, afirma Peter Singer, professor de Bioética da Universidade de Princeton, em New Jersey. Também é um modo simples e O relatório “Livestock Long Shadow”, da ONU, de 2006, concluiu que a produção animal, como é atualmente praticada, apresenta uma gama de ameaças a exigir atenção imediata: da degradação de terra à perda de biodiversidade. Um relatório subseqüente da Pew Commission on Industrial Farm Animal Production ecoou aquelas conclusões, acrescentando que o uso rotineiro de antibióticos na criação animal aumenta o risco de se criarem os animais resistentes aos antibióticos. Até mesmo os oceanos são afetados pela produção de animais de corte. Em águas litorâneas, as zonas mortas causadas por despejos de nutrientes – boa parte proveniente de dejetos animais – tornam-se um problema crônico. E uma cota crescente da pesca mundial agora é transformada em farinha e óleo de peixe para ser adicionada à ração animal. Os altos preços dos alimentos tornaram a pesca mais lucrativa, afirma H. Bruce Franklin, autor de “The Most Important Fish in the Sea: Menhaden and America.” Os peixes são freqüentemente vitais para seus ecossistemas, já que devoram volumosa quantidade de microorganismos e servem de alimento para os maiores. (O menhaden comum médio, com 20 cm de comprimento, filtra de quatro a sete galões de água do mar por minuto.) A exaustão dessas criaturas pode provocar o desequilíbrio em um ecossistema. “Os oceanos não podem mais agüentar esse tipo de pressão”, afirma Bruce Franklin. AS PASTAGENS E OS ECOSSISTEMAS Muitos estudiosos observam que os animais de corte não precisam competir com os seres humanos por grãos, nem a atividade de criação tem necessariamente de ser destrutiva. Enormes parcelas de terra ao redor do mundo são próprias para pastagem. Os ruminantes – animais que digerem capim e plantas que o homem não come – Cidadania&MeioAmbiente 31 animal, como é atualmente praticada, apresenta “ A produção uma gama de ameaças a exigir atenção imediata: da degradação de terra à perda de biodiversidade. ” convertem esses vegetais em carne, alimento para os seres humanos. Se a criação de gado mimetizar as grandes migrações do bisão nas pradarias americanas – áreas naturais comuns a mitos ecossistemas préexistentes à instalação da pecuária –, a atividade pode melhorar o ecossistema em lugar de degradá-lo, afirma John Ikerd, professor emérito de Economia Agrícola da Universidade de Missouri, no estado de Columbia. “Contamos com um tremendo potencial para produzir muito mais proteína, e conseguir isso da maneira correta, sem danificar o solo”, diz Ikerd. Em muitas regiões, como grandes extensões da África, os animais garantem a proteína necessária que, caso contrário, seria indisponível. Lá, por exemplo, a criação de gado deveria aumentar, informa Pierre Gerber, co-autor do relatório “Livestock’s Long Shadow”. As preocupações ambien- tais são importantes, diz ele, mas igualmente relevante é o bem-estar humano. “Não se deve parar a produção de proteína animal devido a questões ambientais. Na verdade, é a questão ambiental que deve equacionar a atividade produtiva.” ■ Moises Velasquez-Manoff – Artigo publicado no Christian Science Monitor (18/7/ 2008) e em www.globalpolicy.org com o título Diet for a More-Crowded Planet: Plants. A PECUÁRIA E A DEVASTAÇÃO NA AMAZÔNIA ■ Enquanto isso, no Sudeste, ocorreu o inverso: a área de pastagem diminuiu 15% e o rebanho encolheu 3% no período 1996-2006, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) compilados no Anuário da Pecuária Brasileira (ANUALPEC), do Instituto FNP (www.fnp.com.br). ■ O aumento das exportações de carne, nos últimos anos, deixou um “vácuo” de abastecimento no mercado interno, que está sendo suprido, ao menos parcialmente, com carne produzida na Amazônia. As exportações nacionais do setor aumentaram 126% entre 2002 e 2006. “Como o Norte não tem ainda condições de exportar, o Sudeste exporta e a gente preenche a lacuna”, diz o diretor de pesquisa ambiental do Instituto de Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental do Pará (Idesp), Jonas da Veiga. ■ Segundo levantamento realizado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), apenas 5% da carne produzida em áreas de desmatamento da Amazônia são exportadas. E dos 95% que ficam no país, quase 70% são enviados ao Sudeste. Só 12% viram alimento dentro da própria Amazônia Legal. ■ A pecuária é o setor produtivo que mais influencia no desmatamento da Amazônia. Cientistas e ambientalistas estimam que mais de 70% das derrubadas florestais são feitas para a abertura de pastagens. Os pesquisadores do Imazon calculam que 253 mil km2 na Amazônia foram ocupados por pastos, entre 1990 e 2006 – uma área maior do que o Piauí. O rebanho da região aumentou 180% no mesmo período, passando de 26 milhões para 73 milhões de cabeças, o equivalente a 36% do total nacional. Entre 2000 e 2005, 27 frigoríficos instalaram-se na região. “A Amazônia abriu espaço para a pecuária crescer com produção barata, caso contrário o preço da carne no mercado interno teria aumentado muito”, avalia o pesquisador Paulo Barreto, que coordenou a pesquisa. A grande vantagem da região é o preço baixo – ou quase nulo – da terra. “Fazendeiros que se apossam de terras públicas ganham mais do que o normal, pois não compraram a terra, nem pagam aluguel pelo seu uso”, escrevem os autores. ■ ■ O consultor José Vicente Ferraz, do Instituto FNP, vê a expansão da pecuária na Amazônia como um “fenômeno natural” associado ao perfil “nômade” do setor, que está sempre em busca das terras mais baratas para produzir. “Como se costuma dizer, não existe boi barato em cima de terra cara”, diz. “As terras mais baratas hoje estão no Norte e Nordeste. O pecuarista vende um hectare aqui (no Sudeste) e compra 10 hectares lá.” Fonte: Herton Escobar, de O Estado de S.Paulo (22/10/2008). 32 foto:BrennanMercado A reunião da FAO para tratar da crise alimentar global destacou que o problema agrava-se pela concentração da distribuição de alimentos e de matérias-primas, e à produção em mãos de poucas e poderosas empresas de agronegócio. Assim, os pobres e as crianças são os que mais sofrem com a crise alimentar. por Miguel Mora C inqüenta chefes de Estado e de Go verno, 150 ministros de Agricultu ra e cerca de 20 responsáveis por instituições supranacionais reuniram-se no início de junho, na sede da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação), em Roma, para resolverem a crise alimentar global que ameaça milhões de pessoas. O rascunho das conclusões da reunião, ao qual os países estabelecem os últimos retoques por grupos regionais, desenha um futuro “de imenso sofrimento humano, assim como de descontentamento social e de instabilidade política, que ameaçam colocar em perigo os desenvolvimentos econômico e social.” FAMÉLICOS E OBESOS Um dado facilitado pela FAO resume graficamente a situação: % do lado infeliz – 820 milhões de cidadãos passam fome; entre eles, 178 milhões de crianças desnutridas. % do lado afortunado – um bilhão de seres humanos sofre de sobrepeso; desses, 300 milhões já se tornaram obesos. No relatório apresentado à reunião, a FAO admite que os dados da fome não variaram desde 1990, o que leva à certeza de que as políticas desenvolvidas até agora foram um fracasso. O estudo atribui a crise à mudança climática, à escassez de cereais (a produção está no mesmo patamar desde 1983), ao aumento da demanda na China e na Índia, ao preço do petróleo, à elaboração de biocombustíveis, à especulação que domina os mercados de futuros de sementes e matérias-primas e a uma política agrícola e comercial protecionista e não-solidária. Há muitos problemas diferentes que, se não forem resolvidos rapidamente, podem piorar o panorama. Segundo a Oxfam (uma fundação de caridade internacional com sede em Oxford, no Reino Unido), se os países continuarem investindo em biocombustíveis, e não em alimentos para o consumo humano, em 2025 haverá 600 milhões a mais de esfomeados no mundo. Um fenômeno recente começa a preocupar os especialistas: junto à desnutrição que grassa em uma parte do mundo, a má alimentação começa a causar estragos na outra metade. No México, o número de pessoas obesas e com sobrepeso duplicou entre a população mais pobre, entre 1988 e 1998. O percentual atinge, hoje, 60%. “VAMPIROS MUNDIAIS” DOS ALIMENTOS A culpa, destacam diversas Organizações não-governamentais (ONGs) que participam da reunião, não é tanto dos países, mas de um modelo liberal em que mandam as multinacionais e os intermediários. Segundo Antonio Onorati, da Crocevia, “...os preços agrícolas são decididos pelos grandes distribuidores, cadeias como Auchan ou WalMart que compram diretamente dos produtores e ganham a fatia maior do preço final.” Marco de Ponte, secretário-geral italiano da “Ajuda e Ação” tornou pública a lista das cinco empresas que controlam mais de 80% do mercado de cereais, com os lucros de 2007: Cargill (36%), Archer Daniels Midland (67%), ConAgra (30%), Bunge (49%) e Dreyfuss (19% em 2006). Outro setor em expansão é o dos produtores de sementes, herbicidas e pesticidas:: Monsanto, Bayer, Dupont, Basf, Dow, Potashcorp. “A globalização alterou a relação comercial da agricultura”, explica Alberto López, representante espanhol na FAO. “O capital que antes especulava em imobiliárias está hoje na compra de futuros de matérias-primas. A demanda cresceu muito rapidamente, e é necessário conter o impacto facilitando a distribuição, a eficácia produtiva e o consumo responsável.” A FAO propõe soluções a curto, médio e longo prazos: mais dinheiro, mais ajuda aos países pobres, um comércio mais justo, melhor coordenação entre as instituições e as ONGs, potencializar a produção em pequena escala, orientada ao consumo local e regional. Entretanto, os preços cada vez mais altos dos alimentos agravam o problema para a parte mais frágil da cadeia – a infância. A organização “Médicos sem Fronteiras” exige, em Roma, ajuda imediata para as 20 milhões de crianças que sofrem de desnutrição aguda. “Nas últimas semanas, vimos um aumento brutal de casos na Etiópia, onde já há 120.000 crianças em situação de emergência médica”, lembra Javier Sancho. ■ Miguel Mora – Artigo publicado em El País (03/06/08). A tradução é do Cepat. Publicado pelo IHU On-line, 05/06/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul]. Publicado no www.ecodebate.com.br em 06/06/08. Cidadania&MeioAmbiente Cidadania&MeioAmbiente 33 33 UMAPORTAPARA ONADA Buscar reorganizar a produção de alimentos, primeiramente em atendimento às carências nacionais, parece mesmo fora do propósito dos governos que se revezam. por Mário José de Lima A crise energética terminou por empurrar os preços da economia de forma a pro mover uma reorientação nas estruturas produtivas na agricultura mundo afora. Chacoalharamse as condições de produção de alimentos básicos, mudando as expectativas dos negócios futuros e sinalizando a possibilidade de mais uma grave crise a se abater sobre a população mundial. O que devemos ter em mente é que a situação de hoje põe a possibilidade de a falta de alimentos atingir ou, melhor dizendo, ampliar a faixa da população já carente de alimentos. Para uma parcela significativa da população mundial, há muito tempo as condições de subnutrição são uma marca de sua realidade. Segundo estimam as Nações Unidas, das seis bilhões de pessoas que vivem hoje no planeta, algo próximo a um bilhão sofre de fome crônica. Mas esse número é uma estimativa grosseira, pois negligencia os que sofrem de deficiências de vitaminas e de nutrientes e de outras formas de subnutrição. O número total de desnutridos ou de carentes críticos de nutrientes está, provavelmente, próximo aos três bilhões – cerca da metade da humanidade. A severi- 34 dade dessa situação torna-se clara pela estimativa das Nações Unidas de um ano atrás: em média, 18.000 crianças morrem, diariamente, em conseqüência direta ou indireta da subnutrição. FOME NOS EUA E MUNDO AFORA A carência de produção raramente pode ser tomada como a razão pela qual as pessoas estão famintas. Isso pode ser visto mais claramente nos Estados Unidos; lá, a despeito de a produção ser maior do que a população necessita, a fome permanece como um sério problema. De acordo com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, em 2006, 35 milhões de pessoas viviam em famílias sob condições de insegurança alimentar, incluindo 13 milhões de crianças. Devido à carência de alimentos, adultos, vivendo em 12 milhões de famílias, não podiam comer refeições balanceadas e sete milhões de famílias tinham porções menores ou não contavam com uma ou mais refeições diárias. Em aproximadamente cinco milhões de famílias, as crianças não dispõem de alimento suficiente, em algum momento durante o ano. rotina a fome antes desta crise, chama a atenção para o fato de que, nos países pobres, não é incomum que grandes provisões e alimentos mal distribuídos existam em meio à disseminada e persistente fome. Magdoff recorre a dois exemplos presentes na imprensa mundial, ratificando sua afirmação: primeiramente, um artigo, de pouco tempo atrás, no New York Times, contando uma história com o título “Pobres na Índia morrem de fome quando trigo em excesso apodrece” (02/12/ 2002); o outro, uma manchete no Wall Street Journal, expressando, em 2004, “Necessidade em meio à abundância, um paradoxo indiano: grande colheita e fome crescente” (25/06/2004). Não estamos distantes da situação indicada e até enfrentamos estados mais graves de subnutrição na realidade brasileira. As oscilações nas condições de fornecimento de alimentos no mundo repercutiram em nosso mercado interno de forma intensa, empurrando os preços e criando situações de desabastecimento de produtos básicos. AGRONEGÓCIO E DÉFICIT ALIMENTAR Em artigo recente, Fred Magdoff (Monthly Review, maio, 2008), que diz ser Eis uma situação inusitada para um país detentor de gigantescas reservas de re- cursos naturais e população excedente de formação recente. A forte expansão das cidades brasileiras é resultado da intensa e rápida mecanização pela qual passou a agricultura brasileira nos últimos trinta anos. À medida que se promovia a reorganização produtiva que se desdobrou desde o final dos anos 60, impondo um novo padrão tecnológico à agricultura, operaram-se mudanças importantes na estrutura da propriedade fundiária do país. dobramentos da fronteira agrícola brasileira, desde o final dos anos 60, é formada pela produção de uma das mais valorizadas commodities da atualidade – a soja. A rota de plantio dessa leguminosa é a da destruição da Floresta Amazônica. Apoiada nos avanços da tecnologia agronômica e no desenvolvimento de novas variedades, a produção de soja alcança, com elevados níveis de produtividade, as regiões tropicais. O O fortalecimento da agricultura de base capitalista, apoiada pela mecanização, pelo uso intenso de adubos químicos e de outros recursos de mesma base no combate GOVERNO E O AGRONEGÓCIO A Amazônia experimenta, agora, a intensificação da pressão que se desdobra desde os anos 60 sobre sua reserva florestal e de terras, ao tempo que sua população é em- GALERIA DA FOME mente nacional: a crise alimentar e as questões do desemprego e do ambiente. Tivesse Sua Excelência centrado suas preocupações a esses três temas, teria encontrado, na pequena e na média produção, um caminho seguro para a construção de um quadro de estabilidade e de desenvolvimento sociais. Contudo, buscar reorganizar a produção nacional de alimentos, primeiramente em atendimento às carências das populações nacionais, parece mesmo fora do propósito dos governos que se revezam desde os últimos vinte anos. Principalmente ao explicitarem a estratégia nacional de construir uma nova inserção nas relações internacionais, abandonando o objetivo de ampliação do mercado nacional. (da esq. para dir.): 1. Dhaka/India. Foto:Uncultured 2. Escultura anti-pobreza/Coréia. Foto: Kaspian 3. Cebu City/Filipinas. Foto: Zerone Eric Ouano 4. Senegal. Foto: Elrentaplats 5. Menina de rua em São Francisco/EUA. Foto: Femuruy 6. África. Foto: Breezs Debris às pragas, mais o uso de sementes geneticamente transformadas, implica a expansão das unidades produtivas e o esmagamento da pequena produção de base familiar. Aliado a isso, ocorre o avanço sobre o controle da cadeia produtiva das matérias oriundas de produção agrícola e sobre as estruturas de comercialização. Associada à formação e ao aprofundamento das relações capitalistas na agricultura, ampliam-se os contingentes de migrantes orientados para as áreas urbanas, fortalecendo o número das unidades familiares dependentes do mercado para se abastecerem de alimentos. Em função das condições de emprego nas cidades, é nestas parcelas da população que se encontra o maior déficit alimentar. São famílias que não conseguem acompanhar o comportamento altista dos preços dos alimentos. Por outro lado, parcela importante dos recursos apropriados pela grande empresa agrícola é orientada à produção de alguma mercadoria que integre a pauta dos negócios internacionais. Uma faixa importante da produção que se desenvolveu com os des- purrada para áreas urbanas a ponto de assistir ao esvaziamento das regiões agrícolas. Em cerca de duas décadas, a estrutura de distribuição populacional é posta ao contrário, e mais de 70% da população alcançam as áreas urbanas. Ampliam-se as necessidades de abastecimento pelo mercado sem que existam condições geradoras de emprego e de renda para centenas de milhares de famílias deslocadas. Ou seja, haverá mais famílias submetidas à miséria e à subnutrição. Nesses dias, o Presidente da República anunciou uma estratégia de luta contra a crise alimentar. Para ampliar a angústia de quem vive o flagelo da fome, em sua fala, ele anunciou que prepara o país para se servir dos preços altos dos alimentos. O fato de centrar as medidas governamentais nos níveis de rentabilidade possíveis graças aos preços elevados deixa de lado os interesses da população – ou de sua maior parcela. O grupo presente na reunião presidencial é esclarecedor: além dos ministros, havia empresários do agronegócio. O país perde, com a atitude do governo, a oportunidade de enfrentar três graves problemas da atualidade mundial, e particular- A busca em “aproveitar” as condições de rentabilidade para melhorar a posição nacional nas relações internacionais corresponde a ampliar a base da produção para atender ao mercado internacional. A conseqüência de tal estratégia é que, em última instância, estaremos colando os preços internos aos internacionais, como já acontece com as commodities presentes nas nossas exportações. Ou seja, dados os níveis correntes do poder de compra das populações nacionais, ou pelo menos a maior parcela populacional, estaremos contribuindo para dificultar, ainda mais, o acesso ao mercado de alimentos. Essa crença exacerbada no poder do capital esquece as raízes da crise – e seus matizes – vivenciada pela humanidade nos dias atuais. Os governos do mundo laboram no esquecimento das grandes crises, inclusive a que lançou o mundo nos desastres maiores do século XX; todavia, os brasileiros, notadamente os mais novos, laboram no esquecimento da história recente das transformações capitalistas no país e dos seus resultados sobre as populações nacionais. ■ Mario José de Lima é professor de Economia da PUC. Artigo publicado originalmente pelo Correio da Cidadania – www.correiocidadania.com.br – e por www.ecodebate.com.br em 31/05/2008. Cidadania&MeioAmbiente 35 36 Cidadania&MeioAmbiente 37 SEGURANÇAHÍDRICA 38 D urante milênios, a água foi bem comum e direito fundamental até que o modelo consumista e predador da civilização contemporânea decidiu que apenas os que podem pagar têm acesso à água. De bem comum a água tornou-se commodity e instrumento de domínio: quem controla nascentes e mananciais controla a vida! A privatização das fontes de água em escala mundial é uma questão crucial a pesar sobre o destino da humanidade. Os colossais interesses privados – com apoio explícito ou velado dos governantes de plantão – já se apropriam “legalmente” dos estoques de água via projetos estratégicos cristalizados em barragens, transposições duvidosas, redirecionamentos de bacias hidrográficas, construção de hidrovias, privatização de mananciais... Não bastasse a cobiça do “mercado”, as águas do planeta também são vítimas de degradação qualitativa via despejos de rejeitos não tratados que comprometem sua potabilidade. A insegurança hídrica é uma realidade: 1,2 bilhão de indivíduos não tem água de qualidade para beber e 2,5 bilhões são desprovidos de saneamento básico. Neste século de hidronegócio e de água virtual, a seiva da vida também alimenta a indústria da corrupção e da guerra: grande parte dos conflitos políticos e sociais no futuro próximo deixará de ter como causa o petróleo e será provocado pelas disputas em torno da água doce. É tempo de se dar um basta à exclusão hídrica. A água tem de voltar a ser de todos. Henrique Cortez A QUESTÃO DOS AQÜÍFEROS TRANSFRONTEIRIÇOS por Henrique Cortez O s subterrâneos podem conter até 100 vezes o volume de água doce encontrada na superfície da Terra. Mas eles têm sido negligenciados no âmbito do direito internacional, apesar da sua importância ambiental, social, econômica e, evidentemente, pela sua importância estratégica. A Assembléia Geral da ONU recebeu, em 27 de outubro de 2008, o projeto de um novo tratado internacional para salvaguardar essas enormes reservas de águas subterrâneas compartilhadas por mais de um país. O projeto de convenção sobre aqüíferos transfronteiriços aplica-se a 96% dos estoques de água doce do planeta, em aqüíferos subterrâneos, a maioria dos quais ultrapassam as fronteiras nacionais. Muitos aqüíferos compartilhados estão sob ameaças ambientais em razão de mudanças climáticas, crescente pressão demográfica, exploração excessiva, poluição da água e esgotamento de reservas “fósseis”. O projeto de tratado exige que os estados não prejudiquem os aqüíferos existentes e cooperem para prevenir e controlar a poluição. Preparado ao longo dos últimos seis anos pela Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, com a assistência de peritos do Programa Hidrológico Internacional da UNESCO, o tratado tem por objetivo preencher uma lacuna nos tratados internacionais. Para acompanhar o projeto de tratado, a UNESCO publicou o primeiro mapa-múndi dos aqüíferos compartilhados (ao alto). O mapa mostra os locais dos aqüíferos e fornece informações básicas sobre a qualidade da água e sua taxa de reposição pela precipitação. Os mapas foram desenvolvidos pelo WHYMAP (World-wide Hydrogeological Mapping and Assessment Programme), a partir de 1999, para coletar e consolidar informações hidrogeológicas em escala global. Até agora, o inventário inclui 273 aqüíferos compartilhados: 68 estão nas Américas, 38 na África, 65 na Europa de Leste, 90 na Europa Ocidental e 12 na Ásia. O crescimento da demanda de água, desde 1950, tem sido crescentemente atendido pela utilização dos recursos subterrâneos. Globalmente, 65 % da água são utilizados na irrigação, 25 % no abastecimento de água potável e 10 % na indústria. Os aqüíferos subterrâneos são responsáveis por mais de 70 por cento da água utilizada na União Européia, e, muitas vezes, são a única fonte de abastecimento em regiões áridas e semi-áridas. Aqüíferos fornecem 100 % da água utilizada na Arábia Saudita, 95% em Malta e Tunísia, e 75 % no Marrocos. Os sistemas de irrigação, em muitos países dependem em grande parte dos recursos de águas subterrâneas: a Líbia em 90 %, 89 % na Índia, 84 % na África do Sul e 80 % em Espanha. Um dos maiores aqüíferos do mundo é o Aqüífero Guarani, com mais de 1,2 milhões de quilômetros quadrados, compartilhado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Um dos problemas mais críticos está no fato de que muitos aqüíferos não são recarregados de forma regular pelas chuvas. No norte da África e na Península Arábica eles foram formados há mais de 10.000 anos, quando o clima era mais úmido e, atualmente, já não recebem recarga pluvial. Em outras regiões, mesmo os aqüíferos renováveis estão ameaçados pela sobre-exploração ou poluição. Nas pequenas ilhas e zonas costeiras do Mediterrâneo, as águas subterrâneas são utilizadas em velocidade superior à alimentação pelas chuvas, reduzindo os volumes estocados nos aqüíferos. Os aqüíferos na África – alguns dentre os maiores do mundo – estão ainda sub-explorados, mas a agência da ONU informa que “eles têm um potencial considerável, desde que os seus recursos sejam geridos e utilizados de forma sustentável.” Uma vez que os aqüíferos geralmente se estendem por várias fronteiras nacionais, a utilização sustentável dos aqüíferos africanos depende de acordos e mecanismos de gestão compartilhada, que são necessários para prevenir a poluição ou a exploração excessiva. Já na década de 1990, Chade, Egito, Líbia e Sudão estabeleceram uma autoridade comum para gerir o sistema aqüífero Nubian. No projeto relativo ao aqüífero Iullemeden, que se estende ao longo de 500 mil quilômetros quadrados no semi-árido e na savana tropical do oeste da África, Níger, Nigéria e Mali aprovaram, em princípio, um mecanismo consultivo para a gestão do aqüífero. A UNESCO diz que esses mecanismos ainda são raros, mas o novo tratado internacional, aprovado no âmbito da ONU, pode incentivar a sua constituição. ■ Henrique Cortez com informações da UNESCO. Para visualizar os mapas disponíveis, acessar www.whymap.org – Publicado em EcoDebate (27/10/2008). Cidadania&MeioAmbiente 39 RIO SÃO FRANCISCO QUESTÕES TÉCNICAS DA TRANSPOSIÇÃO Represa Arnaldo Ribeiro Gonçalves, RN, com capacidade de 2,4 bilhões de m3,em outubro de 2003, quase seco pela evaporação e sobreexploração. A análise dos fatores geológico, populacional, hídrico, econômico e político exige urgente reflexão, antes de se iniciar este ambicioso projeto. por João Suassuna . fotos: Henrique Cortez E ngrossando as fileiras de retirantes da seca, o presidente Lula, ainda muito jovem, dirigiu-se a São Paulo, onde se estabeleceu no ramo da metalurgia, que o obrigou a afastar-se definiti vamente de seu torrão natal. Evidentemen-te, por abraçar esse novo desafio em sua vida, o presidente distanciou-se das questões ambientais do Nordeste seco, a ponto de não vislumbrar ou mesmo não ter idéia formada sobre as conseqüências delas advindas, quando das tomadas de decisões em projetos envolvendo assuntos relacionados ao ambiente natural da sua região. Isso ficou muito claro nas decisões tomadas no projeto de Integração da Bacia do rio São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional, mais conhecido hoje como Transposição do rio São Francisco. O FATOR GEOLÓGICO Vários são os pontos sobre os quais recaem esses nossos argumentos, a começar pela construção dos 700km de canais a serem abertos em plena caatinga nordestina, localizados em geologia cristalina, portanto nos piores solos da região. Nesse tipo de geologia, os solos são rasos e pedregosos, nos quais a rocha que os originam está praticamente à superfície, chegando a aflorar em alguns pontos. Isso significa que a construção de canais em tal situação (os canais terão 25m de largura, 5m de profundidade e 700km de extensão) volta e meia encontrará rochas em seu traçado, o que demandará, em muitos casos, o uso de explosivos para a desobstrução de seu caminho, dificultando e atrasando o cronograma de execução da obra. Partindo-se da premissa de que, nessas condições, é possível a execução de 100m de canais por dia – difícil de ser alcançado devido às dificuldades já relatadas –, seriam necessários cerca de 7 mil dias para concluir os 700km de canais, correspondendo a mais de 17 anos para execução das obras. Portanto, não procede a informação das autoridades responsáveis pelo projeto de que as águas do São Francisco já estarão disponíveis à população dos estados receptores no Natal do ano de 2006. 40 O FATOR POPULACIONAL Outra questão a ser comentada diz respeito ao número de pessoas que serão atendidas pelo projeto. Segundo as autoridades serão abastecidas 12 milhões de pessoas no semi-árido nordestino. Ora, os estados receptores das águas do rio São Francisco (Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba) possuem uma população de 13,5 milhões de habitantes. Excluídos desse total o contingente populacional já atendido pelo abastecimento d´água nas grandes capitais e nos principais centros urbanos desses três estados, o número de pessoas cai para 9,5 milhões. A pergunta que não quer calar é a seguinte: onde estão esses 12 milhões de habitantes que serão atendidos pelo projeto? As dimensões dos canais já citadas anteriormente e a constante movimentação da água no seu interior irão facilitar sobremaneira as perdas da água por evaporação. Além do mais, existem as perdas ditas casuais, que são aquelas motivadas pelo furto da água. Isso será uma realidade, principalmente em comunidades próximas aos canais, as quais, em anos secos, buscarão o abastecimento de qualquer forma, facilitadas que serão pela ausência ou incapacidade da ação de órgãos fiscalizadores na região. Certamente, os volumes de água calculados para o abastecimento dos estados receptores do projeto terão que ser revistos, diante das perdas que serão inevitáveis e não previstas, pelo menos com a exatidão exigida em um projeto dessa magnitude. O FATOR APTIDÃO DO SOLO Nesse sentido, preocupanos, também, a informação de que Sua Excelência pretende desapropriar 2,5km de terras, em ambos os lados dos canais, ao longo de seus 700km, beneficiando uma área de 350 mil ha de terras, para o desenvolvimento da agricultura familiar regional. Sem tirar o mérito e a importância de se apoiar a agricultura nordestina, cabe-nos um alerta ao senhor presidente: com a inexistência de estudos de aptidão de solos nesses locais, fica difícil a obtenção de êxito no empreendimento. Esses solos, de péssima qualidade (geologia cristalina), não se prestam para o uso em atividades irrigacionistas. Pretender dar apoio à agricultura familiar nessas condições edáficas, com o uso irrestrito das águas do Velho Chico, irá resultar em riscos previsíveis, com conseqüências incalculáveis. O FATOR EVAPORIMÉTRICO Outro assunto que merece ser citado diz respeito ao exagerado índice evaporimétrico existente na região por onde irão passar os canais (estimase na região semi-árida um potencial evaporimétrico da ordem de 2.000mm ao ano), o que resultará numa evaporação exacerbada das águas que irão ser transpostas. ▲ Caicó, RN. Sem acesso à água não há cidadania. ▼ Represamento clandestino em afluente do rio Piranhas-Açu, PB. Esses solos, de péssima “ qualidade (geologia cristalina), não se prestam para o uso em atividades irrigacionistas. ” O FATOR VOLUMÉTRICO Outro aspecto importante a ser mencionado é a insuficiência volumétrica do rio São Francisco para o atendimento das necessidades do projeto. Segundo avaliação técnica realizada no Recife pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, o rio São Francisco já não possui vazões suficientes para esse atendimento. O rio é detentor de uma vazão alocável de apenas 360m³/s, dos quais 335m³/s já foram outorgados (desse volume estão sendo efetivamente utilizados 91m³/s), ou seja, já há direito ao uso desses volumes. Portanto, o que resta no rio é um saldo de apenas 25m³/s para ser utilizado em um projeto cuja demanda média é de 65 m³/s, podendo chegar a uma demanda máxima de 127m³/s. As autoridades insistem em afirmar que a vazão de 25m³/s é irrisória (cerca de 1%) se comparada ao volume regularizado do rio em sua foz, de cerca de 1.850m³/s. Sobre essa questão, lembramos que os cálculos têm que ser feitos levando-se em consideração os volumes alocáveis do rio (os 360m³/s permitidos para fins consuntivos) e não a sua vazão regularizada na foz (os 1.850m³/s). Levando-se em consideração os volumes alocáveis e seus usos efetivos (360 – 91 = 269m³/s), os 65m³/s médios do projeto represenCidadania&MeioAmbiente 41 “ Os canais terão 25m de largura, 5m de profundidade e 700km de extensão. Seriam necessários cerca de 7 mil dias para concluir os 700km de canais, correspondendo a mais de 17 anos para execução das obras. ” 42 tam cerca de 25% e a vazão máxima, os 127m³/s, 47% dos volumes alocáveis, respectivamente. O FATOR CUSTO Outro ponto importante a ser considerado diz respeito ao custo da água do rio São Francisco posta nos estados receptores do projeto. Segundo informações existentes no EIA-RIMA (o relatório e o estudo de impactos ambientais do projeto), o m³ de água posto naqueles estados custará cerca de R$ 0,11. Esse valor é proibitivo para uso no agronegócio, principalmente em atividades irrigacionistas, se considerarmos o custo cobrado pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco – Codevasf, aos seus colonos, de R$ 0,023 o m³. Tudo leva a crer que para tornar viável o projeto, as autoridades irão valer-se dos subsídios cruzados, ou seja, as tarifas de águas dos grandes centros urbanos que não irão receber as águas do rio São Francisco deverão ser acrescidas para possibilitar o agronegócio. Nesse sentido, já foi divulgada na imprensa de Pernambuco a possibilidade de um aumento na tarifa da água da cidade do Recife – que não irá receber as águas do rio São Francisco – de cerca de 30% para a viabilização do projeto. Isso vai-se tornar uma realidade. PERNAMBUCO: O CANAL DO SERTÃO E O RAMAL DO AGRESTE Finalmente, é oportuno comentar a participação do Estado de Pernambuco no projeto de transposição. Em maio de 2005, conforme publicado pelo Diário de Pernambuco na edição do dia 12, o governo do estado encaminhou proposta ao Ministério da Integração para a sua participação no projeto, por entender que o estado não poderia servir apenas de passagem da água do Velho Chico, para beneficiar a Paraíba, o Rio Grande do Norte e o Ceará. Ocorre que, diante da atual crise política e, portanto, com o quadro de incertezas existente no país, o Ministério da Integração enviou carta ao governo de Pernambuco aceitando não só as propostas iniciais do estado, mas confirmando, também, aquelas já em andamento pelo governo Federal, ou seja, o Estado de Pernambuco irá ter um terceiro eixo Oeste (antigo Canal do Sertão) e as águas no eixo Leste, no chamado ramal do Agreste, chegarão até o município de Pesqueira, encarecendo o projeto dessa feita em cerca de R$1 bilhão. Esses assuntos foram tratados na edição do Diário de Pernambuco do dia 30 de julho do corrente ano. Ora, pelo fato de o governo federal ter, de uma hora para outra, atendido ao pleito de Pernambuco, entendemos esse fato como mera cena política. Segundo a nossa ótica, o governo está tentando capitalizar o apoio político do governador Jarbas Vasconcelos com um projeto que está fadado ao fracasso. Lembramos que inicialmente havia relutância do Ministério da Integração em apoiar as reivindicações de Pernambuco e agora, diante do quadro político vigente, o mesmo ministério decide beneficiar o projeto a todo custo, inclusive com um orçamento maior. Considerávamos, antes, que o principal empecilho era o custo, pois a substituição do eixo Norte pelo Canal do Sertão e a extensão do ramal do Agreste até Gravatá, como proposto inicialmente, iria onerar a obra em torno de 15% em um projeto orçado em R$ 4,5 bilhões. Agora, falam em um custo de cerca de R$ 1 bilhão. O governo federal não tem dinheiro para isso. Para piorar a situação, lembramos que a obra está embargada em suas atividades (não se pode retirar sequer uma pá de areia das margens do rio) pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, que manteve a liminar concedida pela Justiça Federal da Bahia, proibindo o início das obras por causa de pendências ambientais. O Tribunal de Contas da União – TCU também detectou possíveis irregularidades na licitação em curso. O custo total da obra de “transposição está orçado em R$ 4,5 bilhões. ” é ineficiente, “umaO projeto vez que terá um custo Numa forma de tirar o melhor proveito possível das duas passagens da água no território pernambucano, sugeriu que o eixo Norte do projeto fosse substituído pelo Canal do Sertão, alternativa que beneficiaria os melhores solos do estado (as autoridades pernambucanas estimam um benefício em uma área de cerca de 150 mil ha) e que o eixo Leste fosse acrescido de um ramal (ramal do Agreste) na altura do município de Arcoverde, para possibilitar a chegada da água ao município de Gravatá, na bacia do rio Ipojuca. elevado e não beneficiará a população carente. Naquela ocasião, a resposta do Ministério da Integração, diante do pleito pernambucano, não foi muito animadora (apesar de ter prometido analisar as mudanças solicitadas, sempre deu como pouco provável a sua incorporação no atual projeto), tendo em vista o encarecimento em até 15% (R$ 675 milhões) do custo total da obra orçada em R$ 4,5 bilhões. ” Não acreditamos que o presidente Lula estivesse sabendo desses detalhes da execução do projeto, principalmente diante dos condicionantes técnicos envolvendo o ambiente nordestino. Caso o projeto venha a ter sucesso futuro na sua condução, com a cassação das liminares impostas pelo STJ, esperamos que os recursos a serem liberados para Pernambuco não venham a faltar em outros setores importantes para o desenvolvimento do país, nem onerar ainda mais sua população já tão sacrificada. ■ João Suassuna - Engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. Cidadania&MeioAmbiente 43 do O SÉCULO HIDRONEGÓCIO $ Compreender o conceito de água virtual é vital para não se continuar a subsidiar o poder econômico e político de quem controla os estoques de água planetários. por Henrique Cortez A o que parece, diante das crescentes referências, está se consolidando no mercado mundial uma atividade cada vez mais poderosa – o hidronegócio. Na verdade, devemos compreender o hidronegócio a partir da definição do que seja água virtual – conceito utilizado para calcular a quantidade de água necessária para produzir um determinado bem, produto ou serviço. À primeira vista associa-se o hidronegócio ao tratamento e à distribuição de água, às engarrafadoras e outras atividades deste tipo. Mas ele é muito mais abrangente e complexo do que isto. A água virtual está presente em tudo que usamos e consumimos, porque é parte de todos os processos de produção, direta ou indiretamente. ÁGUA: contratualmente destinada à indústria de alumínio. Cerca de 41% do custo final do processamento do alumínio corresponde à energia elétrica e, no caso de Tucuruí, isto é significativo porque sua tarifa é pesadamente subsidiada. Preciosas informações sobre o impacto da água virtual no âmbito econômico- social mundial visite www. wateryear 2003.org - o site oficial do Ano Internacional da Água Doce 2003. O volume de água exportado pelo agronegócio é mais do que significativo, mas a água virtual também tem peso em outros setores. No Brasil, nossa geração de energia elétrica é essencialmente hidrelétrica, o que faz a água ser componente de tudo que demanda energia elétrica. Isto é muito claro na indústria eletrointensiva (alumínio, siderurgia, ferroligas, celulose e petroquímica). É por isto que o Japão chegou a produzir 1,1 milhão de toneladas de alumínio por ano e baixou a produção para apenas 41 mil toneladas/ano, passando a importar o restante. Neste caso, a indústria eletrointensiva é ‘’competitiva’’ porque, como todas as exportações de bens primários de baixo valor agregado, soma mão-deobra barata, benefícios fiscais, energia elétrica subsidiada e gigantescas quantidades de água virtual. ELETROINTENSIVA O CONTROLE DA ÁGUA: ONTEM E HOJE MOTOR DA INDÚSTRIA Na prática, a água virtual é o produto do hidronegócio e o agronegócio é o seu principal consumidor. O aparente sucesso do agronegócio nacional, também significa que somos, crescentemente, grandes exportadores de água. E isto interessa a diversos países que consideram sustentável subsidiar seus agricultores, poupan- 44 do escassos recursos hídricos ao importar carne e grãos de países do terceiro mundo. Isto pode ser demonstrado em interessante artigo da engenheira Vânia Rodrigues, disponível em http://www. aesabesp.com.br/artigos_agua_virtual. htm. Dados do Ministério de Minas e Energia demonstram que 408 indústrias eletrointensivas consomem 28,8% de toda a energia elétrica produzida no país, o que a faz, ao mesmo tempo, massiva exportadora de energia elétrica e água. Enquanto isso, o hidronegócio – discreta e silenciosamente – trabalha pelo controle do acesso à água. O açude controlado pelo coronelismo é algo da pré-história do hidronegócio, porque era muito mais uma questão de política paroquial do que de negócio. Vejamos um exemplo prático. Metade da energia elétrica produzida em Tucuruí é O semi-árido brasileiro já possui uma impressionante rede de reservatórios, açudes Esta é a lógica do hidronegócio, que será cada vez mais concentrador do acesso à água na medida em que a disponibilidade hídrica for mais escassa. Quanto menor for a disponibilidade hídrica em um país ou região, maior o valor agregado aos bens e produtos em razão do preço da água virtual. A partir do controle dos reservatórios e açudes cresce a tendência de buscar, como negócio, o controle de toda a água disponível. Logo, quem controlar uma nascente ou um manancial também controla toda a bacia e, por conseqüência, impõe seu poder de negociação em toda a água virtual incorporada à produção da região. Nos novos projetos de hidrelétricas já existe a concepção de que a água estocada no reservatório é um negócio em paralelo à própria geração de energia elétrica. Quanto mais degradadas estiverem as bacias hidrográficas, maior será o valor da água estocada nos reservatórios. No caso do aqüífero Guarani não é diferente porque, independente de sua vasta área, ele possui poucas áreas de recarga e afloramento. E, neste sentido, ter a propriedade das áreas de afloramento também equivale a ter a propriedade do aqüífero. Se não compreendermos a importância de implementar as políticas públicas de proteção aos mananciais e ao acesso à água, estaremos subsidiando o poder econômico e político de quem controlar os estoques de água. Em escala global basta destacar que em 2030 nosso planeta estará com 8 bilhões de habitantes, o que equivale a um consumo de água 55% maior do que em 2000. O século 21 será o século da escassez de água e, por isto, o hidronegócio chegou para ficar. Se não formos atentos, este será ■ o século do hidronegócio. Henrique Cortez – Ambientalista, coordenador do portal EcoDebate e subeditor da Cidadania & Meio Ambiente. E-mail: [email protected] ©Brocheur67 e adutoras. No entanto, a maior parte da população continua sem acesso à água, majoritariamente destinada à agricultura de exportação. Este é um processo que se repete em boa parte dos países do terceiro mundo, fato que não é mera coincidência. ÁGUA VIRTUAL: PARA SABER MAIS O conceito de água virtual foi introduzido em 1993 por Tony Allan(1). Ele expôs essa idéia durante quase uma década para obter o reconhecimento para a importância do tema, que envolve disciplinas de meio ambiente, engenharia de alimentos, engenharia de produção agrícola, comércio internacional, entre tantas outras áreas que se relacionam com a água. Dados recentes da UNESCO(2) dão conta de que o comércio global movimenta um volume anual de água virtual da ordem de 1.000 a 1.340km³, sendo: • 67 % relacionados com o comércio de produtos agrícolas; • 23 % relacionados com o comércio de produtos animais; • 10 % relacionados com produtos industriais. No 3º Fórum Mundial da Água realizado em 2003, nas cidades de Kyoto, Shiga e Osaka, o Brasil foi citado como o 10º exportador de água virtual (atrás de Estados Unidos, Canadá, Tailândia, Argentina, Índia, Austrália, Vietnã, França e Guatemala). Os maiores importadores são Sri Lanka, Japão, Holanda, Coréia, China, Indonésia, Espanha, Egito, Alemanha e Itália. É interessante notar na figura os fluxos de água virtual no planeta. FLUXO DA ÁGUA VIRTUAL NOS CEREAIS (3) Como regra geral, uma plantação de cereal transpira cerca de 1m3 de água para produzir 1kg de cereal. Deste modo, a importação (ou exportação) de 1kg de grão equivale aproximadamente a importar (ou exportar) 1m3 de água. Esse fluxo de água contido nas commodities tem grande relevância para o estresse e rarefação hídricos, e para a segurança alimentar, já que reduz a necessidade do uso da água na produção de alimentos dos países importadores, enquanto aumenta o consumo de água dos países exportadores. Atualmente, os cereais compreendem a maior parte do comércio de produtos agrícolas, fato que permite uma boa indicação do fluxo geral da água virtual mundial neste setor. Visual Water Flows (crop evapotranspiration equivalent in cubic kilometers) <-15 Imports -15 to -5 -5 to 0 0 to 5 Exports -5 to 15 >15 Not extimated REFERÊNCIAS (1) Zimmer, D. Renault, D. Virtual Water in Food production and Global Trade. World Water Council, FAO_AGLW, 2003. (2) World Water Council. Virtual Water Trade Conscious Choices. Synthesis E-mail conference on Virtual water trade and Geo-politics. Paul van Hofwegen. December 2003. (3) Watersheds of the World: Global Maps. http://www.iucn.org/themes/wani/eatlas/html/gm19.html Cidadania&MeioAmbiente 45 ÁGUA A QUESTÃO NA AMÉRICA LATINA De bem abundante e sem valor, a água tornou-se ouro azul, escassa, dotada de valor econômico, objeto de cobiça e fator de guerras entre as nações. Descubra o que ameaça este “bem público, direito humano e patrimônio de todos os seres vivos”. por Roberto Malvezzi . foto: Carlos Terrana ÁGUA: BEM PÚBLICO OU MERCADORIA? Estamos em meio a uma profunda crise civilizatória. O modelo civilizatório ocidental, alicerçado na exploração de seres humanos por outros seres humanos e na intensa exploração da natureza por uma restrita elite mundial, já não tem mais sustentação. Dos seis bilhões de pessoas que habitam a face do planeta, apenas 1,7 bilhão pertence ao modo consumista e predador da civilização contemporânea. Para sustentar os caprichos dessa elite mundial são necessários 1,5 planeta Terra para al- 46 guns, ou até seis para outros. Essa elite não está apenas no primeiro mundo, mas também tem seus nichos no segundo, terceiro e quarto mundos. Estender esse modelo de produção e consumo a todos os seres humanos é impossível, pelos próprios limites desses bens em nosso planeta. Para sustentar esse modelo o maior tempo possível para uma elite restrita é preciso restringir o acesso dos demais a esses bens. O melhor mecanismo para selecionar os incluídos do modelo é aplicar as regras do mercado a todas as dimensões da existência. Quem puder comprar entra. Quem não puder está posto de fora. A consciência dos limites do planeta começou surgir a partir da década de 1960, mas aprofundou-se na década de 1970 e generalizou-se a partir da década de 1980. A Cúpula Mundial do Meio Ambiente, no Rio de Janeiro, consagrou a questão ambiental como fundamental para o destino da humanidade e do planeta Terra. Coincide com a tomada de consciência dos limites do planeta e implantação mundial do neoliberalismo. Não foi por acaso. A elite mundial percebeu os limi- tes do planeta e que seu modus vivendi não poderia jamais ser estendido a toda a humanidade. Então criou um mecanismo para estabelecer um “limite natural” aos que têm acesso aos bens e os que jamais o terão, isto é, aprofundou e tenta estender para todas as dimensões da vida as regras do mercado. Assim, através das regras do mercado, a elite mundial reservou para si os bens que antes também tinha destinação universal. Entre eles está a água. A regra número um do mercado é transformar todos os bens em mercadoria. Nesse sentido, o mundo passa atualmente pela disputa dos últimos bens da natureza que ainda não foram privatizados. São muito poucos: restavam ainda a própria vida, água, sol e ar. A vida está sendo privatizada através do patenteamento de sementes, princípios ativos de plantas e pelo avanço da ciência na própria genética humana. O sol e o ar ainda não descobriram mecanismos de privatização. Mas a privatização dos solos, da água e da biodiversidade segue a passos largos em todo o planeta. A QUESTÃO DA ÁGUA A privatização da água não se dá ao acaso, ou de forma dispersa. Ela passa pela elaboração de grandes estratégias, mapeando a abundância da água nas regiões do planeta e construindo planos que, a longo prazo, permitam a apropriação privada desse bem em escala mundial. Vamos citar aqui, rapidamente, os planos que existem, desde o Canadá até o sul do continente latino-americano, para termos uma idéia mínima do que está sendo estrategicamente pensado. Por trás desses planos estão sempre grandes empresas transnacionais, a intermediação dos organismos multilaterais como Bird, Banco Mundial e FMI, sempre em articulação com os governos e elites locais dispostos a transferir o patrimônio público para empresas privadas. Normalmente, esses planos visam investimentos em infra-estrutura. Posteriormente, pelos tratados de livre comércio, seja em nível continental como a Alca, ou tratados bilaterais (os TLCs – Tratados de Livre Comércio), essas infra-estruturas acabam privatizadas (ver quadro Planos e Estratégias de Privatização de Bens Nacionais). PLANOS E ESTRATÉGIAS DE PRIVATIZAÇÃO DE BENS NACIONAIS PLANO “PUEBLA PANAMÁ” NA AMÉRICA CENTRAL O plano é um conjunto de grandes projetos de investimento em infraestrutura, transporte, comunicações, energia, turismo e outras obras em países da América Central e nos estados do sul do México. Abrange Puebla, Veracruz, Guerrero, Oaxaca, Chiapas, Tabasco, Campeche, Yucatán, Quintana Rôo, Belize, Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica e Panamá. Vai desde Puebla, México, até o Panamá. Através de ferrovias, rodovias, portos, comunicações e uma rede elétrica que permita interligar e explorar o potencial hidroelétrico de toda região, puxando energia na direção do norte. Fundamentalmente visa facilitar o acesso aos bens naturais da região, criar facilidades para escoamento dos produtos do México e Estados Unidos, controlar os guerrilheiros da região e controlar as migrações. Um dos objetos principais de cobiça é a água. Só o estado de Chiapas, com forte presença da guerrilha, contém 40% de toda água doce do México. Mas a América Central é toda rica em água doce. Uma série de empresas transnacionais, interessadas nessa água, tem se instalado na região, principalmente cervejarias, inclusive a Ambev, com uma fábrica na Guatemala e outra na República Dominicana. ■ Há, ainda, um potencial hidroelétrico fantástico. Só no México está prevista a construção de 25 novas barragens, o que poderá remover cerca de oito milhões de indígenas dos 10 milhões que habitam essas regiões1 . ■ IIRSA (INICIATIVA PARA A INTEGRAÇÃO DA INFRA-ESTRUTURA REGIONAL DA AMÉRICA DO SUL) Por hora, é mais uma concepção estratégica que uma realidade. Também se planeja corredores industriais, hidrovias, rodovias que conectem os lugares mais recônditos de toda a América Latina, inclusive a região amazônica, onde estariam 20% de toda água doce do mundo. ■ Mas não é apenas a Amazônia que é rica em água doce. Toda bacia do Prata também é rica em água doce, considerada a segunda do mundo, logo depois da Amazônica. É nessa região também que está o Aqüífero Guarani, um mar subterrâneo de água doce. Os principais interessados são as empresas engarrafadoras de água e as fabricantes de bebidas que demandam muita água. ■ No Brasil, dispensa comentários o plano estratégico no Estado Brasileiro para a construção de barragens. É também do conhecimento comum que, hoje, a construção de barragens foi repassada para as empresas privadas, o que tem acarretado mais problemas para os atingidos por barragens, que agora têm que negociar com particulares e não mais com o governo. ■ NAWAPA (NORTH AMERICAN WATER AND POWER ALLIANCE) Esse é um plano dos americanos do Norte. Pretende desviar vastos recursos de água do Alasca e do Oeste do Canadá para os Estados Unidos. Esse é o plano de infra-estrutura. O plano de livre comércio da região é o Nafta. Já existem problemas sérios na exploração das águas canadenses pelos Estados Unidos. ■ Nos dias atuais, quando toda riqueza natural do planeta já está mapeada, os colossais interesses privados não têm dificuldades de armar suas estratégias. Quando se trata da disponibilidade de solos, água doce e biodiversidade, as Américas, principalmente a Central e do Sul, estão necessariamente incluídas em qualquer grande estratégia, exatamente pela abundância que possuem desses bens imprescindíveis para o futuro da humanidade e da vida no planeta. ■ 1 Equipo Maiz: “La Plaga Para la Gente Pobre/el Plan Puebla Panamá“. El Salvador, 2003. Cidadania&MeioAmbiente 47 ÁGUA: DE BEM ABUNDANTE A BEM ESCASSO O discurso sobre a água mudou rapidamente nos últimos anos. O bem abundante e sem valor, “insípido, inodoro e incolor”, rapidamente tornou-se “ouro azul, escasso, dotado de valor econômico, objeto de cobiça, fator de guerras entre as nações”. Esse discurso não é ingênuo, e exige um difícil discernimento para distinguir o que é realidade e o que são os interesses daqueles que o produzem. Em primeiro lugar, é necessária a distinção entre água e recursos hídricos. Água é um bem da natureza que está no planeta há bilhões de anos. É o ambiente onde surgiu a vida e componente de cada ser vivo. Por isso, o supremo valor da água é o biológico. Recurso hídrico é a parcela da água usada pelos seres humanos para alguma atividade, principalmente econômica. Portanto, água é um conceito muito mais amplo que recurso hídrico, embora sejam indissociáveis. A questão é que o uso da água, hoje, é muito mais intenso que em algumas décadas atrás. Hoje, a média mundial é que da água doce utilizada, 70% destinam-se para agricultura, 20% para indústria e 10% para o consumo humano. Esse uso intenso da água, principalmente na agricultura e na indústria, ocorre num ritmo mais acelerado que a reposição feita pelo ciclo natural das águas. Dessa forma, muitos mananciais estão sendo eliminados pelo sobreuso que deles se faz. Pior, ao devolver a água para seu ciclo natural, ela vem contaminada pelos agrotóxicos da agricultura e pela química da indústria. A falta de saneamento ambiental, sobretudo em países pobres, colabora para a contaminação dos mananciais. Em conseqüência, hoje, no planeta, segundo a ONU, 1,2 bilhão de pessoas não tem acesso à água potável e 2,4 bilhões não têm acesso ao saneamento. O impacto na saúde humana e no meio ambiente é uma tragédia. Portanto, a chamada “crise da água” é de quantidade e qualidade, não por razões naturais, mas pelo uso irresponsável que o ser humano dela faz. Agrava-se ainda mais essa situação quando a ambição, visando usos futuros privados da água, também a privatiza. A escassez produzida então passa a ser quantitativa, ou qualitativa, ou social, ou em todos esses níveis simultaneamente. 48 O crescimento populacional ajuda agravar a situação. Nesse sentido, a crise da água é progressiva. A posição da ONU é clara: ou se muda o modo de gestão das águas ou essa será a pior crise que a humanidade já enfrentou em sua história sobre o planeta. O USO MÚLTIPLO DA ÁGUA O conceito de escassez, introduzido como fundamento econômico pelos neoclássicos, agora também é aplicado na questão da água. Para esses pensadores, um produto tem mais valor econômico quanto mais escasso ele for. Por conseqüência, aplicar o conceito de escassez à água tem uma clara conotação ideológica dos princípios liberais dos neoclássicos. Entretanto, no tocante à água, sua escassez quantitativa e qualitativa não é uma questão natural, mas produzida pela mão humana. Portanto, pode ser evitada. A própria ONU afirma que a crise da água é mais uma questão de gerenciamento que de escassez. Um dos argumentos utilizados para justificar a escassez da água é que 97,6% das águas do planeta são salgados e apenas 2,4% são água doce. O quadro Distribuição Planetária das Águas, abaixo, nos dá uma visão detalhada da distribuição da água no planeta. Sem dúvida, a chave da questão está no intenso uso agrícola e industrial da água. A água ainda é usada para navegação, pesca, geração de energia elétrica, uso doméstico em geral, além de outros. É o chamado “uso múltiplo da água”. Porém, quando se constata que 70% em média vão para a agricultura, é preciso se perguntar que agricultura é essa que consome água em tamanhas proporções que chega a desequilibrar o próprio ciclo das águas. Será uma agricultura de primeira necessidade, ou uma que visa produzir permanentemente bens que, na verdade, são sazonais, consumidos por uma DISTRIBUIÇÃO PLANETÁRIA DAS ÁGUAS2 restrita elite mundiVOLUME al? Essa resposta é LOCALIZAÇÃO % RENOVAÇÃO (1.000km3) variada e depende Oceanos 1.464.000 97,6 37.000 anos de país para país. Na Ásia, a produção de arroz é um bem fundamental. No Brasil, na região do Vale do São Francisco, a água é usada para produção de frutas para exportação, ou até mesmo para irrigar cana para produção de álcool e açúcar. O etanol, que move carros no Brasil e na Europa, pode ser visto como um combustível limpo, desde que não se perceba a água embutida em sua produção. O projeto de transposição do rio São Francisco para o Nordeste Setentrional visa, sobretudo, a produção de camarões em cativeiro e a fruticultura irrigada. Massas Polares Rochas Sedimentares Lagos 31.290 4.371 2,086 291 16.000 anos 300 anos 255 0,017 1 a 1000 anos Solo e Subsolo 67 0,004 280 dias Atmosfera 15 0,001 9 dias Rios 1,5 0,0001 6 a 20 dias DISPONIBILIDADE DE ÁGUA SEGUNDO CLASSIFICAÇÃO DA ONU (1997)3 Estresse de água inferior a 1.000m3/hab/ano Regular 1.000 a 2.000m3/hab/ano Suficiente 2.000 a 10.000m3/hab/ano Rico 10.000 a 100.000m3/hab/ano Muito rico mais de 100.000m3/hab/ano Entretanto, a natureza é sábia e até poucas décadas atrás nunca faltou água para nenhuma forma de vida, sejam aquelas que dependem da água salgada, sejam as que dependem da água doce. Mais uma vez, o problema não é da natureza, mas da ação humana sobre ela. A água é um bem natural renovável, e o ciclo das águas, desde que respeitado em seu ritmo, repõe os mesmos volumes de água doce e salgada há muitos milhões de anos. A crise da água, portanto, tem que ser focada na sua questão-chave, isto é, o modo como o ser humano vem gerenciando a parcela de água que utiliza. Certamente um novo gerenciamento imporá limites ao desperdício e ao luxo. Vale ressaltar que o Banco Mundial tem outro padrão para o estresse, isto é, abaixo de 2.000m³ por pessoa por ano para todos os usos. Entretanto, especialistas acham que essa referência baseada no padrão de consumo dos Estados Unidos é insustentável. Portanto, é lógica a opção para trabalhar com os padrões da ONU. água é um bem natural renovável, “e oAciclo das águas, desde que respeitado em seu ritmo, repõe os mesmos volumes de água doce e salgada há muitos milhões de anos. ” PRECIPITAÇÃO NOS CONTINENTES6 REGIÃO Precipitação mm/ano km³ Evapotranspiração mm/ano km³/ ano Excedente mm/ano km3/ ano Europa 700 8,290 507 5,230 283 2,970 Ásia 740 32,200 416 18,100 324 14,100 África 740 22,300 587 17,700 153 4,600 América do Norte 756 18,300 418 10,100 339 8,180 América do Sul 1.600 28,400 910 16,200 685 12,200 Austrália e Oceania 791 7,080 511 4,570 280 2,510 Antártica 165 2,310 0 165 2,310 Totais 800 119,000 72,00 315 47,000 0 485 A ÁGUA NA AMÉRICA LATINA Há um detalhe nessa reflexão. Mesmo havendo água suficiente para todas as formas de vida, desde que gerenciadas com sustentabilidade, há distribuição desigual da água doce sobre o planeta. Os países mais pobres de água sofrem com sua escassez particular. Na outra ponta, continentes inteiros, dentro deles alguns países, têm abundância de água doce. É o caso do continente latino-americano, particularmente alguns países. Para exemplificar, o Peru é um país que está situado no parâmetro de “suficiente”. Hoje, sua disponibilidade per capta de água é de aproximadamente 1.790m³ por ano. Entretanto, a projeção é que no ano de 2025 sua disponibilidade caia para 980m³ por pessoa por ano. Deixaria de estar na faixa de suficiente para a situação de estresse4 . Já países como Brasil, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Argentina e Chile situam-se no parâmetro de países “ricos”, isto é, têm entre 10.000 e 100.000.000 m³/pessoa/ano. Já a Guiana Francesa situa-se na faixa dos “muito ricos”, isto é, acima de 100.000m³/ pessoa/ano. Além disso, o continente sul-americano é privilegiado no regime das chuvas. A in- NOSSOS VOLUME DE ÁGUAS PAÍS Kuwait Malta Qatar Gaza Bahamas Arábia Saudita Líbia Bahrein Jordânia Cingapura Disponibilidade m³/hab./ano Praticamente nula 40 54 59 75 105 111 185 185 211 Texto Base “Água, Fonte de Vida”5 tensa precipitação de águas meteóricas sobre o continente, mesmo com intensa média de evaporação, produz um grande excedente hídrico. Mais uma vez é necessário considerar os detalhes dentro do continente e dos países. Por exemplo, em Lima, no Peru, nunca chove. Entretanto, as águas que descem dos Andes abastecem a capital peruana. Basta compararmos o volume de nossas águas com países onde realmente ela é escassa (ver quadros Precipitação nos Continentes e Volume de Águas - acima) para termos uma noção de nossa abundância. RIOS TAMBÉM SÃO ABUNDANTES7 As bacias hidrográficas tornaram-se hoje a referência fundamental para a gestão das águas. Embora seja um modelo francês, ele tem pertinência. O Brasil, por exemplo, foi dividido em 12 grandes regiões hidrográficas, cada uma delas às vezes com várias bacias hidrográficas. A Lei Brasileira de Recursos Hídricos (9.433/97) concebe a gestão das águas a partir das bacias hidrográficas. Aqui estão as águas mais acessíveis ao ser humano para todos os usos. Os rios, inclusive, tornaramse o destino dos dejetos industriais, hospitalares, domésticos. O Brasil, que tem o maior volume de água doce do planeta e uma imensa malha de rios, tem 70% de seus rios poluídos. Portanto, prova que não basta abundância, é preciso um cuidado especial para se ter água em quantidade e qualidade. Aqui, mais uma vez, a América Latina aparece de forma destacada no cenário mundial. As duas maiores bacias hidrográficas do planeta estão em território latinoamericano, isto é, a Amazônica e a do Prata. São as duas maiores vazões hidrográficas da face da Terra. A vazão méCidadania&MeioAmbiente 49 o Aqüífero Guarani “temBemáguagerenciado, para abastecer indefinidamente 360 milhões de pessoas. Ou seja, a população de toda América Latina. ” dia da bacia Amazônica é de 212.000m³/s, enquanto a do Prata é de 42.400m³/s. O Brasil, com a água da Amazônia Internacional, detem 53% das águas da América do Sul e 13,8% do total mundial. Além de oferecer água doce em abundância, estas duas bacias hidrográficas integram os países latino-americanos. Se forem sabiamente manejadas e preservadas elas têm condições de garantir tranqüilamente o futuro de nossos povos. O AQÜÍFERO GUARANI A América Latina foi ainda abençoada com o maior lençol freático de água do planeta, com 1,2 milhão de km². Atinge sete estados brasileiros (Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, S. Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul) e parte da Argentina, Paraguai e Uruguai. Estende-se pelo Brasil (840.000km²), Paraguai (58.500km²), Uruguai (58.500km²) e Argentina, (255.000km²)8 . Tem água para abastecer 360 milhões de pessoas indefinidamente, desde que bem gerenciado. É a população de toda América Latina. Toda essa água, praticamente ainda inexplorada, é objeto de cobiça nacional e internacional. Somente agora há um esforço conjunto dos países banhados pelo Aqüífero Guarani para o estabelecimento de uma série de medidas que facilitem a gestão e preservação comum do manancial. Entretanto, a abundância de água do aqüífero também traz ambições. As grandes transnacionais da água já buscam colocar-se no espaço do aqüífero e reservar seu quinhão em vista do futuro. PANTANAIS E ALAGADOS Nosso continente tem ainda uma série de pantanais e de áreas alagadas, fundamentais para a dinâmica das águas e para a biodiversidade. O Pantanal Mato-grossense, que atinge também a Bolívia e o Paraguai, é um caso exemplar. Com uma fantástica bio- 50 diversidade animal e vegetal, situa-se no coração da América do Sul. Sua biodiversidade inclui mais de 650 espécies diferentes de aves, 262 espécies de peixes, 1.100 espécies de borboletas, 80 espécies de mamíferos e 50 de répteis. Além disso, o Pantanal conta com 1.700 espécies de plantas9 . É também uma área ambicionada por sua riqueza. A Igreja do Reverendo Moon comprou nessa região uma área de 10 milhões de hectares de terra. O tamanho da propriedade causou problemas no Brasil, onde por muita gente é considerada até uma questão de segurança nacional. Entretanto, as áreas alagadas da América Latina são muito mais amplas que o Pantanal Mato-grossense, como se pode verificar na pequena listagem do quadro Pantanais e Alagados de nosso continente. PANTANAIS E ALAGADOS DE NOSSO CONTINENTE 10 PAÍS Brasil Venezuela Chile Argentina Paraguai Bolívia México Nicarágua Colômbia Uruguai Total de áreas 38 29 49 57 5 18 40 17 36 12 LUTAS POPULARES PELA Extensão (hectares) 59.789.733 14.447.155 9.188.713 5.797.930 5.723.528 4.017.920 3.377.900 2.111.349 1.928.389 773.500 ÁGUA Como reação ao processo de privatização, mercantilização e degradação das águas surgiu a consciência do cuidado e da preservação da água como bem público, universal, patrimônio da humanidade e de todos os seres vivos. Essas articulações prosperam em todo o mundo, através de ONGs, defensores de direitos humanos, Igrejas e especialistas que têm uma visão ampla da água, não apenas mercantilista. No Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre, fortaleceu-se a “RED VIDA”, como uma articulação de entidades que lutam em defesa da água seguindo uma série de dez princípios, todos na direção da água como um bem público. Da parte das Igrejas e das entidades defensoras dos direitos humanos, cresce a consciência e a defesa da água como um direito humano. Porém, há resistências dos governos locais e das transnacionais da água. A tendência é admitir a água apenas como uma necessidade, não como o direito. É a mesma postura que se tem em relação ao direito humano à alimentação. Se a água for reconhecida como direito humano, assim como a alimentação, então é obrigação do estado perante seus cidadãos. Sob a direção dos verbos “proteger, promover e prover”, o Estado está obrigado a garantir a todos os seus cidadãos a alimentação e a água necessária para sua segurança hídrica. Portanto, muda a relação mercantil com os alimentos e a água que as transnacionais querem aplicar a esses bens fundamentais para a vida. Assim, as transnacionais da água estabelecem uma ruptura entre o direito natural e o direito positivo. O direito natural não é mais reconhecido automaticamente como um direito positivo e até é posto em subalternidade em relação a esse. Embora o reconhecimento da água como direito humano não garanta sua execução prática, é muito importante para a luta dos mais pobres. Importante também é a luta das Igrejas e das entidades dos direitos humanos para que a água seja definitivamente reconhecida como direito humano. Muitos esforços concretos existem em todo território latino-americano para que as populações mais pobres tenham acesso à água em quantidade, qualidade e regularidade. Cresce também o esforço para a água na produção de alimentos. Um exemplo é o que acontece no semi- PROBLEMAS CONTEMPORÂNEOS DA ÁGUA ■ O USO MÚLTIPLO DA ÁGUA – O grande problema da água está na equação mais justa de seu uso múltiplo. O padrão mundial adotado de se utilizar 70% da água doce em agricultura indica ser sem sustentação. O uso da água na agricultura precisará ser redefinido. Esse embate já existe, por exemplo, no Brasil. É correto usar a pouca água disponível no Nordeste brasileiro para irrigar cana de açúcar? É correto usar 80% da água do rio São Francisco, também no Nordeste brasileiro, para gerar energia, enquanto milhões de pessoas espalhadas pela região não têm um copo de água potável para beber? Portanto, o uso múltiplo da água exige critérios éticos, não apenas técnicos ou econômicos. Por isso, além de falarmos do “uso múltiplo” das águas, é necessário falar também de seus “valores múltiplos”. Portanto, é necessário falar do valor biológico, social e ambiental da água. Além desses, a água tem valor simbólico, religioso, cultural, paisagístico, turístico. A água ainda tem dimensões econômicas, políticas e de poder. Controlar a água é ter poder sobre os demais seres humanos e os demais seres vivos. ■ PRIVATIZAÇÃO E MERCANTILIZAÇÃO – Estes são os grandes desafios para a água no mundo contemporâneo. A estratégia das grandes multinacionais da água é transformá-la numa mercadoria comum. Entretanto, a água é um bem imprescindível e insubstituível. Nenhum ser vivo sobrevive sem água. Controlar a água é controlar a vida. Por isso, em nível mundial, também surgem resistências a toda tentativa de privatizar e mercantilizar a água. Na América Latina temos resistências na Bolívia, Argentina, Brasil, Peru, Chile, Uruguai e outros. Entretanto, na América Central os serviços de água já estão sendo privatizados. Há também privatização da água na Índia, Filipinas, países africanos e Europa. POLUIÇÃO – Outra questão fundamental é a degradação qualitativa das águas. A civilização humana fez dos rios seus caminhos, depois sua moradia, depois seu esgoto. Há vários rios, principalmente aqueles que cortam os grandes centros urbanos e agrícolas, praticamente imprestáveis em sua utilização para consumo humano. No Peru, a poluição vem principalmente das mineradoras ao longo dos rios que abastecem Lima. Os dados do saneamento dos países mais pobres são estarrecedores. O Brasil, por exemplo, tem 20% de sua população sem acesso à água potável, 50% de seus domicílios sem coleta de esgoto e 80% do esgoto coletado são jogados diretamente nos rios sem nenhum ■ árido brasileiro, onde oitocentas entidades estão articuladas para construir um milhão de cisternas para um milhão de famílias da região. Até hoje já foram construídas, aproximadamente, 150 mil. Embora esteja longe de alcançar seu objetivo, praticamente 900 mil pessoas hoje têm água de qualidade ao menos para beber. Sem esse tipo de iniciativa, deixando apenas para as iniciativas do Estado, essas famílias não teriam sua água para consumo garantida. Esse é o tipo de prática que contempla as necessidades dos mais deserdados, garantindo-lhes o acesso à água a qual têm direito. ■ tipo de tratamento. Isso faz com que 70% dos rios brasileiros estejam poluídos. Porém, há situações ainda piores, como é o caso do Haiti, onde mesmo em Porto Príncipe os esgotos correm a céu aberto pelo centro da cidade. A perda de qualidade das águas é um dos grandes dilemas da humanidade. Hoje se fala em contaminação fina, à base de hormônios, antibióticos e metais pesados. Normalmente esses elementos não são detectáveis nos tratamentos mais comuns das águas para consumo humano. Portanto, a qualidade da água consumida atualmente não oferece segurança total. No Brasil estima-se que 40% das águas das torneiras não têm potabilidade confiável. ■ DESFLORESTAMENTO DAS MATAS CILIARES – Há uma íntima corre- lação entre cobertura vegetal, armazenamento de água nos lençóis subterrâneos e a preservação dos mananciais de superfície. Onde há cobertura vegetal, a água das chuvas tende a infiltrar-se mais nos solos, elevando o nível dos lençóis subterrâneos. Onde a terra está nua, a tendência da água é escorrer para o leito dos rios, com pouco processo de infiltração. Além disso, a cobertura vegetal das margens dos rios – as matas ciliares – protege os leitos do assoreamento provocado por materiais sólidos carreados pelas enxurradas. Portanto, o processo contínuo de desflorestamento influi diretamente na disponibilidade hídrica dos mananciais de superfície e subterrâneos. OS “SEM ÁGUA” – A exclusão de grande parte da humanidade da “segurança hídrica” já é uma realidade mundial. Repetindo os dados iniciais, no mundo contemporâneo 1,2 bilhão de pessoas não tem água de qualidade para beber e 2,4 bilhões não têm acesso ao saneamento básico. Essa realidade, segundo a ONU, tende a se agravar com o crescimento da população mundial. Não é um problema de escassez, mas de cuidado, gerenciamento e justiça social. ■ ■ CARTÃO PRÉ-PAGO – Atualmente, em vários lugares do Brasil começa se instalar o “cartão pré-pago” de água, como na telefonia celular. Evidente que aí está uma flagrante violação do direito humano à água. As populações mais pobres não podem estar sujeitas a essas regras do mercado. Muitos pobres não têm como comprar sua água, mas como todo ser vivo têm direito a ela. O surgimento dos “sem-água” é uma das mais aberrantes tragédias que poderiam assolar a humanidade. Referências: 1 Equipo Maiz: “La Plaga Para la Gente Pobre / el Plan Puebla Panamá“. El Salvador, 2003. 2 Costa, Ayrton: Introdução à ECOLOGIA DAS ÁGUAS DOCES. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Imprensa Universitária. 1991. Pg. 5. 3 Rebouças, Aldo C. et alii. “Águas Doces no Brasil”. São Paulo. Escrituras Editora, 1999. Pg. 31 4 Idem, pg. 21. 5 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil|: “Água, Fonte de Vida”, pg. 48. Texto Base da Campanha da Fraternidade de 2004. 6 Aldo C. Rebouças, idem, pg. 12. 7 Idem, pg. 11. 8 www.ambiente.sp.gov.br/aquifero/principal_aquifero.htm 9 www.estadao.com.br/ext/ciencia/arquivo/pantanal/ 10 Aldo C. Rebouças, idem, pg. 24. Roberto Malvezzi (Gogó) – Membro da Coordenação Nacional da CPT/Brasil. Cidadania&MeioAmbiente 51 Foto: Water for People ÁGUA e CORRUPÇÃO uma questão de vida ou de morte por Charles Kenny Recurso sem substituto, a água é vital à saúde, à segurança alimentar, ao futuro energético e ao ecossistema. Mas a corrupção que corrói a administração desse recurso afeta diretamente a sobrevivência e a sustentabilidade de milhões de indivíduos, como revela este artigo extraído do Global Corruption Report 2008, Part one: Corruption in the water sector, publicado pela Transparency International (TI). 52 T odo o mundo precisa de água para viver. Mesmo assim, muitas casas, nos países em desenvolvimento, não têm acesso à água encanada – quer por estarem fora de alcance da rede de distribuição, quer pelo colapso do sistema. A solução é construir e manter os sistemas de distribuição de água. No entanto, até mesmo quando os não-fáceis fundos de custeio de tais obras tornam-se disponíveis, a corrupção cobra sua parte e distorce as decisões sobre a aplicação dos recursos, desperdiçaos e, ao cabo de tudo, ceifa vidas. Uma pesquisa da corrupção no fornecimento de água no Sul da Ásia sugere que os contratantes, freqüentemente, pagam subornos para abocanharem contratos, além da corrupção miúda que acontece nos pontos de entrega do serviço. O estudo, realizado entre 2001-2002, mostra que o custo da corrupção para as empresas e para o setor representa um fardo considerável, com perda de enormes recursos quando a conta final é tabulada. Os subornos variam, em média, de um a seis por cento dos valores de contrato. Propinas pagas durante a construção oneram os custos em mais 11% do valor do contrato. A formação de cartéis sancionados agrava o problema dos custos inflados, já que eles elevam os preços 15 a 20% a mais do que o praticado pelo mercado. Piora o quadro o fato de tais pagamentos impedirem as empresas de cumprirem as obrigações contratuais. As propinas tendem a mascarar um serviço de baixa qualidade e a não entregar os produtos com as características contratadas. O material não-fornecido é estimado em três a cinco por cento do valor do contrato.2 O custo econômico de cada dólar em material não-fornecido deve ser re-estimado em três a quatro dólares, pois implica na redução da vida útil e na capacidade de fornecimento da rede de distribuição. Esses custos somam outros 20% sobre os de contrato já inflacionados. Esse duplo impacto da corrupção sobre a construção de redes de água pode elevar o custo do acesso à água em 25 a 45%. E quais são os custos econômico-sociais dessa corrupção? A análise de dados de uma pesquisa em domicílios de 43 países em desenvolvimento sugere forte correlação entre o acesso à água e a mortalidade infantil. Para cada ponto percentual adicional de acesso doméstico, verifica-se uma redução na taxa de mortalidade infantil abaixo dos cinco anos: um declínio de uma morte para cada dois mil nascimentos.3 Pesquisas comparativas entre países revelam que o custo da instalação de água doméstica situa-se em redor de US$400.4 Levando em consideração o custo final da corrupção no aprovisionamento de água, aquela estimativa aumenta em 45%, chegando a US$580. Como demonstra o exemplo, o fracasso no combate à corrupção resulta em menos domicílios conectados à rede de distribuição de água, em pouco avanço na redução da mortalidade infantil e em maiores desafios para se alcançar as Metas de Desenvolvimento do Milênio relacionadas à água, saúde e pobreza. Se considerarmos a estimativa do custo de conexão em US$400 por domicílio, o “ Os subornos pagos pelas empreiteiras variam em média de um a seis por cento do valor contratual. E as propinas adicionais pagas durante a construção oneram os custos em mais 11%. ” investimento de US$1 milhão em projetos de água encanada realizado em países com carência de tais instalações beneficiaria 2.500 famílias e salvaria 19 crianças por ano.5 O acesso à água traria outros impactos positivos na saúde doméstica, na educação, no resgate da condição feminina e na pobreza. E os custos impostos pela corrupção, em 20 anos, significam que, o mesmo investimento de US$1 milhão, quase 30 % menos de domicílios teriam acesso à água, menos 113 crianças sobreviveriam, e todos os benefícios relacionados ao serviço ficariam definitivamente comprometidos. Recente estimativa na determinação dos custos de investimento, baseados em tendências passadas, indica que países com baixo PIB teriam que investir US$29 bilhões em projetos de água para enfrentarem a demanda dos usuários na década que termina em 2010.6 Os impactos de corrupção inevitavelmente criariam perda de recursos, arruinando a efetividade de tal investimento. Assumindo um contexto de baixa corrupção, a cada ano a taxa de mortalidade infantil recuaria em 540.000 vítimas, graças ao investimento em projetos de acesso à água realizados numa década. Um ambiente de alta corrupção salvaria, ao menos, 30 % de vidas. Essa é apenas uma estimativa parcial. Como sinalizado, os impactos da corrupção no acesso doméstico à água vão mui- to além do aumento da mortalidade infantil. A falta de acesso à água implica também em doenças e mortalidade de crianças mais velhas, bem como de adultos. Menos água e mais doença representam perdas de dias na escola e no trabalho. As conseqüências do acesso reduzido à água deixam marcas duradouras na escolaridade e na geração de renda domiciliar. Para cuidar dos doentes, outros membros da família são obrigados a se afastarem das atividades economicamente produtivas. Quando o domicílio não é servido por água encanada, muito mais tempo é gasto na coleta do líquido em pontos distantes. E, como tal tarefa é freqüentemente delegada às mulheres e às crianças, as famílias são forçadas a se dividirem entre a educação e outras atividades.7 Sistemas de governo fracos e altos níveis de corrupçãocombinam- se em diferentes composições para afetarem os lares e arruinarem o sustento das famílias. De qualquer modo, o impacto mais surpreendente vem a ser o custo em termos de vida e de morte. ■ REFERÊNCIAS 1. As opiniões expressas neste artigo são do autor e não refletem necessariamente as do Banco Mundial, de seus diretores executivos ou dos países que eles representam. 2. J. Davis, ‘Corruption in Public Service Delivery: Experience from South Asia’s Water and Sanitation Sector’, World Development, vol. 32, no. 1 (2004). 3. D. Leipziger et al., ‘Achieving the Millennium Development Goals: The Role of Infrastructure’, Policy Research Working Paper no. 3163 (Washington, DC: World Bank, 2003). It is worth noting that this estimate is open to dispute: see M. Ravallion, ‘Achieving Child-Health-Related Millennium Development Goals: The Role of Infrastructure – A Comment’, World Development, vol. 35, no. 5 (2007). 4. M. Fay and T. Yepes, ‘Investing in Infrastructure: What is Needed from 2000 to 2010’, Policy Research Working Paper no. 3102 (Washington, DC: World Bank, 2003). 5. Com base em domicílio médio de cinco pessoas e uma taxa de natalidade bruta de 30 por 1.000 pessoas (a média nos países de baixa renda). As estimativas exatas são 18,75 e 12,93 mortes evitadas, respectivamente. Cálculo para o caso de baixo custo: cada US$1 milhão investido conecta 2.500 (US$1.000.000/US$400) de lares com 12.500 indivíduos (2.500_ 5). Estes lares dão à luz 375 crianças a cada ano (0,03_ 12.500). Para estas casas, a cobertura aumentou 0 a 100 por cento, resultando em menos 100 crianças mortas por 2.000 nascimentos. Isso sugere que cada US$1 milhão possa salvar em média 18,75 crianças por ano (375_100/2000). 6. M. Fay e T. Yepes, 2003. As estimativas de custo são para o período 2000 a 2010 e te por objetivo o aumento e a manutenção das redes de infra-estrutura de água. Não se baseia na infra-estrutura exigida para atingir-se os objetos estabelecidos nas Metas de Desenvolvimento d Milênio, da ONU. 7. Veja artigo que começa à página 40. Charles Kenny é economista sênior do Banco Mundial, emWashington, DC. O texto, com tradução da editoria de C&MA, foi extraído do Global Corruption Report 2008, Part one: Corruption in the water sector, pp. 15-16. Dividido em 10 capítulos, o relatório de 346 pp. pode ser baixado em formato PDF de www.transparency.org/ publications/gcr/download_gcr#1 Primeiro relatório do gênero, ele identifica todas as questões relacionadas à água. Cidadania&MeioAmbiente 53 s ESCASSEZ DE ÁGUA: Crise ilenciosa foto: kariris Já é consenso que grande parte dos conflitos políticos e sociais no futuro deixará de ter como causa o petróleo e será provocado pelas disputas em torno da água doce, cujos estoques diminuem dramaticamente a cada ano. É tempo de se dar um basta à exclusão hídrica. por Carlos Ferreira de Abreu Castro e Aldicir Scariot A CRISE SILENCIOSA A água é vida para as pessoas e para o planeta. A água doce é – por si só – o elemento mais precioso da vida na Terra. É essencial para a satisfação das necessidades humanas básicas, a saúde, a produção de alimentos, a energia e a manutenção dos ecossistemas regionais e mundiais. “Embora se observe pelos países mundo afora tanta negligência e tanta falta de visão com relação a este recurso, é de se esperar que os seres humanos tenham pela água grande respeito, que procurem manter seus reservatórios naturais e salvaguardar sua pureza. De fato, o futuro da espécie humana e de muitas 54 outras espécies pode ficar comprometido a menos que haja uma melhora significativa na administração dos recursos hídricos terrestres.” (1) O acesso à água já é um dos mais limitantes fatores para o desenvolvimento socio-econômico de muitas regiões. “A sua ausência, ou contaminação, leva à redução dos espaços de vida, e ocasiona, além de imensos custos humanos, uma perda global de produtividade social. (2) A competição de usos pela agricultura, geração de energia, indústria e o abastecimento humano tem gerado conflitos geopolíticos e sócio-ambientais e afetado diretamente grande parte da população da Terra. Mais de 2,6 bilhões de pessoas carecem de saneamento básico e mais de um bilhão continuam a utilizar fontes de água impróprias para o consumo. Por falta de água limpa, metade dos leitos hospitalares disponíveis no mundo é ocupada e cerca de 5 milhões de pessoas (3), na sua maioria crianças, morre anualmente. Apesar destes dados assustadores, a crise da água é uma crise silenciosa. A qualidade e quantidade de água têm impactos diretos nos meios de vida das populações mais pobres, na sua saúde e na sua vulnerabilidade a crises de todos os tipos. Também afetam grandemente o estado do meio ambiente, a capacidade dos ecossistemas de fornecer serviços ambientais e a probabilidade de desastres ambientais. Em todo o mundo, a falta de medidas sanitárias e de tratamento de esgotos polui rios e lagos; lençóis freáticos são rapidamente exauridos e contaminados por métodos de exploração inadequados; águas superficiais são superexploradas pela irrigação e poluídas por agrotóxicos; populações de peixes são sobre-exploradas, áreas úmidas, rios e outros ecossistemas reguladores de águas são drenados, canalizados, represados e desvia- dos sem planejamento.(4) Os estoques de água doce estão sendo intensamente diminuídos pelo despejo diário de 2 milhões de toneladas de poluentes (dejetos humanos, lixo, venenos e muitos outros efluentes agrícolas e industriais) nos rios e lagos. A salinidade, assim como a contaminação por arsênico, fluoretos e outras toxinas ameaçam o fornecimento de água potável em muitas regiões do mundo. 2050, se mudanças profundas não ocorrerem, a escassez de água afetará 7 bilhões de pessoas em 60 países(7). É uma crise silenciosa, é uma crise dos que não têm voz. A OBJETIVOS DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO EXCLUSÃO HÍDRICA: OS POVOS SEM ÁGUA Uma das conseqüências mais perversas deste mau uso é a exclusão hídrica. Hoje, apenas metade da população das nações em desenvolvimento tem acesso seguro à água potável. A escassez de água aumentará significativamente nos próximos anos devido ao aumento do impacto combinado resultante do aumento do uso per capita de água e dos efeitos das mudanças climáticas. O aumento da população e da renda reflete diretamente no aumento do consumo de água e na produção de resíduos poluentes. A população urbana dos países em desenvolvimentos aumentará dramaticamente, gerando demanda muito além da capacidade, já inadequada, de infraestrutura para fornecimento de água e saneamento. Em 2050, pelo menos uma em cada quatro pessoas provavelmente viverá em um país afetado por escassez crônica ou recorrente de água potável. Isto poderá restringir seriamente a disponibilidade de água para todas as finalidades, particularmente para a agricultura, que atualmente responde por 70% de toda a água consumida.(5) A falta de conciliação entre todos esses usos e funções da água, o aumento da demanda aliado aos conflitos já existentes e a assimetria de poder entre os interesses envolvidos criou uma ÁGUA E OS DE Porto Velho (RO) - Crianças da comunidade carente de São Sebastião. Na capital de Rondônia, apenas 3% da população tem saneamento e 50% não conta com abastecimento de água. Prefeitura recebeu R$ 600 milhões para esse tipo de obras, por conta do PAC. Foto: Roosevelt Pinheiro/ABr OS OITO OBJETIVOS FIXADOS PELA CONFERÊNCIA DO MILÊNIO: ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ A erradicação da pobreza e da fome. A universalização do acesso à educação primária. A promoção da igualdade entre os gêneros. A redução da mortalidade infantil. A melhoria da saúde materna. O combate à AIDS, malária e outras doenças. A promoção da sustentabilidade ambiental. O desenvolvimento de parcerias para o desenvolvimento. nova categoria de injustiça social – a exclusão hídrica, os “povos sem água”. O cenário de escassez provocado pela degradação e pela distribuição irregular gera conflitos, seja dentro dos próprios países ou entre nações. Historicamente, dominar o uso da água dos rios fez com que algumas civilizações se utilizassem disso como forma de exercer poder sobre outros povos e regiões geográficas. Um exemplo de conflito moderno pelo uso da água é vivenciado por israelenses e palestinos. Israel depende das águas subterrâneas que estão no território palestino ocupado e retira cerca de 30% da disponibilidade do aqüífero, comprometendo a capacidade de recarga desse reservatório.(6) O estoque de água já é grandemente desigual. A Ásia, com 60% da população mundial, detém apenas 36% da água doce mundial. As disparidades continuarão a crescer. Hoje, vinte países enfrentam uma dramática falta de água. Em Como afirmou Nitin Desai, Secretário-Geral da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, não é possível melhorar a difícil situação dos pobres do mundo sem fazer alguma coisa em relação à qualidade da base de recursos de que dependem: as terras e os recursos hídricos. Melhorar a utilização dos recursos hídricos é decisivo para todas as outras dimensões do desenvolvimento sustentável. Para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a água é um ponto de partida catalítico nos esforços para ajudar os países em desenvolvimento na luta contra a fome e a pobreza, na salvaguarda da saúde humana, na redução da mortalidade infantil e na gestão e proteção dos recursos naturais. Durante a Conferência do Milênio, promovida pela Organização das Nações Unidas em setembro de 2000, 191 países – a maioria representada na conferência por seus chefes de estado ou governo – subscreveram a Declaração do Milênio, que estabeleceu um conjunto de objetivos para o desenvolvimento e a erradicação da pobreza no mundo, os chamados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) – (ver quadro à esquerda). Dada esta lista de oito objetivos internacionais comuns, 18 metas e mais de 40 indicadores foram definidos, tendo em vista possibilitar entendimento e avaliações uniformes dos ODM nos níveis global, regional e nacional. Cidadania&MeioAmbiente 55 A meta 10 visa reduzir pela metade, até 2015, a parcela da população sem acesso seguro e duradouro a água potável. No contexto dos ODM a água desempenha um papel central devido à sua importância para promover o crescimento econômico e reduzir a pobreza, propiciar segurança alimentar, melhorar as condições da saúde ambiental e proteger os ecossistemas. A expansão do acesso ao fornecimento doméstico de água e aos serviços de saneamento contribuirá para o alcance de vários ODM, visto que a água está intrinsecamente ligada a eles. É difícil imaginar como pode haver avanços significativos sem primeiro assegurar que as pessoas tenham um fornecimento duradouro e confiável de água e instalações sanitárias adequadas. A de 2,6 bilhões “ deMaispessoas carecem de saneamento básico e mais de um bilhão continuam a utilizar fontes de água impróprias para o consumo. ” água é um recurso infinito, já provocam o aumento na escassez de água de qualidade nas regiões Sul e Sudeste do país, onde vive 60% da população. CRISE DA ÁGUA NO BRASIL O Brasil detém 12% das reservas de água doce do mundo, sendo que cerca de 70% desse total estão na Bacia Amazônica, onde a densidade populacional é a menor do país. Por outro lado, a região mais árida e pobre do Brasil, o Nordeste, onde vivem 28% da população, possui somente 5% da água doce. A alta densidade populacional, a poluição e a agricultura, aliadas à visão de que a 56 foto: Allarakhia “Nenhuma medida poderia contribuir mais para reduzir a incidência de doenças e salvar vidas no mundo em desenvolvimento do que fornecer água potável e saneamento adequado a todos”. Essa afirmação do então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, define de forma categórica o papel fundamental que a água e o saneamento desempenham na erradicação da pobreza e para assegurar o desenvolvimento humano sustentável. Os índices de abastecimento de água mostram que há enormes desigualdades entre regiões e entre ricos e pobres. Os mais prejudicados são aqueles que vivem nas favelas, periferias e pequenas cidades. Somente um terço dos 40% mais pobres dispõe de serviços de água e saneamento, enquanto que para os 10% mais ricos esse valor sobe para 80%. O saneamento básico atinge somente 56% dos domicílios urbanos e meramente 13% dos domicílios rurais. As classes mais altas, com rendimentos acima de 10 salários mínimos, têm cobertura 25% maior em água e acima de 40% em esgoto que a população com renda inferior a 2 salários mínimos, cujos índices de cobertura desses serviços estão abaixo da média nacional.(8) A Meta 11 dos ODM estabelece que, até 2020, deve haver melhora significativa na qualidade de vida de 100 milhões de habitantes de moradias inadequadas em todo o mundo, incluindo-se acesso a esgotamento sanitário (indicador 31). A análise dos dados demonstra que diminuiu, em termos relativos, a proporção da população sem acesso a esgotamento sanitário – apesar de, em número absolutos, ter havido aumento da população brasileira e da população sem acesso a esses serviços. De fato, em 1991 havia 75,1 milhões de pessoas (61,6%) sem acesso à rede de esgoto e, em 2000, esse número subiu para 93,7 milhões, o equivalente a 55,6% dos habitantes. Se o ritmo de queda percentual continuar o mesmo, em 2015 ainda haverá 45,5% da população sem acesso a esgotamento sanitário. A projeção desses dados indica que pouco menos da metade da população do Brasil (42,3%) continuaria sem acesso à rede de esgoto em 2020. (9) Essas disparidades demonstram o quanto o Brasil ainda tem de avançar nessa questão. O ACESSO À ÁGUA E SANEAMENTO É UMA QUESTÃO ÉTICA A crise da água vem aumentando, mesmo com alguns avanços obtidos para atingir os objetivos estabelecidos em 2000. O Projeto do Milênio das Nações Unidas foi estabelecido em 2002 para desenvolver um plano de ação que habilite os países em desenvolvimento a alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e a reverter o massacre da pobreza, da fome e das doenças que atinge bilhões de pessoas. As equipes das dez forçastarefas do Projeto Milênio, congregando 265 especialistas de todo o mundo, foram desafiadas a diagnosticar os principais impedimentos ao alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e a apresentar recomendações de como superar os obstáculos, colocando as nações no caminho certo para atingir as metas até 2015. No início de 2005, a força-tarefa sobre Água e Saneamento recomendou ações críticas para minorar a crise global de água e saneamento e promover a gestão adequada dos recursos aquáticos. (Ver algumas das ações recomendadas no quadro Água e Saneamento.) ÁGUA E SANEAMENTO Governos nacionais e outras partes envolvidas devem assumir o compromisso de definir a crise do saneamento como prioridade máxima em suas agendas. ■ Investimentos em água e saneamento devem ser ampliados e devem focalizar a provisão sustentável de serviços, em vez de apenas construir instalações. ■ Governos e agências doadoras devem fortalecer as comunidades locais com a autoridade, recursos e capacidade profissional necessários para a gestão do fornecimento de água e a provisão de serviços de saneamento. ■ Estas recomendações mostram claramente que, após cinco anos, a ONU continua conclamando os países a assumir o acesso seguro à água potável como prioridade máxima em suas agendas. O mais grave é o fato de que as metas estabelecidas para 2015 não visam a eliminar, e sim reduzir, a tremenda injustiça social da falta de acesso seguro à água e ao saneamento básico para todos os habitantes da Terra. De acordo com a força-tarefa, expandir a cobertura de água e saneamento não requer somas colossais de dinheiro (10), nem descobertas científicas inovadoras. Quatro em cada dez pessoas no mundo não têm acesso nem a uma simples latrina de fossa não-asséptica e são obrigadas a defecar a céu aberto. Obviamente, o conhecimento, as ferramentas e os recursos financeiros estão disponíveis para pôr fim a esta infâmia. Como afirma Mohamed Bouguerra(11), o fornecimento de água para a humanidade articula-se estreitamente às prioridades estabelecidas pelos homens. Os usos que damos à água refletem, no fim das contas, os nossos valores mais profundos. “A água é, primeiramente, uma questão política e ética. Nenhuma outra questão merece mais atenção por parte da humanidade. Ela determina a paz universal e o futuro de todos os seres vivos”. A posição de Wally N’Dow(12), para quem grande parte dos conflitos políticos e sociais no futuro deixarão de ter como causa o petróleo e serão provocados pelas disputas em Dentro do contexto das estratégias nacionais de redução da pobreza, os países devem elaborar planos coerentes de desenvolvimento e gestão dos recursos hídricos. ■ ■ A inovação deve ser incentivada para acelerar o progresso, e assim alcançar diversos Objetivos de Desenvolvimento simultaneamente. Por exemplo, o desenvolvimento de novas formas de reutilização da água recuperada na agricultura poderia aumentar o rendimento das colheitas e reduzir a fome, melhorando também o saneamento. ■ Mecanismos de coordenação devem ser implementados para melhorar e avaliar o impacto das atividades financiadas por agências internacionais no âmbito nacional. O Programa 1 Milhão de Cisternas levou água ao Povo Xacriabá, em São João das Missões, MG, Médio São Francisco.Foto: João Zinclar torno da água, é hoje praticamente um consenso. O alerta feito por Bouguerra não pode ser ignorado. Necessitamos, hoje, da formulação de uma política global para a água, fundada sobre o plano da ética, e que sirva de guia para definir uma partilha equilibrada dos recursos. “Dessa maneira se poria fim aos embates indignos que os detentores do poder e alguns grupos de pressão exer- cem sobre este recurso. Se a política da água precisa ser integrada à viabilidade econômica, não é menos indispensável que ela englobe também a solidariedade social, a cooperação com os países mais desprovidos, a responsabilidade ecológica e a utilização racional desse recurso, para não comprometer as necessidades das gerações atuais e futuras e dos demais seres vivos que partilham conosco a água do globo”. ■ REFERÊNCIAS: (1) J.W.Maurits la Rivière “Threats to the World’s Water” Scientific American, special issue Managing Planet Earth, 1989 (2) Ladislaw Dobor. In “A Reprodução Social” Volume 2 Política Econômica e Social : os desafio do Brasil. 2001 (3) Dados do relatório da Força-tarefa da ONU. Água e Saneamento do Projeto do Milênio. 2005. Na literatura especializada, estes dados variam muito, com números até cinco vezes maiores. (4) WWF-Brasil “Programa Água para a Vida - Conservação e Gestão de Água Doce” (5) UN/WWAP (United Nations/ World Water Assessment Programme). 2003. UN World Water Development Report: Water for People, Water for Life. Paris, New York and Oxford: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization and Berghahn Books. (6) Instituto Socioambiental – ISA. Almanaque Brasil Socioambiental, 2004. Relatos de diferentes conflitos entre intra e inter nações, bem como resultantes do crescente processo de privatização dos serviços de águas e saneamento pode ser visto em Evaristo Miranda. Água na natureza e na vida dos homens. Idéias e Letras. 2004 e em Mohamed Bouguerra. As Batalhas da Água: por um bem comum da humanidade. Editora Vozes, 2004. (7) The United Nations World Water Development Report 2003, UNESCO-WWAP. (8) Ministério das Cidades 2004. Saneamento Ambiental. Cadernos MCidades, vol. 5. (9) Centro de Pesquisa de Opinião Pública – DATAUnB. Relatório Nacional ODM 7 “Garantir a Sustentabilidade Ambiental”. UnB, 2004. (10) Estima-se que sejam necessários apenas 4% dos gastos militares com armamentos no Mundo para prover água potável e saneamento adequado para toda a humanidade. (11) Mohamed Bouguerra. As Batalhas da Água: por um bem comum da humanidade. Editora Vozes, 2004. 238p. (12) Ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Habitações Humanas (Habitat II) Carlos Ferreira de Abreu Castro – Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento, Coordenador da Unidade de Meio Ambiente, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – a PNUD/Brasil. Aldicir Scariot – Doutor em Ecologia, Analista de Projetos, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD/Brasil. Cidadania&MeioAmbiente 57 SACIAR A SEDE O Programa 1 milhão de Cisternas prova que o povo do semi-árido é capaz de dirigir seu próprio destino e encontrar meios de resolver seus problemas quando lhe são garantidos meios e políticas de convivência com o fenômeno natural da seca. de ÁGUA e CIDADANIA por Frei Beto - fotos: Febraban CISTERNAS DE CHUVA: ÁGUA POTÁVEL NO SEMI-ÁRIDO Como impedir que a população do semiárido brasileiro prossiga vítima da seca? A melhor iniciativa é o Programa 1 Milhão de Cisternas, também conhecido por Programa de Mobilização e Formação para Convivência com o Semi-árido. Em novembro último comemorou-se o marco de 1 milhão de pessoas favorecidas pela construção de cisternas. Quem o monitora, há quatro anos, é a Articulação no Semi-árido Brasileiro (ASA), ONG que conta com o apoio do governo federal, da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), da sociedade civil e de vários parceiros nacionais e internacionais. 58 O programa parte da concepção de que o povo do semi-árido é capaz de dirigir seu próprio destino e encontrar meios de resolver seus problemas, desde que a ele sejam garantidos meios e políticas de convivência com a seca, e não de combate a este fenômeno natural. Assim como em outros países não se combate a neve, mas se aprende a conviver com ela, o mesmo se aplica à seca. Até agora, o programa mobilizou 228.538 famílias e construiu 221.362 cisternas de placas para captação de água de chuva – via calha do telhado da casa –, para consumo humano. Nada mais potável que a água da chuva – que, nas cidades, irres- ponsavelmente desperdiçada, entope bueiros, causa erosão de encostas, alagamentos e enchentes. ÁGUA DE QUALIDADE PARA TODOS Hoje, mais de 1 milhão de pessoas têm garantido o acesso a água de qualidade para beber e cozinhar, o que significa, em termos de segurança alimentar e nutricional, efetiva revolução em suas vidas. Quando se sobrevoa o semi-árido notam-se pontinhos brancos esparsos na zona rural. São as cisternas alocadas nas casas dos agricultores, muitas em lugar de difícil acesso. Um dos efeitos mais tangíveis é favorecer mulheres e crianças que, todo dia, deixam de caminhar quilômetros para buscar água, muitas vezes poluída. Agora, podem dedicar o tempo à educação, à família, à produção, ao lazer. Como muitas mulheres afirmam, sentem-se mais mães, mais esposas, mais companheiras, mais gente. As crianças, agora mais saudáveis, já não são acometidas por doenças transmissíveis por recursos hídricos, entre as quais a diarréia; idosos e portadores de deficiências são atendidos; famílias inteiras, que anteriormente nunca tinham acesso a noções e cursos de tratamento da água e convivência com o semi-árido, agora usam essas informações para melhorar sua qualidade de vida. As cisternas são construídas com, e não para as pessoas; essas se envolvem profundamente na obra, o que garante o seu cuidado. Como todo o processo é feito em comunidades, vê-se ali a erradicação da exclusão social e a afirmação da cidadania. São mais de 1 mil municípios do semi-árido que, mobilizados, compõem um novo cenário. As cisternas, perfuradas ao lado da casa e revestidas de placas de cimento, são equipamentos simples, de tecnologia barata e fácil manejo. Têm longa vida útil quando cercadas de cuidados mínimos, de acordo com o que se aprende nos cursos. Ao visitar a região, notei em algumas girinos vivos, sinal de que a água é própria para consumo humano. Inaugura-se, assim, uma política pública não-clientelista, efetivamente voltada aos mais pobres. Falta, agora, o governo federal dar mais apoio à ASA, para que se possa atingir a meta de construir 1 milhão de cisternas e favorecer 5 milhões de pessoas com acesso à água potável. E fica a pergunta que não quer calar: por que nas edificações urbanas raramente se encontram equipamentos de captação da água da chuva, gratuita e potável? O exemplo não deveria começar pelas obras do poder público? ■ Frei Beto é escritor e autor, em parceria com Mario Sergio Cortella, de Sobre a Esperança (Papirus), entre outros livros. Artigo publicado no Estado de Minas, Belo Horizonte (15/11/2007) e enviado por William Rosa Alves, colaborador do www.ecodebate.com.br CISTERNAS: ÁGUA POTÁVEL NO SEMI-ÁRIDO SEMI-ÁRIDO NORDESTINO Área de 868 mil km2. Abrange o norte dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo; o sertão da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e o sudeste do Maranhão.  Estima-se que vivam aproximadamente 8 milhões de pessoas na área rural dessa região, o que a torna o semi-árido mais populoso do mundo.  Na região chove em média 700 a 750 milímetros por ano.  A chuva não é regular, e o solo não absorve a água, que evapora rapidamente.  Por isso é importante captar a água das chuvas e armazená-la para a estiagem.   CISTERNAS Cisternas caseiras são o reservatório mais simples e eficiente. Cisternas de placas são o tipo mais comum. Cisternas de placas são reservatórios cilíndricos, cobertos e semi-enterrados que permitem o armazenamento de água para consumo humano.  O tamanho da cisterna varia de acordo com o número de pessoas da casa e do tamanho do telhado.  As cisternas podem armazenar 10 mil, 15 mil, 16 mil, até 20 mil litros.  A experiência mostra que a cisterna pode garantir água potável para a família beber e cozinhar por oito meses.  Uma família de cinco pessoas terá água para beber por até um ano, com 200 mm de chuva por ano.    MATERIAIS E CUSTOS Os materiais necessários são cimento, areia, ferro, arame, brita, vedacit, calhas de zinco, pano, canos de PVC e joelho de PVC e supercal.  Segundo técnicos da ONG dos funcionários do Banespa que trabalham com o Projeto Cisternas, os custos atuais variam bastante: de um mínimo de R$844,00 até o máximo de R$1.200,00. Há construções de R$880,00 a R$900,00, até R$1.111,00.  A mão-de-obra é a própria família, que precisa aprender não só a construir a cisterna, mas como fazer sua manutenção e como tratar a água.  Pedreiros são treinados para fazer cisternas. Pela obra podem receber R$100,00, muito acima da média do sertão. Dá-se preferência a pedreiros da própria comunidade.  BENEFÍCIOS Queda vertical dos casos de verminose. Uma comunidade da Bahia acusou 100% de habitantes com verminose antes da construção de cisternas. Depois, o índice caiu para 7%.  Uma família gasta em média uma hora por dia para buscar água nos açudes. Com a cisterna a família tem mais tempo para outras atividades.  Diminui a dependência da população aos caminhões-pipa enviados por políticos regionais.  Promove a educação da população em questões de saúde, higiene, ecologia e cidadania.  Contribui para a geração de renda, tornando o grupo beneficiado auto-sustentado.  Fixa a população na região.  Fonte: Febraban - Federação Brasileira de Bancos/Superintendência de Comunicação Social Cidadania&MeioAmbiente 59 DIREITOSIHUMANOS S eria de se esperar que o advento do século 21 iniciasse uma era de tolerância e de respeito ao semelhante. Na prática, no entanto, evidencia-se o crescimento de uma onda global de intolerância, de preconceitos e de absoluta rejeição aos que, de algum modo, são diferentes. Por isso, os direitos humanos fundamentais são seguidamente violados em escala global. Ninguém nasce intolerante, preconceituoso, racista, homofóbico, misógeno, anti-semita, islamofóbico, etc. Tais atitudes são aprendidas no berço, herdadas da intolerância – aberta ou camuflada – de nossos antepassados. Se não tivermos capacidade crítica de compreender nossos próprios preconceitos e superá-los, iremos, certamente, reproduzir o modelo, contaminar nossos descendentes... e perpetuar desigualdades. Muitos desafios se apresentam neste novo século, com destaque para as mudanças climáticas, aquecimento global, hiperconsumo, esgotamento de recursos naturais, crise alimentar, refugiados ambientais... Sem o esforço concentrado de solidariedade e de respeito aos valores humanistas, todas as ações para salvar o planeta e a nós mesmos redundarão em fracasso. Nenhuma parcela da humanidade está ao abrigo dos desafios globais. Mais do que nunca precisamos redescobrir o sentido da fraternidade, valorizar o que nos une e desprezar o que nos distância. Se não nos esforçarmos para sermos melhores do que nossos antepassados, os novos desafios deste século serão muitos maiores e mais poderosos do que todos nós. Não temos muito tempo. Henrique Cortez 60 ? POR QUE A LEI ÁUREA NÃO REPRESENTOU A ABOLIÇÃO DEFINITIVA por Leonardo Sakamoto O fim da escravidão legal no Brasil não foi acompanhado de políticas públicas e mudanças estruturais visando à inclusão dos trabalhadores. Por isso, para além dos efeitos da Lei Áurea, que completa 120 anos, trabalhadores rurais do Brasil ainda vivem, hoje, sob a ameaça do cativeiro. 61 Cidadania&MeioAmbiente 61 E m 2008, comemoram-se os 120 anos da Lei Áurea, quando o Estado bra sileiro passou a considerar ilegal o direito de propriedade de um ser humano sobre outro. Contudo, o ato da princesa Isabel não foi a causa do fim do regime escravista no país, mas o final (postergado, ao máximo) de um processo que começou com a proibição do tráfico negreiro entre a África e o Brasil. E contou com a instituição de garantias prévias para que os proprietários rurais tivessem mão-deobra farta e à disposição, mesmo após a assinatura que condenou o trabalho escravo à ilegalidade. Para entender esse processo, portanto, é necessário voltar no tempo e recorrer aos acontecimentos do início do século XIX. Não apenas àqueles decorrentes da mudança da família real para o Brasil, mas também à expansão da Inglaterra industrial pelo mundo. O EXPANSIONISMO INGLÊS E A ESCRAVIDÃO Com a invasão das tropas napoleônicas, a Coroa Portuguesa passou a depender dos ingleses para retomar seu país e garantir sua própria segurança no Rio de Janeiro, além da proteção das colônias. Não é de se estranhar, então, que a Inglaterra, interessada em tornar o Brasil e as colônias espanholas do Prata e do Pacífico mercados para seus produtos manufaturados e fontes baratas de matérias-primas, pressionasse por melhores condições comerciais. O Tratado de Navegação e Comércio, assinado em 1810, dois anos após a abertura dos portos às nações estrangeiras, foi instituído nesse sentido. Por um tempo, os ingleses passaram a usufruir de uma taxa de importação (15%) menor que a própria tarifação imposta aos produtos portugueses (16%). Junto a esse acordo foi assinado outro entre as duas coroas. Pelo Tratado de Aliança e Amizade, Portugal comprometia-se a limitar o tráfico de escravos entre suas colônias. A bem da verdade, isso não causou grande impacto na economia brasileira, pois o comércio português de escravos já estava restrito aos seus próprios domínios na África. Mas foi um dos primeiros indícios do que viria a ser o comportamento inglês, nas décadas seguintes. Prova disso é que, no Congresso de Viena, cinco anos mais tarde, pressionado pelos ingleses, Portugal concordou em 62 proibir o tráfico de seres humanos em regiões acima da linha do Equador. A medida colocava de fora desse sistema comercial um dos principais fornecedores de mão-de-obra para o Brasil – a Costa da Mina, na África Ocidental. O acordo veio ganhar “força de lei” após a inclusão das canhoneiras ao papel assinado, por meio de uma cláusula adicional, inserida anos mais tarde, que dava à Inglaterra o direito de abordar, em alto-mar, embarcações suspeitas de transportarem cativos e de apreendê-las. “ A importação era a única forma de suprir o aumento da demanda por força de trabalho e mesmo sua reposição, já que a reprodução da mão-de-obra escrava em cativeiro era insignificante. ” A despeito dos acordos internacionais, tanto a Coroa Portuguesa quanto o governo imperial brasileiro que a sucedeu não tornaram efetivas essas promessas de encerrar o tráfico. A Inglaterra, que teve um papel de mediação no processo de independência do Brasil, continuou pressionando a nova administração, com medidas duras, para acabar com o tráfico negreiro. Exigiu, em um tratado de 1826, ratificado em 1827, que o país proibisse o comércio humano em três anos. Em 1831, o Brasil realmente promulgou a lei proibindo o tráfico de pessoas da África e declarou livres os cativos que desembarcassem após aquela data. É claro que a lei permaneceu como letra-morta, em função do fortalecimento da influência dos proprietários rurais após a abdicação do Imperador Pedro I, no mesmo ano. ESCRAVIDÃO: BASE DAS ATIVIDADES ECONÔMICAS Pois, como afirmou Caio Prado Júnior, a escravidão constituía a mola mestra da vida do país, repousando sobre ela todas as atividades econômicas. A produção nacional, voltada para atender às necessidades de gêneros alimentícios (como o café) e de matérias-primas para uma Europa em plena marcha industrial, dependia do trabalho servil. Em decorrência disso, por mais que houvesse um crescente descontentamento da opinião pública esclarecida com relação ao trabalho escravo, era enérgica a defesa de sua manutenção pelo setor produtivo. Afinal de contas, não havia no horizonte visível uma opção (que não desmontasse o sistema) para substituir esse tipo de mão-de-obra. E a importação era a única forma de suprir o aumento da demanda por força de trabalho e mesmo sua reposição, haja vista que a reprodução da mão-de-obra escrava em cativeiro era insignificante. Na sociedade escravista, o trabalhador não possuía a propriedade de sua força de trabalho. Não tinha liberdade para vendê-la a quem garantisse melhores remunerações ou condições de subsistência; estava atado a uma pessoa ou empresa pelo tempo de sua vida. Era mercadoria. E, por ser mercadoria, também era patrimônio. A riqueza de um homem era comumente medida pela quantidade de escravos que possuía. Mas configurava-se como um patrimônio de natureza diferente, comprado pelo fazendeiro em um mercado de força de trabalho, do qual acabava por ser dependente e refém. O escravo-mercadoria tornava-se objeto de lucro pelo comércio internacional antes mesmo de começar a produzir. Ao investir determinada soma de dinheiro na compra de força de trabalho, um fazendeiro tinha em mente que teria de buscar um retorno equivalente ou superior à quantidade de recursos necessários à manutenção da mão-de-obra, somada aos recursos que ele investiu em sua compra, mais a taxa de juros que ganharia caso investisse o mesmo valor no mercado. Caso contrário, o negócio não valeria a pena. Na primeira metade do século XIX já era possível prever que o fim da escravidão no Brasil seria apenas uma questão de tempo. Tanto as pressões externas quanto as internas apontavam para uma mudança no tipo da força de trabalho utilizada na produção, o que, sem dúvida alguma, era condição fundamental aos desenvolvimentos econômico e social do país. A dúvida seria como e quando a mudança aconteceria e a qual custo – toda alteração no curso de um sistema tem um custo, que é ponderado pelos gestores no momento de tomar decisões quanto à adoção de políticas. Um fator interno que contribuiu para que esse balanço de fatores pendesse para o fim do tráfico foi a situação exposta pelo sociólogo José de Souza Martins. Os comerciantes de escravos haviam se tornado proeminentes figuras financeiras, tendo os proprietários rurais do país como seus devedores. A sujeição econômica a essa classe, que já não gozava de boa reputação e imagem na sociedade, trazia insatisfação aos produtores. Vale lembrar que, externamente, o país já enfrentava problemas com a abordagem internacional de seus navios, sendo eles transportadores de escravos ou não. A justificativa de impedir o tráfico era usada mesmo quando as embarcações estavam de acordo com os acordos ingleses. Em 1845, o parlamento inglês aprovou o Bill Aberdeen, declarando legal o aprisionamento de qualquer embarcação utilizada no tráfico e a sujeição de seus ocupantes ao julgamento por pirataria. Os navios eram caçados não apenas em alto-mar, mas também em águas abrigadas do Brasil e nos seus portos. LEI DE TERRAS: A EXCLUSÃO SOCIAL E ECONÔMICA Em 1850, o governo brasileiro finalmente adotou ações eficazes para coibir o tráfico transatlântico de escravos, com a adoção de leis e ações. Os resultados puderam ser sentidos rapidamente: em 1849, 54 mil escravos entraram no país. O número caiu para 23 mil, em 1850; 3 mil, em 1851; pouco mais de 700, em 1852, até acabar, então, definitivamente. Nos anos seguintes, foram tomadas medidas pela libertação de crianças e de sexagenários. Isso, na verdade, serviu apenas como distração, postergando o fim da escravidão. Os escravos que conseguiam chegar aos 60 anos já não tinham condições de trabalho e eram um “estorvo” financeiro para muitos fazendeiros que os sustentavam. Já os filhos dos escravos não possuíam autonomia para viverem sozinhos. Muitos, até completarem 18 anos, foram tutelados (e explorados) pelos proprietários de seus pais. Além disso, uma corrente de tráfico interno vendia escravos do Nordeste para suprir a crescente produção de café, no Sudeste. Todavia, por mais que fosse postergada, com o fim do tráfico transatlântico, a propriedade legal sobre seres humanos estava com os dias contados. Em questão de anos, centenas de milhares de pessoas tornaram-se livres para ocuparem terras virgens – que o país tinha de sobra – e produzirem para si próprias, em um sistema possivelmente de campesinato. “ Libertos, os filhos de escravos não possuíam autonomia para viverem sozinhos. Até completarem 18 anos eram tutelados (e explorados) pelos proprietários de seus pais. ” Mas quem trabalharia para as fazendas? Como garantir mão-de-obra após a abolição total? Vislumbrando que, mantida a estrutura fundiária do país, o final da escravidão poderia representar um colapso dos grandes produtores rurais, o governo brasileiro criou formas de garantir que poucos mantivessem acesso aos meios de produção. A Lei de Terras foi aprovada poucas semanas após a extinção do tráfico de escravos, em 1850; e ela criou mecanismos para a regularização fundiária. As terras devolutas passaram para as mãos do Estado, que passaria a vendê-las, e não doá-las, como era feito até então. O custo da terra começou a existir, mas não era significativo para os fazendeiros, que dispunham de capital para a ampliação de seus domínios – ainda mais com os excedentes que deixaram de ser invertidos com o fim do tráfico. Porém, era o suficiente para deixar ex-escravos e pobres de fora do processo legal. Da mesma forma, a lei proibia que imigrantes que tiveram suas passagens financiadas para virem ao Brasil (ato co- mum na política de imigração) comprassem terras até três anos após sua chegada. Ou seja, mantinha a força de trabalho à disposição do serviço do capital. Os preceitos da lei não foram necessariamente respeitados, principalmente por quem possuía recursos para isso. Afinal, ela não havia sido criada para impor ao capitalismo brasileiro um problema, e sim para garantir seu florescimento. De acordo com Emília Viotti da Costa, os ocupantes de terras e os possuidores de títulos de sesmarias ficaram sujeitos à legitimação de seus direitos, o que foi feito em 1854, por meio do “registro paroquial”. O documento validava a ocupação da terra até essa data. Assim, nasceu uma indústria de falsificação de títulos de propriedades, com a participação de cartórios. Familiar aos proprietários de terra, os procedimentos para isso eram inatingíveis ao ex-escravo ou ao imigrante, por desconhecimento ou falta de recursos financeiros para subornar alguém. Com o trabalho cativo, a terra poderia estar à disposição para livre ocupação. Porém, com o trabalho livre, o acesso a ela precisava ser restringido. A existência de terras livres garantia produtores independentes e dificultava a centralização do capital e da produção baseada na exploração do trabalho. Com o fim do tráfico e o livre mercado de trabalho despontando no horizonte, o governo brasileiro foi obrigado a tomar medidas para impedir o acesso à terra, mantendo a mão-de-obra reprimida e alijada de seus meios de produção. Dessa maneira, a Lei de Terras, nascida do fim do tráfico de escravos, está na origem da atual exploração do trabalhador rural e, portanto, da escravidão contemporânea. As legislações que se sucederam a ela trataram do assunto apenas reafirmando medidas para garantir a existência de um contingente reserva de mão-deobra sem acesso à terra, mantendo baixo o nível de remuneração e de condições de trabalho. Com a Lei de 1850 estava formatada uma nova estrutura – em substituição àquela que seria extinta em maio de 1888 – para sujeitar os trabalhadores. O PÓS-LEI ÁUREA: LIBERDADE PARA O CAPITAL E SERVIDÃO POR DÍVIDA Porém, ela também resolveu outro problema crucial: ao dificultar o acesso à terra e legalizar a posse, criou valor para algo que Cidadania&MeioAmbiente 63 até então não o possuía – a terra. Como não era um objeto passível de ser comercializado, a fazenda consistia, em um primeiro momento, no locus onde ocorria a exploração e, dali em diante, no trabalho acumulado dos escravos – traduzido em mercadorias e benfeitorias. Martins explica que a lei possibilitou, dessa forma, a transferência da garantia dada ao mercado de crédito da propriedade dos escravos à propriedade da terra. Esse momento foi decisivo. O trabalho, liberto da condição de renda capitalizada, deixou de fazer parte do capital para se contrapor a ele. Não era mais preciso comprar a capacidade de gerar riqueza; com o fim do direito à propriedade privada sobre seres humanos, o capital também ganhou a liberdade; com a diferença de que poderia usufruí-la melhor do que os antigos escravos. No dia 13 de maio de 1888, com a Lei Áurea, o Estado deixou de reconhecer o direito de propriedade de uma pessoa sobre outra. Contudo, isso não significou que todas as relações de trabalho nas sociedades regidas pelo capital passariam a ser guiadas por regras de compra e venda da força de trabalho mediante assalariamento, com remuneração suficiente para a manutenção do trabalhador e de sua família. O fim da escravidão não representou a melhoria na qualidade de vida de muitos trabalhadores rurais, uma vez que o desenvolvimento de um número considerável de fazendas continuou a se alimentar de formas de exploração semelhantes ao período escravocrata. Na verdade, não apenas no momento da acumulação primitiva originária – historicamente realizada em função de recursos naturais e da força de trabalho –, mas ao longo do tempo, como forma de garantir uma margem de lucro maior ao empreendimento ou mesmo lhe dar competitividade para a concorrência no mercado. Dois casos de utilização de formas de exploração semelhantes ao trabalho escravo, mas que não envolvem propriedade legal de um ser humano sobre outro, tornaram-se referência no pós-Lei Áurea. O primeiro é o dos nordestinos levados a trabalharem na florescente indústria da borracha, na Amazônia. O segundo, o dos colonos estrangeiros trazidos às fazendas de café do interior do estado de São Paulo. Pela descrição da situação, é pos- 64 sível constatar que há um padrão na forma de exploração desses trabalhadores, que continua praticamente o mesmo nos dias de hoje – a servidão por endividamento ilegal. Como esse modelo repetiase em diversos países, ele foi objetivo de discussões internacionais e definido em convenções da Organização Internacional do Trabalho. “ Na sociedade escravista, o trabalhador não possuía a propriedade de sua força de trabalho: estava atado pelo tempo de sua vida. Era mercadoria. ” Após 1850, as exportações de borracha cresceram, no Brasil, devido ao aumento da demanda internacional pelo produto, após o desenvolvimento do processo de vulcanização, maximizando sua resistência e ampliando as possibilidades de moldagem. Entre 1881 e 1890, o produto representava 8% do total de exportações do país e ocupava o terceiro lugar entre os mais vendidos. Vinte anos depois (19011910), a borracha passou a 28% do total de exportações. Isso levou o luxo à região amazônica, onde estavam concentrados os seringais – riqueza esta extraída do trabalho de migrantes nordestinos, muitos deles fugidos da seca que atingiu o Nordeste entre 1877 e 1880. O relato de Caio Prado Júnior vale para aquela época, mas também descreve esse padrão que continua até os dias de hoje: “As dívidas começam logo ao ser contratado: ele adquire a crédito os instrumentos que utilizará, e que, embora muito rudimentares, estão acima de suas posses em regra nulas. Freqüentemente estará ainda devendo as despesas de passagem desde sua terra nativa até o seringal. Estas dívidas iniciais nunca se saldarão porque sempre haverá meios de fazer as despesas dos trabalhadores ultrapassarem seus magros salários. E quando isto ainda não basta, um hábil jogo de contas, que a ignorância do seringueiro analfabeto não pode perceber, completará a manobra. Enquanto deve, o trabalhador não pode abandonar o seu patrão credor; existe entre os proprietários um compromisso sagrado de não aceitarem a seu serviço empregados com dívidas para com outro e não-saldadas.” E utilizava-se a força para manter o trabalhador no serviço. A EXPLORAÇÃO DEGRADANTE DO COLONATO DO CAFÉ Com o final do tráfico negreiro, deu-se o início da implantação de regimes de parceria em várias fazendas de café, trazendo colonos europeus para o serviço. Vale lembrar que a escravidão não era apenas um modo de produção. Historicamente, estava enraizada em toda a sociedade, que girava em torno dela. Portanto, era claro que a relação fazendeiro/escravo demoraria a ser substituída pela de patrão/empregado, tanto ideologicamente quanto na prática – e talvez nunca venha a se realizar plenamente! Um exemplo citado por José de Souza Martins é o da firma Vergueiro & Cia, que contratou imigrantes para executar o serviço: “Na parceria, conforme o contrato assinado com os colonos suíços, “vendido o café por Vergueiro & Cia pertencerá a estes a metade do seu produto líquido, e a outra metade ao (…) colono. Entretanto, o parceiro era onerado em várias despesas, a principal das quais era o pagamento do transporte e gastos de viagem dele e de toda a sua família, além da sua manutenção até os primeiros resultados do seu trabalho. Diversos procedimentos agravavam os débitos, como a manipulação das taxas cambiais, juros sobre adiantamentos, preços excessivos cobrados no armazém (em comparação com os preços das cidades próximas), além de vários abusos e restrições que, no caso da [fazenda] Ibicaba, logo levaram a uma re belião. Esses recursos protelavam a remissão dos débitos dos colonos, protelando a servidão virtual em que se encontravam.” O colono não entrava no mercado de trabalho livre para vender sua força. E, se estivesse insatisfeito com o patrão, teria de procurar outro que comprasse suas dívidas. Perante a lei, estavam livres; contudo, economicamente, eram similares a escravos. A experiência da Vergueiro & Cia gerou insatisfação por parte dos colonos, criou temor nos fazendeiros (receosos de que insurreições como a ocorrida nessa fazenda, em 1856, se repetissem) e também desconfiança de outros países fornecedores de mão-de-obra. Situações como essa se repetiram ao longo de décadas, até que a prática da imigração para o colonato estabelecesse um modus operandi que contou com a participação do governo. Este passou a subvencionar o transporte dos estrangeiros de seu país de origem até o Brasil, diminuindo os problemas com o endividamento. Os colonos esperavam obter, pelo trabalho nas fazendas de café, recursos suficientes para adquirirem sua própria terra. O colonato passou a ser visto e incentivado como uma etapa necessária à independência econômica. A exploração degradante e ilegal do trabalho continuou, portanto. Ao analisar a situação do colonato do café entre o final do século XIX e início do seguinte, no Brasil, Martins afirmou que a propriedade capitalista da terra assegurava ao fazendeiro a sujeição do trabalho e, ao mesmo tempo, a exploração ilegal de seres humanos. Apesar de trabalharem para a fazenda, os colonos atuavam como arrendatários, ficando cada grupo com um pedaço da região, cuidando do cafezal e entregando o produto para o proprietário da terra. Para isso, eram remunerados abaixo do valor de seu serviço e de forma insuficiente para garantir a subsistência. Como conseqüência, tinham que utilizar as terras entre os cafezais, ou próximas deles, para produzirem seus alimentos. O trabalho absorvido na formação da fazenda de café era convertido em capital na forma de cafezais. Dessa forma, ela produzia, a partir de relações não-capitalistas de produção, boa parte de seu capital. Durante todo o século XX, a servidão Brasília (08/05/06) - Ato na Câmara dos Deputados pede aprovação de proposta de emenda à Constituição (PEC) contra o trabalho escravo. Foto: Antônio Cruz/ABr por dívida utilizada contra os seringueiros e os primeiros imigrantes do café consolidou-se como uma das formas empregadas para reprimir a força de trabalho nas situações de expansão do capital sobre formas não-capitalistas de produção. Não há estimativas confiáveis do número de escravos no país, atualmente. Alguns levantamentos falam de 25 mil; outros, de 40 mil. O fato é que, de 1995 até hoje, mais de 30 mil pessoas já foram libertadas em operações dos grupos móveis de fiscalização do Governo Federal, responsáveis por apurarem denúncias e libertarem trabalhadores. Para além dos efeitos da Lei Áurea, que completa 120 anos, trabalhadores rurais do Brasil ainda vivem, hoje, sob a ameaça do cativeiro. Mudaram-se os rótulos; ficaram as garrafas. Marx afirmava que o “morto apodera-se do vivo”. Com base na permanência da escravidão sob outras formas, constatase que não são apenas as velhas formas que se inserem nas novas, mas as novas recorrem às velhas sempre que possível. ■ PARA SABER MAIS: ◗ História do Brasil, de Bóris Fausto ◗ História econômica do Brasil, de Caio Prado Júnior ◗ Política de terras no Brasil e nos Estados Unidos, de Emília Viotti da Costa ◗ O cativeiro da terra, de José de Souza Martins ◗ Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, de Fernando Henrique Ilustrações: Jean Baptiste Debret Leonardo Sakamoto – Jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, além de coordenador da ONG Repórter Brasil e da Agência de Notícias Repórter Brasil. Brasília - O jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto recebe o Prêmio Combate ao Trabalho Escravo 2006 de cinco instituições (OIT, Anamatra, ANPT, ANPR e Ajufe), na categoria Personalidade, como destaque no combate a esse tipo de crime. Foto: Antonio Cruz/ ABr Cidadania&MeioAmbiente 65 2,5 SEM BILHÕES SANEAMENTO INSTALAÇÕES SANITÁRIAS A CONSTRUIR ATÉ 2015 MENOS DE 100 100 - 200 200 - 300 MAIS DE 300 Nº DE INSTALAÇÕES POR 1000 DOMICÍLIOS NÚMERO DE VASOS SANITÁRIOS NECESSÁRIOS PARA ATINGIR A META DE SANEAMENTO EM 2015 A FIM DE REDUZIR À METADE A PROPORÇÃO DE PESSOAS SEM ACESSO SUSTENTÁVEL AO SANITARISMO Pesquisa realizada pela OMS e pelo UNICEF mostra que quase metade da população mundial sofre com a falta de acesso a saneamento básico, e que 1,2 bilhão defecam ao ar livre – a prática sanitária de maior risco –, embora cresça o número de pessoas que recebem água potável. por OMS/UNICEF O relatório Progress on Drinking Water and Sanitation – Special Focus on Sanitation (Progressos sobre Água Potável e Saneamento – Enfoque Especial no Saneamento), do Programa Conjunto OMS/UNICEF de Monitoramento do Abastecimento de Água e Saneamento, divulgado em junho último, avalia – pela primeira vez – os progressos globais, regionais e nacionais em relação ao uso de um inovador conceito escada. Esse conceito revela práticas de saneamento com maior detalhe, permitindo aos especialistas realçar as tendências no uso de instalações 66 sanitárias melhoradas, partilhadas e nãomelhoradas, e a tendência quanto à prática da defecação ao ar livre. De maneira similar, quando aplicado à água potável, esse conceito revela a porcentagem da população mundial que utiliza água canalizada para uma habitação, terreno ou quintal; outras fontes melhoradas de água, tais como as bombas manuais; e fontes não melhoradas. Globalmente, o número de pessoas que não têm acesso a uma fonte melhorada de água potável² desceu abaixo de um bilhão desde a primeira coleta de dados em 1990. Atualmente, 87% da população mundial têm acesso a fontes melhoradas de água potável, e, se forem mantidas as tendências atuais, até 2015, essa proporção vai superar os 90%. O número de pessoas que, em todo o mundo, praticam a defecação ao ar livre diminuiu de 24% ,em 1990, para 18%, em 2006. O relatório sublinha também as disparidades dentro das fronteiras nacionais, especialmente entre os moradores do campo e os da cidade. No mun do, há quatro vezes mais pessoas que vivem em áreas rurais – aproximadamente 746 milhões – sem acesso a fontes de água melhoradas, se comparadas com os cerca de 137 milhões de moradores urbanos. O saneamento deficiente ameaça a sobrevivência das crianças dado que um ambiente contaminado por resíduos fecais está diretamente ligado às doenças diarréicas, uma das principais causas de morte de crianças menores de 5 anos. É muito difícil garantir um ambiente limpo quando a defecação ao ar livre é praticada, mesmo que seja só por uma pequena parte da população. “Se as tendências atuais se mantiverem, o mundo ficará aquém da meta do saneamento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para mais de 700 milhões de pessoas. Sem melhoramentos profundos, os prejuízos serão enormes”, adverte Ann M. Veneman, diretora executiva da UNICEF. Não obstante as estatísticas alarmantes, cada vez mais pessoas usam instalações sanitárias melhoradas – aquelas que garantem a eliminação dos excrementos de modo a impedir que provoquem doenças por meio da contaminação dos alimentos e das fontes de água. Embora a defecação ao ar livre esteja em declínio globalmente, 18% da população mundial, totalizando 1,2 bilhão de pessoas, continua a praticá-la. No sul da Ásia, cerca de 778 milhões de pessoas continuam com essa prática sanitária tão arriscada. “Atualmente já se dispõe de variadas opções técnicas de baixo-custo para proporcionar saneamento em quase todas as circunstâncias”, explica a Dra. Margaret Chan, diretora-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde). “Cada vez mais governos estão decididos a levar água e saneamento às suas populações mais carentes. Se quisermos romper o ciclo da pobreza, e colher os múltiplos benefícios para a saúde, temos de enfrentar a questão da água e do saneamento.” Melhorias reais no acesso à água potável ocorreram em muitos países do sul da África. Segundo o relatório, sete dos 10 países que realizaram progressos mais rápidos e estão a caminho de cumprir o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio relativo à água potável estão na África Sub-saariana (Burquina Faso, Namíbia, Gana, Malaui, Uganda, Mali, Djibuti). Dos 10 países que ainda não estão a caminho de cumprir a meta do saneamento, mas estão fazendo progressos rápidos, cinco situam-se na África Sub-saariana (Benin, Camarões, Comoros, Mali e Zâmbia). ■ Rua da Estrutural, a 10 quilômetros do centro de Brasília. Bairro popular não tem coleta de esgoto. Foto: Valter Campanato/ABr CRIANÇAS: AS MAIORES VÍTIMAS DA FALTA DE SANEAMENTO NO BRASIL A relação direta entre acesso ao saneamento e saúde das populações é uma das conclusões da pesquisa Saneamento e Saúde divulgada em maio último pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). O estudo revela que crianças até seis anos de idade sem acesso à rede de esgoto têm 32% de chances maiores de morrer. ■ Apenas 46,77% da população brasileira têm acesso ao esgotamento sanitário. A taxa de mortalidade de crianças de um a seis anos, de 1995 a 1999, era de 3,75% entre a população que não possuía acesso à rede de esgoto, e de 2,35%, entre a população que possuía. Entre 2001 e 2006, os números são 2,89% e 2,25%, respectivamente. ■ ■ Um agravante para essa situação: a taxa de redução da pobreza avança quatro vezes mais rápido do que o acesso ao saneamento. Nesse ritmo, seriam necessários mais 56 anos para atingir-se a Meta do Milênio (reduzir pela metade o déficit do saneamento). Há 14 anos, o esgotamento sanitário brindava apenas 36,02% da população, cujo crescimento no mesmo período foi de 10%. ■O dado sobre o saneamento leva em consideração apenas os domicílios em que o esgoto é coletado por redes, descartando aqueles que possuem fossas sépticas – solução que o Ministério das Cidades considera adequada para o destino dos dejetos, elevando o percentual brasileiro de coleta para quase 90%. Todos os dados e os cruzamentos da pesquisa são baseados na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e estão disponíveis no site www3.fgv.br/ ibrecps/trata_fase2/index.htm Fonte: Trata Brasil – Saneamento, Educação, Trabalho e Turismo. Da Agência Brasil. Publicado no Portal Ecodebate em 21/05/08. NOTAS 1 – Saneamento melhorado refere-se a qualquer instalação sanitária que, de maneira higiênica, separe os dejetos humanos do meio ambiente. 2 – Fontes melhoradas de água potável significa que a fonte de água potável está protegida da contaminação fecal e química. Programa Conjunto OMS/UNICEF de Monitoramento do Abastecimento de Água e Saneamento – Publicado pelo Boletim Diário nº 278 ONU-Brasil. Para mais informações: Kate Donovan, UNICEF Mídia, Nova Iorque – Tel.: (212) 326 7452 E-mail: [email protected]. Publicado no Portal EcoDebate, 18/07/2008. Gráfico por Hugo Ahlenius – “Toilets needed to meet the MDG sanitation target by 2015.” UNEP/GRID-Arendal Maps and Graphics Library. 2005. UNEP/GRID-Arendal. Cidadania&MeioAmbiente 67 AQUECIMENTO GLOBAL, ECOLOGISMO DOS POBRES E ECOSSOCIALISMO O autor analisa a Revolução Ecológica ora em curso no planeta, que objetiva o surgimento de uma nova sociedade ecossocialista radicalmente democrática e capaz de superar a atual crise social e ambiental. por João Alfredo Telles Melo foto:Eduardo Amorim “ Do ponto de vista de uma formação socioeconômica mais avançada, a propriedade privada dos indivíduos na Terra parecerá tão absurda como a propriedade de um homem sobre outros homens. Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, ou mesmo todas as sociedades existentes num dado momento, em conjunto, não são donos da Terra. São simplesmente os seus possuidores, os seus beneficiários, e têm que a legar, num estado melhorado, para as gerações seguintes, como boni patri famílias (bons pais de família).” Karl Marx, O Capital 68 E m artigo recente, intitulado A Ecologia da Destruição, John Bellamy Foster – autor de A Ecologia de Marx, materialismo e natureza (Civilização Brasileira), um dos livros mais importantes para os ecossocialistas – chama a atenção para o fato de que “é uma característica da nossa época que a devastação global pareça sobrepor-se a todos os outros problemas, ameaçando a sobrevivência da terra como a conhecemos”. A CATÁSTROFE ANUNCIADA A grande repercussão do quarto relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, da ONU, em sua sigla em inglês) – em que milhares de cientistas não só constataram a relação direta entre fenômenos climáticos intensos, decorrentes do aquecimento global com a emissão dos chamados gases de efeito estufa (GEE) pelas atividades industriais, energéticas e agrícolas, mas também apontaram projeções catastróficas para este século, caso não haja uma drástica mudança na matriz energética e no padrão de consumo – deu foros de cientificidade ao documentário A Verdade Inconveniente, do ex-vice-presidente estadunidense Al Gore, que recebeu o Oscar deste ano e também, juntamente com o próprio IPCC, o prêmio Nobel da Paz. Portanto, com exceção da minoria dos chamados céticos, dentre os quais se encontram cientistas sérios como o brasileiro Aziz Ab´Saber, e organizações bancadas pelo Governo Bush e pelas grandes indústrias de petróleo e carvão mineral no mundo, há uma ampla maioria – amplíssima, diria – de gente da comunidade científica (e aqui se perfilam brasileiros da maior respeitabilidade, como José Goldenberg, Carlos Nobre e Luis Pinguelli Rosa), de movimentos ambientalistas, de governos e até de setores empresariais que, a partir dos dados do IPCC, procuram encontrar saídas para a crise planetária, manifestada hoje pelo aquecimento global que ameaça a vida na Terra. Abram-se aqui parênteses para aduzir que a aposta dos céticos – em sua versão séria e não comprometida com os interesses do capital petroleiro e mineral – é uma aposta perdida em suas duas possibilidades, a saber: Se estiverem errados (quando afirmam que o fenômeno do superaquecimento é natural e que as previsões do IPCC estão equivocadas), eles podem, de forma involuntária, estar contribuindo com o lobby das grandes corporações petrolíferas e minerais, impedindo a mudança do padrão energético para as fontes renováveis, e serem co-responsáveis pela catástrofe que se prenuncia. Se estiverem certos (o que não é muito provável, dado o amplo consenso científico alcançado depois de quase 20 anos de IPCC), estão atrasando a evolução para a despoluição do planeta. Ou seja, ainda que, numa hipótese quase absurda, não esteja ocorrendo o aquecimento provocado pelas atividades humanas, no mínimo o alerta do IPCC questiona o modo de produção e o modo de vida humana no planeta e nos induz a mudanças profundas e necessárias. A TERRA EM SURSIS: ATÉ QUANDO? Voltando ao tema, vou me permitir não mais ter que detalhar, mas apenas listar, em parte, o extenso e impactante elenco de fenômenos climáticos e de suas resultantes sobre a vida no planeta, como o acréscimo da temperatura média da terra, o derretimento foto:Harry Firmo “ O Brasil é o quarto maior emissor de gases do efeito estufa pelas queimadas e desmatamentos de florestas. ” das geleiras e calotas polares, a desaparição de espécies, a subida do nível do mar, a desertificação e seus profundos impactos sobre a humanidade, que poderá conviver – aliás, já está convivendo – com os chamados “refugiados ambientais” (vítimas de enchentes, tornados, secas, furacões, que, nos últimos tempos, têm atingido populações tão diversas como as asiáticas, as das pequenas ilhas do Pacífico, ou mesmo, nas terras do Império Americano, com o Katrina, em New Orleans, e o incêndio que devastou a Califórnia nos últimos meses deste ano). Se voltarmos ao nosso país – o quarto maior emissor de GEE pelas queimadas e desmatamentos de florestas –, o que se prenuncia é gravíssimo. Se em todo o planeta, no próximo século, ultrapassarmos a linha perigosa de acréscimo de 2oC na temperatura média da Terra, metade de nossa Floresta Amazônica (a mais importante cobertura vegetal tropical do planeta) se transformará em savana, causando profundos impactos não só na própria temperatura da terra, como no regime de chuvas em todo o hemisfério sul. Para o Nordeste brasileiro, as previsões não são menos sombrias. O nosso semi-árido, que, mais uma vez, convive com uma estiagem prolongada, se transformaria em região árida, num quase deserto, sem água e sem produção agrícola. Estaríamos diante do apocalipse? Paulo Artaxo, um dos cientistas brasileiros do IPCC, tenta nos tranqüilizar: “O aquecimento global não é o fim do mundo, de jeito nenhum”, mas adverte: “Um dos pontos cruciais do relatório do IPCC é a urgência da diminuição da emissão dos gases do efeito estufa. Se não fizermos isso, a temperatura vai subir de forma a trazer danos para os ecossistemas e zonas costeiras sem precedentes na história da humanidade”. Para ele – e o IPCC – esse corte deveria ser em torno de 50 a 70 por cento. (Caros Amigos, edição especial: “Aquecimento Global, a busca de soluções”). Cidadania&MeioAmbiente Cidadania&MeioAmbiente 69 69 ©Greenpeace/Alberto César Manaquiri (Amazonas) - Seca em 2005 política e a economia ecológica podem desvendar “A ecologia e apontar as soluções para a atual crise planetária. ” Ora, a necessidade imperiosa da redução na emissão de GEE na escala de 50 a 70% torna o Protocolo de Kyoto (não assinado pelos Estados Unidos, primeiro ou segundo maior emissor de CO2, e que neste mês de dezembro foi ratificado pela Austrália, uma das maiores exploradoras de carvão mineral) absolutamente obsoleto e inócuo. Recorde-se: Kyoto propõe, apenas para os países em desenvolvimento (principais responsáveis pelo aquecimento), o corte de somente 5% (nos níveis de 1990) até 2012. O Brasil, a Índia e a China (que, dado o seu crescimento econômico vertiginoso, já teria ultrapassado os EUA e que tem na base de sua matriz energética o combustível de maior poluição, que é o carvão mineral), dentre outros, não são obrigados a cumprir metas de redução. Todo esse debate não se refere, por óbvio, apenas a números. Aqui se trata, em primeiro lugar, da tentativa de se compatibilizar a urgência urgentíssima na diminuição drástica de emissão de CO2 e outros GEE para a atmosfera, com o direito e a necessidade de países pobres se desenvolverem e atenderem os direitos e necessidades de sua população. Como atender tais necessidades sem tocar no padrão de vida e consumo das classes médias e altas tanto no hemisfério norte (onde são majoritárias) como no hemisfério sul (onde são minoritárias)? (Já gastamos 25% a mais do capital natural da Terra e seria preciso que tivéssemos pelo menos quatro planetas Terra para que todos alcançassem o nível de vida do chamado american way of life.) Uma nova utopia (sustentabilidade ambiental, igualdade social e desenvolvimento econômico em escala planetária) seria possível na atual configuração geopolítica mundial, onde o poder destrutivo da indústria armamentista, petrolífera e minerária se materializa em governos como de Bush, senhor das guerras no mundo? É possível superar a atual crise nos marcos do sistema capitalista? Nas palavras, mais uma vez, de Foster: “Como é que isto se relaciona com as causas sociais e que soluções sociais podem ser oferecidas em resposta tornaram-se as questões mais urgentes com que a humanidade se defronta.” 70 RIQUEZA NATURAL E RIQUEZA MATERIAL Esse debate se situa no campo da chamada Ecologia Política, que, na compreensão de Joan Martinez Alier, estuda “os conflitos ecológicos distributivos - isto é, os conflitos pelos recursos ou serviços ambientais, comercializados ou não”. Para ele, a ecologia política é “um novo campo nascido a partir dos estudos de casos locais pela geografia e antropologia rural, hoje estendidos aos níveis nacional e internacional” (“O Ecologismo dos Pobres”, Editora Contexto). É a ecologia política, juntamente com a economia ecológica, quem pode nos desvendar as causas da crise e apontar as soluções reclamadas por Foster, acima. Carlos Walter Porto-Gonçalves – um dos mais atilados ecologistas políticos da atualidade – nos situa de forma ainda mais precisa na atual crise planetária, quando afirma que “o desafio ambiental se coloca no centro do debate geopolítico contemporâneo enquanto questão territorial, na medida em que põe em questão a própria relação da sociedade com a natureza, ou melhor, a relação da humanidade, na sua diversidade, com o planeta, nas suas diferentes qualidades” (“O Desafio Ambiental”, Editora Record). Para ele, há contradições profundas entre a economia capitalista e a dinâmica ambiental. A separação –“a mais radical possível”–, em suas palavras entre homens e mulheres, de um lado, e a natureza, de outro; a apropriação privada dos recursos ambientais, em que tudo é transformado em mercadoria; o princípio da escassez, pelo qual um “bem só tem valor econômico se é escasso” são absolutamente contraditórios com a visão ecológico-ambientalista de riqueza natural. Vejamos, em suas próprias palavras: “Os economistas modernos vão fundar a economia no conceito de escassez, que, paradoxalmente, é o contrário da riqueza. Tanto é assim que os bens abundantes – idéia central da riqueza – não são considerados como bens econômicos e, sim, como naturais (...). Somente à medida que a água e o ar se tornam escassos – com a poluição, por exemplo – é que a Essa distinção entre riqueza natural – objetivo maior de todos os movimentos ecológicos – e riqueza material – que advém da escassez e, para deleite do sistema mercantil, transforma os bens ambientais em mercadoria – também é tratada por Foster, em outro belo texto, chamado Revolução Ecológica, onde se vale do filósofo grego Epicuro, que declarava: “Quando medida pelo propósito natural da vida, a pobreza é grande riqueza, riqueza ilimitada é grande pobreza.” Portanto, para Foster, “O livre desenvolvimento humano, surgindo num clima de limitação e sustentabilidade naturais, é a verdadeira base da riqueza, de uma riqueza para a existência multilateral; a busca sem limites de riqueza é a fonte primária do empobrecimento e sofrimento humanos. É desnecessário dizer que tal preocupação com o bemestar natural, em oposição a necessidades e estímulos artificiais, é a antítese da sociedade capitalista e a pré-condição de uma comunidade humana sustentável”. Assim, é plenamente justificável que se afirme que, sob o capitalismo, não há possibilidade de superação da atual crise planetária, o que nos permitiria atualizar, como quer Michel Löwy, outro grande expoente atual do ecossocialismo, a consigna de Rosa Luxemburgo para “Ecossocialismo ou Barbárie”. Ora, afirmar isto – a contradição fundamental entre o sistema capitalista e uma nova forma de organização sócio-político-econômica fundada na sustentabilidade e justiça ambiental, na igualdade social e, também, por óbvio, na democracia política, em suas formas mais avançadas de participação popular – por si só não é suficiente para os ecossocialistas. Nas palavras de Löwy: “É preciso começar a construir esse futuro desde já. É necessário participar de todas as lutas, inclusive das mais modestas como, por exemplo, a de uma comunidade que se defende contra uma empresa poluidora; ou a defesa de uma parte da natureza que esteja ameaçada por um projeto comercial destrutivo. É importante ir construindo a relação entre as lutas sociais e as ambientais, pois elas tendem a concordar, unidas, ao redor de objetivos comuns” (Ecologia e Socialismo). OS ECOSSOCIALISTAS E AS LUTAS SÓCIO-AMBIENTAIS É esse campo – o das lutas sócio-ambientais – que reclama a presença dos ecossocialistas. Aqui, poderíamos listar as lutas das comunidades costeiras contra o turismo predatório e a criação de camarões em cativeiros; a resistência dos atingidos por barragens contra os grandes projetos hidrelétricos; o movimento que reúne sem terra, agroecologistas, defensores de consumidores e ambientalistas contra a adoção de sementes transgênicas; a luta de populações locais contra a ampliação das usinas nucleares; a resistência de índios e pequenos agricultores no embate contra a transposição das águas do Rio São Francisco; a articulação dos povos da floresta – índios, quilombolas, seringueiros e ribeirinhos – contra ao avanço do agronegócio do gado e da soja na Amazônia brasileira; a luta das mulheres camponesas contra o exército verde da monocultura do eucalipto; o enfrentamento dos ecologistas e urbanistas contra a especulação imobiliária nas grandes metrópoles etc. FSM 2006-PortoAlegre, Brasil Gabriel Jacobsen economia passa a se interessar em incorporá-los como bens no sentido econômico moderno, isto é, mercantil.” As lutas sócio-ambientais do “ecologismo popular têm uma importância fundamental não só para os ecossocialistas mas para o próprio futuro do planeta. ” Aqui, estamos diante do que Martinez Alier denomina de ecologismo dos pobres ou ecologismo popular, que, nas palavras do autor, tem como eixo fundamental o interesse pelo meio ambiente como fonte de condição para a subsistência e como fundamento ético a demanda por justiça social (e ambiental, acrescentaria) contemporânea entre os humanos. Essa corrente do movimento ambientalista, por lutar contra os impactos ambientais que ameaçam os pobres, que constituem a ampla maioria da população em muitos países, tem uma presença muito forte nos países do hemisfério sul (no antigamente denominado terceiro mundo). As lutas com tais características – sócio-ambientais, do ecologismo popular – têm uma importância fundamental não só para os ecossocialistas, mas para o próprio futuro do planeta. Ali, há uma resistência que, partindo da luta concreta por direitos humanos básicos de moradia, cultura, de modo de vida e de produção, e, também, ao ambiente saudável, questiona os fundamentos não só do atual modelo econômico, mas, em última análise, investe contra as bases do próprio modo de apropriação privada do sistema capitalista, responsável pelo atual estágio de degradação do ambiente planetário. Nessas comunidades, se contrapõem não só interesses materiais, mas formas de vida e produção antagônicas. Portanto, neste momento (mesmo que ainda de forma não articulada) podem se estar forjando não só as alianças sociais fundamentais para esse processo de transformação urgente e necessário – a Revolução Ecológica - mas, também, as bases sócio-econômico-ecológico-cultural-ético-políticas de uma nova sociedade que possa superar a atual crise ambiental global para se tornar, a um só tempo, ecologicamente sustentável, socialmente justa e igualitária, cultural e etnicamente diversa, e política e radicalmente democrática: a sociedade ecossocialista. Estaremos à altura desse imenso desafio? ■ João Alfredo Telles Melo – Advogado, professor de Direito Ambiental e consultor do Greenpeace. Artigo originalmente publicado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina – ADITAL,e em http://www.ecodebate.com.br/default.asp?pagvis=6684 Cidadania&MeioAmbiente Cidadania&MeioAmbiente 71 OS POR QUE MORREM OS CORTADORES DE CANA por Francisco Alves Conheça, nesta detalhada análise das relações de trabalho vigentes na lavoura da cana-de-açúcar, uma das mais arcaicas formas de exploração do homem do campo. Uma aberração que precisa ser discutida e encerrada. S egundo a Pastoral do Migrante, entre as safras 2004/2005 e 2005/ 2006 morreram 10 cortadores de cana na região canavieira de São Paulo. Eram trabalhadores jovens, com idades variando entre 24 e 50 anos; todos eram migrantes, oriundos de outras regiões (norte de Minas, Bahia, Maranhão, Piauí) para o corte de cana. Em seus atestados de óbitos as causa mortis são vagas a respeito do que verdadeiramente ocasionou os óbitos. Os atestados informam apenas morte por parada cardíaca. Proálcool: o início do boom Para entendermos as razões destas mortes é necessário entendermos o processo de trabalho a que os cortadores de cana estão submetidos em sua atividade produti- 72 va. O processo de trabalho passou por mudanças significativas da década de 1980 até a atual. Logo no início dos anos 1980, o país – e, mais especificamente, o setor sucro-alcooleiro – vivia seu período áureo. Estava em plena vigência a segunda fase do Proálcool (após 1979), que incentivava a produção de álcool hidratado e anidro em destilarias autônomas, cuja produção se destinava a atender o enorme crescimento do setor automobilístico movido unicamente pelo novo combustível. O Proálcool foi o maior programa público mundial de produção de combustível alternativo aos derivados do petróleo. Em decorrência do Proálcool cresceu a produção de cana-de-açúcar, foram instaladas novas destilarias e usinas, cres- ceu o número de empregos diretos em toda a cadeia produtiva: da indústria produtora de máquinas e equipamentos para o setor sucro-alcooleiro à comercialização de álcool e açúcar. Criaram-se novos postos de trabalho industrial e agrícola. Naquele período também cresceu a produtividade da cultura agrícola medida em quantidade de cana por hectare ocupado: de 50 t/ha atingiu mais de 80 entre as décadas de 1950-80. Cresceu também a produtividade do trabalho no corte de cana, medida em toneladas de cana cortadas por dia por homem ocupado. Se na década de 1960 tal produtividade era em média de 3 toneladas de cana por dia de trabalho, na década de 1980 ela passou para 6 toneladas e no final dos anos 1990 e início da presente década atinge 12 toneladas de cana por dia. O corte da cana O processo de trabalho no corte de cana consistia, na década de 1980, no corte por trabalhador de um retângulo de 8,5 metros de largura em 5 ruas (linhas em que é plantada a cana) por um comprimento que varia de trabalhador para trabalhador, e é determinado pelo que ele consegue cortar num dia de trabalho. Este retângulo é chamado pelos trabalhadores de eito e seu comprimento varia em função do ritmo de trabalho e da resistência física de cada cortador. E é tal distância que, ao final da jornada de trabalho, é medida para ser o indicador do ganho diário. Estes metros lineares de cana multiplicados pelo valor da cana pesada pela usina dá o valor do dia de trabalho no corte de cana para cada trabalhador. Estimase que para cortar 6 toneladas de cana num dia – considerando-se uma cana de primeiro corte, de crescimento ereto – o comprimento do eito é de aproximadamente 200 metros. Além de cortar a cana contida na área deste retângulo (1.700m²), o cortador deve igualmente cortar as pontas e transportar a cana para a linha do meio (3ª linha), distante 3 metros de cada uma das extremidades do eito. trabalhadores só sabem quantos metros de cana cortaram num dia, mas não sabem, a priori, o valor do metro de cana para aquele eito cortado. Tal desconhecimento é devido ao fato de o valor do metro de cana do eito depender do peso da cana. Ora, tal peso varia em função da qualidade do vegetal produzido naquele espaço, sendo que a qualidade desta cana é por sua vez dependente de uma série de variáveis (variedade da espécie, fertilidade do solo, sombreamento etc.). Nestas condições, as usinas pesam a cana cortada pelos trabalhadores e atribuem o valor do metro, através da relação peso da cana, valor da cana e metros cortados. O processo de pesagem é feito nas balanças da conversão de toneladas de cana em metro. Tais desavenças foram responsáveis pela deflagração da greve de 1986, que começou em Leme (SP) e se alastrou para outras regiões canavieiras do estado e do país. Esta foi a segunda grande greve após a de Guariba, em 1984, detonada contra o sistema de corte em 7 ruas. Na greve de 1986, os trabalhadores reivindicavam o pagamento por metro de cana cortado e não por tonelada. A reivindicação era simples: cada metro de cana cortada, dependendo do tipo de cana (cana de primeiro corte, cana de segundo e demais cortes, cana de ano e meio, cana caída e enrolada), teria um preço definido no acordo coletivo de trabalho. E ao final do dia, o trabalhador teria direito a um recibo (pirulito), no qual estaria registrada a quantidade de metros cortada naquele dia e o valor do metro de cana naquele eito. Os empresários contra-argumentaram, afirmando ser impossível adotar-se o pagamento por metro, já que a unidade de medida utilizada em todas as etapas do processo produtivo era a tonelada de cana. Na verdade a argumentação dos empresários escondia o essencial. Se os trabalhadores A plantação em fileiras permite que o trabalhador abrace um feixe adquirissem o controle do prode cinco e dez canas a cada corte rente ao chão. (Foto IAC) cesso de trabalho e o controle Remuneração das usinas, sem controle do trabalhador. de seu pagamento, as usinas perderiam o baseada na produção Portanto, entre aquelas situações de traprincipal meio de pressão que as empresas O pagamento dos trabalhadores era e é balho analisadas pelos dois pensadores dispõem para aumentar a produtividade do feito em função do volume de cana cortanos séculos 18 e 19 e as praticadas na cana trabalho. Afinal, o processo de trabalho no da/dia de trabalho. Portanto, a remuneranos séculos 20 e 21 há uma enorme distâncorte de cana depende única e exclusivamenção era e é baseada na produção. Assim, cia, a saber: o não controle do salário e do te da destreza do trabalhador, isto é, de um as usinas adotam o pagamento por proprocesso de trabalho pelos trabalhadores; conjunto de atividades manuais independendução, forma de trabalho denunciada por o controle é realizado pelas usinas. te da administração do processo. Adam Smith no final do século 17 e por Karl Marx no século 19 como uma das Assim, em pleno século 21, os cortadores No corte de cana, os trabalhadores têm o mais desumanas e perversas, já que o trade cana trabalham por produção sem sacontrole da atividade, o que não ocorre balhador tem seu ganho atrelado à força berem quanto vão ganhar, já que a remunos processos de produção mecanizados de trabalho despendida por dia. É verdaneração fica na dependência do volume devido à subordinação do trabalhador e de que tanto Adam Smith quanto Karl cortado. Além disso, mesmo cortando do trabalho ao sistema, e no qual os auMarx analisavam esta forma de trabalho muitos metros, o trabalhador pode ter um mentos de produtividade são alcançados em situações em que o trabalhador conganho pequeno, já que o valor do metro através do sistema mecanizado. trolava o seu processo de trabalho e tidepende de um fator de conversão connha, ao final do dia, pleno conhecimento trolada pelas usinas. O fim da greve de 1986 só foi alcançado do valor que tinha ganho por conhecer o quando se acordou que o pagamento dos valor do trabalho executado. Ocorrem inúmeros casos de desavenças trabalhadores seria feito a partir da toneNo corte de cana é diferente porque os entre trabalhadores e usinas, em função lada de cana convertida em metro linear, Cidadania&MeioAmbiente 73 Foto IAC CORTE: TAREFA ÁRDUA E INSALUBRE No corte de cana, o trabalhador recebe o eito de cana definido pelo supervisor da turma e realiza as atividades exigidas: começa a cortar pela linha central (a linha onde a cana será depositada); em seguida corta as duas linhas laterais à central, de forma a que todas as linhas do eito sejam cortadas simultaneamente, sem falhas. No corte, o trabalhador abraça um feixe de cana (de cinco e dez canas) e curva-se para realizar o corte da base, que deve ser bem rente ao chão porque é no pé da cana que se concentra a sacarose. O corte rente ao chão não pode atingir a raiz para não prejudicar a rebrota. Depois de cortadas todas as canas do feixe, o trabalhador corta o palmito, isto é, a parte superior com folhas verdes, que são deixadas ao solo. Em algumas usinas é permitido aos trabalhadores o corte do palmito no chão, na fileira do meio, onde os feixes são amontoados. Neste caso, além de cortar o palmito o trabalhador tem que realizar um movimento com os pés para separar as pontas das canas amontoadas na linha central. Em algumas usinas as canas amontoadas na fileira central devem ser dispostas em montes distantes entre si de um metro. Em outras, é permitido ao trabalhador fazer uma esteira de canas amontoadas, sem a necessidade dos montes. Assim fica claro que para ganhar mais, a quantidade que cada trabalhador corta por dia depende de suas força física e habilidade para a execução da atividade. Eu comparo o cortador de cana a um corredor fundista, pois o trabalhador com maior produtividade não é necessariamente o que tem maior massa muscular. É aquele com maior resistência física para a atividade repetitiva e exaustiva, realizada a céu aberto, sob o sol, em alguns casos na presença de fuligem, poeira e fumaça e por um período que varia entre 8 e 12 horas de trabalho diário. Um trabalhador que corte 6 toneladas de cana, num talhão de 200 metros de comprimento por 8,5 metros de largura, caminha por dia um percurso estimado de 4,4km. Como desfere aproximadamente 50 golpes com o podão para cortar um feixe de cana, ao final do dia são dados 183.150 golpes (considerando-se uma cana em pé, não caída e não enrolada e com densidade de 5 a 10 canas a cada 30cm). Além de andar e de golpear a cana, o trabalhador tem de a cada 30cm se abaixar, se torcer para abraçar e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpeá-la por cima (aproximadamente 36.630 flexões de perna). Como se não bastasse, ele ainda amontoa vários feixes de cana cortados em uma linha e os transporta até a linha central. Isto significa que ele não apenas anda 4.4km/dia, mas transporta nos braços 6 toneladas de cana – um peso equivalente a 15kg por uma distância de 1,5 a 3 metros. Além de todo o dispêndio de energia andando, golpeando, contorcendo-se, flexionando-se e carregando peso, o trabalhador utiliza sob o sol botina com biqueira de aço, perneiras de couro até o joelho, calças e camisa de manga comprida com mangote de brim, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e pescoço e chapéu ou boné. Vestido com tal aparato e operando sob o sol, o trabalhador sua abundantemente, perdendo água e sais minerais (em média 8 litros de água por dia) que ocasionam desidratação e as freqüentes câimbras. Em geral, estas últimas começam nas mãos e nos pés, avançam pelas pernas e alcançam o tórax, provocando fortes dores e convulsões – muitas vezes confundidas com ataque nervoso. Para minimizar câimbras e desidratação, algumas usinas levam para o campo e ministram ao trabalhador soro fisiológico e até mesmo suplementos energéticos para reposição de sais minerais. 74 século 21, os cortadores de cana trabalham “Emporplenoprodução, sem saberem quanto vão ganhar! ” com a possibilidade do controle da conversão pelos trabalhadores. A fiscalização seria feita da seguinte forma: ■ Ao início do trabalho, de manhã cedo, um caminhão (campeão) vai ao local de corte. ■ O caminhão é carregado com cana colhida de três pontos diferentes do talhão, para possibilitar uma amostra representativa da qualidade e das especificidades da cana local. ■ Os trabalhadores podem participar da escolha dos três pontos. ■ Após ser carregado com cana colhida dos três pontos do talhão, o caminhão segue para a usina para ser pesado, sabendo-se que aquela carga corresponde a um determinado número de metros lineares. ■ Após a pesagem é realizada a conversão de tonelada de cana para metro; já atribuído o valor do metro, na medida em que a tonelada de cana paga aos trabalhadores já tem seu valor definido pelo acordo coletivo. ■ O valor do metro obtido na conversão é informado aos trabalhadores no canavial antes do fim do dia. ■ Ao final da jornada de trabalho, o trabalho de cada eito de cana de cada trabalhador daquele talhão é medido através de um compasso de ponta de ferro com 2 metros de largura entre suas pontas. ■ Feita a medição do eito é então elaborado um recibo (pirulito) em que consta a quantidade de metros cortados por cada trabalhador, o valor de cada metro e o total de rendimentos obtidos pelos trabalhadores naquele dia de trabalho. (c) fiscalização da pesagem da cana na usina; e (d) participação no cálculo de conversão da tonelada em metro. Como os trabalhadores são remunerados por produção, os que se dispõem a acompanhar estas quatro etapas perdem, no mínimo, meio dia de trabalho. E se não trabalham, não ganham! Além disto, os que se dispõem a participar se sentem marcados pelos gatos, fiscais e apontadores e pelas usinas, e temem perder seus empregos. O que passou a ocorrer, na prática, é que mesmo nas usinas que mantiveram o campeão, a conversão de tonelada em metros é de responsabilidade exclusiva das usinas, o que pode acarretar prejuízo aos cortadores. Aumento de produtividade A partir da década de 1990 ocorreu forte aumento da produtividade do trabalho. Para manter seus empregos, os trabalhadores necessitam hoje cortar no mínimo 10 toneladas de cana por dia. A média cortada subiu para 12 toneladas de cana/dia. Portanto, a produtividade média cresceu em 100%: das 6 toneladas/homem/dia (na década de 1980) chega atualmente a 12 toneladas de cana/dia. O fato de os trabalhadores hoje terem uma produtividade duas vezes superior à da década de 1980 se deve ao seguinte conjunto de fatores: AUMENTO Desrespeito aos acordos coletivos Apesar de desde 1986 as regras acima enunciadas constarem dos acordos coletivos, na prática o procedimento nunca funcionou, porque a base para o seu funcionamento se centrava na participação dos trabalhadores nas seguintes etapas: (a) escolha dos três pontos representativos da cana do talhão; (b) medição em metros da cana para carregar o campeão; DA QUANTIDADE DE TRABALHADORES DISPONÍVEIS PARA O CORTE DE CANA. Tal disponibilidade se deve a três fatores: 1. aumento da mecanização do corte de cana; 2. aumento do desemprego geral provocado por duas décadas de baixo crescimento econômico; e 3. expansão da fronteira agrícola para o cerrado, atingindo o sul do Piauí e a região da pré-amazônia maranhense, destruindo as formas de produção da pequena propriedade agrícola familiar, predominante nestes estados. POSSIBILIDADE DE SELEÇÃO MAIS APURADA PELOS DEPARTAMENTOS DE RECURSOS HUMANOS DAS USINAS. ■ Esta seleção leva à seleção de trabalhadores mais jovens, à redução da contratação de mulheres e à possibilidade de contratação de trabalhadores oriundos de regiões mais distantes de São Paulo (norte de Minas, sul da Bahia, Maranhão e Piauí). ■ A seleção mais apurada permite que as usinas programem a contratação por período de experiência. Os trabalhadores que não conseguem atingir a nova média de produção – 10 toneladas de cana por dia – são demitidos antes de completarem três meses de contrato. As razões dos óbitos Com todo este detalhamento da atividade do corte de cana fica fácil entendermos porque morrem os trabalhadores rurais cortadores de cana em SP. A meu ver, a solução para este problema só se dará através de mudanças no cerne da questão – o excesso de trabalho devido ao pagamento por produção. O setor sucro-alcooleiro vive uma dicotomia interna. Enquanto utilizar o que há de mais moderno em tecnologia e organização (tratores e máquinas agrícolas de última geração, agricultura de precisão controlada por geoprocessamento via satélite etc.) e ao mesmo tempo manter relações de trabalho condenadas, os trabalhadores continuarão a morrer. Os 10 trabalhadores que faleceram nas duas últimas décadas são uma amostra insignificante do total que deve morrer, clandestinamente, em cada safra. Ao longo dos últimos 20 anos que dedico à análise das condições de vida e de trabalho dos trabalhadores rurais, colhi depoimentos de trabalhadores relatando mortes como as agora tornadas públicas via o excelente trabalho da Pastoral do Migrante de Guariba. ■ www.pastoraldomigrante.org.br Francisco Alves - Professor Adjunto do Departamento de Engenharia de Produção da UFSCar. Artigo originalmente publicado pela ADITAL- Agência de Informação Frei Tito para a América Latina, em 23/02/2006 Cidadania&MeioAmbiente 75 FAVELA OS SUBÚRBIOS DAS CIDADES DO TERCEIRO MUNDO SÃO O NOVO CENÁRIO GEOPOLÍTICO DECISIVO Entrevista com Mike Davis P ela primeira vez na história da humanidade, a população urbana superará em número a população rural. Entretanto, a maior parte dessas pessoas não vive no que normalmente entendemos por cidades, mas em imensos subúrbios sem infra-estrutura e serviços, os quais escapam a qualquer conceituação tradicional. Em Planet of slums – traduzido como Planeta favela(1), e mote desta entrevista – o urbanista, historiador e ativista político Mike Davis aborda o processo de favelização e empobrecimento das cidades do terceiro mundo. 76 foto:Stafly PLANETA COMCIÊNCIA – NA SUA DESCRIÇÃO DE UMA com aspecto de videogame, enfrentando-se com heróicos tecnoguerreiros e com os cavaleiros da Força Delta. É claro que, do ponto de vista moral, é um filme aterrador: é como um videogame no qual é impossível contar todos os somalis que morrem. NOVA “GEOGRAFIA PÓS-URBANA”, O SENHOR UTILIZA UM VOCABULÁRIO INOVADOR: CORREDORES REGIONAIS, CONURBAÇÕES DIFUSAS, Mike Davis – Trata-se de uma linguagem em pleno processo de desenvolvimento e é nela que apenas reside o consenso. Os debates mais interessantes têm surgido a partir do estudo da urbanização no sul da China, Indonésia e no sudeste da Ásia e giram, principalmente, em torno da natureza da periurbanização na periferia das grandes cidades do terceiro mundo. Com este termo refiro-me ao lugar no qual o campo e a cidade se encontram, e a pergunta que se coloca é: estamos diante de uma fase temporária de um processo complexo e dinâmico ou esta natureza híbrida será mantida ao longo do tempo? A nova realidade periurbana apresenta uma mistura muito complexa de subúrbios pobres, deslocados do centro das cidades e, no meio deles, pequenos enclaves de classe média, freqüentemente de construção recente e com muros. Nessa periurbanização encontramos também trabalhadores rurais atraídos pela manufatura de baixa remuneração e moradores dos centros urbanos que se deslocam diariamente para trabalhar na indústria agrícola. foto:Angela7dreams REDES POLICÊNTRICAS, PERIURBANIZAÇÃO... “ Tanto a esquerda quanto a direita concordam que os subúrbios das cidades do terceiro mundo são o novo cenário geopolítico decisivo. ” Além disso, a realidade é que os brancos não são maioria entre os cavaleiros deslocados para o estrangeiro: são americanos, sim, mas quase todos eles são também procedentes dos subúrbios. O novo imperialismo, como o velho, tem essa vantagem: a metrópole é tão violenta e aloja tanta pobreza concentrada que produz excelentes guerreiros para este tipo de campanha militar. Um professor que tive escreveu um livro magnífico que mostrava, contra todo prognóstico, que nas vitórias nas campanhas militares do Império Britânico o fator decisivo não era a tecnologia armamentista, mas a habilidade dos soldados britânicos no corpo-a-corpo com a baioneta, uma habilidade que era conseqüência direta da brutalidade da vida cotidiana nos bairros baixos ingleses. PARA ALÉM DO GIRO EM TORNO DA VIOLÊNCIA E DA INSURGÊNCIA, ESTÁ SURGIN- Curiosamente, este fenômeno despertou também o interesse de analistas militares do Pentágono, que consideram essas periferias labirínticas um dos grandes desafios com o qual irá se deparar o futuro com tecnologias bélicas e projetos imperialistas. Após uma época em que se centraram no estudo dos métodos de gestão empresarial moderna – o just-in-time e o modelo Wal Mart – esses militares parecem estar agora obcecados com a arquitetura e o planejamento urbano. Os Estados Unidos desenvolveram uma grande capacidade para destruir os sistemas urbanos clássicos, mas não tiveram nenhum êxito nas “Sader Cities” do mundo. O caso de Falluja (Iraque) é sintomático: depois que a destroçaram com tanques de guerra e bombas cluster, os mesmos insurgentes com os quais se quis acabar a reocuparam quando acabou a ofensiva. Acredito que tanto a esquerda quanto a direita concordam que os subúrbios das cidades do terceiro mundo são o novo cenário geopolítico decisivo. DO ALGUM SISTEMA DE AUTOGOVERNO NOS SUBÚRBIOS? M.D. – A organização nos subúrbios é extraordinariamente diversa. Em uma mesma cidade latino-americana, por exemplo, existem desde igrejas pentecostais, até Sendero Luminoso, passando por organizações reformistas e ONGs neoliberais. A popularidade de uns e outros coletivos varia muito rapidamente e é muito difícil encontrar uma tendência geral. O que está claro é que na última década os pobres – e refiro-me não apenas aos dos bairros urbanos clássicos que já mostravam níveis altos de organização, mas também aos novos pobres das periferias – têm se organizado em grande escala, seja em uma cidade iraquiana como Sader City ou em Buenos Aires. DO TERCEIRO MUNDO QUE O SENHOR DESCREVE EM PLANETA FAVELA? Os movimentos sociais organizados colocaram sobre a mesa reivindicações de participação política e econômica sem precedentes, que impulsionaram um avanço na democracia formal. Sem dúvida, em geral os votos têm pouca relevância: os sistemas fiscais do terceiro mundo são, com raras exceções, tão regressivos e corruptos, e dispõem de tão poucos recursos, que é quase impossível colocar em marcha uma redistribuição real. M.D. – Se o filme Blade Runner foi um dia o ícone do futuro urbano, o Blade runner dos subúrbios é Black hawk down (2). Reconheço que não posso deixar de vê-lo: sua entrada em cena e sua coreografia são incríveis. O filme representa com perfeição esta nova fronteira da civilização: a “missão do homem branco” nos subúrbios do terceiro mundo e seus exércitos ameaçadores Ademais, inclusive naquelas cidades em que existe maior grau de participação nas eleições, o poder real é transferido para agências executivas, autoridades industriais e entidades de desenvolvimento de todo tipo, sobre as quais os cidadãos não têm nenhum controle, e que tendem a ser meros veículos locais dos investi- QUAL É A REPRESENTAÇÃO CULTURAL MAIS ADEQUADA PARA OS SUBÚRBIOS Cidadania&MeioAmbiente 77 Em quase todos os programas governamentais ou estatais que procuram abordar a pobreza urbana, o subúrbio pobre é compreendido como um simples subproduto da superpopulação. Não tenho nenhuma confiança no conceito de superpopulação. A questão fundamental não é se a população tem aumentado muito, mas como fechar a equação de ter, por um lado, a justiça social e o direito a um nível de vida decente e, por outro lado, a sustentabilidade ambiental. Não há pessoas demais no mundo, o que existe é, obviamente, um consumo excessivo de recursos não renováveis. problema são os brancos que passeiam em seus carrinhos de golfe pelos cento e dez campos que existem em Coachella Valley. Em outras palavras, um homem da minha idade, ocioso, pode estar usando dez, vinte ou trinta vezes mais recursos que uma chicana que tenta seguir adiante com sua família num apartamento do centro da cidade. foto:Miles78 mentos do Banco Mundial. A via democrática em direção ao controle das cidades – e, sobretudo, dos recursos necessários para realizar as reformas urbanas – segue sendo incrivelmente difícil. Não se pode deixar levar pelo pânico do crescimento da população ou da chegada dos imigrantes; o que se deve fazer é pensar como se podem fomentar as atitudes do urbanismo para conseguir, por exemplo, que subúrbios como os de Los Angeles funcionem como uma cidade no sentido clássico. Também se deve respeitar a necessidade absoluta de conservar as zonas verdes e as reservas ambientais sem as quais as cidades não podem funcionar. A tendência atual em todo o mundo é que os pobres busquem acomodação em zonas úmidas (de mananciais) de importância vital, que se instalem em espaços abertos cruciais para o metabolismo da cidade. Aí está o exemplo de Bombaim, onde os mais pobres assentaram-se em um Parque Nacional adjacente e que, de vez em quando, são comidos pelos leopardos, ou de São Paulo, onde se empregam enormes quantidades de substâncias químicas para purificar a água para se livrar de uma batalha perdida contra a poluição na cabeceira de suas fontes de abastecimento. Se se permite esse tipo de crescimento, se são perdidas zonas verdes e os espaços abertos, os aqüíferos são bombeados até esgotá-los e se são contaminados os rios, danifica-se fatalmente a ecologia da cidade. ■ A grande questão atual é: “como conciliar a justiça social e o direito a um nível de vida decente à sustentabilidade ambiental. MAS NÃO EXISTEM CIDADES EXCESSIVAMENTE POVOADAS PARA UM ENTORNO ESCASSO EM RECURSOS, NO QUAL ESTÃO IMPLANTADAS? MD - A inviabilidade de uma megacidade tem menos a ver com o número de pessoas que vivem nela do que com seu modo de consumir: se são reutilizados e reciclados os recursos e se compartilha o espaço público, então é viável. Tem que se levar em conta que a pegada ecológica varia muitíssimo segundo os grupos sociais. Na Califórnia, por exemplo, a ala direita dos movimentos conservacionistas sustenta que há uma enorme onda de imigrantes mexicanos que é responsável pelos congestionamentos e pela poluição, o que é completamente absurdo: não existe população com menor pegada ecológica ou que tenda a utilizar o espaço público de forma mais intensa que os imigrantes da América Latina. O verdadeiro 78 (1) Planeta Favela, Boitempo Editorial, posfácio de Erminia Maricato, 2006, 272 pp.) (2) Black hawk down (Falcão negro em perigo) é um filme dirigido por Ridley Scott em 2001, que retrata uma força de elite americana enviada para capturar militares locais durante a guerra civil da Somália (1993). Mike Davis é prof. no Dpto. de História da Univ. da Califórnia, em Irvine, editor da New Left Review, ensaísta, jornalista e autor de Ecologia do medo, Holocaustos coloniais, e Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. Suas publicações são referências no meio acadêmico. Entrevista publicada originalmente em BLDGblog (// bldgblog.blogspot.com) e na ComCiência (www.comciencia.br – tradução livre de Marta Kanashiro da versão em espanhol publicada pelo Instituto Argentino para o Desenvolvimento Econômico - www.iade.org.ar foto: DR Claro que a solução deve passar pela própria cidade: as cidades verdadeiramente urbanas são os sistemas mais eficientes, ambientalmente falando, que criamos para a vida em comum. Oferecem altos níveis de vida por meio do espaço e do luxo públicos, ou permitem satisfazer necessidades que o modelo de consumo privado suburbano não pode permitir-se. O problema básico da urbanização mundial atual é que não tem nada a ver com o urbanismo clássico. O autêntico desafio é conseguir que a cidade seja melhor como cidade. Planeta favela dá razão aos sociólogos que assinalaram nos anos 50 e 60 os problemas da suburbanização norte-americana: ocupação caótica do território, incremento dos tempos de deslocamento do domicílio ao trabalho e dos recursos associados a esse deslocamento, deterioração da qualidade do ar e falta de equipamentos urbanos clássicos. ” TODOS EM GUERRA CONTRA GAIA Qual é o canto da Terra que não seja objeto de conquista e de dominação por parte do ser humano? por Leonardo Boff O cataclismo econômico-financeiro – fruto de avidez e de mentiras – es conde uma via-sacra de sofrimento para milhões de pessoas que perderam suas economias, suas casas e seus postos de trabalho. Quem fala deles? Os verdadeiros culpados se reúnem mais para salvaguardar ou corrigir o sistema que lhes garante hegemonia sobre os demais atores do que para encontrar caminhos com características de racionalidade, cooperação e compaixão para com as vitimas e para com toda a humanidade. Esta crise traz à luz outras crises que, quais espadas de Dâmocles, estão pesando sobre a cabeça de todos: a climática, a energética, a alimentária e outras. Todas elas remetem para a crise do paradigma dominante. A situação de caos generalizado suscita questões metafísicas sobre o sentido do ser humano no conjunto dos seres em evolução. Neste momento silenciam os pós-modernos com o seu every thing goes. Queiram eles ou não, há coisas que têm que valer; há sentidos que devem ser preservados, caso contrário nos enchafurdamos no mais reles cinismo, expressão de profundo desprezo pela vida. Já há tempos que pensadores como Teilhard de Chardin ou René Girard notaram certo excesso de maldade no caminho da evolução consciente. Cito um pensamento de Girard, estudioso da violência, quando esteve entre nós em 1990 dialogando com teólogos da libertação: “Tudo parece provar que as forças geradoras da violência neste mundo, por razões misteriosas que eu tento compreender, num certo nível são mais podero- sas que a harmonia e a unidade. Este é o aspecto sempre presente do pecado original, enquanto, para alem de qualquer concepção mítica, representa um nome para a violência na história”. Não há por que rejeitar este sombrio veredito. Somente o pensamento da esperança contra toda a esperança, da compaixão e da utopia nos oferece com um pouco de luz. Mesmo assim, há que conviver com a sombra de que somos seres com imensa capacidade de autodestruição, até o último homem. Há anos uma pesquisa alemã sobre as guerras na história da humanidade, citada por Michel Serres em seu último livro “Guerre Mondiale” (2008), chegava aos seguintes dados: ■ De três mil anos antes de nossa era até o presente momento, três bilhões e oitocentos milhões de seres humanos teriam sido chacinados, muitos deles em guerras de total extermínio. ■ Só no século XX foram mortas duzentos milhões de pessoas. Como não se questionar, honestamente, sobre a natureza deste ser complexo, contraditório, anjo bom e satã da Terra que é o ser humano? A GUERRA CONTRA GAIA Hoje vivemos uma situação absolutamente inédita. É a guerra coletiva contra Gaia. Até a introdução da guerra total por Hitler (totaler Krieg), as guerras possuíam seu ritual: eram entre exércitos. Depois passaram a ser entre nações e entre povos: era a guerra de todos contra todos. Hoje ela se radicalizou: é a guerra de todos contra o mundo, contra o planeta Gaia (bellum omnium contra Terram). Pois é isso que está implicado em nosso paradigma civilizacional que se propôs explorar e sugar, com violência tecnológica, a totalidade dos recursos do planeta Terra. Com efeito, atacamos a Terra em todas as suas frentes, nos solos, nos subsolos, nos ares, nas florestas, nas águas, nos oceanos, no espaço exterior. Qual é o canto da Terra que não seja objeto de conquista e de dominação por parte do ser humano? Há feridas e sangue por todas as partes; sangue e feridas de nossa Mãe Terra. Ela geme e se contorce nos terremotos, nos tsunamis, nos ciclones, nas enchentes devastadoras em Santa Catarina e nas secas terrificantes do Nordeste. São sinais que ela nos está enviando. Cabe interpretá-los e mudar a nossa conduta. Esta guerra não será ganha por nós. Gaia é paciente e com capacidade imensa de agüente. Como fez com tantas outras espécies no passado, oxalá não decida livrar-se da nossa, nas próximas gerações. Não nos basta o sonho do filósofo Kant da paz perpétua entre todos os povos. Precisamos com urgência fazer um pacto de paz perene de todos com a Terra. Já a atormentamos demasiadamente. Importa pensar-lhe as feridas e cuidar de sua saúde. Só então Terra e Humanidade teremos um destino minimamente garantido. ■ Leonardo Boff é Teólogo. Artigo originalmente publicado na Agência de Informação Frei Tito para a América Latina – Adital. Cidadania&MeioAmbiente 79 ÁFRICA Viveiro de pinhão manso em Kaffrine, Senegal. Em 2007, foram plantadas as primeiras 35 mil mudas de centenas de milhares previstas para um projeto de cultura energética. Foto:Treesftf A CORRIDA DO “OURO VERDE” Empresas ocidentais estão comprando vastas extensões de terra para satisfazerem as necessidades mundiais de biocombustível. Os governos africanos e os pequenos proprietários rurais são cobertos de promessas de um futuro brilhante. Na verdade, tudo indica que estamos frente a mais uma forma de colonialismo econômico. por Horand Knaup 80 80 T udo dará certo. Correção: tudo vai melhorar. Haverá novas estradas, escolas, farmácias e até mesmo provisão de água própria. Melhor ainda: serão criados no mínimo 5 mil postos de trabalho. “Se houver trabalhos, então será bom para nós”, diz Juma Njagu, 26 anos, que deseja deixar para trás sua difícil existência de carvoeiro. Njagu vive em Mtamba, uma aldeia com 1.100 habitantes no distrito de Kisarawe, Tanzânia, aproximadamente 70 quilômetros sudoeste de Dar es Salaam, a maior e mais importante cidade. Mtamba, acessível por uma estrada de terra, é um lugar onde as pessoas sobrevivem com um pouco de agricultura e de pesca e a produção de carvão. Não há muito mais. Isso pode mudar se a empresa britânica Sun Biofuels der prosseguimento a seus planos de produção de biodiesel do pinhão manso (Jatropha curcas), uma planta energética com alto conteúdo de óleo, que espera plantar nas terras de Kisarawe. O governo da Tanzânia concedeu à empresa britânica o uso de 9 mil hectares (22.230 acres) de terra cultivável nessa região escassamente povoada, ou seja, aproximadamente 12 mil campos de futebol, por um período de exploração de 99 anos – gratuitamente. Em contrapartida, a companhia investirá aproximadamente U$20 milhões (•13 milhões) na construção de estradas e de escolas, trazendo, assim, um mínimo de prosperidade à região. A Sun Biofuels não está só. Na realidade, meia dúzia de outras companhias dos Países Baixos, Estados Unidos, Suécia, Japão, Canadá e Alemanha já enviaram seus agentes para a Tanzânia. Prokon, empresa alemã conhecida principalmente por suas turbinas de vento, já começou a cultivar jatropha curcas em larga escala. Ela espera ter brevemente cerca de 200 mil hectares (494 mil acres) plantados – a superfície de Luxemburgo – na Tanzânia. A Kavango BioEnergy, empresa britânica, planeja investir milhões de euros no norte da Namíbia. As empresas ocidentais estão se implantando em Malawi e em Zâmbia, onde planejam produzir diesel e etanol a partir da jatropha curcas, do dendê ou da cana-de-açúcar. Os investidores estrangeiros estão de olho em 11 milhões de hecta- oferece “aosA África fazendeiros de energia condições ideais para seus objetivos: muita terra improdutiva e a baixo preço, títulos de propriedade nebulosos e regimes políticos altamente influenciáveis. ” res (27 milhões de acres) em Moçambique – mais de 1/7 da área total do país – para cultivarem plantas energéticas. O governo da Etiópia já disponibilizou 24 milhões de hectares (59 milhões de acres). A corrida do ouro explodiu; não só na África Oriental, mas em todo o continente. Em Gana, a empresa norueguesa Biofuel África conseguiu o direito de plantar em 38 mil hectares (93.860 acres), e a Sol Biofuels também está negociando na Etiópia e em Moçambique. pulacional também exercerão pressão no hemisfério sul para a conversão de terra não-produtiva em produtiva. BIOCOMBUSTÍVEL: LUCRATIVO FRENTE AO PETRÓLEO CARO Para os investidores, as plantações energéticas na África são altamente lucrativas. O petróleo cru se tornar-se-á escasso no futuro próximo, de forma que o biocombustível fácil de produzir chega no tempo certo. A um rendimento anual estimado de 2.500 litros por hectare, a Sun Biofuels ficará na Tanzânia por muito tempo. A produção de biocombustível torna-se lucrativa quando o preço do barril de petróleo cru ultrapassa os U$100 (•69) no mercado mundial. A África oferece aos “fazendeiros de energia” condições virtualmente ideais para seus objetivos: terra improdutiva em muitos lugares, baixos preços de terra, títulos de propriedade nebulosos e, sobretudo, regimes políticos altamente influenciáveis. A terra é improdutiva, diz o Ministro da Energia etíope em Adis-Abeba, capital do país. “Nada mais que terra marginal”, confirmam os funcionários do Ministério de Energia e Recursos Minerais em Dar es Salaam. “Tudo isto é mais que positivo”, afirma o administrador de distrito de Kisarawe, responsável pelo projeto da Sun Biofuels. “Nós convencemos as pessoas.” Em seu escritório rudimentar, no qual faltam computador e copiadora, ele folheia os documentos do projeto. As conseqüências dessa corrida são dramáticas. Os especialistas concordam que a compulsão mundial pelo cultivo de plantas energéticas é fator preponderante da explosão global dos preços de alimentos. Segundo um estudo do Banco Mundial, até 75 % do aumento podem ser atribuídos a essa mudança nos tipos de plantações. Muitos fazendeiros de países industrializados ficam mais que felizes em aceitarem subsídios governamentais para plantarem milho ou canola, às expensas do cultivo de trigo, de batata e de legumes. Em nenhum desses lugares, as necessidades dos residentes foram levadas em conta. Em Gana, a BioFuel África arrancou a concessão de uso da terra de um chefe de aldeia que não sabe ler, nem escrever. O chefe tribal deu seu consentimento imprimindo no documento sua impressão digital. O jornal semanal Public Agenda fez lembrar os mais sombrios dias do colonialismo. Infelizmente, a Agência de Proteção Ambiental de Gana acabou com a farra da limpeza do terreno apenas depois que 2.600 hectares (6.422 acres) de floresta foram derrubados. Plantas produtoras de óleo não competem com as terras cultivadas na África — pelo menos ainda. Os investidores argumentam que estão usando a terra não-produtiva ou subutilizada. No entanto, o custo em alta dos alimentos e o aumento po- Na Tanzânia, as esperanças também dão margem ao ceticismo acerca das promessas de que tudo melhorará. Em abril de 2006, a Sol Biofuels alegou ter recebido aprovação formal para o cultivo em 10 das 11 aldeias afetadas. No entanto, naquele momento, várias Cidadania&MeioAmbiente Cidadania&MeioAmbiente 81 81 comunidades nem mesmo estavam cientes dos planos, enquanto outras haviam colocado condições para darem seu consentimento. Um líder de aldeia reclamou, por escrito, à administração do distrito que a Sol Biofuels tinha limpado o terreno e separado a terra sem mesmo contatar os anciões da aldeia. Com semelhantes promessas atraentes, os pequenos agricultores foram desalojados de suas terras para darem lugar a cafezais algumas décadas antes. Nos anos 90, as companhias mineiras estrangeiras chegaram à Tanzânia para prospectarem ouro. “Eles nos prometeram trabalho, novos poços de água, estradas e escolas”, lembra o jornalista Joseph Shayo. “E o que aconteceu? Nenhuma escola, nenhum poço e poucos postos de trabalho mal pagos”. Para tornar as coisas ainda piores, grandes regiões mineiras foram cercadas e ficaram inacessíveis aos antigos residentes. Em Dar es Salaam, Peter Auge, gerente geral da Sol Biofuels Tanzânia, recebeu-nos em seu escritório. Trata-se de um sulafricano simpático e de fala direta. “É verdade termos sido um tanto reA empresa de biocombustível sueca Sekaba planeja plantar cana-de-açúcar servados acerca de nosao longo de um rio da Tanzânia. A cultura do biocombustível competirá com sa política de informaas plantações de subsistência pela água do rio. Foto: Article[25] ção. Ainda há muitos senões e tudo o que não desejamos ver publicado nos jornais é que to perguntaram sobre os pagamentos de nosso projeto está atrasado em dois anos.” indenização, receberam a seguinte resposEm estudo recente, publicado em “Biofuel ta: “Vocês receberão o que foi acordado”. Industry in Tanzânia”, o jornalista Khoti KaAuge promete investimentos sociais, emmanga, da Universidade de Dar es Salaam, bora eles não façam parte dos acordos até O sistema de Relações Públicas está cada adverte contra os efeitos colaterais das plano momento. Mesmo quando se aborda o vez mais ativo, até mesmo em países potações energéticas. A população, Kamanga item compensação para as pessoas que bres como a Tanzânia. A sul-africana Joseescreve, é normalmente desinformada sovivem na terra, e que o governo insiste phine Brennan, chefe de RP da Sekab em bre o fato de que o cultivo de plantas enerque devam ser indenizadas, os investidoDar es Salaam, só vê para a Tanzânia um géticas normalmente caminha de mãos dares estão fazendo um excelente negócio. futuro rosa. O cultivo de biocombustível das com o deslocamento populacional forAfinal, eles ofereceram o equivalente a permitirá ao país construir novas escolas e çado. Segundo ele, é muito provável que a cerca de •450.000 – preço ridículo para os estradas, que resultarão em melhores oporprodução de etanol também afete os preços 9 mil hectares (22.230 acres) que poderão tunidades para a nação. Segundo Brennan, dos alimentos na Tanzânia, aumentando aindesfrutar durante quase um século. no futuro, os pequenos fazendeiros tamda mais a dependência do país por alimenbém poderão ganhar mais dinheiro cultitos importados. Setenta quilômetros mais ao sul, no rio Ruvando plantas energéticas. E apenas isso fiji, milhares de residentes estão sendo forpermitirá que três milhões de habitantes esEm Dar es Salaam, o governo agora recoçados a se mudarem para darem lugar aos capem à linha da pobreza. Com seus dois nheceu que o boom do ouro verde tamprojetos da sueca Sekab: cultivo de canamilhões de hectares de terras cultiváveis, a bém traz problemas. “As plantas energéde-açúcar, uma plantação altamente conTanzânia, diz Brennan, tem potencial de ticas não podem ser uma alternativa prosumidora de água, que cobrirá cerca de 9 crescimento semelhante ao Celtic Tiger, da dução de alimentos”, sentenciou o Presimil hectares (22.230 acres) para, em seguiIrlanda. Ela está convencida de que o mundente Jakaya Kikwete, em resposta ao resda, ser destilada em etanol. Cinco mil hecdo precisa da Tanzânia. sentimento geral difundido no país em retares (12.350 acres) já foram aprovados. lação aos altos preços dos alimentos. Mas as róseas previsões de Brennan O rio e as terras alagadas ao longo de suas não refletem o que se pensa na África Mas os “fazendeiros de energia” permamargens são a única fonte de água potável Oriental. Um estudo realizado pela necem insensíveis. Tanto a Sun Biofuels para milhares de pessoas, especialmente duAgência Alemã para Cooperação Técquanto a Sekab querem ampliar suas prorante a estação seca. A Sekab também planica sobre plantas energéticas na Tanduções para 50 mil hectares (124.000 acres) neja fechar esse reservatório para irrigar suas zânia lista um rol de efeitos colaterais – o mais rápido possível. ■ plantações. Transparência? Inexistente. negativos. Agrava a questão o fato Horand Knaup – O texto Green Gold Rush – Compensação? Nenhuma. Informação? Um desta não ser a primeira vez em que inÁfrica becoming a Biofuel Battleground foi artigo escasso. Quando os residentes prevestidores brancos prometem prospepublicado em Spiegel online – www.spiegel.de sentes ao evento de apresentação do projeridade ao país. (09/05/2008). 82 ? PARA ONDE CAMINHA A HUMANIDADE por Roberto Malvezzi (Gogó) Se as calotas polares vão derreter; Se o mar vai subir; Se as cidades baixas vão desaparecer; Se um bilhão de pessoas vai migrar; Se vai haver secas, chuvas torrenciais, furacões; Se em quarenta anos o Pantanal não vai existir; Se em cinqüenta anos a Amazônia será uma savana; Se em quarenta anos o Nordeste será inabitável; Se em cinqüenta anos o São Francisco vai correr apenas em época de chuva; Se milhões de espécies irão desaparecer; Se bilhões de pessoas irão morrer; Se o único lugar habitável do planeta será onde hoje estão os continentes gelados; Que rumo tem nossa velocidade? Nossa competitividade? Nossas tecnologias? Que adianta saber se o aquecimento global é o óbito do mercado? Que adianta essa pressão para um desenvolvimento se ele nos leva ao abismo? Que adianta saber se os sobreviventes cuspirão em nossos túmulos? Já estaremos mortos e nem o inferno poderá punir essa geração predadora. Penso em nossos filhos, filhas, netos... Penso nos que vão morrer à mingua, de fome, sede, calor... Com um pouco de misericórdia penso na humanidade... Um pouco mais e penso em todos os seres vivos... Recuso-me conceder ao capital o poder de exterminar a vida. Seria sua suprema honra, sua suprema glória. Creio ainda que Deus existe, age na história e sempre tem uma carta na manga... Creio que Ele se revela nos pequeninos e nas pessoas magnânimas, Em quem aprendeu a cultivar os solos, A captar a água de chuva, A preparar e repartir seu próprio pão, A viver uma vida simples, Em quem faz ciência, arte, política e economia a serviço da humanidade, Quem não desperdiça e nem agride as pessoas e a natureza. Em todas as épocas Ele suscitou pessoas à altura de seu tempo. Não vai nos faltar agora, Quando a humanidade mais Dele precisa. Foto:Antonio Cruz/ABr Roberto Malvezzi (Gogó) é Agente Pastoral da Comissão Pastoral da Terra – CPT Publicado originalmente em www.EcoDebate.com.br - 09/01/2007. 84